A TIA ISABEL
Conhecia-a
em casa de Uma família amigada minha.
Afirmavam os
que a tinham conhecido em menina, que fora bonita; a mim parecia-me simplesmente
simpática.
Era alta,
magra, loura e muito branca, uma fisionomia serena e melancólica, sem muito
relevo, mas com muita doçura.
Andava
sempre vestida de escuro, com uma simplicidade em que transpareciam,
porventura, vislumbres de antigas elegâncias.
Ao olhar
para ela conhecia-se que havia de ter gostado de certas puerilidades mundanas,
de se vestir e pentear bem, por exemplo, de ser citada pelo esmero do seu
gosto, e pela distinção finíssima das suas maneiras.
Hoje todas
as vaidades se tinham apagado; fizera quarenta anos, e acolhera-os com
resignação, com dignidade, com uma certa graça melancólica que lhe ficava muito
bem.
Nenhum dos
rapazes que frequentavam aquela casa se atrevia a chamar-lhe solteirona.
A solteirona
é a mulher solteira que não sabe aceitar resignada as amarguras da sua
isolação, e as converte em ridículos quando as não converte em péssimas
qualidades.
A solteirona
é pretensiosa, presumida, ávida de atrair a atenção, revolve os olhos
sentimentalmente, lê romances, come gulodices, tem um king charles e inveja tudo o que é novo, radiante, feliz, tudo que
tem esperanças e para quem o futuro, desabrocha em promessas.
A solteirona
é egoísta, incomodam-na como uma injúria que lhe é particularmente dirigida
todas as alegrias que não tem, persegue-a atrozmente a aspiração irrequieta a
um pobre marido que pudesse atormentar à vontade; sente se na vida como numa
casa que não é sua; daqui o seu mau humor continuado que torna dela quase
sempre o flagelo da família onde se sente pária!
A tia Izabel,
porém, não era nada disto, pelo contrário.
Tinha para
os sobrinhos um coração que, sem ser de mãe, encerrava muito de maternal,
sobretudo no que as mães têm de indulgente!
Nunca a vi
colérica, nunca a vi também excessivamente animada.
Não se ria,
mas tinha habitualmente um sorriso plácido, quase distraído, ô sorriso de quem
se sente um pouco estranha a todas as alegrias que a rodeiam,
mas que nem
por isso deseja projetar as suas sombras na luz que os outros espalham em torno
dela.
Era muito
estimada pelo irmão, pela cunhada e pelos sobrinhos, uns traquinas que andavam
sempre a recorrer à sua inesgotável paciência, e que nunca foram expulsos com
um gesto de irritação ou de desamor.
Sabia a
difícil ciência de se tornar útil a todos, quase indispensável; estreitando
deste modo os laços que a prendiam aos seus, tornando-os por assim dizer
inquebrantáveis:
Sentia-se
assim menos só!
Nos jantares
de família os melhores pratos eram sempre executados debaixo da sua direção;
era ela quem fazia o menu, quem distribuía os lugares, quem presidia a todos os
arranjos de casa.
Encarregava-se
das tarefas mais enfadonhas, daquela parte aborrecida que tem uma festa e que
as donas da casa aceitam com tédio, mas que lhes é mais tarde compensada no
aplauso, na satisfação, ás vezes mesmo na inveja disfarçada em risos dos seus
convivas.
Nessas
ocasiões solenes em que ninguém dava por ela, creio que se permitia um instante
de inocente amor próprio, vendo a mesa bonita, bem disposta, com a elegante e
simétrica poesia das grandes jarras do Japão cheias de flores, dos cristais
facetados onde o vinho tomava as olímpicas aparências do néctar,
da bela
louça da China de lavores extravagantes e fantasiosos, da roupa fresca, pesada,
macia, de Unho da Rússia adamascado, tendo bordadas iniciais.. . que não eram
as dela.
Depois
voltava para o seu lugar secundário, obscuro, e voltava de boamente com
simplicidade despreocupada.
Estava
sempre bem com todos, sem se curvar obsequiosamente diante de alguém.
Tinha mesmo
um modo seu de dizer as verdades com firmeza e com brandura, sem transigências
cobardes, sem severidade excessiva.
Quando havia
em casa um doente, sentava-se-lhe tranquilamente à cabeceira, fazia-lhe sentir
com discreta suavidade a sua influência boa, perdia as noites com um aspeto de
intrepidez e de meiguices; era inapreciável enfim.
Tinha uma
infinidade de pequenas ideias que punha em prática e de cada uma das quais
resultava um alívio para o doente: arranjava as almofadas, aconchegava as
roupas do leito, dir-se-ia que a sua mão esguia, branca, um pouco seca, tinha o
segredo de verter balsamo em todas as feridas de um corpo enfermo.
Na
convalescença lia alto.
Escolhia
muito bem os livros, tinha a maravilhosa intuição de todas as necessidades de
um espírito adormecido, naquela dúbia luz crepuscular da doença física.
A sua voz
velada, sem grande sonoridade, tinha umas notas macias que entravam até ao
fundo do coração e que o amoleciam docemente.
Ainda nos
desgostos de família, na hora das crises e das catástrofes era para ela que
instintivamente todos os braços se estendiam.
E que ela,
com o seu passo miudinho, o seu ar sereno, os seus hábitos metódicos, nem à
frente das máximas catástrofes perdia a placidez necessária.
Uma das suas
particularidades mais acentuadas era a repugnância pelo barulho, pelo
espalhafato, por todas as exterioridades aparatosas.
Andava,
falava, trabalhava, movia-se sempre devagarinho.
Lembro-me
perfeitamente do quarto dela, como de uma espécie de pequeno santuário onde
poucas vezes penetravam as travessas crianças de quem ela era como que segunda
mãe.
Quando eu
acertava de lá entrar com elas, enquanto a pequenada corria de um lado para
outro, vendo, tocando tudo, perguntando informações de todas as coisas, eu
observava calada com o meu olhar de mais velha, mais penetrante e mais curioso.
Tudo ali era
limpo, asseado mas tudo antigo, datando sem dúvida da sua adolescência, do
tempo em que ela fora feliz, porventura requestada e formosa.
A alcova
branca, discreta, com o seu oratório de pau santo, cheio de belas imagens, a
Virgem risonha e loura com o menino nos braços, o Cristo macerado e sangrento
com a expressão de sobre-humana agonia no amortecido olhar.
No gabinete contíguo
as cortinas, os reposteiros de chita, as poltronas, as pequeninas mesas
cobertas com os seus papos de crochet,
as estantes de livros, tudo, enfim, era bem conservado, sem ser novo; via-se
que tinha sido o objeto de atentos cuidados, que todas aquelas coisas mudas
tinham sido as companheiras únicas de uma existência concentrada e solitária.
Nas paredes,
sobre as pequenas étagères, muitos
retratos, todo um cortejo rapaz e triunfante que passava ao longe.
Exalava se
daqueles objetos tão esmeradamente cuidados, um vago, um indistinto perfume de
saudade, como de um herbário de flores secas, colhidas entre risos de cristal,
nos dias radiantes da primavera...
Os pequenos
então, com a sua inconsciente crueldade infantil, faziam mil perguntas,
impacientes, curiosas...
— Quem era
esta menina, tia Isabel? tem um vestido de seda decotado e na mão um malmequer
que está desfolhando. Como ela pensa tão embebecida! Em que pensaria ela, minha
tia?
— No
futuro!... respondia ela sorrindo com o seu belo sorriso intraduzível em que
havia talvez muitas saudades.
— Que é
feito dela? Era sua amiga, não era? Porque é que a não vem cá ver nunca?
— Ao
princípio veio, depois casou-se; o marido levou-a a viajar, foram muito longe,
divertiram-se, provavelmente ela esqueceu-se. Quando voltou trazia um filho, um
baby louro e cor de rosa como o teu irmãozinho Arthur. Só o vi uma vez. As
crianças absorvem muito as mães, por causa delas esquecem-se de tudo, até das
amigas da infância. Hoje só sei que é muito feliz, e quando tenho saudades olho
para o retrato dela!... Fomos tão amigas!
E calava-se
baixando os olhos, receosa de que a vissem contemplar com demasiado enlevo os
dias que já não podiam voltar.
Todos
aqueles retratos tinham uma história.
Aquele
cortejo de juvenis visões louras, morenas, travessas ou melancólicas faziam
parte do passado, por isso lhes queria tanto.
Umas tinham
casado, eram felizes, viviam absorvidas pelo divino egoísmo da família, todas
entregues ao bem estar dos seus, aos interesses, ás alegrias, ás dores do seu
pequeno círculo de afetos.
Outras
tinham morrido; eram as que ali nos apareciam mais pálidas, com um vago reflexo
de luz febril nos olhos pasmados e pensativos.
Tinham
morrido na plena florescência do seu imaginar juvenil, levando para a cova,
como levariam uma flor ainda constelada pelos orvalhos matinées, a doce quimera que nenhum sopro brutal lhes tinha desfeito.
Fecharam os
olhos cercados por todas as aparições fulgidas, que envolvem a mocidade como
num círculo de estrelas, e foram despertar — quem sabe noutras regiões de que
ninguém ainda voltou, do sonho feliz que tinham começado na terra.
Não eram
essas as menos bem-fadadas.
Ela, porém,
fieira só.
Porquê?
Condenação
de que não conhecia o implacável segredo!
Também fora
nova, também tivera crenças, esperanças, pequenos sobressaltos de amor próprio,
efêmeras vaidades de quem se julgara querida!
Estremecera
muita vez, ao sentir abrir uma porta, ecoar um passo ligeiro e firme nos vastos
corredores, vibrar uma voz viril, grave e terna!
Tivera
rubores súbitos, sentindo pousar na sua cara branca, a luz de um olhar quente e
caricioso; colhera uma rosa, prendera nos cabelos um cacho de madressilva,
vestira um dia um certo vestido branco, cheia de alegria, agradecendo a Deus
ter feito a vida tão boa, o céu tão azul, o cheiro das árvores tão penetrante e
tão sadio!
Olhava neste
tempo para as crianças, beijava-as como a ensaiar as graças da maternidade,
fazia-lhes festas, pensando que também havia de ter um dia uns pequeninos como
aqueles, que lhes havia de querer muito, e levai os a passear, seguida pelo
olhar invejoso das outras mães... cujos filhos seriam forçosamente feios.
Então
consultava consigo mesma o sistema de educação que adotaria, e o modo porque os
havia de vestir, e concluía vendo-os entrar para a Universidade, num dia de
muitas lagrimas e de muitos dilaceramentos, altos, esbeltos, um pouco altivos,
com um buçosinho louro, apetitoso como a penugem de um pêssego mal maduro.
Foram-se-lhe
dias e dias neste sonhar que a entretinha, como a leitura de um romance cujo
interesse nunca afrouxa.
Um dia,
porém, por acaso viu-se ao espelho, e despediu-lhe o seio um grito de angústia.
Despontava-lhe
entre os fartos cabelos louros, o primeiro cabelo branco, um fio de prata, tênue,
quase imperceptível, uma coisa em que ninguém reparava.
Reparou ela.
Reparou
também nesse momento que todas ou quase todas as companheiras tinham casado,
que muitas das suas ilusões se tinham desfeito ás ásperas nortadas da
realidade, que se ia sentindo na vida muito só.
Teve umas
horas de luta, de revolta, quase de desespero.
Alguém, o
alguém invisível em que ela sempre acreditara, mandou-lhe a força, porque lhe
mandou a resignação!
Quando o pai
lhe morreu veio para casa dos irmãos, e a pouco e pouco achou em si a fonte de
todas as riquezas misteriosas, que espalhava pelos afetos que o seu coração
adotou!
Eis pouco
mais ou menos a história da tia Isabel.
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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