3-75
O grande
edifício da penitenciaria, uma das maiores prisões nacionais, levantava-se
em um descampado.
Era uma
construção sem elegância: um cubo enorme de tijolos vermelhos. Quatro andares.
Absolutamente isolado.
Quando quiseram
construir a casa na cidade, os habitantes protestaram e o Governo acabou por
achar valia mais a pena ficar o edifício, mesmo assim, longe de qualquer centro
populoso.
Havia lá mais
de mil presos.
Quando o n.°
3-75 (pois todos só eram conhecidos por números) foi recolhido, trataram-no com
deferência pouco habitual.
Deram-lhe uma
célula grande e clara no primeiro andar. Fizeram mesmo um pouco mais:
escolheram para seu companheiro um moço também fino e educado, condenado por ter
praticado uma pequena e desculpável falcatrua
comercial.
Os dois
rapidamente se ajeitaram á vida comum. O 3-75 quase não falava. Só o fazia quando o outro o interpelava
diretamente e era forçado a responder.
O processo do
qual resultará a condenação do 3-75 fora dos mais ruidosos e estranhos. Tratava-se
de um assassinato. O criminoso matara a mulher Como e porque — ninguém sabia. A
policia foi um dia chamada por este recado telefônico:
— Fala aqui Dr.
Simões Gerifalte (e deu o endereço exato) - Acabo de matar minha mulher. Venham
prender-me.
No primeiro
momento, a policia acreditou fosse um gracejo de mau gosto, mas tocou para o
endereço indicado e teve a confirmação do fato.
Encontraram a
vitima no seu leito, assassinada com um tiro no coração, e o assassino corretamente
vestido pronto para seguir.
No momento de
partir, ele beijou a testa da mulher sem dizer uma palavra e acompanhou as autoridades.
O processo foi
curioso. O acusado respondeu apenas ás perguntas sobre a sua identidade. Interrogado
acerca das causas do crime, fez uma declaração formal. Dela não se apartou posteriormente;
disse que não responderia a mais nenhuma pergunta:
— O importante
para a justiça é conhecer o autor do crime. Sou eu. Não houve nenhum cúmplice.
Si eu quisesse defender-me, minhas respostas serviriam para indicar atenuantes.
Não sei de nenhuma. Feita esta confissão, sem restrição alguma, não estou
disposto a satisfazer curiosidades.
Houve
necessidade de dar-lhe um advogado ex-oficio, porque ele não quisera
indicar nenhum. Quem escolher, á altura do criminoso? Isto se simplificou,
porque o grande e eloqüente advogado Bastos Queirós inscreveu-se precipitadamente
como membro da Assistência Judiciária, só para que o juiz o nomeasse advogado
do réu, de quem era velho amigo. Nas entrevistas com ele nada, porém adiantou. O
acusado lhe disse firmemente estar disposto a não ministrar elemento
algum de defesa. E manteve-se assim até o dia do julgamento.
Neste, o
advogado fez uma oração brilhante, de rara eloqüência. Pintou a carreira
triunfal do medico ilustre, cheio de serviços á ciência, professor, tido como
notável mesmo em países estrangeiros, bom, caridoso, ativo, gastando todo o seu
tempo em obras de ciência e de beneficência.
A sala arfava
de emoção. Ela estava aliás cheia de
médicos e de jovens alunos do acusado, seus ardentes admiradores. Havia uma
larga parte da sua clientela feminina. O advogado mostrou apenas ao júri como
um homem em tais condições não podia cometer o crime, senão por estar fora de
si, ou por profundas razões.
O réu, vencido,
baixara a cabeça e chorava, soluçando baixinho, — tão baixinho que ninguém o
ouvia — com o rosto oculto entre as mãos. Via-se-lhe apenas o sacudir do corpo.
Em certa ocasião, porém, o advogado quis pô-lo em contraste com a mulher
assassinada. Mal anunciou a primeira acusação: "uma mulher leviana”. — o réu ergueu-se de um salto do seu banco de
infâmia e, a fisionomia transfigurada, levantando a mão aberta, gritou com
uma ameaça temível na voz:
— Não! Isso
não! Nem uma palavra contra ela!
Todos
arquejavam de emoção, assombrados.
— O criminoso
sou eu, só eu, não ha ninguém mais a quem acusar.
O promotor para
agravar-lhe a culpabilidade, tinha feito o contrario: pintara o retrato da
morta como um modelo de bondade, de beleza, de todas as qualidades. E ele
ouvira em silencio.
O advogado da
defesa pouco mais pode dizer.
Houve uma cousa
interessante: esse réu confesso, mal defendido por não ter dado elementos para
isso, esteve quase a ver-se absolvido. Houve contra ele apenas a maioria de um
voto. O movimento da opinião era a seu favor: si tivesse havido qualquer
apelação, os juízes achariam meio de facilitá-la. Mas ele se opôs formalmente.
Aceitou a condenação.
Todos sentiam
qual devia ter sido a verdade: a mulher de certo o traíra. Vários de5poimentos feitos perante a justiça haviam indicado esse fato. Ele
nem o confirmou, nem o negou.
Na enorme
penitenciaria, o 3-75 era um preso modelo. Sombrio, silencioso, vivia de certo
em uma tortura interior, pois ficava horas a fio, com os olhos fixos, como hipnotizado
por alguma visão.
O Diretor
algumas vezes, nas visitas aos prisioneiros, demorava-se na célula dele e
conversava um pouco. O prisioneiro se humanizava lentamente.
Um dia nomearam
medico da Penitenciária o Dr. Castro um dos seus antigos — antigos e prediletos
discípulos. Quando o moço, aberta a porta da célula, lhe dirigiu a palavra,
chamando-lhe "Mestre"! ele hesitou em estender-lhe a mão, mal a
afastando do corpo:
— Não me chame
mestre. Hoje, isso o deslustraria.
Mas o jovem
medico não teve duvida:
adiantou
bruscamente as duas mãos e agarrando a dele beijou-a, protestando:
— Mestre, sim,
tão mestre no esplendor da prosperidade, como no infortúnio.
E 3-75 atraído
aos braços do seu antigo aluno, chorou de emoção.
Daí por diante,
o Dr Castro não deixava de vir falar-lhe. Certa vez quis conversar sobre acontecimentos
do dia, mas o preso pediu-lhe que o não fizesse.
— Não sei nem
quero saber a marcha do mundo lá por fora.
E a partir de
então conversaram apenas sobre casos de medicina e cirurgia, passados na penitenciaria.
O amor á antiga profissão subsistia intacto. Começou mesmo a aceitar livros e
revistas profissionais, levados pelo discípulo. Sobre eles discutiam
interessadamente.
Certo dia, em
uma oficina da prisão, houve uma rixa e um dos sentenciados ficou gravemente ferido.
Havia necessidade de uma operação delicada e imediata. O medico da penitenciaria,
desajudado, não a poderia fazer Solicitado embora por telefone da cidade vizinha
algum colega, si viesse, chegaria provavelmente muito tarde. O Dr Castro pediu então
ao diretor da prisão licença para isso e suplicou ao mestre que o ajudasse. Ele
acedeu prontamente. Disse apenas: "E eu ainda sei?" Mas foi.
Ajudar? Qual
ajudar? Ele tomou a direção do caso e com a sua mestria habitual fez tudo.
O discípulo, a
principio, hesitante — e diante da gravidade do caso raros deixariam de hesitar
— ofereceu-lhe o bisturi e, sem dar por isso, instintivamente, como si
estivesse em aula dos alunos, o grande Mestre cortou com toda a segurança,
serrou, ligou, costurou, levou a termo a intervenção delicada.
Terminado o
caso, o discípulo lhe disse a sua gratidão. Ele lhe perguntou:
— E si eu lhe
pedir uma prova dessa gratidão. V a dará?
Pelo espírito
do moço passou a idéia de seu mestre desejar talvez fugir. Mas por isso mesmo,
não teve uma duvida:
— Legal ou
ilegal, tudo quanto quiser, Mestre.
— Pois bem: no
relato que fizer da operação não aluda á minha intervenção. Nem uma palavra.
O moço
resistiu, mas não conseguiu demovê-lo. Teve de cumprir a sua palavra. Ficou apenas
nos registros da prisão uma frase vaga do medico: "Eficazmente auxiliado,
consegui operar o ferido."
Sem a
assistência do 3-75 era certa a morte da íntima. Praticamente o auxiliar — e de
bem pouca eficácia — tinha sido o medico da prisão.
Ultimamente já
o 3-75 havia tomado o habito de falar um pouco mais longamente com o seu
companheiro de célula. A idéia de conversar não o seduzia, mas sentia como a
mudez pesava ao pobre rapaz. Ele era aliás infinitamente delicado.
O medico
deixava-o, sobretudo, falar. Dava- lhe, porém, atenção e fazia, de tempos a tempos,
breves considerações. Esse pobre moço viera ali parar por um caso simples.
Fora, sobretudo, uma imprudência.
Desejando obter
a mão de uma moça compreendeu qual o motivo do tutor desta hesitai em dar-lha
em casamento: ele não oferecia garantias de fortuna ou colocação, embora
estivesse bem empregado. A moça era rica. Em determinada ocasião, o rapaz teve
conhecimento de certo negocio, a exigir pequeno capital e oferecer um lucro
enorme. Mas esse pequeno capital como obtê-lo ? Aí foi o seu erro. Tomou-o ao
banco onde estava empregado, de um modo fraudulento. Mal se casasse, dias após,
poderia pedir a esse próprio banco a soma irregularmente retirada. Repô-la-ia
sem ninguém se aperceber do fato. Mas infelizmente o caso foi descoberto, antes
disso. E no entanto já o seu casamento estava marcado, em vésperas de realizar-se!
Quinze dias após o da sua prisão, nada lhe teria acontecido. Não era um criminoso.
Fora um imprudente. O seu companheiro de prisão sentiu como ainda fora dali poderia
sem deslustre manter relações com ele.
O maravilhoso
para o medico era observar o fato, notado por todos os diretores de prisões e
penitenciárias, mesmo as sujeitas a regimes mais severos: os presos acabam por organizar
uma espécie de maçonaria e ficar informados de quanto se passa dentro dos muros
da prisão. Chegavam ás vezes ao seu companheiro recadinhos escritos, alguns dos
quais vinham até metidos dentro da comida. O guarda lhe transmitia outros. O
preso da célula da direita tinha todo um sistema de telegrafia em pancadinhas na
parede divisória.
O companheiro
do 3-75 começou a ficar bruscamente muito excitado. Motivo para isso? Acabou
por dizê-lo. Os presos tramavam uma grande revolta. Esperavam fugir em massa: não
ficaria nenhum.
O Dr. Castro
tinha pedido licença e partido para fora. Qual seria o procedimento do 3-75, si
a revolta vencesse? nem ele mesmo sabia. No primeiro momento pareceu-lhe tão
indiferente permanecer como fugir Agradeceu entretanto ao companheiro a
lealdade da sua comunicação.
— O Dr. fica ou
foge? perguntou-lhe o moço.
Ele lhe
respondeu: resolveria na ocasião.
E explicou-lhe
bem não estar procurando esconder a sua resolução: era bem verdade nada ter
decidido.
Noites depois,
a revolta rebentou. Alguns presos cortaram os fios telefônicos, inutilizaram um
pequeno posto de radio da casa, houve mortes de uns e espancamentos de outros
dos guardas da prisão. Um grupo passou pelo corredor onde ficava a célula do
3-75, abrindo todas as portas. O companheiro do medico apertou-lhe a mão,
despedindo-se, e precipitou-se. De repente, ele se viu só, diante da porta escancarada.
Si todos saíam,
como ficar? Adiantou-se pelo corredor, disposto a fugir também. Sentiu de
repente um grande desejo de atirar-se por ali adiante. Todos os seus instintos
recalcados de homem habituado á liberdade, gritaram: "Foge! Foge!" E
ele precipitou-se, com ímpeto, por onde os outros tinham ido. Não havia mais
obstáculo algum. Mas pouco adiante, encontrou caído um corpo, em uma poça de sangue.
Reconheceu-o logo: o diretor da prisão . Estava com as roupas despedaçadas,
cheio de contusões e, o mais grave, uma grande fratura do crânio. Era horrível.
O 3-75 não pode
conter-se. Entre o cirurgião, cujo dever consistia em socorrer aquele desgraçado,
e o preso, ávido de fugir, foi o cirurgião o vencedor. Abaixou-se, tomou o
ferido nos braços e levou-o para a sala de operações . Ela ficava no mesmo
andar, a pequena distancia.
A partir desse
momento, perdeu de todo a noção dos sucessos em torno dele. Lembrava-se bem do
armário de ferros e do de medicamentos. Não havia chaves, nem tempo para procurá-las.
Arrombou tudo. Deitou o doente sobre a mesa de operações e começou a agir.
O ferido estava
inconsciente ou pelo menos parecia tal, mas quando a operação começasse, a dor
poderia despertar e perturbar tudo. O 3-75 tomou o necessário de morfina e de
escopolamina e injetou no paciente. Este abriu os olhos, olhou bem para o
medico e pareceu então desmaiar. Mas o anestésico, dado aliás em dose
fortíssima, fez o efeito desejado. E o medico, embora com a imensa dificuldade
de estar sozinho, operou-o, brilhante e eficazmente. Feito isso, carregou-o
para um quarto vizinho á sala e cobriu-o. Nesse momento — duas horas se tinham
passado — olhando para fora viu como, a toda disparada, se aproximava numero considerável
de soldados do exercito e provavelmente de Policia e de Bombeiros. Só então tinham
tido na cidade noticias do ocorrido. Estavam as forças de socorro a dois ou
três minutos.
Fugir? Não era
mais possível. O medico saiu rapidamente da sala de operações e voltando para a
sua célula meteu-se na cama. Já os primeiros clamores dos invasores da prisão se
ouviam claramente. Fingiu estar dormindo, Alguém o sacudiu brutalmente.
Soldados de policia o forçaram a pôr-se de pé, chalaceando:
— Este marau
tem o sono duro.
Um oficial
interrogou-o. Nada ouvira, disse ele.
Dos mil e
tantos presos só tinham ficado uns 17. Os outros, porém, eram pobres diabos quase
inválidos. Não haviam fugido por impossibilidade absoluta.
O velho médico,
nomeado para substituir o impedimento do licenciado, fora encontrado morto, com
uma paulada na cabeça.
O ódio dos
prisioneiros em geral não escolhe: vai desde o diretor até o Ínfimo carcereiro.
Os médicos entram no numero. Todos são representantes do poder publico e da
Sociedade contra a qual os criminosos estão em luta.
O relatório
oficial dos acontecimentos mencionou comovidamente ter o morto cumprido heroicamente
o seu dever até o fim, mantendo-se no estabelecimento e operando o diretor. Alguém,
de certo, o agredira quando se retirava, após ter feito isso. E apontava-se o
seu procedimento como um nobre exemplo. O diretor fora levado para um hospital
na cidade. Embora operado, estava em uma situação delicadíssima sem poder ser
visto senão por algumas pessoas de sua família. Não lhe levavam noticias, não
lhe permitiam conversas.
Quando pode
receber visitas, uma das primeiras foi a do Dr Castro. Chegara nesse mesmo dia.
Alguém lhe
disse então o nobre procedimento do seu substituto. O moço teve uma expressão de
verdadeiro assombro:
— Não é
possível! gritou ele. O meu substituto não entendia nada de cirurgia: seria incapaz
de pôr uma atadura, de colar uma tira de esparadrapo. Creio até que não saberia
espremer uma espinha! exclamou, exagerando. Era um bom velho médico, capaz de
receitar cousas triviais, mas incapaz, de operar fosse quem fosse, fosse do que
fosse.
E voltando ao
hospital, indagou do doente si não tinha alguma recordação de quem o operara. O
Diretor mergulhou em uma meditação profunda. De repente, porém, sabendo só
então qual a versão corrente sobre o seu caso, exclamou:
— Não é exato.
Quem me operou foi o 3-75.
E recordou-se
da sua ultima visão antes de cair na inconsciência do anestésico. Tinha do fato
certeza absoluta.
O moço medico
rejubilou. Sentiu como seria inútil ir buscar o depoimento do seu mestre para o
fim desejado. Quis, porém, conversar com o companheiro de célula. Este fora
recapturado, mas estava agora em outra prisão. O Dr Castro ouviu-lhe a
declaração de se ter despedido do
médico, ao sair Deixara-o de pé perfeitamente acordado. A afirmação dele,
garantindo nada ter ouvido por estar dormindo, era, portanto, absolutamente
falsa.
Uma operação de
cirurgia cerebral, como a efetuada no diretor, exigia uma habilidade possuída
por pouquíssimos cirurgiões mesmo dos mais eminentes.
O Dr Castro desdobrou-se em
atividade. Só um homem podia ter
operado o diretor da prisão — ele o
provou.
O médico não quisera,
de propósito, aparecer a seu mestre. Mas, de súbito, uma bela manhã lhe
apareceu, á frente de um estranho grupo. Estranho, embora pouco numeroso, porque
era apenas de três pessoas e uma delas, ia ainda carregada em uma maça de
assistência : o diretor da prisão. O outro, além do Dr. Castro, era o Ministro
do Interior. Ninguém, quando eles chegaram, compreendeu a significação daquilo.
Aberta a porta
da prisão, o Dr. Castro se adiantou para o seu mestre. Prevendo-lhe a negativa,
foi logo cortando-a:
— Não negue nada.
É inútil. Desta vez não me acho ligado por nenhuma promessa. Aqui está o Sr
Ministro e aqui está o seu operado . Nunca se viu um ministro vir em pessoa dar
o perdão a um preso. Quis, porém, S. Ex. fazer hoje esta cousa excepcional para
um caso também excepcional. Ele e o Sr. Diretor vieram trazer-lhe a liberdade e
os seus agradecimentos.
.
O professor
ilustre, apertando as mãos para ele estendidas, ainda tentou falar, gaguejando:
— Mas ha
engano. ha engano.
— Não, Mestre,
é a verdade.
---
Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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