O MELHOR
SONO DO MILIONÁRIO
Tinha ido
para o Brasil há muitos anos.
Ainda havia
frades em Portugal e fora até um seu tio frade que o acompanhara a bordo de um
brigue e que lhe dissera com voz solene e sentenciosa, no momento da despedida,
estendendo os braços num largo gesto de pregador:
— Deus te
leve a salvamento, Francisco!
O Sr.
Francisco Cerqueira lembrava-se de todos os pormenores e incidentes trabalhosos
da jornada que ele fizera desde a sua pequena e risonha aldeia minhota até
Lisboa.
Era um gosto
ouvi-lo à mesa, ao domingo, quando o armazém repousava na sua umidade
claustral, e não se ouvia o estrepitoso labutar dos negros carregadores, a voz
arrastada dos Mineiros fregueses da casa, e a melopeia das quitandeiras na rua.
Os sócios
muito mais novos que Cerqueira puxavam-lhe pela língua conforme a pitoresca
locução do povo, e à sobremesa, recostados, com os charutos acesos, ouviam-no
discretear alegremente.
Lembrava-se
de tudo o Sr. Cerqueira. Era uma crônica viva. Recordava-se da sua aldeia,
narrava histórias da sua infância, descrevia com rudes mas pitorescas frases a
aula de primeiras letras, o abade da freguesia, as proezas do tio frade, que
com um varapau nas unhas era homem para varrer toda uma feira, e enternecia-se
até ás lagrimas, quando tocava no assunto de despedida da mãe.
— Ah! vocês
não imaginam! Não me saí daqui! Parece que tenho um nó na garganta, quando me
lembro daquele momento. Abraçava-me a chorar e a soluçar que era uma coisa por
maior! ainda me parece que a vejo ao pé das carvalheiras do adro da igreja,
estendendo-me os braços de longe e gritando sufocada:
— Ah! rico
filho, rico filho da minha alma!...
Que idade
terá ela hoje? Ora, espera, eu tenho cinquenta e seis; ela, pelas minhas
contas, vem a ter os seus setenta bem puxados... quem me dera vê-la!
— Mas, seu
Cerqueira, nada roais fácil! porque se não resolve? Em dezoito dias está lá. ..
— Sim, é
verdade.
E ficava
triste e meditabundo por instantes...
— Mas tenho
medo de chegar e de não a encontrar. O único motivo que me leva à Europa, é
ela, a pobre velhinha... E o único parente que tenho, que
não sei se
vocês sabem, que da nossa família restamos tão somente nós, ela e eu... a minha
terra é aqui, para aqui vim criança, e aqui me fiz gente.. . Que vou eu fazer à
Europa, não me dirão?
Isto dizia o
Sr. Cerqueira; mas o que se lhe passava no íntimo era bem diverso. Tinha
saudades, tinha-as e bem fundas da aldeia em que nascera e da casa em que se
criara.
Porque a sua
vida fora um lutar sem tréguas, um batalhar decidido e um inferno, à saída do
qual ele contava, como o mitológico Orfeu, rever as apetecidas Eurídice — a mãe
e a pátria...
Escrevia à
mãe de três em três meses, e nunca deixava de lhe recomendar que conservasse
tal e qual como estava a casita, e que não mexesse nunca no leito em que ele
dormira nos anos próximos à partida para o Brasil.
«Porque
desejo morrer nele», escrevia Cerqueira à mãe amantíssima.
E ia-se
deixando ficar.
Por duas
vezes os sócios estiveram em Portugal, mas o nosso Cerqueira não se decidia.
As vezes
parecia tomado de uma forte resolução, e, ouvindo as descrições das viagens dos
sócios:
— Homem,
parece-me que sempre me resolvo!
No outro
dia, porém, li andava pelos armazéns mourejando, dando ordens, e naquela
atmosfera de trabalho vivificante e saudável parecia transfigurado e como que
esquecido da promessa que a si próprio fizera.
****
Um dia,
quando o Sr. Cerqueira encarapitado no alto banco de palhinha sobre a
secretária, revendo se na sua bela letra inglesa e floreada, entrou no
escritório um dos caixeiros anunciando-lhe que estava ali um sujeito que
desejava falar-lhe.
Cerqueira
colocou a pena atrás da orelha, puxou do lenço vermelho, e abrindo a caixa
enterrou unidos, no tabaco, o polegar e o índex, e mal acabava de absorver a
pitada pela narina direita, tamborinando voluptuosamente com os restantes dedos
na esquerda, quando lhe surgiu à porta um rapaz bem trajado e modesto, que
figurava ter quando muito “dezesseis anos.
— Creio que
falo ao Sr. Francisco Cerqueira?
— É verdade.
— Cheguei
hoje de Portugal e trago-lhe esta carta.
E o rapaz
desabotoando o fraque, tirou do bolso uma carta que entregou respeitosamente ao
negociante.
Olhou atento
para a letra do sobrescrito e sorriu-se; um bom sorriso beatífico e dourado de
mocidade que lhe iluminou o rosto.
Depois abriu
a carta, desdobrou-a e colocando-a perante o rosto começou a lê-la devagar,
como que saboreando cada palavra e cada frase. As vezes parava, e como um
namorado que espreita por cima de um muro, erguia os olhos acima do papel e
examinava atentamente o rapaz, que se conservava de olhos baixos, direito e
tranquilo.
Chegando ao
fim da carta, voltava de novo a lê-la. Era como que um conversar com aquelas
letras que vinham de longe e que lhe traziam um pouco de perfume das
laranjeiras do país natal, e um tudo nada das lagrimas da sua mãe.
— Queira
sentar-se, disso benevolamente o comerciante ao mancebo.
E continuou
a ler. A carta era pequena, mas naquelas letras arrevesadas e trêmulas ele via
um rosto, umas feições adoradas, e logo depois como nas tintas esbatidas e
aéreas de um sonho de convalescente, levantava se uma figura de mulher ainda
nova e vigorosa, ao pé de umas carvalheiras, e essa mulher estendia-lhe o»
braços e dizia-lhe de longe com uma voz entrecortada de lagrimas:
— «Ah! rico
filho, rico filho da minha alma!»
Arrancado
daquela visão, o Sr. Cerqueira dobrou a carta devagar com as mesmas dobras,
abriu a larga carteira de marroquim vermelho e colocou-a com grande cuidado num
determinado compartir mento.
Em seguida
levantou-se e pitadeando de novo:
— Olhe, o
nosso guarda livros vai espairecer até Buenos-Ayres, e creio que por lá ficará.
Coitado! aquilo vai mal!... Quer o senhor ocupar esse lugar nesta casa?
O rapaz
aceitou reconhecido, e ia a levantar-se quando um preto velho em mangas de
camisa abriu a porta do escritório:
— O jantar
está na mesa...
****
Passados
dias notaram os sócios do Sr. Cerqueira que este não parava em casa um
instante. Saía frequentemente, andava mais contente e lépido que o costume.
Pouco falava ao jantar; de comunicativo que era, tornara-se recolhido consigo,
mas no olhar lampejava-lhe uma doce e inefável alegria.
Ora que
fazia o Sr. Cerqueira?
Andava
envolvido numa terrível conspiração, queria desfazer-se, desligar-se dos
queridos laços, criados pela sua longa e trabalhosa vida de perto de quarenta
anos, naquela terra a que ele de entranhas queria, e aonde aportara pobre,
desprotegido, sem recursos...
Logo pela
manhã, depois de dar as suas ordens no escritório, metia-se a caminho,
percorria as ruas, examinando atentamente coisas que antes lhe tinham passado
desapercebidas.
Entrando nos
americanos, dirigia-se aos formosos arrabaldes da corte...
Lembrava-se
então das suas merendas saudosas e iluminadas pelo sol dos vinte anos, no morro
de Santa Teresa, nas chaçaras ridentes do Botafogo, à sombra das árvores do
Corcovado.
E passava
distraído sem corresponder aos frequentes e afáveis cumprimentos que lhe faziam
os conhecidos e amigos, do alto da imperial dos ônibus, ou da plataforma dos
americanos.
Alguns dos
companheiros dos seus passeios e folguedos da mocidade tinham morrido, outros
tinham deixado o Brasil e viviam na Europa, em Portugal.
— Como
puderam eles deixar isto sem saudade? É verdade que eu gostava de morrer lá,
onde nasci, na minha pobre aldeia, ao pé da minha mãe... pensava o Sr.
Cerqueira.
E à hora do
jantar, já não havia o conversar, e aquele teimoso questionar que tanto
alegrava os dois sócios!
E que o Sr.
Cerqueira continuava a falar consigo e a passar uma a uma pelos dedos as contas
do místico rosário das suas saudades...
****
Uma tarde os
sócios de Cerqueira bateram-lhe à porta do quarto. Houve uma certa demora em se
abrir essa porta. Insistiram. Cerqueira veio enfim saber o que era.
Entraram os
dois e recuaram surpreendidos perante a mudança que observaram.
No meio do
quarto estava uma grande mala escura cravejada de pregos amarelos; em cima do
canapé esgarçado avultavam montes de roupa branca, e pequenas malas inglesas
com fechos dourados e reluzentes. As gavetas da cômoda estavam corridas, havia
naquele quarto em fim a aparência de uma casa saqueada...
— O que é
isto, seu Cerqueira?
— É o que
vocês estão vendo. Amanhã é o dia da partida... Resolvi-me enfim...
— E eu que
tinha apostado aqui com o seu Fernandes que você nunca se resolvia...
— Pois, meu
amigo, perdeu a aposta, cortou o Cerqueira, sorvendo sibariticamente um pitada.
Na manhã do
dia seguinte, no tombadilho de um dos vapores da Companhia do Pacifico,
enquanto os dois sócios do Cerqueira riam e diziam facécias, deitando com ares
de casquilhos atabalhoados as lunetas a algumas francesas, que, com os seus
vestidos de fazendas claras animavam alegremente aquele conjunto de pessoas
possuídas de tão estranhos e contraditórios sentimentos, o nosso viajante
olhava com os olhos de quem se despede de um sítio amado para os armazéns, para
os trapiches que se retratavam nas águas da baia, para as torres das igrejas
que se arrendavam nitidamente no claro céu azul.
****
Em Lisboa
pouco se demorou.
No hotel,
alguns amigos quiseram prendei-o ainda, tentando-o com o teatro lírico, com
Cintra e com as poucas fascinações baratas de Lisboa.
Cerqueira
resistiu, e numa bela manhã, metido numa diligência que partia de Braga,
dirigiu-se para Ponte de Lima. Aqui alugando uma carruagem dirigiu-se para a
aldeia em que nascera.
A meio
caminho apeou-se, despediu o homem que o acompanhara, e deitando ao ombro uma
pequena mala que trouxera, encaminhou-se para o seu lugar.
Seriam
quando muito duas horas da tarde. O calor era grande. Pouca gente na estrada.
Cerqueira parou a contemplar o quadro.
De um dos
lados do caminho viam-se algumas raparigas com largos chapéus desabados e saias
apanhadas segando erva, à compita, e misturando o seu canto ao metálico e
monótono cantar das cigarras...
Do outro
lado, um rapazito meio nu, de carapuça, sentado no chão, estava de guarda a
meia dúzia de bois que pastavam tranquilamente na erva macia e tenra...
De vez em
vez, quando um dos bois se aproximava de algum castanheiro, o rapaz agarrava de
um calhau, e atirando-lhe rasteiramente, gritava:
— Eh!
malhado...
— Quantas
vezes eu também guardei as vacas da nossa casa! pensou Cerqueira.
— Ó rapaz,
venha cá, disse para o rapaz, venha cá, rapaz!
O rapaz
olhou para o forasteiro com um olhar estúpido o embezerrado e deixou-se ficar.
— Venha cá,
menino, que lhe não quero mal...
O pequeno
não se movia.
— O rapaz é
mouco, disse consigo o viajante, e como quem conhece o coração humano, tirou a
bolsa e mostrou-lhe uma moeda de prata.
— Queres
isto?
De um salto
o rapaz pôs-se a pé, tirou a carapuça, e coçando a cabeça aproximou-se.
— Diga-me
uma coisa, menino, é aqui do lugar?
— Saiba
vossemecê que sim senhor.
— Conhece a
tia Genoveva?
— Uma que é
assim a modo bexigosa, e já muito velhinha?
— Essa
mesma.
— Olhe,
ainda há pouco a vi passar da banda do rio... São horas de a topar em casa...
Cerqueira
estava por fim tranquilo.
Desaparecera
o receio de não encontrar a querida velhinha.
Verdade é
que podia ter tido notícias dela em Lisboa escrevendo ao abade, mas queria
fazer uma supressa, chegar de improviso.
Aquela hora
as aldeias do Minho são silenciosas e calmas, e há nelas como que a intima paz
das fabricas ao domingo.
Os homens
andam no campo, as mulheres, quando os não acompanham, estão nos lavadouros
ensaboando, e poucas pessoas, a não serem os velhos e algumas crianças, ficam
em casa.
Na sombria umidade
das tabernas descobre se a taberneira fiando, enquanto no quinteiro próximo os
porcos com os focinhos semienterrados na lama grunhem voluptuosamente.
Um ou outro
cavaleiro que passa ás vezes pela estrada num chouto endiabrado, com o pão de
choupa apertado nos joelhos, levantando uma nuvem de poeira dourada. E é então
que os cães acordam aquele silêncio, latindo e correndo atrás dos cavaleiros, e
que aparecem ás janelas e ás portas as raras pessoas que ficaram em casa.
Quando
Cerqueira bateu à porta da casa pulava-lhe o coração de um modo desusado.
— Quem é?
— Alguém é,
respondeu o viajante.
— Pois
empurre o postigo, puxe pela aldraba e entre, se isso o não incomoda.
Assim o fez
o nosso Cerqueira e entrou na saleta em que a tia Genoveva dobava...
Ante aquele
homem estranho, a velha surpreendida parou, e pondo uma das mãos à frente dos
olhos como uma pala:
— Que me
quer vossemecê?
— Um abraço
e um beijo, balbuciou o que entrara com voz enternecida e expirante...
— Ele que
diz? Ó Cristo!
E
levantando-se foi direita à janela para chamar por socorro imaginando ver-se a
braços com um doudo.
— Olhe que
não estou doudo, santinha! Venho de longe e trago-lhe um beijo e um abraço de
uma pessoa que é muito sua amiga.
— Do meu
Francisco? exclamou a velha. Venham de lá não só um mas muitos abraços, que ele
no dinheiro é mais generoso, valha-o Deus! Um só abraço!
E a velhita
apertou nos braços Cerqueira, que com as lagrimas nos olhos murmurava:
— E eu que
pensei que me conhecia! Pois não me conhece, minha mãe? Eu é que sou o seu
Francisco, sou eu, repare bem. ..
A velha
então explodiu um alto e clamoroso grito, e chorando e rindo, caiu nos braços
do filho.
— Agora
conheço, sim, estava tonta! Esta cabeça t Mas se tu eras uns dez réis de gente
quando abalaste daqui... Onde está a tua roupa? Já jantaste? Cá a gente janta
ao meio dia, mas arranja-se tudo, não tem duvida... a Joana foi à cidade, vou
eu mesma matar uma galinha... Tens fome? deves ter, sim? A minha cabeça...
aminha cabeça! O meu Francisco!. Mas porque me não mandaste dizer que chegavas,
rapaz? Valha-te Deus!...
E a tia
Genoveva no meio do seu contentamento saía da sala para logo voltar, amontoando
perguntas sem nexo.
— Gostas
disto? gostas daquilo? Do que vais gostar é do vinho, é do nosso caco de salsa
e saiu-me daquela casta! O presunto vamos com Deus, que também me saiu bom.
Aves provar... Ora o pecado do rapaz que me não avisou de nada!
E saía para
daí a pouco voltar com a mesma abundancia de perguntas e de frases penetradas
de amorável repreensão...
****
Oh! que bom
e que intimo foi aquele jantar!
A sala
alegre e caiada de branco, a toalha áspera, grossa e nevada, os talheres de
cabo de osso fabricados em Guimarães, os copos com um friso dourado nas bordas,
as janelas abertas e dando para os campos onde caíam suavemente as tintas do
sol posto, tudo dava uma quieta e serena beatitude ao coração do brasileiro.
A mãe
encostada ao espaldar da cadeira em que estava sentado o filho servia-o com
muito carinho, fazendo-lhe perguntas sem conta a que ele respondia com o rosto
inundado e clareado pelas lembranças de um passado que as palavras da mãe
evocavam renascido.
Depois
coube-lhe a ele fazer também perguntas: o que era feito deste, se ainda era
vivo aquele, se no sítio de tal ainda existiam aquelas carvalheiras onde havia
antes tanto ninho de melro, e se uma casara, e outra tinha muitos filhos, eu
sei! um mundo de recordações e de saudades!
E com o
olhar umedecido, Cerqueira percorria tudo, o velho armário pintado, as grades
da varanda, as medas levantadas no meio da sombria verdura dos campos...
Ia caindo a
noite, ouvia-se já na aldeia um certo borborinho de vida, vinham da estrada
trechos ruidosos de conversações. Recolhiam do campo os trabalhadores.
E os dois a
conversar ainda!
— E a Joana
que não chega da cidade! É sempre assim!
Quando há
pressa é que não vem... Queres tu dar uma volta peio lugar, Francisco?
— Nada,
minha mãe! Este dia é só para si. ainda bem que ninguém me viu, e que se não
sabe que cheguei... Conversemos, tenho tanto que dizer, tanto que ouvir. .
Entrelaçava-se
de novo a conversa, e assim estiveram até que a velha disse:
— E então
não querem ver que o rapaz quer tirar-me dos meus hábitos! São horas de deitar.
Vou fazer-te a cama, está aí quedo que eu já volto.
Voltou daí a
pouco com um candeeiro de três bicos A luz batia-lhe no engelhado rosto cheio
de bondade, e um sorriso de ventura brincava-lhe nos olhos e na boca.
E, empuxado
suavemente pela mãe, o brasileiro entrou no quarto que lhe estivera preparando.
A velha
abeirou-se da cama, desdobrou as roupas, ajeitou a travesseirinha de largos
bordados tesos e engomados, e voltando-se para o filho que examinava tudo
curiosamente:
— Agora toca
a deitar! Tenho tanta pena que me não trouxesses uma nora! pois eu creio que lá
no Brasil há muitas raparigas bonitas, pois não há?
O brasileiro
sorria-se, e a mãe incansável enchia-o de perguntas, de mimos, de
recomendações, até que saiu abençoando-o com toda a sua alma, rude mas
extremosa.
****
Francisco
Cerqueira deitou-se, e ainda que lhe parecesse que o tinham de incomodar os
pesados lençóis de linho duros e ásperos, adormeceu profundamente.
Sonhou.
Estava no Brasil, os sócios tinham chegado da Europa, vinham queimados da
viagem, mas contentes; contavam anedotas e casos sucedidos durante o passeio.
Que Portugal
era um jardim, o Minho sobretudo! não se fazia ideia.
Narravam a
maneira como tinham sido recebidos na aldeia natal, as festas, as alegrias da
chegada, as noites de esfolhada, as romarias ruidosas ... Cerqueira ouvia-os, e
lá por dentro do coração, sentia a grande e plúmbea nostalgia do país natal...
Se eu pudesse lá ir! Mas para quê? Estou velho... e depois pode ser que a
velhinha já não viva!...
E continuava
a trabalhar, a dar ordens no úmido armazém sombrio entre os escravos...
Nisto
sacudiram-no uma, duas vezes, três vezes.
— O grande
mandrião, pois isto são horas de dormir ainda? Olha que já estou a pé há duas
horas! Na cozinha vai tudo raso com trabalho! Arriba, homem! Não tens vergonha,
dorminhoco?
E o brasileiro,
estendendo os braços e esfregando os olhos com os punhos fechados, perguntou
bocejando:
— Que horas
são?
— Dez horas,
grandessíssimo preguiçoso!
— Há
quarenta anos que não durmo um sono tão bom, minha mãe!
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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