quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Medeiros e Albuquerque: "O Velho Bastos"

O VELHO BASTOS
Quando se falava no "velho Bastos" todos sabiam de quem se tratava. Ha, de certo, por este vasto mundo muitos Bastos velhos. Mas reunindo-se as duas designações e falando-se no "velho Bastos" ninguém o confundiria com outro qualquer.

E realmente ele tinha singularidades inconfundíveis.

Atualmente era baixote, gordo, atarracado, quase sem pescoço. A sua calva corria parelhas com o que de certo são os trechos mais áridos do Saara.

Fizera fortuna no comercio de secos e molhados; mas fizera fortuna de um modo inteligente. Instalara vários armazéns, onde só se vendiam gêneros enlatados, ensacados ou engarrafados. Nada facilmente estragável.

Bebidas: vendia-as, sim, mas engarrafadas. No armazém não havia o sórdido balcão, forrado de zinco onde os criados vêm embebedar-se. Não se media, nem se pesava nada, porque tudo estava medido e pesado de antemão em saquinhos já prontos. Era a aristocratização da venda de secos e molhados. Os caixeiros estavam vestidos como os das casas de modas mais elegantes da cidade. E, por cumulo, tudo era baratíssimo.. Vendia quase pelo preço do custo.

Quando o primeiro armazém se instalou os concorrentes fizeram uma troça formidável aos por eles chamados "caixeiros de casaca."

Mas no fim do mês já nenhum deles ria. A diferença de preços era tal que a freguesia não podia deixar de ser atraída.

E como não havia o ajuntamento perto do balcão e a casa era escrupulosamente limpa, começaram a aparecer clientes elegantes, senhoras que iam pessoalmente fazer suas compras. Estas lhes eram imediatamente levadas por portadores uniformizados, em geral crianças, mais parecendo empregados de armarinhos chies e não de uma venda.

Seis meses depois de se abrir o primeiro Armazém Bastos, ele transbordava de freguesia durante o dia inteiro. Os donos dos outros armazéns estavam furiosos. Acusavam o velho Bastos "de concorrência desleal" Projetaram lima vasta boicotagem. Mas não conseguiram nada, porque o velho Bastos comprava muito e á dinheiro. Isso lhe permitia obter preços excepcionais. Outros, vendendo por atacado, não podiam competir com os seus preços, vendendo a varejo.

E assim ele enriqueceu muito legitimamente.

Ao primeiro armazém seguiram-se outros, organizados do mesmo modo.

Bastos transbordava de dinheiro.

Em que gastá-lo, si era um solteirão sem parentes? Não tinha amantes. Não sentia delas a mínima necessidade. Proclamava mesmo serem a cousa mais inútil do mundo. Mas lá diz o rifão: quem tem filhos tem cadilhos, quem não tem cadilhos tem. De qualquer modo, portanto, os cadilhos não faltam: coube-lhe em sorte um sobrinho. A irmã, casada, enviuvara dois meses após e ficara grávida. Quando lhe nasceu o filho, morreu. O velho Bastos não teve remédio senão ficar com o pequeno.

Não o trouxe, porém, para casa. Deu-o a criar a uma família muito correta, de costumes rígidos, ou como ele dizia, "de costumes á antiga".

Porque, em matéria de costumes, os do velho Bastos não podiam ser mais puros. Era intransigentemente honrado. Isso fizera aliás um dos elementos do seu sucesso no comercio. Quando lia a lista dos títulos protestados anotava o nome daqueles, com quem evitaria, daí por diante, mesmo as mais simples relações de cortesia.

O grande defeito do velho Bastos estava na sua iracibilidade. À menor falta de qualquer dos seus empregados ficava furioso, possesso, desatinado. A vasta calva tomava a coloração dos tomates maduros. Todo ele tremia de raiva.

Esse fato acabou por levá-lo a abandonar os negócios. Certa vez, após o almoço, irritou-se com um empregado a ponto de chegar a ter um ameaço de congestão cerebral. A língua lhe ficou trôpega por alguns dias. Felizmente, ele se restabeleceu, mas tomou uma grande resolução : converteu os Armazéns Bastos em sociedade anônima, de que aliás tinha a maioria das ações, mas livre da administração direta pode entregar-se á sua grande mania. Porque a outra cousa que o tornava inconfundível era ser o maior colecionador de objetos raros e raridades.

Sua casa era um museu. Certa vez quando, em um leilão, conquistara uma peça rara disputada por outro concorrente, este se afastara desesperado, a murmurar:

— Maldito carne-seca!

Aludia assim ao comercio de secos e molhados, de onde provinha a fortuna do velho Bastos. Mas este, a quem contaram a explosão do derrotado, estava de bom humor pela vitória obtida. Comentou apenas, rindo:

— Precisamente, nos meus armazéns nunca se vendeu carne seca!

O museu do velho Bastos era uma reunião heteróclita de obras raras de arte e de singularidades de todas as espécies.

Constava-lhe ter alguém uma estatueta ou quadro de artista célebre? Esforçava-se para comprar a peça notável. Mas si lia nos jornais do dia a noticia de algum grande crime na cidade, do mesmo modo buscava adquirir a arma com a qual fora levado a efeito: punhal, faca, revólver E nestes casos juntava os atestados do advogado do réu ou, quando possível, do próprio réu, para a autenticidade ficar provada.

O seu máximo prazer era quando passava pela cidade algum ilustre visitante estrangeiro e as autoridades, não sabendo mais como distraí-lo, o levavam ao museu do velho Bastos.

Ele dizia, então, com falsa modéstia ao visitante, tratar-se de uma pequena coleção de curiosidades; mas obrigava a vitima a ouvir-lhe a explicação de tudo.

Nos últimos tempos tinha trazido para casa o sobrinho. Estava ele fazendo o curso de Direito. Achava-se pelo menos matriculado. Na verdade, porém, não estudava nada. Um farrista de primeira ordem. E o tio sentia isso e andava furioso. Mais de uma vez tinham tido discussões azedas e violentas.

Todas as discussões com Bastos tomavam logo este caráter. Ficava escarlate.

Nesse dia, porém, tudo correra normalmente. O velho passara a manhã ocupado na leitura de jornais e na sua correspondência. Era o normal. Ao meio dia serviram-lhe o almoço, no qual fazia questão da presença do sobrinho. E, de fato, esse lá estivera.

O velho se achava de bom humor. Comeu bem, bebeu melhor — e isso queria dizer ter comido muito e bebido muitíssimo. Era o seu pecado predileto: a gula. No capitulo das bebidas não ia até a embriaguez, mas regava copiosamente as suas refeições com vinhos fortes e escolhidos. Acabava-as sempre vermelho, congestionado, e ia dormir a sesta.

Estava á mesa quando o criado lhe trouxe o cartão de um visitante. Leu-lhe o nome com visível estranheza e murmurou entre os dentes: "Não pode ser boa a visita deste patife!" Mas, em voz alta, ordenou fizessem entrar a pessoa e lhe pedissem que esperasse, prevenindo-a só lhe iria falar dentro de quinze a vinte minutos. Não disse, porém, alto o nome do visitante, cujo cartão enfiou no bolso, e continuou a refeição com toda a placidez.

Poucas palavras dirigiu ao sobrinho. Essa era, de resto, a norma. Aturavam-se um ao outro com um mínimo de conversa. Não sabia mesmo o sobrinho ter o tio refeito dias antes o testamento, deserdando-o inteiramente.

Mas embora não soubesse isso, sentia-lhe a hostilidade crescente.

Quando do silencioso almoço o velho se levantou, após haver acendido um grosso charuto, estava com a fisionomia de quem se fartara . E fartara-se realmente! Mas o seu ar, si era o de um homem repleto, com as maçãs do rosto atomatadamente rubras, era também o de um perfeito contentamento.

Ainda rosnou entre os dentes:

— Boa cousa não ha de ser a visita deste canalha!

E entrou no salão, onde era esperado. Mas o "bandido", o "canalha", a quem ele se referia, não deu por sua chegada. Estava de pé, embevecido, contemplando uma das vitrinas do museu.

Ora, esse era o meio certo de fazer a corte ao velho Bastos. A cousa mais lisonjeira para ele era a admiração de quem mirava com entusiasmo as suas coleções.

Desta vez o admirador delas, ocupado nisso enquanto o dono da casa não vinha, merecia realmente os epítetos pouco amáveis usados pelo velho: era o dono de uma casa de penhores, emprestador de dinheiro a juros fabulosos. Bastos passava freqüentemente por diante do estabelecimento dele e várias vezes o encontrara á porta. Em duas ou três ocasiões, com grandes intervalos, tivera tido ocasião de falar-lhe e sentia imensa repugnância com o seu contacto. Era, de fato, um sujeito hipócrita, untuoso, cheio de formulas de excessiva  humildade e cortesia, curvando-se a cada cumprimento. Enojava.

Bastos chamou-lhe afinal a atenção:

— Aqui me tem o Sr. David ás suas
ordens.

— Oh! Sr Bastos. Estava a examinar o revólver deste armário: bela peça!

Com o revólver se cometera tempos antes um dos mais monstruosos crimes. Bastos conseguira obtê-lo. Das seis balas do seu barrilete ainda conservava duas. Complacentemente — talvez mesmo um pouco vaidosamente pela raridade da peça — o colecionador explicou ao usurário como obtivera a arma. Tinha o atestado do advogado do criminoso, afirmando a autenticidade do sinistro instrumento do crime.

Bastos fez ver como a arma se achava em bom estado:

— Ainda se poderia com ela, tal qual está, cometer algum assassinato.

David tomou uma atitude de susto, com pequenos gestos fingidos de horror:

— Não diga isto, Sr Bastos.

— Vamos, porém, adiante, replicou-lhe o capitalista. Sou todo ouvidos.

Sentaram-se. David tirou da carteira um papel e expôs o caso: na véspera se vencera um titulo de dois contos, passado a ele por Bastos.

— Por mim! exclamou este.

— Eu logo vi. Só mesmo por esquecimento o Sr. Bastos deixaria de pagar. O caso não tem a menor importância. O Sr Bastos pagará quando quizer.

Mas o capitalista, vermelho, surpreso e mais talvez ainda irritadíssimo, arrancou-lhe o papel das mãos e mirou-o avidamente. Não teve duvida em reconhecer a sua assinatura.

Mas estava falsificada, evidentemente falsificada.

— Quem lhe deu isto?

— Seu sobrinho.

O velho hesitou um instante. Parecia que ia estourar Mas tomou, de pronto, a única resolução possível; num gesto de cólera muda, com movimentos bruscos, incapaz de dizer uma só palavra, sacou a carteira do bolso, dela tirou quatro notas de 500$000 e, dando-as ao usurário sem lhe dizer mais nada, levantou-o pelo braço e apontou-lhe a saída. O velho Bastos tremia de raiva. Houve um momento, em que, passando junto á mesa onde estava o revólver roçou com a mão nele. David, que notou esse fato, precipitou-se quase correndo, com receio de algum tiro.

Ele não tinha tido, desde o primeiro momento, duvida alguma sobre o titulo: a assinatura havia sido falsificada pelo sobrinho do velho Bastos. Mas David, reconhecendo embora isso desde o primeiro momento, fingiu-se enganado. O velho não deixaria o sobrinho ir para a cadeia, processado por uma falsificação.

E sucedeu, de fato, o previsto. Bastos pagou a divida.

Mal David transpusera a porta, o velho fez chamar o sobrinho e teve com ele violenta explicação. Disse-lhe a sua cólera e a sua vergonha. Sabia ser ele um vagabundo, mas não imaginara a sua tão rápida decida até o crime. Falsificador! Amanhã seria um gatuno, um salteador.

Falando, o velho se aproximara outra vez da mesa em que estava o revólver. Em dado momento, sentindo-o debaixo de sua mão, tomou-o. O sobrinho tremeu apavorado, disposto a saltar sobre o tio e impedi-lo de atirar. Mas viu de súbito o velho segurar a arma pelo cano e passar-lha:

— Só ha uma solução para a tua vida. Toma esta arma e estoura os miolos. Antes suicida que ladrão.

O rapaz aceitou o revólver e saiu com um ar sombrio e decidido. Era uma solução. O velho passava a mão entre o colarinho e o pescoço, meio sufocado. Nisto, ouviu lá dentro a detonação de um tiro. Acabara a historia.

Previu, porém, o desenrolar dos fatos: os criados a chamá-lo, a Assistência, a Policia. Nos estertores da agonia, o moço era bem capaz de acusá-lo. Tomou do cabide um chapéu mole, enfiou-o e saiu de casa. Só voltaria mais tarde, quando as primeiras providencias estivessem tomadas.

E foi-se. Foi-se pelas ruas afora, sem rumo certo. Estava mais do que nunca rubicundo, apoplético, parecendo prestes a explodir Passando na rua central da cidade viu pessoas aglomeradas em frente de um boletim do jornal, posto naquele mesmo instante: seria a noticia do suicídio do sobrinho? Passou de largo, apressado, para não ver; mas o fato lhe aumentou o abalo.

Diante dos olhos se lhe apresentava a cada instante a cena em sua casa: via, como em uma alucinação, o sobrinho caído por terra, com a cabeça varada por uma bala. E a consciência, ás vezes, lhe exprobrava que, afinal, ele talvez tivesse sido excessivo. Praticamente, não se tratava de um suicídio e sim de assassinato. O assassino era ele. Quem segurara a mão do sobrinho para levá-la á cabeça? Quem puxara o gatilho ? Cada vez, sentia uma sufocação mais forte e passava nervosamente a mão entre o colarinho e o pescoço.

Duas horas se tinham já passado, andando assim pelas ruas sem destino.

Nisto deu de frente com o usurário, seu visitante daquela manhã. Ia evitá-lo, quando o homem partiu para ele, com o seu habitual e odioso sorriso. Bastos preferia não falar-lhe, mas si fugisse dele, mais tarde isso lhe poderia ser incriminado. O sobrinho lá estava em casa, morto.

David adiantou-se:

— Ora, sr Bastos, si o senhor estava em dificuldade, podia adiar o pagamento para quando quisesse. Seu credito não tem limites.

— Não compreendo, disse Bastos secamente — ou mesmo mais que "secamente": furiosamente.

— Eu recebi, ha pouco, a visita de seu sobrinho levando, em seu nome, para empenhar, o revólver.

Fez uma pausa e acrescentou:

— Si o senhor não podia pagar, era apenas dizer.

Mas estas ultimas palavras, Bastos não as ouviu. Então o sobrinho, em vez de matar-se, fora empenhar o revólver! Era de mais. Após o almoço, após a emoção da conversa com David e a vista do titulo falsificado, o abalo da convicção de ter-se o sobrinho suicidado e agora, bruscamente a noticia do furto por ele feito, da arma empenhada. Era de mais. De mais, sobretudo para aquele velho organismo, já uma vez visitado pela apoplexia.

Bastos sentiu uma nuvem de sangue avermelhar- lhe mais a face congestionada. Toldou-se-lhe a vista. Rodou sobre si mesmo e caiu — nem era para menos — com a mais fulminante das apoplexias.


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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.

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