VOLTAREIS, Ó CRISTO?
Os outros passageiros, gente
alegre e agitada pelo trabalho íntimo de uma digestão rija, conversavam
bestialmente a respeito do meu amado e honrado amigo José Cardoso Vieira de
Castro.
Sem intervir nas suas disputações,
escutava-os o padre atento e melancólico.
E, compadecido até às lágrimas do
formidável infortúnio que entretinha, entre chascos e insultos, aquela
vilanagem, eu encarava no taciturno clérigo, e dizia entre mim: "Que
pensará este ancião do desgraçado rapaz! Porque ampara ele a cara à mão
convulsa, e despede um gemido de aparente compaixão? Quem será que lha inspira?
Ela que morreu, ou ele que tem diante de si um arrancar da vida com agonias,
cujo prazo está nos segredos da morte?" Apeamos em Moreira. Segui por
debaixo das ramarias seculares que aformosentam a majestosa avenida da quinta
dos Vieiras de Castro, na qual o meu amigo residira dois anos com a sua esposa.
Eu ia olhando para as árvores que ele amava, e pensando que via
despegar-se-lhes a folhagem que enverdecera quando no seio daquele incomparável
mártir do seu pundonor caíram os gelos de um Inverno sem fim.
Observei que o padre me seguia a
passo lento, e com o lance vago de olhos, aquele ver através de lágrimas, o
pensar triste que os infelizes adivinham.
Esperei-o.
Ele abeirou-se de mim e
cortejou-me, tratando-me pelo meu nome.
Perguntou-me se naquela casa
morara algum tempo o sobrinho do seu condiscípulo e amigo, o ministro de estado
António Manuel Lopes Vieira de Castro.
Respondi: "Aqui viveu os mais
encantados dias da sua vida".
E, volvidos alguns segundos,
prossegui animado pelo aspeto contemplativo do sacerdote: "Esta grande
casa avulta-se-me como o túmulo da felicidade dele. Quando daqui saíram as duas
almas, Vieira de Castro já não era feliz. Ele tinha a inteligência tão alta
como o coração, e devia sentir-se ferido do profético terror de ver cair do
pedestal do anjo a mulher que vestira da luz esplêndida do seu amor e de toda a
poesia da sua juventude. Vieira de Castro, nos meses que viveu aqui, danificou
a sua hombridade de homem. Como vivia absorvido em apaixonada contemplação, e
do céu e da soledade se lhe aumentavam os enlevos da vida íntima, o amor
sopesou-lhe todas as faculdades, robustecendo-lhe a da soberba de ser amado de
quem todas as mais paixões lhe pisava aos pés. A querida da sua alma não o viu
descer de tão alto, até ajoelhar-se diante dela.
Os homens daquela têmpera, quando
se arrependem de ter ajoelhado, erguem-se num ímpeto de dignidade, e quebram o
ídolo".
O padre fitou-me com olhar de
inteligência e comiseração. Detivemo-nos silenciosos e encostados à gradaria do
portal; depois voltamos para a estação onde nos esperava a Diligência.
Neste intervalo, o ancião
encarou-me com tristeza e disse: "Encontrei uma vez um homem de quem ouvi
palavras terríveis e absurdas contra a sociedade. Eu não podia compreender que
lampejasse luz de razão naquele homem... Réprobo diante de Deus creio eu que
ele haja sido: mas integérrimo juiz dos costumes do seu tempo... isso foi ele,
desgraçadamente... Quinze anos depois, as calamidades de Vieira de Castro Um
dos meus companheiros de jornada para Vila do Conde era sacerdote idoso, de
muito agradável rosto e maviosa tristeza no olhar contemplativo dilucidaram-me
a escureza enigmática do homem, que me tinha parecido um peito de ferro a
desbordar de crueldade..
E, momentos depois, disse:
"Como V. está em Vila do Conde, disponha de duas horas inúteis, e vá à
Póvoa, onde tomo banhos, se quiser ouvir uma história em que aparece
esclarecido o absurdo pela infernal que lhe derramou a catástrofe desse grande
coração. Não falaremos dele senão a sós. Eu creio que no seio de Vieira de
Castro as angústias são tantas, que já lá não podem entrar os insultos desta
sociedade... que escarnece o marido tolerante, e roça a esponja do fel pelos
lábios do homem que aceita o degredo — as mil dores do morrer para a Pátria e
Família — com a condição de lhe não duvidarem da honra.
Fui.
E o padre falou assim:
Há quinze anos que eu pastoreava
uma vigararia em Trás-os-Montes.
Num dia de Dezembro de 1855 saí
da minha residência com destino a ir consoar nos dias festivos do Natal com um
abade, meu companheiro da Universidade, o qual residia oito léguas distante.
Como os caminhos eram péssimos e mal sabidos do meu criado, perdemo-los na
cerração do nevoeiro, e chegamos tarde a um córrego, cujo pontilhão a enchente
havia alagado, O único vau possível estava légua e meia afastado.
Era ao fim do dia: seriam quatro
horas e meia; mas a noite fechara-se súbita, quando as nuvens se conglobaram ao
poente, e uma neblina pardacenta rolou dos fraguedos das empinadas serras.
Retrocedemos assustados.
O meu criado tinha visto de
passagem, por entre as brumas, alvejar uma casa grande com aspeto senhorial de
torres e ameias.
Distava-nos dali obra de meia
légua.
Ganhamos a custo a lomba da
serra, onde chegamos com noite fechada. Daqui enxergámos luzes trementes ao
través de vidraças, e ouvimos o latir de cães.
Apeei, e desci amparado no braço
do criado, cujo coração palpitava de medo, não já de ladrões nem de feras;
senão de fantasmas e lobisomens, que, no crer e dizer dele, eram vulgares por
aqueles despenhos e selvas de castanheiros.
Consoante a minha filosofia me
foi acudindo inspirativa, combati as crenças do meu pobre Manuel, cujo
excelente espírito foi cedendo passo a passo à razão onipotente, por modo que
afinal incomodava-o mais a perspectiva do frio e fome que o pavor dos fantasmas
e lobisomens. Eu, neste receio, não lhe levava vantagem em fortaleza de
espírito. Figurava-se-me calamidade superior às minhas forças o ter de
pernoitar sobre um chão alagado, e sob o pavilhão do céu tão inclemente.
Nesta conjuntura, ouvimos o
ladrar dos cães à nossa esquerda.
A primeira vereda que topamos, na
direção do consolativo sinal de povoado, nos encaminhamos por barrocas
lamacentas até entestarmos com um Largo portão de quinta. Manuel aldravou com
quanta força lhe dera o contentamento, e esperámos, não sem receio de que os
molossos da quinta remetessem contra nós de sobre os estrepes que vedavam o
alto muro.
Do parapeito do mirante surgiu um
vulto a perguntar-nos o que queríamos.
Respondi que era um padre,
perdido no caminho de Mirandela, e pedia ao dono daquela casa a caridade de me
agasalhar e ao meu criado por aquela noite.
Passado largo espaço, voltou o
interrogador, que nos abriu o portão depois de haver acorrentado os cães, e nos
meteu à cara uma lanterna de furta-fogo, deixando ver debaixo de cada braço uma
pistola de alcance.
Aquietado pela confiança que lhe
incutiu a minha cara pacífica, e a tão pacífica quanto estúpida do meu Manuel,
o criado caminhou serenamente diante de nós.
Perguntei-lhe como se chamava o
dono da casa. Disse-me o nome do fidalgo, e acrescentou que a fidalga estava a
morrer ética.
— Nesse caso — tornei eu — queira
dizer ao senhor barão que eu não quero causar-lhe o menor constrangimento na
situação triste em que está. Basta que S. Exª nos mande recolher, que nós
sairemos cedo sem perturbar o seu sossego.
Entrei para um salão cujas
alfaias eram quatro escabelos de pau com grandes Congela-se-me o coração de
terror quando este relance pavoroso da minha vida me lembra. Já lá vão quinze
anos. Ainda agora há noites em que a prisão me sobressalta, e sempre o meu
espírito se estremece com o mesmo confrangimento armas pintadas no alteroso
espaldar.
Daí a pouco, fui levado a outra
sala mobilada à antiga, com cadeiras de couro marchetadas de pregaria amarela,
à mistura com uns tremós doirados e artesoados do reinado de D. João V, segundo
me quis parecer. Das paredes pendiam nove retratos de homens, em que
predominavam clérigos mitrados, e dos dois que vestiam farda agaloada com
hábito de Cristo um dizia o letreiro que tinha sido capitão-mor.
Nesta contemplação me interrompeu
o fidalgo.
Era homem de alta e direita
estatura: figurava quarenta anos; tinha barbas grisalhas e grandes; ampla
testa, e olhos rasgados e negros, impressivos, penetrantes, assustadores. De
mim confesso que o fitava a medo, não sei porquê.
Interrogou-me gravemente sobre o
ponto de onde vinha e para onde ia. Respondi como cumpria dilatando difusamente
as respostas e circunstanciando-as para deste modo captar a benevolência do
fidalgo que parecia escutar-me distraído.
Daí a pouco disse dentro uma voz
que estava a ceia na mesa.
O senhor ergueu-se, levantou um
reposteiro, e obrigou-me a precedê-lo na entrada com gentil ademane de
cortesão.
A mesa era espaçosa de mais para
quarenta talheres; mas tinha só dois.
Sentei-me na cadeira que me foi
indicada, e comi com a sem-cerimônia muito conhecida dos descorteses e dos
famintos.
Durante a ceia substancial,
ocorreu-me perguntar-lhe pelo estado da sua esposa; todavia, conteve-me a
inoportunidade da ocasião, e o receio de me demasiar em inquirir de senhora quê
eu não conhecia, não me sendo semelhante pergunta autorizada pelo silêncio do
barão.
Finda a ceia, segui-o ao longo de
um corredor, e entrei no quarto que ele me indicou, dizendo:
— Não se deite já que eu preciso
talvez do senhor para um acto próprio da sua profissão.
E desandou.
Fiquei a pensar, e sugeriu-se-me
logo o pensamento de que eu seria chamado a ouvir de confissão a senhora
enferma.
Esperei duas horas, durante as
quais rezei as minhas rezas.
Voltou o taciturno fidalgo, e
disse laconicamente:
— Há aqui uma mulher doente que
se quer confessar.
— Estou pronto a ouvi-la —
respondi espantado da secura daquelas palavras tão desamoráveis com respeito a
uma esposa doente.
— Siga o criado que o está
esperando no corredor — disse ele.
Saí ao corredor. O criado que me
estava esperando era o mais mal-encarado homem que ainda vi na minha vida. Afuzilavam-se-lhe
os olhos como brasas. A testa, único espaço iluminado daquela cara barbaçuda,
sulcavam-na não sei se cicatrizes se ulcerações da modela. A corpulência era
agigantada, e o carregar do sobrolho batia no coração de um homem como o súbito
coriscar dos olhos de um tigre que rebenta de entre os carrascais de uni
deserto. Os pintores cristãos nunca souberam bosquejar Lúcifer, porque
semelhante homem jamais deu nos olhos de artista, que desejasse fazer bem
conhecida a plástica do Diabo com feitio de gente.
Segui-o com calafrios, superiores
à minha razão que me aconselhava tranquilidade.
Hoje, volvidos quinze anos, conto
isto com certo sorriso de fácil coragem; mas, nos primeiros tempos, aquele
vulto andava terrivelmente associado ao quadro negro que vou tentar descrever.
***
— Levante o fecho, e entre.
A primeira vista o que pude
estremar das trevas, era um clarão azulado, como de lamparina baça, cuja
claridade se esvaecia logo absorvida pela escura algidez da alcova.
Avizinhei-me a passos trêmulos da
lâmpada, e distingui um leito, e na almofada do leito um vulto. Fixei o que me
parecia ser um rosto de criança, e pude entrever um rosto de mulher, com os
olhos cravados em mim, olhos que vasquejavam os derradeiros clarões, olhos como
devem de ser os dos espectros que surgem subitâneos nas trevas aos perversos
que negam Deus e temem os espectros.
— Aproxime-se, senhor. A
moribunda sou eu — disse ela com voz rouca, mas serena.
— Deus permitirá que V. Exª
esteja menos doente do que pensa — balbuciei com uma espécie de terror secreto,
pressentimento de alma que já se doía antecipadamente da mágoa que se lhe ia
refletir do singular e imenso suplício daquela mulher.
— Fale baixo que nos escutam —
volveu ela ciciando as palavras, e esbugalhando os olhos para a porta.
— Escutar-nos! — repliquei com
assombro. — É impossível! Eu fui aqui enviado para ouvi-la de confissão, minha
senhora — Bem sei; mas isso não importa... Quero que me oiça; mas muito
baixinho... Vou contar-lhe a minha vida como a Deus; mas não me confesso como a
um padre... É a um homem que há de ter pena de mim, depois de me ouvir; e me há
de fazer um serviço que lhe pede uma agonizante, que crê em Deus; mas não pode
crer na religião feita por homens que têm semelhança do algoz que me mata.
Isto dizia ela de afogadilho e
febril, mas com abafações e ânsias aumentadas pelo medo de ser escutada.
— Mas não é em confissão que a
senhora me quer revelar as culpas que lhe pesam na consciência?! — perguntei.
— Não, senhor; eu não creio na
confissão. Do mal que fiz estou perdoada; tenho sofrido todas as torturas deste
mundo; se as há no outro, nenhuma pode assustar-me.
O meu dever seria combater a
incredulidade desta senhora com os sólidos argumentos de que dispõe a teologia
contra mais poderosos adversários; abstive-me, porém, de exacerbar o ânimo
aflito da enferma por me parecer extemporânea a discussão e recear que o tempo
escasseasse ao triunfo, nem sempre pronto, dos bons princípios. Não obstante,
repliquei, no intento de encaminhá-la à piedade:
— Se V. Exª não quer
confessar-se, diga-me que serviço posso fazer-lhe em benefício da sua alma...
— Vá ver se alguém nos escuta...
— insistiu ela, apontando para a porta com a mão descarnada.
Fui com repugnância,
afigurando-se-me que a minha posição no grêmio desta família sinistra ia
assumindo certa gravidade e um ar de mistério mais ou menos arriscado. Abri
cautelosamente a porta, olhei ao longo do corredor, e nada vi; salvo lá ao cabo
um lampião a tremer baloiçado pelas esfuziadas de vento que assobiava no teto.
Fechei a porta, asseverando à
enferma que ninguém nos escutava. Ela então sentou-se com violento ímpeto no
leito, aconchegou do pescoço, que transpirava, a colcha da cama, bebeu alguns
tragos de água, e balbuciou com ansiosas suspensões:
— Casaram-me há seis anos com
este homem que me mata. Eu amava outro homem, que não teve coração nem honra
que me salvasse de tamanho verdugo. O meu pai, O medonho guia mostrou-me a
porta de um quarto, e resmoneou: sacrificou-me, pensando que me felicitava. O
homem que eu amava deixou-me sacrificar, porque não tinha peito que suportasse
o peso de uma mulher pobre. Vim de Lisboa, onde o dono desta casa era deputado.
Vim; e, ao cabo de alguns meses, o meu marido arrependera-se de se ter
enganado, pensando que uma mulher simplesmente formosa, mas sem amor, poderia
encher-lhe as ambições, e dar-lhe o contentamento que ela não tinha. Saciou-se,
enojou-se, aborreceu-me. Não me deu rivais, porque só quem ama se sente
ultrajada pelas infidelidades. Eu não conheci rivais: conheci apenas mulheres
que nesta casa valiam e mandavam mais do que eu.
Voltou à câmara o meu marido.
Aqui fiquei, não obstante lhe pedir com muitas lágrimas que me deixasse ir ver
o meu pai, e os meus dois irmãos que tinham vindo da África, onde tinham estado
alguns anos negociando. O meu marido demorou-se ano e meio em Lisboa. Neste
longo intervalo chorei muito, e só deixei de chorar, quando... quando me
vinguei. Compreende-me?
— Quando se vingou? como se
vingou V. Exª?! — perguntei.
— Vinguei-me... mas foi a paixão
que me deu torças... Houve um homem que teve por mim um grande amor e um grande
dó. Amei-o. Lutei. Pedi a Deus que me ajudasse, que me fortalecesse. Pedi à
alma da minha honrada mãe que me amparasse... pedi ao meu marido que me
deixasse ir para si ou para a companhia do meu pai... Nem Deus, nem a minha
mãe, nem o meu marido me valeram.. — Sucumbi... A minha culpa foi cega. Confiei
— me de uma criada que tinha chorado comigo. Fui atraiçoada. o meu marido teve
denúncia da minha queda, e apareceu aqui inesperadamente. Nada me disse.
Tratou-me com a mesma frieza, com o mesmo desprezo. Não estranhei. O homem que
eu amava, era ainda parente dele e estudava em Coimbra. Tinha o coração cheio
de ânsias e desejos da morte. Compreendeu este infeliz que o meu marido desconfiava.
Quis fugir comigo para Espanha, e eu resisti, mais por amor dele que do meu
crédito. O meu cúmplice não podia com o encargo, e iria viver ou morrer
miseravelmente em pais estranho.
Passados dias, deixei de ter
noticias dele. Imaginei-o já em Coimbra, posto que não fosse tempo de aulas.
Correram três meses. Nova nenhuma. A criada que me falava dele, recebido o prêmio
da traição, tinha fingido que a sua família a chamava. Só então ouvi dizer a
outra criada que o parente do meu marido desaparecera sem dizer a ninguém o seu
destino; e que a família dele vivia consternada com tal sucesso, enviando a
toda a parte indagações inúteis.
Seis meses depois que o meu
marido voltara de Lisboa, soube eu que se estava preparando este quarto pela
sua ordem. Vim ver as obras, e perguntei-lhe para que era o armário estreito
que se estava fazendo nesta parede e para que eram as grades na janela.
Meu marido respondeu:
"Sabê-lo-á brevemente".
Concluídas as obras, vi que a
minha cama era para aqui mudada, com tudo que me pertencia.
Uma noite, o meu marido
conduziu-me a este quarto. Fechou-se por dentro e disse-me:
"A senhora entra aqui de
onde nunca mais sairá; e para não estar sozinha, aqui lhe deixo uma adorável
companhia com quem pode conversar à sua vontade". E dizendo isto, abriu
aquele armário, e apontou para um esqueleto, dizendo: "Aqui tem o seu
amante. Abrace-se nele até ficar reduzida ao estado em que lho ofereço para que
o possa gozar com toda a liberdade".
Eu caí por terra sem sentidos —
prosseguiu ela, limpando as lágrimas, e aspirando com força. — Quando voltei à
vida, pensei que saía de um sonho. Ouvi dar meia-noite.
Era tudo escuridão neste quarto.
Apalpei à volta de mim. Não conheci onde estava.
Continuei apalpando. Pousei as
mãos numa coisa fria e áspera que estremeceu. Recuei horrorizada... Eram
ossos... eram as costelas do esqueleto. Então acordei... então me fugiu outra
vez a razão com um grito do peito dilacerado. Caí outra vez para diante com a
face de encontro aos ossos frios, horrivelmente frios ...
E ela estralejava com os dentes
convulsos, e apertava a roupa no pescoço. Após longo espaço, prosseguiu:
— Ao romper do dia, abri uma
janela com o propósito de me suicidar. Dei com a face nas grades. Lancei-me à
porta que estava fechada por fora, e gritei por socorro.
Abriu-se. Vi um criado com um
aspeto ameaçador, impondo-me silêncio. Este criado era um criminoso que o meu
marido acolhera para o salvar da justiça que o perseguia. Era esse mesmo que o
trouxe aqui há pouco. É o único ente vivo que eu vejo há dois anos duas vezes
por dia, quando me traz alimentos. Foi ele quem matou e espedaçou aquele
infeliz...
E, dizendo, apontava para o
armário do esqueleto. Continuou:
— Eu quis suicidar-me pela fome.
Não pude. Quando as agonias da morte começavam, eu lançava-me vertiginosamente
sobre a comida, e devorava-a sem a consciência do que fazia. De outra vez
consegui com um garfo romper uma veia; mas o sangue estancou; senti ânsias
mortais; envelheci; desfigurei-me, segundo o que sinto, se palpo o meu rosto;
que eu há dois anos me não vi num espelho... Não consegui morrer.
Voltei-me para Deus com rogos,
com desesperadas súplicas. Orei muito, chorei muito, e obtive um grande
benefício. Cal num desalento, numa sonolência de moribunda que durou não sei se
dias se anos. Depois, quis levantar-me deste leito, e já não pude.
Comecei a pedir a Deus a morte, e
a senti-la avizinhar-se pela mão da divina caridade.
Há de haver três horas que entrou
aqui o confidente do meu carrasco perguntando-me se me queria confessar. Fiquei
espantada da religião destes algozes, e respondi que sim; mas o que eu queria,
senhor padre — disse ela estendendo para mim impetuosamente os braços — era
pedir-lhe que depois da minha morte, faça saber aos meus irmãos este miserável
fim que eu tive, para que eles me vinguem...
Acabava a infeliz de proferir
estas palavras em voz mais desafogada, quando a porta que eu havia fechado por
dentro se abriu impelida por um valente encontro.
***
Faiscavam-lhe áscuas de rancor os
olhos injetados. Crispavam-se-lhe os beiços retraídos.
A cólera engasgava-o a ponto de
tartamudear estas vozes ejaculadas a trancos:
— Os seus irmãos que venham cá e
eu lhes contarei a vida da sua honrada irmã!
E ela cobriu os olhos com as
mãos, e resvalou para dentro da roupa, como se desejasse cair na sepultura.
Eu caminhei placidamente para
aquele homem terrível, abeirei-me dele que me fitava com sobranceria, ajoelhei
e disse-lhe com a voz tremente de lágrimas:
— Perdoe-lhe. Deixe-a morrer em
paz. Deixe-a experimentar os benefícios da sua compaixão para implorar
confiadamente os da misericórdia divina, Encarou-me de um modo indefinível.
Saiu do quarto, e, já fora, murmurou secamente:
— O senhor padre recolha-se ao
seu quarto.
Relanceei um derradeiro olhar
para o leito; não a vi; mas ouvia o soluçar alto e cavernoso do peito que se
esfacelava.
Mal entrei no quarto onde havia
de pernoitar, rebentaram-me as lágrimas copiosas. Levantei a Deus o espírito
repassado de terror e compaixão, pedindo-lhe que despenasse a penitente, ou
radiasse luz de comiseração em tão carniceiras entranhas.
Neste lance entrou ele, assentou
a mão direita sobre o meu ombro, e disse:
— Aquela mulher vociferou uma
infâmia digna da sua desonra, se quis desculpar o seu crime com as
infidelidades de que me acusa. A mulher que se vinga do marido,
prostituindo-se, cavou a sepultura, e espera que a sociedade ou o marido a
sepultem. Eu não a matei. Encarreguei o esqueleto do homem, que a desonrou, da
missão da ir matando lentamente Olhe que eu amei aquela mulher. Não a seduzi,
não a iludi, não a fascinei, nem a disputei a outro. Pedi-a ao seu pai. Ele
consultou-a; ou fingiu que a consultava. Como quer que fosse, esta mulher veio
risonha para os meus braços; chamou-se com orgulho a baronesa de ***; mentiu-me
cem vezes acusando-me de ingrato ao seu coração que me estremecia. Afinal, esta
mulher crê ainda imperfeita a sua vingança, e na hora extrema invoca os irmãos
para que a vinguem. De quê? de que hão de vingá-la os irmãos? De eu lhe haver
matado o amante? Que me responde a sua cristã filosofia?
— Que o terror que V. Exª me
incute não me deixa atinar com palavras que o comovam... — balbuciei.
— Mas responda, senhor!
— Respondo ajoelhando novamente a
suplicar-lhe o perdão da culpada.
— Não posso — bradou ele. — Há
dois anos que não saí de dia desta casa, receando que todos saibam da minha
desonra. Não posso perdoar-lhe sem que a Providência me desoprima do vexame do
meu opróbrio!
— Seria generosidade havê-la
matado... — interrompi.
— Bem sei — redarguiu ele — bem
sei. Ela sofria cinco minutos de castigo, e eu ficava sofrendo uma vida inteira
de vergonha. Eram suplícios incomparáveis! Além de que, se eu a houvesse
esmagado debaixo do peso da minha afrontosa desgraça, o mundo santificá-la-ia,
lavando-lhe com hipócritas lágrimas os ferretes da cara para que se atendesse
somente às manchas de sangue nas minhas mãos de assassino... Compreende isto,
padre? Conhece bem a sociedade em que toda a infâmia é uma Convenção, e toda a
honra de marido que se desafronta há de lutar depois com a desonra irritada dos
maridos.
***
Era o marido. Esporeados pelo
zelo devassíssimo das esposas? Conhece o Mundo como Cristo o encontrou há 1855
anos? Sabe o que veio fazer Jesus Cristo à Terra?
— Morrer pela redenção dos que o
mataram, senhor.
— Não o percebo! — exclamou ele
com um formidável brado, e saiu do quarto...
Eu não pude adormecer. Parecia-me
ouvir um gemido longo confundido com o sibilo do nordeste no entravamento da
casa. Rezei muito por ela.
Ao alvorejar da manhã, vi um
criado que perpassava no corredor. Perguntei-lhe a que horas se erguia o
fidalgo. Respondeu-me que se havia deitado um quarto de hora antes. Pedi-lhe
que mandasse o meu criado sair do seu quarto, e fizesse ao dono da casa os meus
cumprimentos com os mais ardentes protestos de eterna gratidão.
Despedi-me assombrado daquela
casa, onde se respirava um acre nauseativo de cadáveres. Ardia-me o peito e a
cabeça por tal sorte que eu não sentia a chuva glacial daquela manhã de 24 de
Dezembro de 1855.
Fecho a minha história com a
pedra que cobriu o cadáver da baronesa de ***. No dia 27 de Dezembro me
disseram uns pastores convizinhos que a fidalga morrera à hora em que as
famílias honradas e felizes se juntavam para receberem as bênçãos dos seus
anciãos, e comemorarem com santos júbilos o nascimento do divino Redentor.
Agora dir-lhe-ei qual era o
paradoxo, que tal se me figurou há quinze anos.
Aquele cruelíssimo homem tinha-me
dito: Se eu a houvesse esmagado debaixo do peso da minha afrontosa desgraça, o
mundo santificá-la-ia lavando-lhe com hipócritas lágrimas os ferretes da cara,
para que se atendesse somente às manchas de sangue nas minhas mãos de
assassino.
Ora eu entendi a profunda verdade
desta cláusula depois que Vieira de Castro, ao cair agonizante sobre a terra
onde tem de vasquejar largos anos, matou a esposa, porque a cingia
apaixonadamente nos braços da sua alma. Morreu-lhe o coração. Ela não teria
morrido, se o infeliz a pudesse arrancar de lá antes de cair.
***
— Meu Deus, enviai segunda vez à
Terra o vosso divino Filho! Esta negridão gentílica é pior que a de há dois mil
anos. Naquele tempo esperava-se; nas entranhas sociais estremecia o
pressentimento de um regenerador... Hoje em dia, nada, nada, ó altíssima
Providência! Nada! Mas... voltareis, ó Cristo?
E prosseguiu, corridos instantes:
— Que haverá já agora nesta vida
que possa levantar a alma do seu amigo?
— O esteio da dignidade.
Conheci-o quando os horizontes da
vida se lhe prefiguravam e realizavam em risonhas prosperidades. O destino,
como forçado pelo talento, ajoelhava-lhe. Não o admirei então, senão porque
felicidade e gênio pareciam dar-se as mãos e concertar-se no plano do exalçarem
onde raro em Portugal subiram grande espírito e grande coração.
Hoje cerram-se contra ele
injúrias e trevas.
A luz do seu honrado infortúnio é
um reverberar sinistro de uma estrela funesta, cuja claridade lhe banhará a
sepultura por esse viver das gerações além. A posteridade dos seus irmãos irá
aí retemperar sentimentos de pundonor; e os descendentes dos meus filhos
pensarão que me veem absorto entre eles em frente das cinzas de Vieira de
Castro.
Vai-se-lhe a vida diluída em
lágrimas de sangue. Vai. Mas a página que deixa dirá que a onda da corrupção
quando chegou até ele, desfez-se-lhe aos pés. Se a onda lhe revolveu e abriu a
terra da sepultura, aqui ou em África, não importa.
Prouvera a Deus que ele não
chorasse a felicidade que lhe mataram! Sobre quem mandará Deus que caiam as
lágrimas que Vieira de Castro há de chorar pela sua mãe e irmãos? No dia em que
ele sair para África, as almas compassivas irão às igrejas pedir ao Altíssimo
que ilumine o seio do degradado com um raio de misericordioso alento Deixá-lo
ir.
Deixá-lo esconder-se dos olhos
desta aviltante piedade que deixou do apedrejar quando o viu perdido.
***
Loura criança que eu vi, há vinte
anos, iluminada pelas ultimas alegrias da fugitiva infância, prouvera a Deus
que o sepulcro do teu pai se te abrisse então.
Os embriões das tuas alegrias da
juventude esmagou-os a pedra que desceu sobre o seio onde se perderam os
tesouros que tinham de completar a felicidade da tua alma.
O teu coração, aos dezoito anos,
abafava em si as amarguras da soledade, retraia-se em devorantes desejos do
amor de família, a paixão santa, única e profunda que eu te conheci.
Quem imaginou que tu choraste
amaríssimas lagrimas naquela tua casa triste que demora solitária entre duas
serras?
No mais verde dos anos,
abalizaste os teus anelos juvenis entre umas árvores que os teus avós
plantaram; e ali, sozinho, esperaste que a Providencia te deixasse reflorir uma
primavera na alma.
O teu formidável espírito reagiu
contra a mais crua sorte que ainda fadou uns vinte anos relegados desse gozar
comum que permite a cada homem sentir o alvorejar dos afetos e as musicas do
céu que embalam a alma para sonhar venturas.
Tu não as sonhaste quando o
coração desbordava de seiva para renascer das suas mesmas cinzas, se a perfídia
o cancerou com a sua peçonha.
Um dia, já tarde, amaste pela
primeira vez, quando te deu de rosto e te cegou a luz funesta que desce do céu
com os anjos despenhados.
Quando baixaste a face até ao
chão onde ajoelhavas em adoração de criança que beija os lábios da sua mãe, em
adoração de pai que aconchega no seio as mãos da sua filha, sentiste que a
desonra te cravava as garras, e te desentranhava do peito a alma, e t'a expunha
em pelourinho infame aos insultos dos que passavam.
Tu não podias ajustar ás faces a
mascara que te ofereciam as mãos infames da tolerância.
Ao teu rosto não podiam sair as
lagrimas fáceis das almas vulgares porque era sangue, era a vida toda que te tinham
arrancado.
E tu premeditaste!.. Oh! não
premeditaste nada, infeliz!
Quem contará as horas, os
períodos de infernal duração que passaram na tua vida?
Curvaste-te sobre o teu abismo; e
ali quedaste empedrado até que resvalaste nas fauces da voragem.
No teu baque levaste contigo um
cadáver que te abrira o golfão com as mãos ainda quentes dos teus beijos.
Não premeditaste nada, infeliz.
Cada minuto que ia passando
estalava-te uma fibra da alma, queimava-te uma partícula do cérebro,
escaldava-te em veneno dilacerante cada lagrima que te refluía dos olhos.
Não era somente a honra perdida
que te excruciava; era a mulher idolatrada que ainda vivia e já te pesava morta
no coração.
Ao passo que a mão de ferro da
desgraça te batia no seio, tu ias acordando ao estrondo horrível. Cada instante
era o precursor de novas trevas que se iam condensando, era o bago da areia que
ia caindo, era uma esperança derruindo depôs outra, era o ir-se toda a alma
espedaçada até esvaziar-se o peito de lagrimas, e encher-se de rancor
inexorável, espicaçado pela desonra e ingratidão.
Oh! tu não premeditaste nada,
infeliz!
Os que delinquiram premeditando,
não dizem à justiça humana: «Aqui estou! condena-me!»
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Nota:
Camilo Castelo Branco: "Voltareis, ó Cristo?" (1871)
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