O TESTAMENTO
Alguém batia
com toda a força á porta de entrada. Edmundo admirou-se. Acabavam de soar as 10
da noite. Quem podia vir àquela hora insólita?
Levantou-se do
leito onde estava e perguntou, um pouco irritado:
— Quem é?
— Sou eu, o
Luiz. Abre.
O Luiz era o
irmão. De caso muito grave devia tratar-se, para ele vir procurar o Edmundo em
momento tão impróprio. Não precisou, porém, fazer pergunta alguma. O irmão foi
logo mostrando um telegrama de poucas palavras:
"Tio
Eduardo muito doente perigo de vida. Convém virem." E assinado
"Margarida".
Luiz morava em
uma pequena casa com dois quartos, duas salas e uma cozinha. Vivia com uma
companheira da qual tinha dois filhos, um de 7 e outro de 5 anos. Vida
perfeitamente conjugal. Razão para não a regularizar?
Por causa
precisamente daquele tio Eduardo, a cuja doença aludia o telegrama. Na
intimidade, tanto Luiz como Edmundo não lhe chamavam senão "o tio
rico"
A sua riqueza
não era, de certo, formidável. Devia oscilar entre duzentos e trezentos contos.
Vivia na roça. Viúvo, passara muito mal o seu tempo de casado e criara por isso
verdadeiro ódio ao casamento. Os dois sobrinhos constituíam toda a sua família.
Certa vez,
anunciou-lhes ter feito testamento em favor deles. Não deixava mais nada a
ninguém. Mas o testamento tinha uma condição: estariam solteiros ao tempo da
morte do doador. Si um casasse, a fortuna passaria ao outro. Si ambos fizessem
isso, tudo ficaria para uma instituição de caridade.
Era formal.
Diante de tal
cláusula, assentaram os dois em não casar O tio rico não poderia durar muito —
isso pelo menos lhes parecia — e, sendo assim, mais valia esperar por sua
morte. Casariam depois. No entanto, seria impossível
achar pessoas mais próprias para o jugo matrimonial. Cada um deles
achara uma companheira com a qual vivia conjugalissimamente.
Edmundo tinha
tido um filho, Luiz dois. Luiz era linotipista. Ganhava o bastante para a sua
vida. Não dava para grandes cousas, mas, em ultima analise, era suficiente.
Ademais, a companheira era boa, simples, alegre. Resignada com a sua vidinha
modesta, suportava-a de bom humor Mostrava-se, sobretudo, muito cuidadosa com
os filhos, sempre pobremente vestidinhos, mas limpos e direitos.
Edmundo tinha
sido também feliz na escolha de companheira. Ele era marceneiro em uma oficina
onde fabricava moveis finos, e como, não só tinha grande pericia, mas ainda desenhava
admiravelmente, criava modelos, pagos pelos patrões com generosidade, porque em
hipótese alguma o quereriam perder.
Juntava-se a
isto o fato de as duas famílias, com os seus chefes á frente, entenderem-se admiravelmente
bem. Luiz era o padrinho do filho de Edmundo e este o dos dois filhos de Luiz.
Quando um chegava á casa do outro já contava com festivo alarido para
recebê-lo.
Mal o Luiz
começou a falar, o pequeno filho do Edmundo, quase adormecido, reconheceu-lhe a
voz e saltou da cama para abraçá-lo. Vinha metido no seu camisolão de dormir,
alegre e risonho. Pendurou-se ao pescoço do tio, abraçando-o e beijando:
— Tio Luiz! Tio
Luiz!
Mas os dois irmãos
precisavam conversar e preparar a viagem para a madrugada seguinte. Partiriam
pelo trem das 5 horas da manhã.
A companheira
do Edmundo veio também do quarto, apertou a mão do Luiz e, sabendo o motivo da
visita, disse sem nenhuma dissimulação:
— Leve-o o
Diabo! J á não é sem tempo.
Porque as duas
mulheres detestavam o famoso tio rico: era quem lhes atravancava o caminho para
a felicidade. Na esperança da riqueza, a provir do testamento, estava o grande empecilho
para o casamento dos dois irmãos, regularizando-lhes a vida.
Luiz e Edmundo
iam sempre no principio do ano visitar o tio. Nesse, como nos outros, tinham
prestado essa homenagem ritual. O tio Eduardo a prezava muito.
Quando a mulher
morrera, ele ficara com uma rapariga, afilhada desta. Tomava conta da casa.
Tinha então 25 anos. Nenhum parente. O viúvo resolveu conservá-la.
Falariam
daquela situação? Era inevitável. Mas ele tinha um profundo desprezo pelas murmurações.
Deixou a rapariga em casa. No fim de algum tempo, todos se habituaram. Não parecia,
de fato, fosse Margarida mais que uma governante, uma criada apenas um pouco
mais graduada.
O Luiz e o
Edmundo tinham, entretanto, por ela uma certa antipatia. O Luiz comentou:
— Margarida
deve estar bem assustada.
— Por quê?
— Porque, com a
morte do tio, ela terá de rodar A não ser (ajuntou sorrindo) desejes tomá-la
para ti.
— Isso não!
Posso cedê-la a quem quiser.
O Luiz terminou
conciliadoramente:
— Podemos
rifá-la.
Não havia,
porém, motivo para essa prevenção com a pobre mulher Ela ficara na casa do velho Eduardo do qual
recebia o teto, o pão e uma mensalidade insignificante. De veras, a pobre não
sabia como poderia fazer qualquer cousa fora daquela prisão, onde nascera, crescera,
envelhecera. Ninguém suportaria o velho com a paciência igual á dela.
Mas as duas
companheiras dos sobrinhos a envolviam na mesma antipatia, votada ao tio rico.
E os maridos haviam acabado por partilhar esse sentimento injusto.
Morto o tio,
passando eles a ser os herdeiros, como procederiam com ela? Dar-lhe-iam um mês
de salário e pô-la-iam na rua. Ali mesmo o decidiram. E firmaram a partida para
a madrugada seguinte.
Luiz ficou de
ir ao telégrafo e anunciar a resolução.
Feito isso, só
se reveriam de madrugada na estação da estrada de ferro. O trem das 5 os
levaria até certo ponto, onde se baldeariam para uma linha de bitola estreita.
Durante três horas seriam sacolejados barbaramente. Do leito da estrada, de
simples terra batida, o trem ao passar levantava uma nuvem densa de poeira. Era
freqüente ver as locomotivas puxando apenas carros de carga, os de passageiros —
carros divididos em uma parte de 2ª e outra de 3ª —
viajavam muitas vezes vazios.
Não houve,
portanto, nada de estranho quando, feita a baldeação, Luiz e Edmundo verificaram
não ter companhia alguma. O caso não lhes desagradou. Luiz, sobretudo, um pouco
mais fino que o irmão, dispensava companhias com facilidade.
— Vês tu o
luxo? disse o Edmundo. Vamos em trem especial, só para nosso uso.
— Tanto melhor,
opinou o Luiz; mais vale só. Mal acompanhado não serve.
— Mas ha uma
terceira hipótese, e eu tive o bom gosto de escolhê-la. Vou acompanhado, mas em
boa companhia. E sacou do bolso do sobretudo uma garrafa de parati, comprada na
estação.
— Levo aqui
Dona Branquinha!
Luiz não bebia
álcool de espécie alguma. Teve um muxoxo de desdém.
— Bom proveito
te faça!
Edmundo
desarrolhou a garrafa e, pondo-a sumariamente á boca, engoliu um bom trago.
O carro
atravessava então regiões áridas e desertas. Era verão. Um sol implacável
calcinava tudo. Fazia um calor tremendo. De espaço a espaço, alguma arvore —
algum esqueleto de arvores sem folhas erguia os ramos em ziguezagues para o céu
inclemente, muito azul. Nem uma nuvem.
O trenzinho era
jogado de um lado para o outro, com violência.
Os dois irmãos
começaram a conversar Lembraram a vida do tio Eduardo.
Como fora
estéril!
— Afinal, disse
o Edmundo, ele foi mau para si mesmo e para nós. Podia ter-nos ajudado.
Luiz mais
conciliador e inteligente, ponderou:
— Não era
maldade; era ignorância. Ele não sabia viver senão assim.
O álcool fazia
efeito em Edmundo, naquele forno horrível. Irado, replicou:
— Mau, sim;
muito mau. Não queiras adulá-lo: não te deixará mais por isso.
— Nem eu quero.
Deixe quanto quiser.
Edmundo saltou,
escarnecendo:
— Olha o
santinho desinteressado. Si tu pudesses, tomavas tudo para ti.
— Tu sabes bem
como eu seria incapaz disso.
Edmundo estava
possesso, furioso:
— Nem serias tu
capaz de outra cousa.Mas eu não deixo.
E com uma
obstinação de bêbedo, dando punhadas no ar gritou:
— Não deixo!
Não deixo! Não deixo!
Luiz calou-se.
Edmundo sacou do bolso um canivetão, em cuja companhia sempre andava, e
abriu-lhe a larga folha, quase uma faca. E ele se gabava sempre de trazê-la
afiadíssima.
— Seria capaz
de tirar fatias de vento — costumava dizer, para elogiar-lhe o corte.
Edmundo bebeu
os últimos goles de aguardente e pousou a garrafa no chão. Continuava a
empunhar o canivete com a folha aberta.
Nesse momento o
trem galgava uma ladeira. Subia arquejante como um asmático. A aridez em torno
era a mesma. Quando ele chegava a esse trecho de acentuado aclive ia lentamente.
Alguém que corresse ao seu lado, correria mais depressa. Em compensação, os trens
ao descerem vinham sempre em uma velocidade louca.
Naquele ramal
perdido de uma estrada de ferro sem importância tudo ia á matroca. O trem onde
estavam Luiz e Edmundo era bem um exemplo disso: após a locomotiva e o seu tender
tinham posto sete carros de mercadorias e só no fim o único de passageiros, os
quais se achavam assim absolutamente isolados.
Nisso pensava
com pavor Luiz, vendo a fisionomia do irmão, demudada de fúria.
Edmundo
fitava-o também:
— Então,
embuchaste? Não dizes nada?
— Mas si eu não
tenho nada para dizer? Farei quanto quiseres, como quiseres. Obedecer-te-ei.
Aquelas
palavras deviam ser de natureza a acalmar o irmão. Eram ditas com um tom de
verdadeira humildade.
Mas Edmundo
pareceu ficar ainda mais feroz:
— Tu estás é
com hipocrisia, pronto a me enganar quando puderes.
E avançou para
o irmão. Luiz viu o perigo e levantou-se, disposto a trancar-se no gabinete de toilette
do trem. Esse gabinete separava as duas classes. Mas Edmundo não lhe deu
tempo. Com a mão esquerda abotoou-o violentamente, empunhando-lhe a roupa, á
altura do peito e vibrou-lhe uma facada tremenda. Vibrou-a, enterrando a lamina
do canivetão á direita, á altura do fígado do irmão e correndo com o corte para
a esquerda, rasgando-lhe inteiramente o ventre.
O talho tinha,
de certo, mais de trinta centímetros . Por ele, os intestinos, rotos, jorrando fezes,
se despejaram, e Luiz caiu pesadamente num lago de sangue.
Edmundo só
então pareceu acordar do seu delírio sanguinário. Levou á testa as costas da
mão direita, onde ainda estava o canivetão escorrendo sangue e arregalou os
olhos horrorizado.
A bebedeira se
lhe dissipara:
— Luiz! Luiz!
O trem, cada
vez mais arquejante, subia de vagar. Ia dobrar uma curva muito acentuada. Nada
se descortinava para a frente. Tinha-se a impressão de ver os trilhos dobrarem
bruscamente e penetrarem na montanha, em plena rocha.
Edmundo
abaixou-se e sacudiu ainda uma vez o irmão:
— Luiz! Luiz!
Mas era inútil.
Estava bem morto. Só havia o recurso de fugir e Edmundo o tomou. Não era
difícil: o trem ia de vagarinho, bufando, resfolegando. Edmundo armou o salto e
projetou-se no espaço. Mas não reparou no fato de estar justamente na curva do
lado da entrelinha, por onde ia passar a toda velocidade, no sentido da decida,
o trem de volta. E a locomotiva desse trem, apanhando-lhe o corpo em cheio,
quando ele ainda estava no ar, projetou-o a distancia, partido ao meio, em pedaços.
O maquinista
nem deu por isso. Sentiu um choque; mas a tantos a maquina estava sujeita! Um a
mais ou a menos não era para ser notado.
Pouco depois o
trem, onde estava o corpo de Luiz, apitou forte. A estação terminal se achava á
vista. Um pouco mais — e o trem parava.
Na plataforma
da estação, além do agente, só havia uma mulher de preto e um molecote. A
mulher era gorda, plácida, simpática. Tinha o rosto e sobretudo os olhos
avermelhados de quem chorou muito. Era Margarida.
O chefe do
trem, conhecendo não só a ela como a Luiz e Edmundo, falou-lhe afetuosamente:
— Bom dia, D.
Margarida. Os rapazes vêm aí.
Mal acabava de
dizer isso, o molecote prorrompeu em altos gritos. Ele se adiantara até o carro
de passageiros, e descobrira o corpo de Luiz numa poça de sangue.
Margarida era
agora a pessoa mais importante do lugar Dois dias antes de morrer, o tio
Eduardo resolvera casar-se com ela e instituí-la sua herdeira universal.
Todos ali a cercaram,
carinhosamente, quando transida de horror, viu também o achado sinistro e
desmaiou dizendo:
— Pobre Luiz!
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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Nota:
Medeiros e Albuquerque: "Surpresas" (1934), da edição de Flores & Mano Editores, disponível na Biblioteca Brasiliana - USP.
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