A PERCEPTORA
Chamava-se Marta de Vasconcelos.
Era alta,
loura, delicada como uma figura de Keepsake.
Uma
fisionomia suave e infantil que cativava pelo seu encanto inconsciente.
A primeira
vista, nas soirées semanais do
comendador Gonçalves, vestida de branco, com um simples veludo negro nos seus
cabelos crespos de um louro fulvo e ardente, parecia uma criança despreocupada
e frívola.
Não o era.
Quem a
conhecesse de perto sabia que ela tinha a seriedade precoce dos que já
padeceram muito.
Nenhuma
sentimentalidade falsa no seu olhar azul, meigo e pensativo. Nenhuma ideia
errada, nenhuma quimera juvenil na sua cabecinha de uma lucidez singular.
Sabia
conservar-se na sombra, sem deixar de ser digna; tinha a consciência da
mesquinhez do seu destino, sem ter nunca aprendido a ser humilde.
Pouco
falavam com ela, e no entanto parecia não dar pelo desdém quase brutal de toda
aquela gente que a cercava.
Tinha um
modo dócil e meio risonho de sentar-se ao piano, e tocava uma noite inteira
valsas, contradanças, lanceiros, que outras dançavam, na expansão da sua
alegria burguesa.
Nunca lhe
perguntavam se estava cansada, nunca lhe davam a menor mostra de interesse ou
de simpatia.
Pagavam-lhe
integral e generosamente, tinham direito aos serviços correspondentes a essa
remuneração.
As suas
relações paravam aqui.
Não. sabiam
se ela tinha uma alma, se essa alma se iria azedando a pouco e pouco ao
contacto daquela indiferença cruel; não sabiam do seu passado senão que era
honesto e puro, nunca pensavam no seu futuro senão vendo-a eternamente curvada
ao peso do mesmo destino ingrato.
Marta era
mestra de duas filhas do comendador, duas rapariguinhas de treze a quinze anos,
muito presumidas da sua riqueza, muito vaidosas do seu luxo, das carruagens em
que andavam, dos vestidos de seda que vestiam, das festas com que os pais
alteravam de vez em quando a chata monotonia do seu viver de negociantes
retirados.
O comendador
tinha um filho muito mais velho do que as irmãs, que se educara na Alemanha; e
que depois de viajar pela Europa inteira, tinha
regressado
por fim à casa paterna, onde, aqui para nós, se enfastiava poderosamente.
O comendador
queria dar também ás filhas uma educação brilhante, uma educação que
correspondesse ás dimensões da sua burra, eis porque, depois de as tirar do
convento, onde tinham estado até àquela idade, escolhera para professora Marta
de Vasconcelos.
De resto as
ideias do comendador e da mulher sobre a educação das suas filhas, não eram das
mais engenhosas e atiladas.
A pobre
gente — neste caso, pobre significa riquíssima — a pobre gente não era obrigada
a ter um ideal muito levantado.
Sabiam que a
filha do barão de tal tocava piano, e queriam que as suas filhas soubessem
tocar muito melhor.
Tinham
ouvido louvar os desenhos da menina Fulana e juraram aos seus deuses que as
suas meninas lhe tinham de levar a palma.
Não tinham
ideias absolutas, tinham simplesmente ideias relativas.
Excitar a
admiração parecia-lhes uma coisa reles e insignificante; o que eles queriam era
excitar a inveja.
As pequenas
compreendiam isto maravilhosamente.
Em vendo uma
amiga da infância, uma conhecida qualquer com um vestido maia bonito ou com uma
prenda intelectual mais preciosa, tinham ataques de desespero surdo.
Ralava-as
uma vaga inveja de todos os esplendores sociais.
Andavam à
busca de gente a quem pudessem ofuscar.
Eram simplesmente
ridículas!
As vezes
entravam no quarto de Marta e diziam-lhe num transporte de cólera:
— Quero
saber alemão. A Mariquinhas sabe alemão, enquanto eu não sei.
— Quero
aprender a bordar de matiz, a Júlia fez um quadro que eu não sei fazer.
Era assim
que iam progredindo no estudo.
Marta
conformava-se docilmente ás aspirações das discípulas: ensinava-lhes tudo o que
sabia, mas o que ela de todo não pudera, era inocular-lhes a vida interior que
animava e coordenava todos os seus conhecimentos adquiridos ou intuitivos.
****
Dizia-se que
Marta conhecera melhores dias, afirmava-se mesmo que não fora para servir de
mestra a burguesinhas pretensiosas que o seu pai, um pai extremoso, lhe
adornara o espírito de todos os primores de uma educação excepcional.
Conhecia as
línguas modernas, mas não como as conhecem as meninas que por aí conversam com
os diplomatas, resumindo nisso todas as suas ambições de estudo.
Penetrara no
espírito delas, compreendera o gênio especial de cada uma, sabia de cor e
escolhia principalmente os poetas que sintetizam uma nacionalidade ou uma
civilização.
Tinham-lhe
ensinado a raciocinar, a pensar, a estudar a fundo todos os problemas em que
outras mulheres tocam somente ao de leve.
A
curiosidade natural ao espírito feminino, essa qualidade preciosa, que,
descurada, se torna quase sempre num vício antipático, fora nela tão bem
dirigida, disciplinada com tal mestria, que se tomara em fonte dos mais puros
gozos do seu espírito.
Não sabia
can-cans de salão, sabia o que dizem na sua muda língua os astros e as plantas;
não tentara penetrar na vida íntima das suas amigas, contentava-se em saber a
vida íntima da Criação.
Nunca lhe
viera à ideia penetrar com o espírito no pélago revolto das paixões insalubres;
a sua curiosidade insaciada debruçava-se de melhor vontade no pélago profundo
das ondas, a quem horas e horas perguntava pelas misteriosas riquezas do seu
seio.
No meio
disto, despretensiosa e simples, julgando-se a mais ignorante das criaturinhas
do bom Deus, não sabendo que era artista, que era inteligente, que tinha alma
capaz de entender todas as grandes coisas.
O pai, que a
vinha ver muitas vezes à casa da senhora a quem na infância a confira,
disse-lhe um dia com o pejo a ruborizar-lhe as faces, com lagrimas a
marejarem-lhe os olhos, que ela era uma filha natural, mas que tencionava
reconhece-la, regularizar a sua posição, dar-lhe todos os direitos que ela por
tantíssimos lados merecia.
A adorável
criança não o percebeu.
Então—castigo
terrível das suas culpas—o pai teve de explicar, de fazer compreender aqueles
castos ouvidos de quinze anos uma historia deplorável, a historia do seu crime!
Marta
escutou-o num silêncio dolorido, com uma expressão de doçura triste no olhar.
Depois
abraçou-o melhor ainda que nos outros dias, porque até ali só tivera muito que
agradecer e dali por diante sentia vagamente que tinha muito que perdoar.
— E a minha
mãe? — perguntou depois com uma tremura na voz.
— A tua mãe
morreu.
O pai de
Marta era casado, tinha filhos, vivia para sempre longe dela nas tranquilas
alegrias da família, uma família em que ela só podia ser a intrusa!
Desde esse
dia Marta estudou com dobrado afinco, aprendeu com uma ânsia dolorosa, com um
não sei quê de impaciência inexplicada.
Sentia que
havia de ter muito que sofrer, muito que lutar.
Tratou de
robustecer a alma e de dilatar o espírito.
Era uma
espécie de iniciação heroica.
****
O pai de
Marta morreu.
Um dia, ao
acabar de jantar, caiu para o lado inesperadamente, fulminado pela ruptura de
um aneurisma.
A morte
surpreendera o. Não tinha tido tempo de fazer nada em favor da sua desvalida
Marta.
Oito dias
depois, entrava esta, vestida de luto, muito pálida, mas com uma expressão
estranha de firmeza no olhar, em casa do comendador Gonçalves.
****
Julião, o
filho do comendador, tinha 23 anos quando Marta foi para casa do pai. Ao
princípio pouco reparou nela. Imaginava-a uma mestra como as outras, o mesmo
livro tirado a centenas de exemplares. Reconheceu somente que era um pouco mais
bonita que a generalidade das suas colegas.
Um dia,
porém, que ele lia Goethe no original, e que uma frase obscura do poeta o fazia
parar na leitura um tanto impacientado e confuso, lembrou-se — acaso ou
pressentimento — de recorrer à mestra de alemão das suas irmãs.
Entrou na
sala de estudo, com um certo desdém a transparecer-lhe na fisionomia.
Pode ser-se
educado na Alemanha e não compreender a obra “Fausto”: o que era no entanto
absolutamente impossível, na opinião do rapaz, era não ter nunca estado na
Alemanha e conhecer Goethe como um poeta nosso compatriota.
Marta
conhecia-o.
Pegou no
livro que Julião lhe estendia, deitou um relance de olhos para o verso de que
se tratava, e depois, com um sorriso não isento de certa malicia inocente,
explicou a Julião a ideia do poeta.
Havia tanta
clareza nas suas palavras, uma tão superior intuição artística nos seus rápidos
e despretensiosos comentários, que o rapaz olhou para ela deveras espantado.
Pareceu-lhe
que a via pela primeira vez.
Não lho
disse, porém; pelo contrário, sentiu uma espécie de surda irritação ao perceber
a sua inferioridade intelectual perante aquela criança tão simples, e que todos
olhavam com tamanho desdém.
Marta
percebeu porventura a impressão que despertara; o caso é que a malicia que lhe
chispava no olhar acentuou-se com um indeciso cambiante de ironia.
«A pequena
creio que se atreve a fazer escárnio de mim», pensou Julião, saindo da sala,
onde a juvenil perceptora ficou com as discípulas.
Desde esse
dia Julião e Marta observaram-se mutuamente com mais atenção.
Ele achava a
graciosa, simpática e boa sobretudo, tinha muita pena dela, ao vê-la desdenhada
por tanta gente que lhe era inferior na inteligência, na coragem, na distinção,
em tudo que pode tornar adorável uma mulher.
Marta
sentia-se silenciosamente compreendida, e agradecia àquele rapaz esbelto e
pensativo as delicadezas mudas com que a compensava do desamor de todos os
mais.
Tocou então
para ele as mais doces e sentidas musicas que sabia; os apaixonados noturnos de
Chopin, as queixosas melodias de Schubert, as sonatas mais belas desse sublime surdo
chamado Beethoven.
Conversavam
um com o outro através da música, sem nunca se falarem de outro modo senão nas
coisas mais banais da vida de todos os dias.
Á tarde,
depois de jantar, enquanto o comendador ressonava a sua sesta sobre a prosa
elegante do Diário de Noticias, enquanto a comendadora meditava o rol daquele
dia, digerindo um bom jantar, e um ataque de fúria contra as suas criadas
presentes e futuras, enquanto as meninas debruçadas à janela, trocavam
substanciosos comentários acerca de um alferes que morava no prédio carairo, e
de uma menina muito namoradeira que morava no prédio do lado, Marta, sentada ao
piano, desfiava sozinha o longo rosário das-suas saudades.
Julião
ouvia-a fingindo ler um jornal ou um livro, e a apaixonada artista bem compreendia
que uma alma a estava escutando, e que essas límpidas notas que ela arrancava
ao piano iam vibrar divinamente num coração que a entendia.
Tudo os
separava na terra: o orgulho feroz de uma família de parvenus, o santo orgulho
dela, não menos implacável, porém muito mais nobre, os preconceitos, o
dinheiro, quase que a honra; mas, que importava?
Podiam
entender-se e amar-se através disso tudo.
E Marta,
empalidecida pelas comoções que lhe agitavam a sua alma de artista, com uma
expressão sofredora e apaixonada nos seus belos olhos de um azul escuro,
contava a meia voz naquela linguagem inefável as suas dores, as suas
humilhações, as suas lembranças, todas as alegrias que tivera, tudo que ela
tinha esperado na terra e que um dia se lhe tinha desfeito nas mãos,
deixando-lhe apenas uma imensa, uma desoladora, uma eterna saudade!
Ás vezes o
piano chorava com ama desesperação tão inconsolável e tão profunda, que Julião
tinha desejos de erguer-se da cadeira em que estava, de protestar contra os
enérgicos lamentos que traduziam a dor insanável de um destino, e de gritar:
— Aqui me
tem, pronto a lutar peito a peito contra o seu infortúnio, e a vencê-lo.
Mas não se
atrevia!
Que diriam
todos, que diria o seu pai, que diria a própria Marta?
Quem lhe
dava a ele direitos de interpretar daquele modo a sublime execução dessa
artista ignorada?
Quem pudera
afirmar-lhe que era pessoal essa dor misteriosa que tinha soluços tão doces,
queixas tão resignadas e tão mansas, lamentações de tão inefável ternura?
Um dia
Julião quis sondar o coração tão calado da pobre mestra. Procurou fazer-lhe
umas perguntas que não fossem por demais indiscretas.
Marta
desatou a rir.
E verdade
que no meio da sua cristalina risada os olhos se lhe afogaram em lagrimas; mas
nesse instante Julião sentia-se tão envergonhado da curiosidade que revelara,
que se não atreveu a olhar para a sua interlocutora.
****
O comendador
Gonçalves era ambicioso.
Pudera!
Ou não fosse
ele comendador.
Estava
riquíssimo, mas queria que os filhos fossem ainda mais ricos do que ele.
Para isso
andara a moirejar a vida inteira, por isso sustentara-se de pão negro e de
bacalhau durante os anos mais florentes da mocidade!
O seu mais
íntimo amigo, possuidor de um baronato, de avultada riqueza e de uma filha
única tão prendada como ele desejava as suas, falou-lhe um dia disfarçadamente,
com certa lábia, a respeito de Julião.
A meio
entendedor meia palavra baeta; daí a quatro meses o comendador dava uma pequena
soirée intima, em que a menina Adriana, filha do Sr. Barão de X, e chegada há
dias do Sacré-Coeur, era apresentada ao seu futuro noivo, o Sr. Julião
Gonçalves.
Estavam só
pessoas de família em casa do comendador.
Ele, a
mulher, as duas filhas, o filho e Marta. Enquanto ao barão, viera simplesmente
acompanhado pela filha.
Adriana
era... o que dali a alguns anos tinham de ser as futuras cunhadas.
Tinha a mais
umas tinturas de coqueterie
parisiense, coqueterie mal ensaiada,
mais colegial do que mundana.
Não se
iguala nem se descreve o desdém com que ela cumprimentou Marta. Era uma vingança
retrospectiva do que as suas próprias mestras lhe tinham feito passar.
Nos olhos
azuis de Marta passou um relâmpago de cólera fugitiva, mas não disse nada. O
que havia ela de dizer àquela gente, que a considerava um traste... bem pago?
Adriana, a
quem cabiam as honras da noite, sentou-se ao piano e tocou.
Tocou as
músicas de Marta, com a agilidade e com o preceito de uma pianista
experimentada.
Depois,
levantando-se no meio de palmas e de bravos, indicou a mestra o lugar que
deixara numa espécie de altivo desafio.
E que uma
das irmãs de Julião lhe dissera num risinho de malicia, que o irmão gostava
muito de ouvir Marta.
A rapariga
levantou-se com um gesto automático, sentou-se ao piano e sem mesmo olhar para
as músicas dispersas principiou a tocar.
Foi um adeus
soluçante, cheio de lagrimas, onde a espaços passavam como brisas
refrigerantes, umas vozes indizivelmente cariciosas!
Foi uma
história muito triste, que ainda ninguém tinha ouvido até ali, a história de um
coração despedaçado!
Como ela lhe
tinha querido, ao seu belo sonho desfeito, e com que dilacerante agonia lhe
dizia para sempre adeus!
Na sala
havia um silêncio angustioso e profundo.
O silêncio
inconsciente que inspiram as grandes comoções.
Desde esse
dia nunca mais ninguém ouviu a querida voz de Marta, aquela voz que tinha por
intérpretes os mais sublimes artistas do mundo.
Ela continua
a dar lições ás filhas do comendador, e há no seu sorriso uma expressão
divinamente dolorida, quando falia com Adriana, a feliz esposa de Julião.
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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