EVVIVA
NERONE
Quem conhecesse
bem a vida de Tibério Cláudio veria logo a impossibilidade de não ser ele
revolucionário, inimigo feroz da sociedade. Para isso fora educado. As
doutrinas mais violentas não as lera apressadamente em algum livro, em algum
jornal. Desde pequenino, ouvira o pai pregá-las, explicar-lhas, infundi-las no
seu espírito infantil. Uma das primeiras palavras aprendidas por ele fora precisamente
"revolução"
O pai, velho
operário italiano, caíra de um andaime e quebrara na queda ambas as pernas. Nos
termos da lei, de modo claro e insofismável, cabia-lhe direito a boa pensão de
invalidez. Mas as leis mais claras e insofismáveis podem ser obscurecidas e
sofismadas. E outra cousa não sucedeu. O velho Jerônimo ficou apenas com
mesquinha pensão, quase insuficiente para dar-lhe o direito á vida em um
casebre humilde e a parca subsistência.
No entanto,
conseguiu durar e chegou mesmo a uma pobreza aceitável. Certo dia, velho amigo,
cuja vida se passava a vender nas ruas brinquedos toscos, veio visitá-lo.
Jerônimo pegou
nos brinquedos e enquanto conversava com o outro, examinava-os. Quando o amigo
ia sair, pediu-lhe que os deixasse até o dia seguinte.
Destro,
engenhoso, sabendo bem empregar suas mãos, viu que poderia fabricar brinquedos iguais,
sem muita dificuldade. Fez modelos de papelão.
O antigo
companheiro lhe dissera quanto ganhava do fabricante. Quase nada. Ao revelo
Jerônimo lhe propôs associação. Ia fabricar brinquedos idênticos ou melhores e
o outro os venderia. Repartiriam igualmente os lucros.
O velho
operário era inteligente. Possuía além do mais um gênio inventivo inegável. A isso
juntava certa propensão para a caricatura e a sátira. Os bonecos por ele
fabricados tinham um aspecto cômico. Mesmo os adultos mais graves não deixavam
de sorrir ao vê-los.
E durante algum
tempo o comercio prosperou. Jerônimo tomara consigo mesmo o compromisso de cada
mês juntar pelo menos um modelo novo aos antigos. E foi assim.
Durante esse
tempo nasceu-lhe um filho. Resolveu chamá-lo Tibério Cláudio.
As razões para
isso eram longas de dizer Na sua
sedentariedade forçada, ele se fizera grande leitor Lia de tudo, ao acaso, sem
ordem, sem método, um pouco atropeladamente. Mas o que lia guardava.
Chegara assim á
verdadeira erudição histórica, uma erudição um pouco fantasista. No seu rancor
contra a sociedade moderna, no seu ódio contra a hipocrisia dos cristãos de
hoje, enchera-se de um entusiasmo louco por Nero. Lamentava que este não
tivesse vencido a sua luta contra o cristianismo nascente. E porque Nero se
chamava Tibério Cláudio, foi assim batizado o filho.
Este cresceu
ouvindo as lições revolucionárias do pai. Karl Marx, Lenine, Bakounine, toda a
coorte dos grandes agitadores lhe era familiar. E muitas vezes o pai lhe falava
em Nero.
O velho parecia
nessas ocasiões achar-lhe melhor o nome em italiano. Rolava-o sonoramente na
boca:
— Nerone!
Nerone!
Como teria sido
bom — proclamava ele — si o imperador semi-louco tivesse chegado a um resultado
completo ao incendiar Roma. Como o mundo teria outro aspecto, si nesse momento
Nero houvesse queimado na fogueira gigantesca todos os cristãos!
O ódio contra
estes era enorme dentro do seu peito. Comparava as doutrinas de amor, de
justiça, de igualdade e a prática: ele ali estava para testemunhar o contraste.
Todas as leis haviam sido esquecidas para favorecer o patrão rico e deixá-lo a
debater-se com a pobreza, estropiado.
E o seu ódio,
ele o infundia na alma do filho.
Tibério Cláudio
tinha doze anos quando assistiu a uma cena impressionante. Havia á noite uma
reunião operaria. Os companheiros de Jerônimo pensaram em levá-lo até lá e
fazê-lo tomar parte nos debates.
Levaram-no. A
reunião era em um quintal bastante grande. Vários oradores fizeram-se ouvir,
todos eles mais ou menos aplaudidos. Afinal os amigos de Jerônimo o içaram na
cadeira onde estava e puseram-na sobre a mesa.
A maioria não
sabia quem era aquele velho. De toda parte, porém, avistava-se o seu vulto. O
pequeno, levado também para a mesa, olhava para aquela multidão de cabeças, bulhenta,
agitada. Nunca vira espetáculo tal.
O pai começou a
falar Fez-se um silencio profundo.
O velho era
naturalmente eloqüente. Ademais possuía toda a fraseologia revolucionaria . Em
breve, o publico estava entusiasmado. A onda humana movia-se tempestuosamente, agitada,
delirante de entusiasmo. Gritavam, vociferavam, aclamavam o orador Nunca nenhum
outro tivera manifestações iguais. E o pequeno Tibério Cláudio, cuja cabeça pouco
excedia a altura da mesa, olhava por cima dela aquela multidão frenética, ouvia
aquele trovão de aplausos.
— Viva a
Revolução!
Nunca se lhe
apagaria mais dos olhos aquela cena delirante.
A Gloria? —
Outra cousa não podia ser. Quando o pai morreu, Tibério trabalhava em uma
oficina de gravador Era um rapazinho frágil e nervoso. Seguira o impulso
paterno e vivia nos meios revolucionários.
O pai nos
últimos tempos lhe falara de um projeto. Preso, não podendo mesmo trabalhar, só
o cérebro fervia, fermentava. Durante muito tempo aludira ao pequeno a um plano
infernal e grandioso: realizar o sonho de Nero: queimar a cidade onde morava.
Não se trataria de um pequeno incêndio, mas de uma vasta fogueira: a cidade
enorme, toda ela, pegando fogo de repente.
Pudesse de
veras alguém no nosso tempo, quando os meios de defesa contra o fogo estão
organizados poderosamente, pensar naquilo, parecia impossível. Impossível pelo
menos para um espírito são. Mas, si o velho era um espírito são, podia-se bem
discutir Diz-se do homem de um só livro ser temível, porque o lê c relê,
absorve-lhe a substancia, identifica-se com ele. O homem de uma só idéia está
no mesmo caso. E o velho operário tinha feito aquele projeto louco e cada dia o
aperfeiçoava, o criticava dentro de si mesmo para tirar-lhe os possíveis
defeitos.
Ouvindo-o
ninguém hesitaria sobre a sua exeqüibilidade. Expunha-o freqüentemente ao filho
mostrando-lhe como não devia querer cúmplices, fossem quais fossem. Si casasse,
si tivesse filhos, a cousa mesmo para eles devia ser secreta. Nenhuma confidência,
nenhum auxilio pedido a ninguém.
Mas embora Tibério
tivesse as palavras do pai como verdadeiros dogmas, não mais pensara, morto
ele, na execução do plano grandioso e horrível.
A mocidade
fervia dentro dele. Nervoso, vibrátil, eloqüente, falando muito e gesticulando muito,
tudo nele era excessivo. Excessivo, mas simpático, embora aquela exasperação traísse
um temperamento anormal. Veio, quando o tempo chegou, o visitador normal da
mocidade: o amor Tibério começou a cortejar uma operaria. Operaria, sim, mas
linda, fina, inteligente.
Um dia, o filho
do patrão, vendo-a na fabrica, aproximara-se dela para falar-lhe. Quando Tibério
soube disso teve uma crise violenta de ciúmes. Dobrou-os ainda sabendo para onde
ela passara: saída da sua secção de trabalhos manuais, para a secretaria da
emprega. E quando, pouco depois, a pequena rompeu com ele, não teve dificuldade
em saber o motivo: o filho do patrão fizera dela uma de suas amantes.
A cólera de Tibério
não conheceu limites. Os conhecidos viam bem como ele mudara. Sua agitação
aumentada. Vibrava. Parecia uma mola de campainha elétrica, tocando.
E, um dia, a
idéia do pai voltou-lhe á cabeça: "Queima essa cidade maldita! Queima-a toda!"
O plano do
velho era simples e barato. Tratava-se de atear fogo á cidade em vários pontos
— ele pensava em trinta — ao mesmo tempo, matematicamente ao mesmo tempo. Os bombeiros
não bastariam para extinguir tantos incêndios simultâneos.
Como? Tibério
Cláudio seguiu a risca as instruções do velho. O dinheirinho entesourado avaramente
para o seu enxoval de casamento serviu-lhe para isso.
Tomava uma
valise pequena e punha-lhe a um lado uma lata de gasolina, bem cheia: mesmo agitada,
não faria rumor algum. Do outro lado havia um maço de fios umedecidos também de
gasolina. Junto deste uma pilha seca de algibeira e um pequeno relógio, de
bolso, um relógio de níquel, baratinho, de que arrancara o ponteiro grande. Da
pilha, por meio de um arame, um dos pólos estava ligado ao relógio. O outro pólo
se prendia também a um fio, sem contacto com o resto, graças a uma tira de fita
isolante e posto de modo a ficar bem exatamente na hora desejada. Quando, portanto, o
ponteiro pequeno fosse chegando a essa hora, ao aproximar-se do fio, bem
mantido no lugar exato pela fita isolante, faíscas começariam a saltar A mais
pequena bastaria para incendiar aquela parte saturada de gasolina, maço de fios
prontos a pegar fogo. A lata de gasolina tinha vários furos, cuidadosamente tapados
a cera. O calor os fundiria e, ao sair, incendiando-se, o liquido derramaria um
rio de fogo, a escoar-se silenciosamente da valise. E tudo ocorreria á hora
precisa, fixada no relógio.
Tibério tinha
ido morar em uma casa dos subúrbios, para onde levara todos os seus apetrechos e
onde fizera varias experiências. O aparelho infernal do velho Jerônimo
funcionava maravilhosamente. Sempre, no momento exato, o incêndio se produzia e
um rio de fogo se escapava pelos interstícios.
O rapaz, ao
aproximar-se a execução do seu plano, tornava-se cada vez mais nervoso. Vivia
em estado louco de exacerbação.
Afinal, chegou
o grande dia, ou como seria mais exato dizer, a grande noite. Tibério tinha
preparado 32 maletas. Alugara um automóvel velho, por ele mesmo dirigido. Sabia
fazê-lo, porque entre os seus diversos avatares figurava o de motorista. Tinha
mandado imprimir etiquetas com um nome suposto: "Comendador Serrano"
Chegava diante
do Hotel, levava em mão uma valise e pedia para a guardarem no deposito de
bagagens dos hóspedes, porque o dono viria hospedar-se no dia imediato. A
pessoa — asseverava — lhe recomendara para dar uma gratificação e pedia um
recibo da bagagem. A gratificação facilitava tudo. Ele manifestava o desejo de
ir até o lugar onde a valise ia ficar depositada e mostravam-lho.
O deposito de
bagagens em toda parte era sempre um bom lugar, em geral solitário, cheio de
objetos inflamaveis. Um incêndio, ateado aí, não era imediatamente descoberto.
Além disso, o rapaz acertara todos os relógios para as 3 horas da madrugada.
Quando Tibério
depositou a ultima valise, estava radiante. Trinta e dois incêndios — uma beleza!
Entregou o automóvel e pensou em ir jantar. Mas quase não pode fazê-lo tão
nervoso estava.
Acabara
entusiasmado com o plano, não só pela sua eficácia. Havia nele uma espécie de obra
de arte. Conseguir o mesmo resultado com aparelhos de relojoaria de precisão,
caros, ele não poderia; mas, si tivesse podido, não teria tanto
mérito como o de agir simplesmente com aqueles aparelhos toscos. Qualquer,
mesmo uma criança, os poderia fabricar O operário vencido, humilhado, roubado
nos seus haveres, roubado no seu amor, podia reduzir a cinzas a metrópole
formidável.
Uma das maiores
maletas fora precisamente para o hotel onde então se hospedava o filho do dono
da fabrica. Ah! si também ele perecesse! Fosse, porém, como fosse, todo aquele
frágil feixe de nervos vibrava em uma super-excitação extrema. Como poderia
viver as horas a correrem até a grande hora?
Veio a noite.
Ele andava a esmo pelas ruas desertas. Monologava. Gesticulava. Fazia grandes
gestos teatrais, porque ás vezes, imitando o desenvolvimento das chamas
elevando-se e dançando, levantava os braços e agitava-os .
Outras vezes
pensava de preferência no mar de fogo, estendendo-se de um a outro extremo da
cidade — e os seus gestos eram largos, descrevendo imensos círculos. Os raros
transeuntes ao passarem por ele olhavam-no com espanto!
De onde iria ver
o espetáculo magnífico? Acabou, postando-se diante do quartel dos Bombeiros.
Deveria ser admirável a saída dos soldados do fogo, chamados sucessivamente, para
um, outro, outro ponto, desorientados, não sabendo o que significavam apelos
tantos, ao mesmo tempo.
As duas horas,
houve uma saída. Não podia ser dos incêndios dele. Indagou e soube: de fato,
não era.
Resolveu ir
para um alto, uma colina de onde se dominava grande parte da cidade. Saltou da
condução que o levara e começou a andar de um lado para outro. De minuto a
minuto, tirava o relógio para examinar Ao chegar ás 3 horas, ele atingira um
grau de agitação extrema. Olhava a cidade adormecida e perguntava por onde ia
começar o pontilhado de incêndios aqui e ali.
Mas não se
produziu nada.
Três e dez;
três e um quarto. Falhara o plano?!
Estava como um
louco. Nesse momento, porém, o relógio de uma igreja longínqua deu três horas.
Ele viu então: o seu relógio estava adiantado.
Não errara.
Precisava apenas esperar um pouco.
A pequena
distancia um soldado de policia, tendo acabado por notar aquela figurinha gesticulante,
começara a observá-la suspeitosamente. De repente, Tibério deu um grito:
"Viva!" Era um incêndio a distancia. E logo após outro, outro, outro!
O soldado
aproximou-se. Tiberio tinha perdido todo o domínio sobre si mesmo. A alma do
velho italiano parecia vibrar dentro dele, porque foi em italiano a sua
exclamação:
— Nerone! Evviva
Nerone!
O policia não
tinha duvida nenhuma: tratava-se de um doido. Mas louco, ou não, Tibério abraçou-se
ao soldado e forçava-o a dançar E já agora, quando outros, outros, outros incêndios
iam estrelando a mancha escura da cidade, Tibério Cláudio não se continha:
— Viva Nero!
Viva Nero!
As suas
aclamações alternavam; ora eram em português, ora em italiano.
Não podendo
mais conter-se, não sabendo mais ao certo onde estava, si em Roma, si em outra
parte, pensou em dançar nu, diante da cidade em fogo.
O policia saiu
correndo e chamou, por um
posto de telefone, um carro forte para levar o louco. Mas este não cessava de
gritar Debatendo-se com os guardas do manicômio, ouvia-se-lhe a voz: "Evviva
Nerone! Evviva Nerone!"
E a cada
instante chegavam mais chamados de incêndio. As ruas da cidade eram cruzadas pelos
carros dos bombeiros incapazes de acudir a tantos pontos simultaneamente. Do alto,
viu-se a principio em alguns sítios o fogo diminuir Mas foi por pouco tempo.
Logo, ele começou a alastrar-se por toda parte: a água para a extinção,
solicitada em tantos pontos simultaneamente, perdia a força, falhava. Os bombeiros,
o povo, todos estavam loucos de terror Seria o fim do mundo ? Impelido
pelo vento da madrugada, pela altura das chamas, pelas faíscas voando pelo ar,
o fogo se espalhava cada vez mais. passando, ás vezes, de um para outro lado
das ruas. Mulheres corriam meio despidas, carregando crianças e fugindo, nem
elas sabiam para onde. Uma passou inteiramente nua. Ninguém lhes notava o
impudor As chamas cresciam. As chamas ganhavam cada vez maior área. Fogo! Fogo!
Os carros de
bombeiros, á disparada, sineteando
fortemente — Fogo! Arreda! — com os bombeiros nos estribos, pareciam monstros
apocalípticos. Fogo! Fogo! Tudo era inútil no combate ao inimigo terrível,
porque a água faltava.
Como si o
incêndio da terra incendiasse também o céu — o céu estava vermelho, as nuvens pareciam
em brasas. Fogo! Fogo!
A custo os
guardas tinham conseguido entrar com Tibério Cláudio no manicômio e vestiram- lhe
uma camisola. Chegavam justamente duas outras pessoas — uma mulher e um homem —
que haviam enlouquecido. A mulher teria talvez 50 anos. Sua tez era bronzeada. Seus
olhos arregalados pareciam também ter bebido o incêndio. Era como si a cabeça
estivesse por dentro em chamas e pelos olhos, como por duas janelas, alguém
visse o fogaréu interior Os cabelos estavam ouriçados como os de uma fúria.
Tibério
adiantou-se para ela, proclamando: "Fui eu! Fui eu! Mas a mulher,
ouvindo-o, saltou cheia de furor, querendo agredi-lo, querendo agatanhar-lhe a
cara e proclamando mais alto ainda: "Fui eu! Fui eu!"
O terceiro
louco, um velhinho calmo e risonho, assistia á cena, e ouvindo-os, começou a
dizer, com um ar malicioso, zombando deles em tom de confidencia aos ouvintes:
— Doidos. Pois
si fui eu, fui eu.
E os guardas os
olhavam, a ver si adivinhavam porque assim se acusavam.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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