DUAS FACES
DE UMA MEDALHA
Ela tinha já
feito vinte e cinco anos, ele contava apenas vinte e dois.
Era uma
criança triste e ambiciosa.
Sonhava no
impossível, e nesse sonho criava forças heroicas para todas as lutas da
realidade.
Margarida
distinguira-o no meio de todos os homens ricos, elegantes, nobres ou poderosos,
que a rodeavam e aclamavam rainha.
E que na
cara dele, já cavada por duas linhas profundas, lia o que não lera ainda nos
outros— o pensamento e a energia.
Sabia,
porém, que o seu pai, o banqueiro milionário, só a daria com prazer a quem
trouxesse mais lustre ou mais dinheiro à sua casa, e tímida, melancólica, sem
disposições para as lutas da vida, repugnava-lhe tudo que fosse combate ou
resistência.
Tinha sido
doente desde pequenina, era um organismo nervoso e delicado, cheio de caprichos
inconscientes, mais artístico do que reflexivo.
Gostava de
música, de flores, de versos, das coisas belas e harmoniosas, tinha um vago
desdém silencioso por tudo quanto via ser o enlevo e a preocupação exclusiva
dos seus.
O dinheiro!
sempre o dinheiro!
Ninguém
falava em torno dela senão em dinheiro, e no entanto ela, que vivia num voluptuoso
ninho de princesa de conto de fadas, tinha pelo dinheiro em si o mais soberano
desdém.
Salvava-a
isto da vulgaridade que mais ou menos contamina as mulheres ricas.
Margarida no
inverno vivia em Lisboa.
Tinha então
a vida fútil e ociosa de todas as rainhas da alta vida.
Ia muito a
S. Carlos, recebia numa certa noite da semana, presidia aos jantares dados pelo
seu pai, ia passar muitas noites fora, fazia compras, corria as modistas
acompanhada sempre por miss Brown, uma correta inglesa de saca-rolhas cor de
açafrão, que o seu pai descobrira felizmente numa das suas viagens a Londres.
No meio
desta vida artificial tão vazia e tão fatigante ao mesmo tempo, que lugar havia
para que ela pensasse, sentisse, desejasse alguma coisa para fora do círculo
estreito que a encerrava?
Margarida
deixava-se viver.
Um dia,
porém, num baile, apresentaram-lhe Eduardo de C., e depois de meia hora de
conversação sentiu por ele o que não sentira ainda por nenhum outro.
Ficaram
.conhecidos.
Ele na
sombra, de longe, já se vê; ela lá em cima na plena irradiação da sua graça, da
sua formosura, da sua opulência, de todo o seu esplendor.
Cumprimentavam-se
com uns toques de familiaridade, e num ou noutro baile destes a que vai toda a
gente, a boa e a má, tinham-se apertado a mão mutuamente, e tinham trocado
algumas frases afetuosas.
No verão, o
pai de Margarida, que tinha propriedades em vários pontos de Portugal,
consultava a filha para que lhe indicasse a quinta em que mais gostaria de
passar as calmas do estio.
Pouco tempo
depois do encontro com Eduardo, Margarida, disse ao seu pai, que a consultava
como de costume:
— Este ano
vamos para o Minho, sim? Sinto-me tão fraca, tão doente! O ar do Minho há de
por força fazer-me bem.
E verdade
que nas vésperas, num baile, Eduardo dissera-lhe, aproximando-se dela:
— Peço
licença par A apresentar a v. ex. as minhas despedidas. Alcancei uma colocação
em Viana do Castelo, e parto para ali um dia destes.
— Viana!
pensou Margarida enquanto dois raios de alegria se acendiam nas suas pupilas de
um azul sombrio.
— E em Viana
a nossa quinta.
****
Partiram.
Na província
a intimidade estabelece-se forçadamente entre pessoas que não pertencem ás
mesmas camadas sociais.
Para se
admitir um sujeito em qualquer sala de província exige-se simplesmente que
tenha uma educação limpa, e que possua alguma prenda de sociedade.
Em Viana, na
sala do grande banqueiro tão altivo e tão inacessível, reuniam-se não só os
fidalgos mais primorosos das cercanias, como também os humildes funcionários do
Estado, que por aquelas regiões se achavam acomodados .
Margarida,
com o seu porte de soberana, o seu sorriso altivo e distraído, a graça ondeante
da sua gentil figura, recebia a todos com a mesma benévola indiferença.
Todos a
contemplavam fascinados e quase medrosos.
Ninguém se
atrevia a dirigir-lhe finezas banais: de tal modo o olhar dela sabia tornar-se
glacial, logo que adivinhava a pretensão de um namorado na amabilidade um tanto
desastrada de algum dos seus convivas provincianos.
— Não há
aqui um empregado chamado Eduardo de C.? perguntava um dia na sala a elegante
filha do banqueiro.
— Há. Um
rapaz muito estudioso, muito concentrado, que desenha muito bem, acudiu
espevitadamente dali uma menina que fazia as delicias das soiréss de Viana, pela sua voz de falsete sempre pronta a torturar
os ouvidos do próximo. Conhece-o?
— Foi-me
apresentado este inverno em Lisboa; respondeu Margarida.
E
acrescentou mentalmente: — Quem me dera que ele aqui aparecesse! Como me
distrairia de todo isto que me cerca.
Isto era uma
dúzia de cavalheiros da província acompanhados das suas respetivas esposas ou
manas, tudo gente preocupada dos interesses mais mesquinhos, das pequenas
intrigas mais pueris, falando, gesticulando, dançando, tocando, cantando,
murmurando e constituindo a única diversão das noites de Margarida.
Não sabemos
de que traças usou a gentil lisboeta: sabemos que algumas noites depois desta,
Eduardo de O. era apresentado por um fidalgote, aspirante e literato, na sala
do banqueiro.
Desde esse
dia ele e Margarida formaram em comum uma espécie de refúgio contra a frívola
banalidade daquelas noites.
Eduardo
desenhava com muito chiste caricaturas e graciosos croquis, que Margarida
guardava contentíssima; ela cantava com a sua voz meiga e flexível algumas
simples melodias alemãs, ou tocava as músicas dos velhos mestres clássicos, tão
queridos de Eduardo.
Falavam a
respeito de tudo com a liberdade de pessoas que se entendem e apreciam.
Discutiam
literatura, música e verbos.
As vezes
falavam ambos do futuro.
—Que tem
tenção de fazer? perguntava Margarida.
— Ora! Não
sei bem. Com certeza hei de fazer alguma coisa. Ando a criar forças para a
luta. Há de ser tenaz, há de ser terrível, bem sei, mas eu hei de vencer!
— Quer que
lhe dê um talismã para entrar no fogo?
Ele
envolveu-a num olhar ardente; depois, baixando a vista, respondeu quase com
violência:
— Não
brinque comigo. Olhe, que me faz muito mal.
****
Margarida
sabia que era amada.
Também ela
sentia por ele o que nunca sentira, mas não tinha coragem para resistir ás
ordens do seu pai.
Por esse tempo
andava ele a arranjar o casamento da filha com o conde de V., um rapaz que
tinha nas veias o sangue dos reis godos, e na cabeça a mais crassa estupidez de
que há memória desde o tempo dos ditos.
Margarida
sabia ou suspeitava do caso, mas deixava-se ir numa indolência de crioula à
mercê dos acontecimentos da sua vida.
Ao pé de
Eduardo sentia-se bem, e quando ele a fixava com o seu belo olhar de ambicioso
e de pensador, Margarida esquecia-se de tudo que não fosse a delícia de ser
preferida por aquele homem.
****
Numa noite
em que os hóspedes habituais estavam na sala, e em que junto da mesa redonda do
serão Eduardo e Margarida liam esquecidos de tudo que os
cercava,
felizes, despreocupados como os dois amantes do florentino, ouviu-se o rodar de
uma carruagem que parava à porta do palácio.
O banqueiro
levantou-se rapidamente da banca do voltarete e saiu da sala relanceando para a
filha um olhar de esconso.
Margarida,
sem saber porque, fez-se pálida, como uma morta.
— Ó meu
amigo — exclamou num ímpeto ardente, irresistível, que não soube conter, —
chegou o fim da nossa felicidade!
Eduardo
olhou para ela desvairado.
— Que diz?
que é isso? a que se refere?
Neste
momento entrava na sala o pai de Margarida dando a direita ao último herdeiro
de nobres avoengos.
— O Sr.
conde de V... pronunciou com o orgulho humilde dos burgueses ambiciosos de
honrarias sociais, apresentando o recém-chegado a toda a companhia.
Margarida
acolheu-o com um sorriso gelado.
Conhecia-o,
sabia que o pai queria pôr-lhe sobre a cabeça loura e altiva uma coroa de
condessa, e sentiu que dentro da alma lhe estalava uma corda que nunca mais
tomaria a vibrar!
****
Dali a seis
meses todos os jornais anunciavam na secção do high-life o casamento da filha
do banqueiro opulento com o neto dos heróis mediévicos.
Os
noticiaristas fundavam as mais ardentes esperanças neste consórcio que aliava o
sangue nobilíssimo e a fortuna colossal, e contavam com grandes minudências as
pompas daquela festa principesca, os presentes riquíssimos que à noiva
recebera, a toilette desta, a alegria
dos numerosos convidados, etc., etc.
O que
ninguém sabia é que esse casamento despedaçara duas vidas!
****
No fim de
dez anos o conde de V... dera cabo do dote da mulher, e a vida do sogro, que
morreu amaldiçoando-o.
Continuava, porém,
la vie à grandes guides, que tinha
começado no dia seguinte ao seu noivado, e já havia quem calculasse muito pela
rama por quanto tempo podia durar ainda a desenfreada orgia daquela existência
de Marialva estúpido.
Em casa da
condessa o luxo não se modificara com as aproximações da pobreza.
No olhar
dela divisava-se uma profunda e desdenhosa indiferença da vida.
Nem o amor
maternal conseguira salva-la do desespero.
Ligada a um
homem que desprezava do íntimo da alma, entristecida para sempre por uma destas
recordações que lavram dia a dia, e que por fim se apossam de uma existência
inteira, Margarida procurava esquecer-se de si, aturdir-se no turbilhão das
festas mundanas.
Os filhinhos
estavam entregues ao cuidado daquela pobre miss Brown que ao ver o abandono dos
pobres anjos, inocentes das culpas dos seus pais, se dedicara por eles com a
abnegação profunda de que só é capaz uma inglesa feia!
Margarida
passeava de carruagem, ia ao teatro, ao paço, aos bailes, ás festas de
beneficência, vendia nos bazares de caridade elegante, fazia e recebia visitas,
e de vez em quando, se no meio deste turbilhão avistava o marido, media-o de
alto a baixo com um olhar de profundo e inconcebível tédio!
Eduardo
durante estes dez anos também, sofrera grandes modificações na sua vida.
Lutara como
um homem, e soubera vencer a mediocridade do seu nascimento e da sua posição.
No instante
em que aquela que ele um dia amara como a noiva estremecida da sua alma, sentia
vagamente afundar-se no sorvedouro negro da miséria, ele recusara altivamente
uma pasta de ministro e uma noiva brasileira, possuidora de duzentos contos
fortes, isto depois de uma sessão legislativa, em que a sua palavra viva,
nervosa, eloquente, colorida e artística tinha deslumbrado o país.
— Não me
vendo por dinheiro, nem pelas honras mentirosas com que os tolos lançam poeira
à cara uns dos outros; respondera a quem o interrogava espantado acerca destas
duas recusas.
****
Alguém, que
me contou este vulgar episódio da vida moderna, mostrou-me o fragmento de uma
carta que Margarida escreveu doze anos depois de casada a uma socia das suas
antigas alegrias.
<E a ti
que prefiro escrever. Conheceste-me solteira, feliz, ídolo de um pai, que, ai
de mim! se perdeu e me perdeu pela vaidade. Hás de ter dó de mim.
«Tenho dois filhos
e preciso ganhar honestamente o pão que eles hão de comer!
«Pressinto o
teu espanto, as tuas interrogações, os brados aflitivos da tua surpresa!
«Não me
perguntes nada.
«Pergunta-o
se quiseres, a essa Lisboa, que assistiu ao louco esfacelar de uma fortuna
enorme, com o sorriso, banal e adulador que ela tem para todos os perdulários.
«Sabes a
educação que recebi.
«Creio que
seria uma mestra capaz de cumprir com a minha árdua missão.
«Em nome dos
teus louros pequeninos, tão fartos de gulodices e de beijos, arranja-me algum
meio de ganhar um pedaço de pão para os meus filhos.»
****
Dava lições!
A brilhante
Condessa de V..., a filha adorada de um dos homens mais ricos de Lisboa, a
rainha dos salões luxuosos, a estrela mais fulgurante do alto mundo, dava lições
para sustentar os dois filhos que lhe restavam, únicos vestígios de um passado
de pomposas mentiras.
O infortúnio
nobremente suportado transfigurara aquele rosto desdenhoso e soberbo de garrida
mundana.
Deixara de
ser rainha e levantara-se mártir!
Levantava-se
de manhã muito cedo, bebia à pressa uma xícara de café, que a sua fiel Miss
Brown, companheira dos triunfos e das desventuras lhe preparava pelas suas
próprias mãos, e saía, modestamente vestida de preto, a cumprir a sua ímproba
tarefa.
Só voltava a
casa de noite.
Divulgara-se
rapidamente a noticia daquela excepcional desventura, e muita gente, que vira
com desprazer a prodigalidade da caprichosa condessa, compadecia £e agora, sem
pensamento reservado, daquela digna e santa expiação.
Margarida
tinha muitas discípulas.
Fazia pena
vê-la, muito delgada, quase diáfana, com os olhos pisados, as faces coradas
pelo cansaço e pela febre, e um sorriso triste resignado, humilde, naqueles
lábios que tinham sabido trejeitar com tão altivo desdém.
Era sempre a
mesma alma sem energia.
Não esperava
coisa nenhuma da terra senão a morte, levando a consciência de ter expiado os
erros do seu orgulho.
Cumpria uma
penitência, não encetava uma luta heroica de que esperasse sair vencedora. Numa
tarde do mês de janeiro, chuvosa, úmida e fria, Margarida subia a muito custo a
calçada de S. Bento, em Lisboa, onde morava uma das suas discípulas.
A rua,
viscosa e lamacenta, inspirava-lhe aquela repugnância patrícia, que a infeliz
ainda não soubera vencer.
A atmosfera
plúmbea e carregada dava-lhe ao coração uma dose de invencível tristeza.
Sentia-se
predisposta para as recordações cruciantes para as inúteis flutuações de um
sonho que se extinguira.
Compreendia
com angústia que lhe faltava coragem para levar a cabo o doloroso dever que a
si própria impusera.
Oh! ela bem
sabia que a sua alma não era da têmpera das que lutam e se sacrificam!...
Nisto uma
carruagem elegante descia a calçada ao passo de dois formosos cavalos ingleses.
Margarida,
vendo a alguns passos o correio agaloado, percebeu que era um ministro e, sem
querer, movida por um impulso súbito, levantou os olhos e fitou os no homem que
ia dentro do trem.
O que ela
sentiu não se explica.
O ministro
era Eduardo de C.
Os olhos dos
dois encontraram-se.
Margarida
quis saborear a voluptuosa tortura de ver nesses olhos o brilho de um satânico
orgulho, de um triunfo sinistro e mau.
Não viu!
Eduardo teve
tempo de inunda-la num destes olhares doces, untuosos, cheios de misericórdia,
de doçura, de perdão; num destes olhares que só podem comparar-se ao olhar do
Cristo redimindo a Magdalena!
Só de longe
a tinha visto de vez em quando nas salas do alto mundo: nunca lhe falara então;
não quis humilha-la falando-lhe agora!
Ela sentiu
que se lhe despedaçara no peito alguma coisa indispensável à vida.
Apertou em
torno do corpo friorento e emagrecido as pregas do seu pobre chale preto,
abaixou a cabeça instintivamente, como se fizesse pender para a terra um peso
estranho, e continuou a subir devagarinho, arrimando-se à parede, aquela eterna
calçada, cheia de água e de lama.
Caía uma
chuva fria e miúda que lhe encharcava o fato.
****
Um mês
depois, da casa pequenina de Margarida saía um enterro modesto.
Era o
enterro delia.
Miss Brown
explicava que a pobre senhora voltara uma noite muito constipada das lições,
que teimara em sair ainda no dia seguinte, mas que tivera de recolher-se à
cama, onde penou pouco menos de um mês.
O enterro de
Margarida levava por acompanhamento único uma carruagem sem brasão.
Nessa
carruagem ia Eduardo de C.
Margarida, antes
de morrer, escrevera-lhe uma carta cujas súplicas dolorosas iam apagadas pelas
lagrimas.
Os dois
órfãos de Margarida estão agora a educar-se num dos melhores colégios de
Lisboa, e todas as despesas da sua educação são pagas por um protetor invisível
e misterioso.
Há quem dê a
essa Providencia ignota o nome simpático e hoje glorioso e querido de Eduardo
de C.
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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