domingo, 8 de setembro de 2013

Maria Amália Vaz de Carvalho: "O Romance de Adelina"

O ROMANCE DE ADELINA
(FRAGMENTOS DE CARTAS)

O meu pai, a minha mãe e as pessoas que me cercam dizem-me continuamente que a vida é triste, que o dever tem sempre um aspeto difícil, que as quimeras da nossa imaginação nunca chegam a realizar-se ...
Eu ouço-os, mas afirmo-te que não estou nada convencida.
Suponho ás vezes que vejo a existência pelo avesso, que tenho um modo muito extravagante de compreender as coisas.
Ouço por exemplo chamar romanescas a todas as mulheres loucas ou desgraçadas.
As que deixam seus maridos para seguir um sujeito de bigode e colete branco que lhes recitou versos ao piano entre dois candelabros; ás que andam toda a vida à procura de um ideal que ora encontram ora deixam, percebendo que se enganaram; ás que usam olheiras e cabelos caídos, e faliam do seu desespero inconsolado entre uma quadrilha e uma valsa.
Para mim essas mulheres são tudo menos romanescas.
Sabes ao que eu chamo romantismo?
A uma aspiração delicada, a tudo que é belo e bom. A um desejo ardente de perfeição que se não satisfaz facilmente. A uma tendência para idealizar os deveres e os sentimentos.
Crê, minha boa Teresa, que não há ninguém mais romântica do que eu!
Chego ás vezes a ter medo de que isto seja um pendor funesto que me arraste a algum desvario.
No outro dia casou aqui uma prima minha.
E uma galante rapariga, bem educada e inteligente.
Encontrou o noivo uma dúzia de vezes, ele pediu-lhe licença para confessar aos pais que a amava muito.
Dali a dois meses, concluídos os preparativos, casaram-se.
Não se conhecem nada, mas como as fortunas, as idades, e as posições dos pais estavam em harmonia, concluíram que se tinham de dar otimamente.
Aquele casamento que agradou a toda a gente, consternou-me a mim.
O meu casamento há de ser o único romance da minha vida, mas afirmo-te que o quero bem longo, bem completo. Quero que as suas páginas luminosas lidas uma vez me dourem de misteriosa claridade todo o futuro. Quero amar o meu noivo para adorar eternamente o meu marido.
Dizem que o dever é sempre custoso de cumprir.
Conforme!
Eu tenho dezoito anos, e nunca até hoje liguei à ideia do dever uma ideia que não fosse de satisfação íntima.
Sou tão feliz em amar meus pais, em socorrer os desgraçados, em cultivar o meu espírito, em sacrificar os meus prazeres aos prazeres de alguém!
O sacrifício seja ele de que gênero for, parece-me uma dor suave, uma sensação de pungitiva delicia, que nos eleva e nos engrandece.
Só os que sabem sacrificar-se afirmam a sua superioridade.
Tenho medo de ser criminosamente aristocrata.
Parece-me que assim como as pessoas bem educadas nunca se deixam avassalar pela gula, pela violência dos apetites grosseiros, assim as almas finas não devem entregar-se a uma ambição desregrada de prazeres.
Sofrer é uma condição humana, mas há sofrimentos que são a mais requintada das doçuras.
Às vezes olho para a minha mãe e lembro-me que se pudesse trocar a minha robustez pela sua débil saúde, a minha cabeleira densa e loura pelos seus lindos cabelos brancos, a minha alegria exuberante pelo seu sorriso meigo e sofredor, conheceria um grão de felicidade mais puro, mais alto do que todos os gozos que até agora experimentei.
E no entanto ao dar-lhe a minha mocidade, ao receber em troca a sua velhice, decerto que sentiria infinitas saudades!
Não se renuncia friamente a todas as esperanças do futuro!
Seria, porém, uma das tais dores que eu amo, uma daquelas tristezas divinas que fazem bem à alma e como que a depuram das imperfeições da terra.
Será isto romantismo, Teresa?
****
Andam comigo agora de baile em baile, de soirée em jantar.
Imaginam que me enganam, os queridos velhinhos. Eles que gostam tanto do cantinho do fogão, onde conversam, e se recordam de tudo que passou, fingem um súbito e inexplicável desejo de distrações mundanas.
Eu sigo-os com um sorriso malicioso que ás vezes os assusta.
Sabes as minhas ideias, não é verdade?
Que garantias de futuro me daria a mim um marido apanhado a laço à luz dos lustres dourados, numa sala de baile frívola e banal?
Não é aí que eu encontrarei decerto o noivo da minha alma!
Porque é que se não poderá aliar a poesia do coração com os deveres da realidade? Não entendo isto!
Pois só serão deliciosos os amores vedados?
A mim parece-me que a vida com o seu cortejo de dores, de deveres, de sacrifícios, de afetos, a vida com a sua manhã purpúrea e gorjeada, com o seu meio dia luminoso em que rompe em ondas cristalinas a musica triunfante dos vinte anos, com a sua tarde melancólica de uma doçura indefinida e dúbia, com a sua noite enfim, noite estrelada e calma, em que esmorecem e expiram todos os rumores da terra, é como que um poema completo, uma sinfonia em que há todas as notas, todos os tons, todas as expressões.
Os que amaldiçoam a vida, ou querem fugir das suas comoções naturais, procurando num meio artificial, numa atmosfera de estufa outros gozos, outros prazeres, outras angústias, são esses que não entendem a opulência harmoniosa da criação!
Ser filha, e noiva e esposa e mãe! onde acharemos estados da alma mais completos que aqueles que resultam naturalmente destes modos de ser?
Aqui há tudo! Alegrias, dores, sobressaltos, esperanças, sonhos, arrebatamentos, êxtases inefáveis!
Não proscrevamos o romance da vida. pelo contrário identifiquemo-lo com a vida!
Ponhamos no nosso modo de sentir a maior porção de ideal, a que sejamos acessíveis.
Pensar que o dever só pode compreender-se terra a terra é amesquinhar e rebaixar o dever!
A paixão não precisa de ser criminosa para nos dar gozos supremos; creio mesmo que é o crime que a torna amarga aos lábios e dolorosa ao coração!
****
Perguntavas-me no outro dia maliciosamente se eu faço a minha leitura predileta da Moral em ação.
Não faço.
Se há coisa que eu acho desmoralizador é um tratado de moral chaufé à froid.
Sabes quem são os meus mestres do bom e do belo? São Beethoven, Mozart, Hayden, os meus queridos e nobres artistas.
Cada dia me deixo levar mais apaixonadamente por este amor da música que me consola, e me levanta e por assim dizer me realiza todos os sonhos ambiciosos da minha alma.
Pressinto que se chegar na vida para mim uma hora sombria em que veja por terra os meus ídolos, a música me há de consolar de tudo!
Há pessoas que choram com a música. Foge sempre da música que faz chorar. É enervante, é perigosa e traiçoeira.
Mozart e Beethoven não enfraquecem, fortificam. Dão-nos à alma como um grande banho de ar puro.
Fazem-nos subir ás alturas imaculadas e de lá ver tudo que é pequeno, efêmero, transitório aos nossos pés.
Ó Beethoven, se eu alguma vez for traída envolve-me nas tuas azas de luz!
Não te disse eu que o meu romance existia algures, num misterioso recanto onde eu ainda não dera com ele?
Não me enganei.
Existe.
Tem vinte e cinco anos, há muita gente que diz que ele é feio. Eu acho-o simplesmente adorável.
Tem uns belos olhos escuros que a paixão ilumina, de que a ironia faz chispar faíscas sombrias, e que em horas de embevecimento e de ternura tem segredos doces de uma bondade inefável! Tem uma testa larga e pensativa, e uma boca desdenhosa como se o sarcasmo a tivesse afeiçoado.
Acham-lhe inúmeros defeitos, eu acho-lhe somente alguns.
Mas é para aqueles que a vida endureceu e azedou, que as almas jovens devem abrir os mananciais da sua fé.
Ontem disse-me, depois, de me ter ouvido tocar piano durante três horas, que eu lhe fizera tanto bem, que se esquecia por amor de mim do mal que todos os outros lhe tinham feito.
Estas palavras que em outra boca seriam uma banalidade, na boca dele pareceram-me um juramento que vinculava para sempre as nossas duas vidas.
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Três anos de silêncio! Como é que tu hás de perdoar-me, Teresa!
Mas se eu te disser uma coisa, só uma coisa, perdoas-me decerto.
Sou muito infeliz.
Quis talvez realizar o impossível, quis achar no amor do meu marido o conjunto de todos os amores de que eu me sentia capaz.
Fiz tudo para conservar a felicidade, e a felicidade fugiu-me.
Ele vê em mim um peso, uma prisão, talvez que um grande desapontamento.
Nunca me queixo. Para quê?
A gente não se deve queixar, porque é uma humilhação escusada e inútil.
Procuro convencer-me de que na vida de todas as mulheres há destes cilícios ocultos que elas suportam ajeitando nos lábios um sorriso heroico.
Não renego nenhuma das minhas ideias. O dever consola, o dever compensa.
Não compreendo que, porque um faltou ao contrato ideal que fez com a consciência, o outro deva faltar também.
Enquanto ele me quiser junto de si, hei de dar-lhe toda a minha vida, feliz deste sacrifício sem paga.
Iludi-me porque lhe quis muito, e perdoo-lhe porquê me iludi.
****
Ontem, a minha mãe, a pobre velhinha que sucumbe ás agonias da sua recente viuvez, dizia-me à frente do berço do meu filho desamparado, do meu orfãozinho, cujo pai vive ainda:—Acabou se tudo!
Pelo contrário! Agora é que tudo começa!
Não imaginas a coragem e a energia que eu sinto em mim!
Sou eu, a minha mãe e o meu filho.
Uma quase que perdeu a consciência, o outro não a tem ainda. Sou eu que preciso pensar e trabalhar por todos três.
Na grande desgraça que me feriu, a ideia de que sou necessária, de que me tornei indispensável aos seres a quem mais quero, inoculou-me no espírito dilacerado uma força superior.
Mas como foi que tudo isto sucedeu? perguntas tu cheia de pasmo.
Não sei! Uma mulher que passou, uma artista que tinha em talento o que lhe faltava em coração e que o levou atrás de si, satélite desprezível, de um astro caído.
Não tenho saudades dele, crê que não tenho.
O homem que eu amei era uma nobre e digna criatura, incapaz de transigir com a honra, e de submeter-se à tirania dos apetites brutais.
Tinha defeitos, era violento, apaixonado, irascível, mas era honesto.
Esse homem morreu, ou não existiu nunca.
O que fugiu não se parecia com ele.
Quando estou só, estremeço ás vezes com um asco intraduzível de mim própria.
Quem é que se consola das máculas de um tal amor?
Não te disse eu, que se tudo me faltasse, os meus velhos mestres, os meus amigos, as almas sonoras e transparentes que sabem traduzir em sons tudo que há de belo na natureza, as cores, os perfume», as linhas, o mundo da matéria e o mundo do espírito; não te disse eu que eles me consolariam e me tinham de amparar?!
Chegou o momento supremo.
Chamei os e não faltaram ao meu apelo.
Mostrei-lhes o meu coração partido, o meu orgulho machucado, as minhas ilusões desfeitas e disse-lhes: Consolai-me! Mostrei-lhe o meu filho pequenino, e a minha mãe decrepita, e disse-lhes: dai-lhes pão!
E ouviram-me as almas adoráveis!
Sinto em mim a virilidade augusta dos fortes.
O meu Arthur tem hoje quinze anos.
É um formoso adolescente, louro e tímido como uma virgem.
Vivemos eu e ele numa casinha de um bairro tranquilo e retirado.
De dia ele frequenta o liceu, e eu dou as minhas lições de música, à noite lemos, conversamos e tocamos juntos.
Todos os anos, num dia certo, fazemos uma romagem piedosa.
Vamos visitar ao cemitério o túmulo de pedra, pobre e modesto, onde dorme o seu tranquilo sono a minha querida mãe.
Foram serenos e doces os últimos dias que ela viveu na terra.
Ajudou a criar o meu Arthur, que era tão endiabrado e travesso como hoje é tranquilo e sonhador!
Eu saía de casa muito cedo, e deixava-os a ambos juntos a papaguearem alegremente, porque não há nada que ilumine a tristeza dos velhos como a alegria dos netos.
Ao princípio era-me doloroso aquele monótono trabalho de ensinar os princípios de música, mas quando vi desenvolver-se em casa o conforto devido aos meus pertinazes esforços, cobrei nova coragem e alentos novos.
Sabia com mais ânimo e voltava com mais alegria. . .
Em mim faziam-se dois trabalhos: Procurava afazer-me à minha nova existência e apagar da memória o meu passado enganoso.
Tivera o meu romance, e o romance deixara me na boca o travor amargo das coisas insalubres!
Em todo o caso nunca me arrependi de ter aspirado a saciar a minha sede de ideal nas fontes puras do coração.
Era mais feliz na minha infelicidade que os outros nas suas alegrias!
A minha vida de professora, fazendo-me penetrar em muitas casas diversas, deu-me oportunidade para conhecer melhor o mundo.
Encontrei muita gente alegre e satisfeita que me causou profundo dó.
Marido e mulher separados pelas ideias morais, pelas crenças religiosas, pelas ocupações, pelas índoles diversas, pelo modo antitético de encarar as coisas; unidos somente por um laço, o hábito; por uma força, as conveniências sociais.
Oh! antes o meu desamparo, antes o abandono em que eu fiquei na flor da vida!
Conheci muitas mulheres que procuravam no turbilhão mundano consolação para íntimas tristezas; outras, que me confessaram chorando, que a ingratidão e a inconstância do marido as arrastara à perdição, ao desprezo de si próprias.
Não as repeli, porque não tinha direito para ser implacável; lamentei-as, não porque as achasse dignas de lástima, mas porque me pareciam dignas de desdém!
Como se o crime posterior da mulher não fosse a justificação do crime anterior do marido!
Ser boa e digna e virtuosa, quando tudo nos ajuda a isso, grande milagre!
Na solidão, no abandono, na injustiça do mundo, é que a honestidade da mulher se acrisola!
Se o meu marido não tivesse fugido de mim, deixando-me nos braços uma criancinha de meses, como poderia eu conhecer as lutas da vida e ter saído triunfante das provações da desgraça?
Não imaginas, querida amiga, como hoje é doce e tranquilo o meu outono!
Em primeiro lugar o querido anjo que eu eduquei sozinha, depois a música, as flores e os bons livros. Falta-me a minha mãe querida, mas essa morreu abençoando-me!
Ao domingo, quando eu e Arthur nos achamos bem sós, no nosso pequeno gabinete de trabalho, chego a conceber a beatitude do paraíso.
Sento-me ao piano e toco, toco até me sentir sem forças.
Converso longamente com os amigos da minha mocidade, com os que me vestiram a alma da cristalina armadura que resistiu a todos os atritos da miséria humana.
Conto-lhes as luminosas aspirações da minha adolescência, a ideia que eu fazia da abnegação, do amor, do sacrifício; e os esforços que empreguei para me cingir sempre a essa ideia levantada e superior.
Conto-lhes o belo instante radioso em que na minha vida desabrochou a flor misteriosa que eles me tinham ensinado a julgar o premio mais doce de um coração cheio de fé. E com que extremos eu cultivei essa flor que um dia se
desfez em cinzas nas minhas tremulas mãos! E como a doce ilusão de a possuir me fizera melhor!
Depois conto-lhes a tempestade que subitamente fez sobre mim a sua explosão sinistra, e o meu desamparo e a minha dor fulminadora, e a vacilação tremenda em que eu vi tudo que julgara imutável prestes a desabar, deixando-me só ruínas!
Foi então que o amor deles me salvou, foi então que as suas vozes divinas me chamaram, e que, na esfera elevada em que eles moram, eu me senti penetrar da calmaria adormecedora de todas as paixões ruins!
No outro dia, depois de tocar duas horas, esquecida de tudo, procurei o meu filho e achei-o de joelhos ao pé de mim.
Tinha a gentil cabeça loura mergulhada nos meus vestidos, e, quando levantou os olhos cheios de lagrimas, disse-me com uma voz em que se fundiam todas as músicas:
— Ó mãe, Deus te abençoe, porque foste ultrajada e traída, e eu posso amar-te e respeitar-te.


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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880) 

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