quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Medeiros e Albuquerque: "Evviva Nerone"

EVVIVA NERONE

Quem conhecesse bem a vida de Tibério Cláudio veria logo a impossibilidade de não ser ele revolucionário, inimigo feroz da sociedade. Para isso fora educado. As doutrinas mais violentas não as lera apressadamente em algum livro, em algum jornal. Desde pequenino, ouvira o pai pregá-las, explicar-lhas, infundi-las no seu espírito infantil. Uma das primeiras palavras aprendidas por ele fora precisamente "revolução"

O pai, velho operário italiano, caíra de um andaime e quebrara na queda ambas as pernas. Nos termos da lei, de modo claro e insofismável, cabia-lhe direito a boa pensão de invalidez. Mas as leis mais claras e insofismáveis podem ser obscurecidas e sofismadas. E outra cousa não sucedeu. O velho Jerônimo ficou apenas com mesquinha pensão, quase insuficiente para dar-lhe o direito á vida em um casebre humilde e a parca subsistência.

No entanto, conseguiu durar e chegou mesmo a uma pobreza aceitável. Certo dia, velho amigo, cuja vida se passava a vender nas ruas brinquedos toscos, veio visitá-lo.

Jerônimo pegou nos brinquedos e enquanto conversava com o outro, examinava-os. Quando o amigo ia sair, pediu-lhe que os deixasse até o dia seguinte.

Destro, engenhoso, sabendo bem empregar suas mãos, viu que poderia fabricar brinquedos iguais, sem muita dificuldade. Fez modelos de papelão.

O antigo companheiro lhe dissera quanto ganhava do fabricante. Quase nada. Ao revelo Jerônimo lhe propôs associação. Ia fabricar brinquedos idênticos ou melhores e o outro os venderia. Repartiriam igualmente os lucros.

O velho operário era inteligente. Possuía além do mais um gênio inventivo inegável. A isso juntava certa propensão para a caricatura e a sátira. Os bonecos por ele fabricados tinham um aspecto cômico. Mesmo os adultos mais graves não deixavam de sorrir ao vê-los.

E durante algum tempo o comercio prosperou. Jerônimo tomara consigo mesmo o compromisso de cada mês juntar pelo menos um modelo novo aos antigos. E foi assim.

Durante esse tempo nasceu-lhe um filho. Resolveu chamá-lo Tibério Cláudio.

As razões para isso eram longas de dizer Na sua sedentariedade forçada, ele se fizera grande leitor Lia de tudo, ao acaso, sem ordem, sem método, um pouco atropeladamente. Mas o que lia guardava.

Chegara assim á verdadeira erudição histórica, uma erudição um pouco fantasista. No seu rancor contra a sociedade moderna, no seu ódio contra a hipocrisia dos cristãos de hoje, enchera-se de um entusiasmo louco por Nero. Lamentava que este não tivesse vencido a sua luta contra o cristianismo nascente. E porque Nero se chamava Tibério Cláudio, foi assim batizado o filho.

Este cresceu ouvindo as lições revolucionárias do pai. Karl Marx, Lenine, Bakounine, toda a coorte dos grandes agitadores lhe era familiar. E muitas vezes o pai lhe falava em Nero.

O velho parecia nessas ocasiões achar-lhe melhor o nome em italiano. Rolava-o sonoramente na boca:

— Nerone! Nerone!

Como teria sido bom — proclamava ele — si o imperador semi-louco tivesse chegado a um resultado completo ao incendiar Roma. Como o mundo teria outro aspecto, si nesse momento Nero houvesse queimado na fogueira gigantesca todos os cristãos!

O ódio contra estes era enorme dentro do seu peito. Comparava as doutrinas de amor, de justiça, de igualdade e a prática: ele ali estava para testemunhar o contraste. Todas as leis haviam sido esquecidas para favorecer o patrão rico e deixá-lo a debater-se com a pobreza, estropiado.

E o seu ódio, ele o infundia na alma do filho.

Tibério Cláudio tinha doze anos quando assistiu a uma cena impressionante. Havia á noite uma reunião operaria. Os companheiros de Jerônimo pensaram em levá-lo até lá e fazê-lo tomar parte nos debates.

Levaram-no. A reunião era em um quintal bastante grande. Vários oradores fizeram-se ouvir, todos eles mais ou menos aplaudidos. Afinal os amigos de Jerônimo o içaram na cadeira onde estava e puseram-na sobre a mesa.

A maioria não sabia quem era aquele velho. De toda parte, porém, avistava-se o seu vulto. O pequeno, levado também para a mesa, olhava para aquela multidão de cabeças, bulhenta, agitada. Nunca vira espetáculo tal.

O pai começou a falar Fez-se um silencio profundo.

O velho era naturalmente eloqüente. Ademais possuía toda a fraseologia revolucionaria . Em breve, o publico estava entusiasmado. A onda humana movia-se tempestuosamente, agitada, delirante de entusiasmo. Gritavam, vociferavam, aclamavam o orador Nunca nenhum outro tivera manifestações iguais. E o pequeno Tibério Cláudio, cuja cabeça pouco excedia a altura da mesa, olhava por cima dela aquela multidão frenética, ouvia aquele trovão de aplausos.


— Viva a Revolução!

Nunca se lhe apagaria mais dos olhos aquela cena delirante.

A Gloria? — Outra cousa não podia ser. Quando o pai morreu, Tibério trabalhava em uma oficina de gravador Era um rapazinho frágil e nervoso. Seguira o impulso paterno e vivia nos meios revolucionários.

O pai nos últimos tempos lhe falara de um projeto. Preso, não podendo mesmo trabalhar, só o cérebro fervia, fermentava. Durante muito tempo aludira ao pequeno a um plano infernal e grandioso: realizar o sonho de Nero: queimar a cidade onde morava. Não se trataria de um pequeno incêndio, mas de uma vasta fogueira: a cidade enorme, toda ela, pegando fogo de repente.

Pudesse de veras alguém no nosso tempo, quando os meios de defesa contra o fogo estão organizados poderosamente, pensar naquilo, parecia impossível. Impossível pelo menos para um espírito são. Mas, si o velho era um espírito são, podia-se bem discutir Diz-se do homem de um só livro ser temível, porque o lê c relê, absorve-lhe a substancia, identifica-se com ele. O homem de uma só idéia está no mesmo caso. E o velho operário tinha feito aquele projeto louco e cada dia o aperfeiçoava, o criticava dentro de si mesmo para tirar-lhe os possíveis defeitos.

Ouvindo-o ninguém hesitaria sobre a sua exeqüibilidade. Expunha-o freqüentemente ao filho mostrando-lhe como não devia querer cúmplices, fossem quais fossem. Si casasse, si tivesse filhos, a cousa mesmo para eles devia ser secreta. Nenhuma confidência, nenhum auxilio pedido a ninguém.

Mas embora Tibério tivesse as palavras do pai como verdadeiros dogmas, não mais pensara, morto ele, na execução do plano grandioso e horrível.

A mocidade fervia dentro dele. Nervoso, vibrátil, eloqüente, falando muito e gesticulando muito, tudo nele era excessivo. Excessivo, mas simpático, embora aquela exasperação traísse um temperamento anormal. Veio, quando o tempo chegou, o visitador normal da mocidade: o amor Tibério começou a cortejar uma operaria. Operaria, sim, mas linda, fina, inteligente.

Um dia, o filho do patrão, vendo-a na fabrica, aproximara-se dela para falar-lhe. Quando Tibério soube disso teve uma crise violenta de ciúmes. Dobrou-os ainda sabendo para onde ela passara: saída da sua secção de trabalhos manuais, para a secretaria da emprega. E quando, pouco depois, a pequena rompeu com ele, não teve dificuldade em saber o motivo: o filho do patrão fizera dela uma de suas amantes.

A cólera de Tibério não conheceu limites. Os conhecidos viam bem como ele mudara. Sua agitação aumentada. Vibrava. Parecia uma mola de campainha elétrica, tocando.

E, um dia, a idéia do pai voltou-lhe á cabeça: "Queima essa cidade maldita! Queima-a toda!"

O plano do velho era simples e barato. Tratava-se de atear fogo á cidade em vários pontos — ele pensava em trinta — ao mesmo tempo, matematicamente ao mesmo tempo. Os bombeiros não bastariam para extinguir tantos incêndios simultâneos.

Como? Tibério Cláudio seguiu a risca as instruções do velho. O dinheirinho entesourado avaramente para o seu enxoval de casamento serviu-lhe para isso.

Tomava uma valise pequena e punha-lhe a um lado uma lata de gasolina, bem cheia: mesmo agitada, não faria rumor algum. Do outro lado havia um maço de fios umedecidos também de gasolina. Junto deste uma pilha seca de algibeira e um pequeno relógio, de bolso, um relógio de níquel, baratinho, de que arrancara o ponteiro grande. Da pilha, por meio de um arame, um dos pólos estava ligado ao relógio. O outro pólo se prendia também a um fio, sem contacto com o resto, graças a uma tira de fita isolante e posto de modo a ficar bem exatamente na hora desejada. Quando, portanto, o ponteiro pequeno fosse chegando a essa hora, ao aproximar-se do fio, bem mantido no lugar exato pela fita isolante, faíscas começariam a saltar A mais pequena bastaria para incendiar aquela parte saturada de gasolina, maço de fios prontos a pegar fogo. A lata de gasolina tinha vários furos, cuidadosamente tapados a cera. O calor os fundiria e, ao sair, incendiando-se, o liquido derramaria um rio de fogo, a escoar-se silenciosamente da valise. E tudo ocorreria á hora precisa, fixada no relógio.

Tibério tinha ido morar em uma casa dos subúrbios, para onde levara todos os seus apetrechos e onde fizera varias experiências. O aparelho infernal do velho Jerônimo funcionava maravilhosamente. Sempre, no momento exato, o incêndio se produzia e um rio de fogo se escapava pelos interstícios.

O rapaz, ao aproximar-se a execução do seu plano, tornava-se cada vez mais nervoso. Vivia em estado louco de exacerbação.

Afinal, chegou o grande dia, ou como seria mais exato dizer, a grande noite. Tibério tinha preparado 32 maletas. Alugara um automóvel velho, por ele mesmo dirigido. Sabia fazê-lo, porque entre os seus diversos avatares figurava o de motorista. Tinha mandado imprimir etiquetas com um nome suposto: "Comendador Serrano"

Chegava diante do Hotel, levava em mão uma valise e pedia para a guardarem no deposito de bagagens dos hóspedes, porque o dono viria hospedar-se no dia imediato. A pessoa — asseverava — lhe recomendara para dar uma gratificação e pedia um recibo da bagagem. A gratificação facilitava tudo. Ele manifestava o desejo de ir até o lugar onde a valise ia ficar depositada e mostravam-lho.

O deposito de bagagens em toda parte era sempre um bom lugar, em geral solitário, cheio de objetos inflamaveis. Um incêndio, ateado aí, não era imediatamente descoberto. Além disso, o rapaz acertara todos os relógios para as 3 horas da madrugada.

Quando Tibério depositou a ultima valise, estava radiante. Trinta e dois incêndios — uma beleza! Entregou o automóvel e pensou em ir jantar. Mas quase não pode fazê-lo tão nervoso estava.

Acabara entusiasmado com o plano, não só pela sua eficácia. Havia nele uma espécie de obra de arte. Conseguir o mesmo resultado com aparelhos de relojoaria de precisão, caros, ele não poderia; mas, si tivesse podido, não teria tanto mérito como o de agir simplesmente com aqueles aparelhos toscos. Qualquer, mesmo uma criança, os poderia fabricar O operário vencido, humilhado, roubado nos seus haveres, roubado no seu amor, podia reduzir a cinzas a metrópole formidável.

Uma das maiores maletas fora precisamente para o hotel onde então se hospedava o filho do dono da fabrica. Ah! si também ele perecesse! Fosse, porém, como fosse, todo aquele frágil feixe de nervos vibrava em uma super-excitação extrema. Como poderia viver as horas a correrem até a grande hora?

Veio a noite. Ele andava a esmo pelas ruas desertas. Monologava. Gesticulava. Fazia grandes gestos teatrais, porque ás vezes, imitando o desenvolvimento das chamas elevando-se e dançando, levantava os braços e agitava-os .

Outras vezes pensava de preferência no mar de fogo, estendendo-se de um a outro extremo da cidade — e os seus gestos eram largos, descrevendo imensos círculos. Os raros transeuntes ao passarem por ele olhavam-no com espanto!

De onde iria ver o espetáculo magnífico? Acabou, postando-se diante do quartel dos Bombeiros. Deveria ser admirável a saída dos soldados do fogo, chamados sucessivamente, para um, outro, outro ponto, desorientados, não sabendo o que significavam apelos tantos, ao mesmo tempo.

As duas horas, houve uma saída. Não podia ser dos incêndios dele. Indagou e soube: de fato, não era.

Resolveu ir para um alto, uma colina de onde se dominava grande parte da cidade. Saltou da condução que o levara e começou a andar de um lado para outro. De minuto a minuto, tirava o relógio para examinar Ao chegar ás 3 horas, ele atingira um grau de agitação extrema. Olhava a cidade adormecida e perguntava por onde ia começar o pontilhado de incêndios aqui e ali.

Mas não se produziu nada.

Três e dez; três e um quarto. Falhara o plano?!

Estava como um louco. Nesse momento, porém, o relógio de uma igreja longínqua deu três horas. Ele viu então: o seu relógio estava adiantado.

Não errara. Precisava apenas esperar um pouco.

A pequena distancia um soldado de policia, tendo acabado por notar aquela figurinha gesticulante, começara a observá-la suspeitosamente. De repente, Tibério deu um grito: "Viva!" Era um incêndio a distancia. E logo após outro, outro, outro!

O soldado aproximou-se. Tiberio tinha perdido todo o domínio sobre si mesmo. A alma do velho italiano parecia vibrar dentro dele, porque foi em italiano a sua exclamação:

— Nerone! Evviva Nerone!

O policia não tinha duvida nenhuma: tratava-se de um doido. Mas louco, ou não, Tibério abraçou-se ao soldado e forçava-o a dançar E já agora, quando outros, outros, outros incêndios iam estrelando a mancha escura da cidade, Tibério Cláudio não se continha:

— Viva Nero! Viva Nero!

As suas aclamações alternavam; ora eram em português, ora em italiano.

Não podendo mais conter-se, não sabendo mais ao certo onde estava, si em Roma, si em outra parte, pensou em dançar nu, diante da cidade em fogo.

O policia saiu correndo e chamou, por um posto de telefone, um carro forte para levar o louco. Mas este não cessava de gritar Debatendo-se com os guardas do manicômio, ouvia-se-lhe a voz: "Evviva Nerone! Evviva Nerone!"

E a cada instante chegavam mais chamados de incêndio. As ruas da cidade eram cruzadas pelos carros dos bombeiros incapazes de acudir a tantos pontos simultaneamente. Do alto, viu-se a principio em alguns sítios o fogo diminuir Mas foi por pouco tempo. Logo, ele começou a alastrar-se por toda parte: a água para a extinção, solicitada em tantos pontos simultaneamente, perdia a força, falhava. Os bombeiros, o povo, todos estavam loucos de terror Seria o fim do mundo ? Impelido pelo vento da madrugada, pela altura das chamas, pelas faíscas voando pelo ar, o fogo se espalhava cada vez mais. passando, ás vezes, de um para outro lado das ruas. Mulheres corriam meio despidas, carregando crianças e fugindo, nem elas sabiam para onde. Uma passou inteiramente nua. Ninguém lhes notava o impudor As chamas cresciam. As chamas ganhavam cada vez maior área. Fogo! Fogo!

Os carros de bombeiros, á disparada, sineteando fortemente — Fogo! Arreda! — com os bombeiros nos estribos, pareciam monstros apocalípticos. Fogo! Fogo! Tudo era inútil no combate ao inimigo terrível, porque a água faltava.

Como si o incêndio da terra incendiasse também o céu — o céu estava vermelho, as nuvens pareciam em brasas. Fogo! Fogo!

A custo os guardas tinham conseguido entrar com Tibério Cláudio no manicômio e vestiram- lhe uma camisola. Chegavam justamente duas outras pessoas — uma mulher e um homem — que haviam enlouquecido. A mulher teria talvez 50 anos. Sua tez era bronzeada. Seus olhos arregalados pareciam também ter bebido o incêndio. Era como si a cabeça estivesse por dentro em chamas e pelos olhos, como por duas janelas, alguém visse o fogaréu interior Os cabelos estavam ouriçados como os de uma fúria.

Tibério adiantou-se para ela, proclamando: "Fui eu! Fui eu! Mas a mulher, ouvindo-o, saltou cheia de furor, querendo agredi-lo, querendo agatanhar-lhe a cara e proclamando mais alto ainda: "Fui eu! Fui eu!"

O terceiro louco, um velhinho calmo e risonho, assistia á cena, e ouvindo-os, começou a dizer, com um ar malicioso, zombando deles em tom de confidencia aos ouvintes:

— Doidos. Pois si fui eu, fui eu.

E os guardas os olhavam, a ver si adivinhavam porque assim se acusavam.


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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.

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