A MORTE DE BERTHA
(Dedicada a Naly)
Minha Naly,
ás vezes nos teus dias de bom humor, e sobre tudo nos raros dias em que estás
um pouco menos traquinas, vens sentar-te ao pé de mim, num banco pequenino, e
pegando num livro, — o teu livro de grandes bonecos coloridos—, finges que
estás lendo umas. coisas que a tua inquieta fantasiazinha de duende te
representa, escritas naquelas páginas ainda mudas para os olhos da tua
inteligência.
Com o teu
adorável instinto imitador, arremedas-me inconscientemente.
És o meu
epigrama vivo, um delicioso epigrama de olhos garços muito abertos, muito
inteligentes, muito maganos, como ainda não vi outros em ninguém. Ontem, porém,
estavas estranhamente curiosa.
Não te
bastava o que fingias ler, querias mais, querias que alguém inventasse pela tua
conta e risco, fingisse Ur para que tu ouvisses.
Levantaste a
loura cabeça inquieta, e disseste com a voz que os anjos costumam ensinar ás
crianças:
— Contas-me
uma história?
Que historia
te hei de eu contar, Naly? Com a tua alma de quatro anos, tão limpa, tão
transparente, tão cheia de ignorâncias ideais; com a tua alma de flor, só se
entende a linguagem dos lírios, só podem compreender-se cantos feitos de luar,
de perfumes, de cantos de aves, alguma coisa etérea, que eu te não sei dizer.
Venho contar-te
esta historia pára tu a leres mais tarde, quando a mão de alguém — pede a Deus
que seja a mão da tua mãe, Naly — houver arrancado ao teu doce espírito de
borboleta o pólen imaculado e cintilante com que Deus o polvilhou e que tem um
nome lindo, sabes qual?— a ignorância!
Então
saberás o que significam estas linhas escuras, alinhadas sinteticamente na
brancura do papel; terás chorado muita lagrima, meu anjo! a aprender cada uma
destas letras, que hoje interpretas conforme te inspira a tua vagabunda e caprichosa
imaginação!
E sentada
numa cadeira grande, muito direita, um pouco revestida da elevada importância
do teu cargo de leitora, repetirás alto à tua irmã pequenina este conto
verdadeiro que na tua intenção aqui venho traçar hoje.
****
A pequena
Bertha tinha cinco anos, um só mais do que os que hoje contas, Naly.
Era como tu,
loura, muito loura; dera-lhe Nossa Senhora uma cabeleira de anjo, fulva,
luminosa, feita de pequeninos anéis que se enroscavam, e que cintilavam ao sol,
formando em torno dela como que um esplendor de gloria.
Os olhos
muito grandes, transparentes, azuis pareciam ter no fundo um segredo de doce
tristeza. Um segredo que ela havia, de saber muito cedo... no céu!
O seu
pequeno corpo, macio, feito da brancura das açucenas que desabrocham em maio,
exalava como que um aroma de flor.
Bem vês que
Bertha era linda! Um amor! O orgulho e a ventura dos pais que se reviam nela.
Vivia numa
grande casa aristocrática, discreta, forrada de colgaduras, de tapetes, de
belos quadros antigos.
Descendo os degraus
de mármore da casa em que ela jantava, entre o pai e a mãe, na sua cadeirinha
de pés muito altos, ia ter a um grande jardim cheio de árvores cuidadas e
decotadas pela mão hábil de um jardineiro inglês.
Muito
gostava do seu jardim a pequenina Bertha!
Imagina tu
se ela não havia de gostar, Naly!
Havia li
tantas flores, tantas flores! e depois eram de tantos feitios! Umas
triunfantes, purpurinas, como se as tingisse um sangue novo e generoso, outras
tão brancas como os braços ebúrneos da mãe de Bertha, algumas tinham uma
palidez fina e mórbida, que lembrava a das belas senhoras que ela via passar
resvalando como sombras gentis, pelos atapetados salões da sua casa. Outras
eram, de uma cor de rosa desmaiada e doce, que acariciava os olhos de quem as
via.
As
campânulas azuis, esbeltas, efêmeras, lembrando pequeninos cálices de cristal
da Bohemia, trepavam amorosamente em volta dos troncos mais robustos que os
cercavam; as margaritas com a sua alvura mate e o seu feitio de estrelas
ressaltavam num adorável contraste da verdura clara e fresca dos tabuleiros de
relva.
Havia flores
muito direitas e esbeltas no pedúnculo delgado, que faziam pensar Bertha, — não
sei bem porquê —, nas lindas princesas dos contos de fadas, que vivem nos seus
palácios à beira do mar, escondidas, discretas e cheias de majestosa gentileza.
Ás camélias
com a vitoriosa beleza do seu teclado de cores vivas e tão varias, lembravam a
Bertha a musica que ela ouvira uma vez, num dia de parada, no desfilar
aparatoso das tropas, musica brilhante, sonora, marcial, feita do estridor dos
clarins, da fanfarra triunfante dos instrumentos de cobre, de todas
as notas
bélicas que rebentavam no espaço, como que numa explosão harmónica e sonora!
Gostava
muito das violetas — pequeninas e modestas, denunciando-se a medo pelo seu
rasto de perfumes, — e que ela costumava procurar nas ervas para encher com
elas a jarra de porcelana de Sevres, que havia sempre sobre a mesa de costura
da sua mãe.
E não penses
tu que gostava menos das árvores! oh! a alma de Bertha expandia-se naturalmente
para tudo que é bom e que é belo.
Levava horas
a espreitar através dos ramos delicadamente recortados pela tesoura do Celeste
Jardineiro, o alto céu azul, tão cheio de luz, e que sem ela saber porque, a
estava chamando sempre!
Depois nas
árvores é que vivem os pássaros, é ali que eles dependuram os ninhos, que eles
modulam as suas cantigas sem libreto, que eles cantam a quem passa as suas
alegrias e as suas saudades.
Ás árvores
são boas, hospitaleiras e carinhosas, como se tivessem uma alma oculta sob a
rugosa cortiça dos seus troncos.
Elias dão
sombra, dão frescura, dão frutos, dão flor, dão um bom cheiro sadio, que
reconforta e alegra; as árvores, minha Naly, são as nossas melhores amigas.
Tu hás de
saber mais tarde, que no mundo há muito riso falso, muita amizade fingida,
muita coisa que a gente julga sólida, e que no fim de contas está construída
sobre a areia; mas os vegetais, os eternos amigos do homem, os que o nutrem e
se nutrem dele, oh! esses nunca nos mentem nem atraiçoam nem dão conselhos
maus!
O jardim
era, pois, para a nossa Bertha um mundo riquíssimo, um mundo misterioso, onde a
vida palpitava, no inseto, na planta, no musgo, na ave, na terra fecunda e
robusta, na árvore frondosa, na água límpida e corrente, em tudo que rescende e
murmura, e canta, e pulula, em tudo que enlaça a alma do homem numa cadeia
feita de embevecimentos mágicos.
****
E as boas
horas passadas no gabinete azul o que elas não valiam para o pequenino coração
de Bertha!
Sabes o que
era o gabinete azul? era a saleta toda forrada e estofada de cetim azul, em que
a mãe da nossa pequenina se conservava habitualmente.
Chamava-se
Margarida a mãe de Bertha, e era formosa, de uma delicada e frágil formosura,
que despertava ao vê-la instintos de piedade e de proteção.
Alta,
esbelta, levemente sonhadora, como quem tem cuidados que a preocupem, sempre
vestida de seda com punhos de cabeção de rendas finas, um pouco amareladas, que
punham na toilette de casa uns toques
de aristocrática distinção. Nos cabelos bastos, louros e frisados, uma flor
quase sempre colhida por Bertha.
O pai, esse
era forte, robusto e sadio, mas tinha a virtude dos valentes: a bondade.
Naquela fisionomia acentuada e trigueira o sorriso era tão doe que lembrava o
desabrochar de um lírio.
Não estava
muito em casa, tinha que fazer fora, andava ganhando a vida de elegâncias e de
confortos, que viviam inconscientes, inocentemente egoístas, os seus dois
frágeis amores — a mulher e a filha.
Mas quando
ele estava, que festa!
Bertha, ora
enovelada aos pés da mãe, nas felpas aveludadas do tapete, e com os grandes
olhos curiosos fitos nos dela, ora folheando um grande livro de imagens — como
o teu, minha Naly —, ora empoleirada no espaldar da larga poltrona onde o pai
estava sentado, e passando-lhe a pequenina mão crestada pela cabeladura revolta
e crespa, Bertha era a mais feliz das criaturinhas do bom Deus!
Era um gosto
vê-los ali a todos três, na intimidade daquele viver de família!
Margarida,
ao princípio, trabalhava sempre; nuns dias, um vestidinho para a sua querida
filha, neutros dias, um pequeno objeto galante e mimoso para o escritório do
seu marido; de tempos a tempos um enxoval para uma pobrezinha, um enxoval muito
asseado, que Bertha dobrava e desdobrava, que servia de tema para longas
interrogações, e como que iniciação da criança na doce caridade da sua mãe.
O pai,
quando voltava, tinha sempre tanto que contar!
Gente que
vira, casos que lhe tinham sucedido! planos de futuro que andava devaneando, e
depois risos, brinquedos, correrias atrás do diabrete da Berthazinha, eu sei!
... o demônio a quatro I
Havia ali um
conchego tépido, uma alegria, uma bênção de Deus, repartida por três almas, e
que parecia refletir-se nas coisas mudas que o cercavam servindo lhe de
elegante e rendilhada moldura.
****
Queres tu
saber, Naly? Bertha tinha um defeito. Era um bocadinho egoísta. Um egoísmo de
três, já se entende, porque ela não sabia separar a sua vida da dos seus pais.
Uma das
manifestações mais claras deste egoísmo era a repugnância que tinha pelos
estranhos.
Sentia frio
ao pé deles; fugia muito pensativa e muito arisca quando via uni indiferente
interpor-se importunamente entre ela e as caricias que eram o seu alimento de
todos os instantes.
Mas a pessoa
que mais lhe agravava esta impressão hostil, era um primo que por aquele tempo
começara a frequentar mais a casa.
Um rapaz,
alto, elegante, bem parecido, muito falador numas horas de expansão, muito
concentrado noutras horas, de bigode retorcido e triunfante, olhares que sabiam
ser doces, e que eram quase sempre altivos.
E, contudo,
que meigo que ele era para Bertha, espreitando-lhe os caprichos, conformando-se
com as brincadeiras dela, trazendo-lhe bonitos, flores, coisas novas,
delicadas, que ela não vira nunca, e que, no entanto, vindas da mão dele lhe
desagradavam instintivamente.
E que também
o primo tornara-se de uma assiduidade irritante!
Primo para
aqui, primo para ali, toda a gente gostava dele, para cada pessoa tinha um dito
amável, uma intenção delicada, uma lisonja habilmente escondida!
Tratavam-no
por tu, era admitido nas festas íntimas da família, ia ao jardim apanhar
flores, acompanhava a mamã ao teatro! Uma usurpação em forma, uma usurpação
revestida de todas as circunstâncias agravantes!
E depois
usava essências.
Bertha
declarara com ar solene e majestoso, que embirrava muito com o primo, porque
ele cheirava a pat-chouly.
E ela que
andava habituada aos aromas frescos e sadios da livre natureza, não podia
suportar aquele cheiro de essências requintadas, a que dava este nome genérico
e detestado.
A mamã por
ter de atura-lo a cada instante, renunciara aos seus doces trabalhos doutro
tempo, de que Bertha gostava tanto, e que davam ás suas mãozinhas travessas a
sensação grata das sedas, das bonitas fazendas desdobradas sobre o estofo das
poltronas, de todas as graciosas coisas com que podia brincar.
Andava
triste a sua adorada mãezinha.
Tinha horas
de melancolia mórbida em que a cabeça lhe caía no peito, como se tivesse dentro
estranho peso. E ficava-se horas e horas calada e desfalecida, com um livro aberto
no regaço, ou com um trabalho apenas começado caído aos pés, sem ouvir o
papaguear festivo da sua pequena Bertha. .
Quando
voltava a si daqueles sonhos doentios, parecia acordar de um mau sonho, passava
a mão pela testa, bebia água, muita água, e beijava a filha com um
arrebatamento que lhe fazia mal.
A pequenita
enfastiava-se!
Pudera!
Fugia só
para o jardim, sem que uma voz solícita e assustada a chamasse de longe, sem
que uns olhos inquietos a velassem de perto, e punha-se numa indistinta e muda
linguagem que só as suas flores entendiam a queixar-se das tristezas vagas, que
a definhavam longe do calor que dantes a acalentava e aquecia.
As tardes do
gabinete azul, os princípios da noite, quando caía do alto dos céus a penumbra
indecisa e dúbia do crepúsculo, tudo aquilo perdera a sua graça, a sua antiga e
ideal doçura!
No silêncio
constrangido da saleta, retiniam então os passos conquistadores do intruso, e
Bertha com vontade de romper em soluços, pedia muito depressa que a fossem
deitar.
Chamava-se a
criada, vinha, levava-a pela mão, amuada, e ela, ao aconchegar-se nas roupinhas
do seu leito, sentia ainda uma estranha impressão de desconforto e de frio. Era
o beijo distraído e formalista, que lhe tinham imprimido na testa os lábios
quentes, secos e febris da sua mãe.
****
Era noite de
festa para a Berthazinha.
Estavam sós
todos três no gabinete azul, o paraíso doutrora, onde agora não havia senão
flores. . .que ela não colhera!
Bertha
alcançara licença para se deitar ás nove horas.
Que bom!
Um longo
serão de risos, de conversas sem tom nem som, de tagarelice inextinguível. O
livro das grandes imagens, a boneca deitada no tapete, uma profusão de bonitos
de todos os feitios — alguns, por pecados de Bertha, tinha-lhos dado o
negregado primo! enfim por aquele dia, Bertha estava magnânima. Perdoava-lhes o
virem da mão de quem vinham! — e eles dois, os dois amores, o papá e a mamã ao
fogão, conversando com a intimidade feliz de quem se quer muito!
E verdade
que a mamã estava pálida, tinha até nos olhos umas orlas roxas que pareciam de
febre, e uma luz esquisita que lembrava aqueles clarões súbitos e fosfóricos,
que costumam acender as bruxas, quando fazem os seus encantamentos e maus
olhados.
Oh! mas que
importavam a Bertha sintomas que ela não via!
Estava
contente, contente, e ia-se entusiasmando a pouco e pouco, à proporção que a
alegria lhe inundava como uma onda a pequenina alma luminosa!
Um beijo no
papá, uma festinha na mamã, e aqui desmanchava um canudo, acolá despregava um
alfinete, depois fechava um livro que ia começar a ler, amarrotava uma renda,
trepava para cima de uma cadeira!
Que anjo!
que demoníaco, feito de um bocadinho de azul!
Nisto, por
um movimento rápido e imprevisto, atirou-se ao colo da mãe, mergulhou a
mãozinha no decote quadrado do vestido, amachucou uma rosa, que ali parecia
aninhar-se no meio das rendas, e arrancou com gesto triunfante um papel, um
papel cor de perola amarrotado.
— Oh! gritou
a mãe, fazendo se mais branca do que a cal; dá cá, dá cá, isso é-me preciso.
Quem disse
lá que ela respondia!
Fugira
rindo, rindo como um doudinha, e fora esconder-se entre os joelhos do pai,
agitando com um gesto de graça inimitável o roubado troféu.
A mãe
erguera-se convulsa, tremula, com tamanho desvairamento e tamanha angústia no
olhar e na voz, que dir-se-ia que a esmagava uma catástrofe imprevista e
tremenda.
— Dá cá, dá
cá, murmurou ainda desfalecida e suplicante.
— Papá,
papá, esconde tu, respondia Bertha! numa convulsão de riso. Ih! cheira a pat-chouly, cheira a pat-chouly.
Ele e ela, a
mãe e o pai, olharam-se.
Tu nunca
viste um olhar assim, Naly, nem eu, e Deus nos defenda de o vermos nunca!
Foi mudo,
foi longo, foi sinistro! Um poema de agonias silenciosas!
Depois o pai
de Bertha, afastando a criança com um gesto lento, desdobrou o papel e leu.
****
Já lá vai um
ano depois daquela noite de festa, em que Bertha alcançou licença para se
deitar ás nove horas.
Num ano
quantas diferenças pode fazer uma existência!
E muda e
triste a casa onde vimos tantos risos, está descuidado e cheio de ervas o jardim
onde brincava um pequenino ser feito da luz das auroras, e da inocência dos
lírios.
Bertha está
doente.
Ma sua
alcova branca e silenciosa, à luz dúbia de uma lamparina de jaspe, vela uma
criada, enquanto a loura pequenina fita no teto os grandes olhos azuis e parece
seguir as visões fantásticas de um sonho de febre.
Ao princípio
era feliz, muito feliz. Quem e que viera destruir todas aquelas alegrias que
pareciam querer durar sempre? A pobre doentinha não o sabia.
Diante dos
olhos dela dançava teimosamente um grande demônio escuro, com muitos bonitos
nas mãos e com um bigode retorcido e triunfante.
Que vinha
fazer ali aquele demônio? Quem pode explicar o que são as visões de um delírio!
Depois uma
certa noite, doce, iluminada, festiva. Que sucedera nessa noite? Meu Deus! Ela
brincara muito, ainda mais que o seu costume. Não lhe lembrava mais nada, senão
que fora deitar-se a chorar. Também não sabia porquê.
Desde então
é que a sua vida mudara.
O pai
repelia-a de si, sempre que ela lhe estendia os bracinhos, empurrava-a quando
ela queria beija-lo!
Nunca mais
houvera os serões do gabinete azul, nunca mais ouvira aquela voz paterna, tão
grave, tão meiga, tão musical, acaricia-la como antigamente!
E a mãe?...
A mãe definhava sozinha, mas naquela tristeza desolada, não admitia os beijos
da sua Bertha doutro tempo.
Um dia
dissera-lhe asperamente, com um brilho seco no olhar:
— Vai-te
daqui! És a causa da minha desgraça toda.
Bertha não
percebeu o que aquelas palavras significavam, mas percebeu o ar com que foram ditas!
Nunca mais
foi ao jardim! nunca mais viu a capoeira nem o viveiro dos canários, nem os
peixinhos vermelhos do tanque!
Tinha sempre
frio, muito frio.
Tiritava
horas e horas a um canto da casa de engomar onde as criadas riam e palestravam
indiferentes, com uma expressão de espanto, de surpresa, de desolação selvagem
no olhar!
Parecia-lhe
a ela que também estava na vida como uma intruso. O que viera ela cá fazer?
porque se não ia embora?
Sentia que
alguém estava à espera dela, lá em cima, num sitio onde havia muito azul,
muitas flores, um jardim mais bonito que o que fora dela, uns serões mais
plácidos e mais cheios de risos e de caricias que os amados serões de outro
tempo... que não podiam voltar!
E abrindo os
braços, fez um doce gesto de ave espavorida que vai levantar o voo para o
infinito!
****
— Ai! a
menina que vai morrer! — bradou a criada com muita ansiedade. — Chamem a
senhora, chamem o senhor, este anjinho diz que lhes quer dizer adeus!
Ouviam-se
portas que se abriam, vozes angustiosas que chamavam... depois, por duas portas
diferentes, entraram duas pessoas.
Dous
espectros do que tinham sido.
Olharam-se
como que admirados de se verem ali juntos!
Miraram-se
curiosamente como para sondarem os grandes abismos que os separavam dos dias de
outrora!
Depois sem
quererem, olharam ambos movidos pelo mesmo impulso para o pequeno leito de
cortinados brancos.
Uma voz
dulcíssima, toda mimo e toda súplica, chamou-os dali:
— Papá!
mamã! adeus! Digam-me que são meus amigos agora que eu vou morrer! Como é bom
ir para o céu! Nunca mais hei de ter frio!...
Se não fosse
a voz e a expressão divina daquele olhar, quem diria que aquela que falava era
a pequenina Bertha!
— Ó papá,
console a mamã, já que eu me vou embora! Voltem para o gabinete azul, e ao
serão não se esqueçam de falar de mim!
Puxou-os a
ambos com uma força que não parecia já deste mundo, e abraçou-os unidos contra
o coração!
Todos três
como dantes!
Quando ambos
se ergueram daquele supremo abraço, os bracinhos dela tinham afrouxado e caído.
— Perdoa-me
pela nossa filha que morreu! soluçou a voz daquela mãe dolorida!
— Perdão!
Papá! murmurou como uma caricia de aragem uma voz que ninguém soube dizer se
vinha da terra se do céu.
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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