O ROMANCE DE
ADELINA
(FRAGMENTOS
DE CARTAS)
O meu pai, a
minha mãe e as pessoas que me cercam dizem-me continuamente que a vida é
triste, que o dever tem sempre um aspeto difícil, que as quimeras da nossa
imaginação nunca chegam a realizar-se ...
Eu ouço-os,
mas afirmo-te que não estou nada convencida.
Suponho ás
vezes que vejo a existência pelo avesso, que tenho um modo muito extravagante
de compreender as coisas.
Ouço por
exemplo chamar romanescas a todas as mulheres loucas ou desgraçadas.
As que
deixam seus maridos para seguir um sujeito de bigode e colete branco que lhes
recitou versos ao piano entre dois candelabros; ás que andam toda a vida à
procura de um ideal que ora encontram ora deixam, percebendo que se enganaram;
ás que usam olheiras e cabelos caídos, e faliam do seu desespero inconsolado
entre uma quadrilha e uma valsa.
Para mim
essas mulheres são tudo menos romanescas.
Sabes ao que
eu chamo romantismo?
A uma
aspiração delicada, a tudo que é belo e bom. A um desejo ardente de perfeição
que se não satisfaz facilmente. A uma tendência para idealizar os deveres e os
sentimentos.
Crê, minha
boa Teresa, que não há ninguém mais romântica do que eu!
Chego ás
vezes a ter medo de que isto seja um pendor funesto que me arraste a algum
desvario.
No outro dia
casou aqui uma prima minha.
E uma
galante rapariga, bem educada e inteligente.
Encontrou o
noivo uma dúzia de vezes, ele pediu-lhe licença para confessar aos pais que a
amava muito.
Dali a dois
meses, concluídos os preparativos, casaram-se.
Não se
conhecem nada, mas como as fortunas, as idades, e as posições dos pais estavam
em harmonia, concluíram que se tinham de dar otimamente.
Aquele
casamento que agradou a toda a gente, consternou-me a mim.
O meu
casamento há de ser o único romance da minha vida, mas afirmo-te que o quero
bem longo, bem completo. Quero que as suas páginas luminosas lidas uma vez me
dourem de misteriosa claridade todo o futuro. Quero amar o meu noivo para
adorar eternamente o meu marido.
Dizem que o
dever é sempre custoso de cumprir.
Conforme!
Eu tenho
dezoito anos, e nunca até hoje liguei à ideia do dever uma ideia que não fosse
de satisfação íntima.
Sou tão
feliz em amar meus pais, em socorrer os desgraçados, em cultivar o meu espírito,
em sacrificar os meus prazeres aos prazeres de alguém!
O sacrifício
seja ele de que gênero for, parece-me uma dor suave, uma sensação de pungitiva
delicia, que nos eleva e nos engrandece.
Só os que
sabem sacrificar-se afirmam a sua superioridade.
Tenho medo
de ser criminosamente aristocrata.
Parece-me
que assim como as pessoas bem educadas nunca se deixam avassalar pela gula,
pela violência dos apetites grosseiros, assim as almas finas não devem
entregar-se a uma ambição desregrada de prazeres.
Sofrer é uma
condição humana, mas há sofrimentos que são a mais requintada das doçuras.
Às vezes
olho para a minha mãe e lembro-me que se pudesse trocar a minha robustez pela
sua débil saúde, a minha cabeleira densa e loura pelos seus lindos cabelos
brancos, a minha alegria exuberante pelo seu sorriso meigo e sofredor,
conheceria um grão de felicidade mais puro, mais alto do que todos os gozos que
até agora experimentei.
E no entanto
ao dar-lhe a minha mocidade, ao receber em troca a sua velhice, decerto que
sentiria infinitas saudades!
Não se
renuncia friamente a todas as esperanças do futuro!
Seria,
porém, uma das tais dores que eu amo, uma daquelas tristezas divinas que fazem
bem à alma e como que a depuram das imperfeições da terra.
Será isto
romantismo, Teresa?
****
Andam comigo
agora de baile em baile, de soirée em jantar.
Imaginam que
me enganam, os queridos velhinhos. Eles que gostam tanto do cantinho do fogão,
onde conversam, e se recordam de tudo que passou, fingem um súbito e
inexplicável desejo de distrações mundanas.
Eu sigo-os
com um sorriso malicioso que ás vezes os assusta.
Sabes as
minhas ideias, não é verdade?
Que
garantias de futuro me daria a mim um marido apanhado a laço à luz dos lustres
dourados, numa sala de baile frívola e banal?
Não é aí que
eu encontrarei decerto o noivo da minha alma!
Porque é que
se não poderá aliar a poesia do coração com os deveres da realidade? Não
entendo isto!
Pois só
serão deliciosos os amores vedados?
A mim
parece-me que a vida com o seu cortejo de dores, de deveres, de sacrifícios, de
afetos, a vida com a sua manhã purpúrea e gorjeada, com o seu meio dia luminoso
em que rompe em ondas cristalinas a musica triunfante dos vinte anos, com a sua
tarde melancólica de uma doçura indefinida e dúbia, com a sua noite enfim,
noite estrelada e calma, em que esmorecem e expiram todos os rumores da terra,
é como que um poema completo, uma sinfonia em que há todas as notas, todos os
tons, todas as expressões.
Os que
amaldiçoam a vida, ou querem fugir das suas comoções naturais, procurando num
meio artificial, numa atmosfera de estufa outros gozos, outros prazeres, outras
angústias, são esses que não entendem a opulência harmoniosa da criação!
Ser filha, e
noiva e esposa e mãe! onde acharemos estados da alma mais completos que aqueles
que resultam naturalmente destes modos de ser?
Aqui há
tudo! Alegrias, dores, sobressaltos, esperanças, sonhos, arrebatamentos,
êxtases inefáveis!
Não
proscrevamos o romance da vida. pelo contrário identifiquemo-lo com a vida!
Ponhamos no
nosso modo de sentir a maior porção de ideal, a que sejamos acessíveis.
Pensar que o
dever só pode compreender-se terra a terra é amesquinhar e rebaixar o dever!
A paixão não
precisa de ser criminosa para nos dar gozos supremos; creio mesmo que é o crime
que a torna amarga aos lábios e dolorosa ao coração!
****
Perguntavas-me
no outro dia maliciosamente se eu faço a minha leitura predileta da Moral em
ação.
Não faço.
Se há coisa
que eu acho desmoralizador é um tratado de moral chaufé à froid.
Sabes quem
são os meus mestres do bom e do belo? São Beethoven, Mozart, Hayden, os meus
queridos e nobres artistas.
Cada dia me
deixo levar mais apaixonadamente por este amor da música que me consola, e me
levanta e por assim dizer me realiza todos os sonhos ambiciosos da minha alma.
Pressinto
que se chegar na vida para mim uma hora sombria em que veja por terra os meus
ídolos, a música me há de consolar de tudo!
Há pessoas
que choram com a música. Foge sempre da música que faz chorar. É enervante, é
perigosa e traiçoeira.
Mozart e
Beethoven não enfraquecem, fortificam. Dão-nos à alma como um grande banho de
ar puro.
Fazem-nos
subir ás alturas imaculadas e de lá ver tudo que é pequeno, efêmero,
transitório aos nossos pés.
Ó Beethoven,
se eu alguma vez for traída envolve-me nas tuas azas de luz!
Não te disse
eu que o meu romance existia algures, num misterioso recanto onde eu ainda não
dera com ele?
Não me
enganei.
Existe.
Tem vinte e
cinco anos, há muita gente que diz que ele é feio. Eu acho-o simplesmente
adorável.
Tem uns
belos olhos escuros que a paixão ilumina, de que a ironia faz chispar faíscas
sombrias, e que em horas de embevecimento e de ternura tem segredos doces de
uma bondade inefável! Tem uma testa larga e pensativa, e uma boca desdenhosa
como se o sarcasmo a tivesse afeiçoado.
Acham-lhe
inúmeros defeitos, eu acho-lhe somente alguns.
Mas é para
aqueles que a vida endureceu e azedou, que as almas jovens devem abrir os
mananciais da sua fé.
Ontem
disse-me, depois, de me ter ouvido tocar piano durante três horas, que eu lhe
fizera tanto bem, que se esquecia por amor de mim do mal que todos os outros
lhe tinham feito.
Estas
palavras que em outra boca seriam uma banalidade, na boca dele pareceram-me um
juramento que vinculava para sempre as nossas duas vidas.
****
Três anos de
silêncio! Como é que tu hás de perdoar-me, Teresa!
Mas se eu te
disser uma coisa, só uma coisa, perdoas-me decerto.
Sou muito
infeliz.
Quis talvez
realizar o impossível, quis achar no amor do meu marido o conjunto de todos os
amores de que eu me sentia capaz.
Fiz tudo
para conservar a felicidade, e a felicidade fugiu-me.
Ele vê em
mim um peso, uma prisão, talvez que um grande desapontamento.
Nunca me
queixo. Para quê?
A gente não
se deve queixar, porque é uma humilhação escusada e inútil.
Procuro
convencer-me de que na vida de todas as mulheres há destes cilícios ocultos que
elas suportam ajeitando nos lábios um sorriso heroico.
Não renego
nenhuma das minhas ideias. O dever consola, o dever compensa.
Não
compreendo que, porque um faltou ao contrato ideal que fez com a consciência, o
outro deva faltar também.
Enquanto ele
me quiser junto de si, hei de dar-lhe toda a minha vida, feliz deste sacrifício
sem paga.
Iludi-me
porque lhe quis muito, e perdoo-lhe porquê me iludi.
****
Ontem, a
minha mãe, a pobre velhinha que sucumbe ás agonias da sua recente viuvez,
dizia-me à frente do berço do meu filho desamparado, do meu orfãozinho, cujo
pai vive ainda:—Acabou se tudo!
Pelo
contrário! Agora é que tudo começa!
Não imaginas
a coragem e a energia que eu sinto em mim!
Sou eu, a
minha mãe e o meu filho.
Uma quase
que perdeu a consciência, o outro não a tem ainda. Sou eu que preciso pensar e
trabalhar por todos três.
Na grande
desgraça que me feriu, a ideia de que sou necessária, de que me tornei
indispensável aos seres a quem mais quero, inoculou-me no espírito dilacerado
uma força superior.
Mas como foi
que tudo isto sucedeu? perguntas tu cheia de pasmo.
Não sei! Uma
mulher que passou, uma artista que tinha em talento o que lhe faltava em
coração e que o levou atrás de si, satélite desprezível, de um astro caído.
Não tenho
saudades dele, crê que não tenho.
O homem que
eu amei era uma nobre e digna criatura, incapaz de transigir com a honra, e de
submeter-se à tirania dos apetites brutais.
Tinha
defeitos, era violento, apaixonado, irascível, mas era honesto.
Esse homem
morreu, ou não existiu nunca.
O que fugiu
não se parecia com ele.
Quando estou
só, estremeço ás vezes com um asco intraduzível de mim própria.
Quem é que
se consola das máculas de um tal amor?
Não te disse
eu, que se tudo me faltasse, os meus velhos mestres, os meus amigos, as almas
sonoras e transparentes que sabem traduzir em sons tudo que há de belo na
natureza, as cores, os perfume», as linhas, o mundo da matéria e o mundo do espírito;
não te disse eu que eles me consolariam e me tinham de amparar?!
Chegou o
momento supremo.
Chamei os e
não faltaram ao meu apelo.
Mostrei-lhes
o meu coração partido, o meu orgulho machucado, as minhas ilusões desfeitas e
disse-lhes: Consolai-me! Mostrei-lhe o meu filho pequenino, e a minha mãe
decrepita, e disse-lhes: dai-lhes pão!
E ouviram-me
as almas adoráveis!
Sinto em mim
a virilidade augusta dos fortes.
O meu Arthur
tem hoje quinze anos.
É um formoso
adolescente, louro e tímido como uma virgem.
Vivemos eu e
ele numa casinha de um bairro tranquilo e retirado.
De dia ele
frequenta o liceu, e eu dou as minhas lições de música, à noite lemos,
conversamos e tocamos juntos.
Todos os
anos, num dia certo, fazemos uma romagem piedosa.
Vamos
visitar ao cemitério o túmulo de pedra, pobre e modesto, onde dorme o seu
tranquilo sono a minha querida mãe.
Foram
serenos e doces os últimos dias que ela viveu na terra.
Ajudou a
criar o meu Arthur, que era tão endiabrado e travesso como hoje é tranquilo e
sonhador!
Eu saía de
casa muito cedo, e deixava-os a ambos juntos a papaguearem alegremente, porque
não há nada que ilumine a tristeza dos velhos como a alegria dos netos.
Ao princípio
era-me doloroso aquele monótono trabalho de ensinar os princípios de música,
mas quando vi desenvolver-se em casa o conforto devido aos meus pertinazes
esforços, cobrei nova coragem e alentos novos.
Sabia com
mais ânimo e voltava com mais alegria. . .
Em mim
faziam-se dois trabalhos: Procurava afazer-me à minha nova existência e apagar
da memória o meu passado enganoso.
Tivera o meu
romance, e o romance deixara me na boca o travor amargo das coisas insalubres!
Em todo o
caso nunca me arrependi de ter aspirado a saciar a minha sede de ideal nas
fontes puras do coração.
Era mais
feliz na minha infelicidade que os outros nas suas alegrias!
A minha vida
de professora, fazendo-me penetrar em muitas casas diversas, deu-me
oportunidade para conhecer melhor o mundo.
Encontrei
muita gente alegre e satisfeita que me causou profundo dó.
Marido e
mulher separados pelas ideias morais, pelas crenças religiosas, pelas
ocupações, pelas índoles diversas, pelo modo antitético de encarar as coisas;
unidos somente por um laço, o hábito; por uma força, as conveniências sociais.
Oh! antes o
meu desamparo, antes o abandono em que eu fiquei na flor da vida!
Conheci
muitas mulheres que procuravam no turbilhão mundano consolação para íntimas
tristezas; outras, que me confessaram chorando, que a ingratidão e a
inconstância do marido as arrastara à perdição, ao desprezo de si próprias.
Não as
repeli, porque não tinha direito para ser implacável; lamentei-as, não porque
as achasse dignas de lástima, mas porque me pareciam dignas de desdém!
Como se o
crime posterior da mulher não fosse a justificação do crime anterior do marido!
Ser boa e
digna e virtuosa, quando tudo nos ajuda a isso, grande milagre!
Na solidão,
no abandono, na injustiça do mundo, é que a honestidade da mulher se acrisola!
Se o meu
marido não tivesse fugido de mim, deixando-me nos braços uma criancinha de
meses, como poderia eu conhecer as lutas da vida e ter saído triunfante das
provações da desgraça?
Não
imaginas, querida amiga, como hoje é doce e tranquilo o meu outono!
Em primeiro
lugar o querido anjo que eu eduquei sozinha, depois a música, as flores e os
bons livros. Falta-me a minha mãe querida, mas essa morreu abençoando-me!
Ao domingo,
quando eu e Arthur nos achamos bem sós, no nosso pequeno gabinete de trabalho,
chego a conceber a beatitude do paraíso.
Sento-me ao
piano e toco, toco até me sentir sem forças.
Converso
longamente com os amigos da minha mocidade, com os que me vestiram a alma da
cristalina armadura que resistiu a todos os atritos da miséria humana.
Conto-lhes
as luminosas aspirações da minha adolescência, a ideia que eu fazia da
abnegação, do amor, do sacrifício; e os esforços que empreguei para me cingir
sempre a essa ideia levantada e superior.
Conto-lhes o
belo instante radioso em que na minha vida desabrochou a flor misteriosa que
eles me tinham ensinado a julgar o premio mais doce de um coração cheio de fé.
E com que extremos eu cultivei essa flor que um dia se
desfez em
cinzas nas minhas tremulas mãos! E como a doce ilusão de a possuir me fizera
melhor!
Depois
conto-lhes a tempestade que subitamente fez sobre mim a sua explosão sinistra,
e o meu desamparo e a minha dor fulminadora, e a vacilação tremenda em que eu
vi tudo que julgara imutável prestes a desabar, deixando-me só ruínas!
Foi então
que o amor deles me salvou, foi então que as suas vozes divinas me chamaram, e
que, na esfera elevada em que eles moram, eu me senti penetrar da calmaria
adormecedora de todas as paixões ruins!
No outro
dia, depois de tocar duas horas, esquecida de tudo, procurei o meu filho e
achei-o de joelhos ao pé de mim.
Tinha a
gentil cabeça loura mergulhada nos meus vestidos, e, quando levantou os olhos
cheios de lagrimas, disse-me com uma voz em que se fundiam todas as músicas:
— Ó mãe,
Deus te abençoe, porque foste ultrajada e traída, e eu posso amar-te e
respeitar-te.
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Nota:
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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