A CIGANA
Quando o
gajeiro gritou do alto das vergas — terral—toda a gente que vinha a bordo da
galera Terrível sentiu uma grande e indefinida alegria.
Subiram uns
para o tombadilho, outros deixaram-se ficar no convés, e os passageiros da
proa, os mais pobres, encarrapitaram-se na amurada; começaram todos a olhar com
uma ansiedade febril para a facha escura que a pouco e pouco avultava no
horizonte.
A viagem
tinha sido longa; a galera levara cinquenta dias a chegar do Rio de Janeiro.
Mas, todas
essas penas, todo esse aborrecimento que assaltam o viajante que durante dias e
dias não vê mais que o céu e o mar, desaparecem como que por encanto perante
essa palavra mágica, solta pelo gajeiro — terra!
Os
passageiros eram, na maior parte, gente de baixa condição e de ambições modestas:
tinham sido no Brasil carroceiros, feitores de roça, carpinteiros e pedreiros.
Vinham com
pouco dinheiro, mas traziam grande abundancia de saudades; tinham sofrido,
padecido longe da pátria, mas como ela os ia compensar de todas essas
amarguras!
A alegria
bailava em todos os olhos.
Ah! o
capitão Navarro, apesar de ter feito aquela viagem cinquenta vezes, também
vinha contente e esfregava as mãos, tomado de um júbilo desmedido.
Quando o
piloto se correspondia com o castelo da barra, o capitão impaciente, mas sem
perder o seu aspeto risonho e benévolo, perguntava:
— Deixam-nos
ou não nos deixam entrar a barra?
— Estão-me
agora a perguntar se morreu alguém a bordo.
— Ora essa!
Morto estou eu por me ver em Massarelos. Querem ver que ainda temos que ir dar
com os ossos em Vigo? Com mil bombas! Era o que me faltava agora!
Mas não
aconteceu o que o capitão receava: do castelo fizeram sinal que a galera podia
entrar, e foi com uma voz vibrante de entusiasmo e de um prazer intenso que o
capitão comandou a manobra.
A galera
como um cavalo que obedece facilmente à perícia de um ótimo cavaleiro, proejou
a barra no meio das exclamações dos impacientes e saudosos passageiros.
****
A galera
fundeou em frente de Massarelos.
No dia
seguinte, já não havia ali senão parte da tripulação e um ou outro marinheiro
que não tinha família e que olhava para o cães com repugnância e com desdém.
As capoeiras
em redor do tombadilho estavam despovoadas. À roda do leme reluzia ao sol,
parada, sem movimento, as tampas enceradas da meia laranja abriam-se como as
azas de uma enorme borboleta em repouso, e as mangueiras de linho cheias,
retesadas, levavam o ar à câmara e ao porão.
Um belo dia
de agosto!
O capitão
Navarro assistia ao descarregar sentado numa barrica de farinha de mandioca; o
contramestre no portaló olhava mais lentamente para o Douro como quem procura
enxergar uma coisa desejada e cubicada.
— Ainda
nada? perguntou o capitão.
— Admira,
capitão! Das outras vezes pouco se deixa esperar essa visita.
E com a mão
em quebra-luz continuava a observar o movimento cios botes e das catraias.
De repente,
a Cigana, uma cadela de fila que era o ídolo de toda a tripulação do navio, deu
um salto, subiu as escadas do portaló, e alongando o pescoço, meneou
festivamente a cauda e ladrou de contente…
Era um latir
alegre e de boa feição, o latir que ouvimos aos cães das nossas casas, quando
recolhemos depois de longa ausência.
— Espera!
disse o contramestre, a Cigana tem faro. Aí vem a sua gente, capitão!
Navarro
ergueu-se, olhou e viu um barco que, à força de remos, se dirigia para a
galera.
— Até que
enfim! disse o capitão, e desceu cheio de contentamento as escadas do portaló.
..
A cadela,
vendo descer o dono, acompanhou-o e saltou ao mesmo tempo que ele para o
interior do barco.
O
contramestre olhava de cima aquele quadro e murmurava entre alegre e
melancólico:
— Parece que
é bom ter família e ter uma pequerrucha bonita como a do capitão que nos venha
dar um abraço quando vimos de longe...
— Assim
será, meu contra mestre, mas quando essa filha vem de luto, devendo vir vestida
de cores alegres; quando ela nos vem dizer com a voz abafada em lagrimas e
soluços — a mamã morreu! —não me parece que seja muito para invejar, meu rude
celibatário, que não tens outro afeto senão pela tua galera e pelo mar, a quem
confiaste a tua mocidade e a quem confiarás um dia o repouso do teu corpo!
****
De sorte que
aquele momento tão apetecido pelo capitão foi-lhe amargurado pela noticia da
morte da mulher.
Eram quatro
os afetos do capitão: a mulher, a filha, a Cigana e a sua bonita e garbosa
galera.
O primeiro
afeto desaparecera, restavam-lhe ainda os três; não tinha muito que se queixar
do destino: a galera ali estava capaz ainda de arrostar com sessenta viagens, a
filha dependurava-se-lhe do peito amplo e largo, cheia de viço e de adorável
meiguice, e aos pés de ambos, rojava-se latindo baixo a Cigana, acariciando-os
com os olhos onde havia o indefinido das vagas, e como que um lampejo umedecido
de uma ternura doce e humana.
A filha de
Navarro, depois de haver chorado no seio do pai, abaixou-se e passou a mão pela
cabeça da cadela.
— Quando
partir de novo, papá, deixe-me a Cigana;, sim? A mamã era tão amiga dela!
A Cigana,
parecendo compreender aquelas palavras, endireitou-se, e pousando as patas no
colo da menina, beijou-lhe carinhosamente as mãos.. .
Quando
Navarro chegava do Brasil e ia passar algum tempo a Lessa com a família, levava
sempre na sua companhia o seu querido animal! Imagine-se como este seria
amimado, festejado e cheio de afagos quando souberam que uma vez no alto mar...
****
Não sei
quantas milhas devorava nesse momento a galera.
Era
meio-dia, fazia um sol de rachar, os marinheiros à proa comiam o rancho, e na
tolda não estava senão o capitão, a Cigana, e o homem do leme.
O piloto
fora buscar ao seu beliche um mapa que o capitão lhe pedira, e demorara-se mais
que o tempo necessário. Navarro ergueu se do banco de vime e encostou se ás
grades da ré.
Como foi
aquilo? Vertigem? Congestão cerebral?
Foi ele
encostar-se à grade, estar ali coisa de dois ou três minutos, e de súbito
borcar-se-lhe o corpo nas ondas...
O homem do
leme viu aquilo, e aflitivamente exclamou:
— Jesus!
acudam!
E quando os
passageiros correram ao tombadilho e a tripulação veio saber o que sucedera, o
piloto, pálido e assustado, mandou colher todo o pano; podia ver-se ao longe no
meio das águas, que faiscavam e transluziam os raios do sol, um ponto negro e
que pouco a pouco parecia afastar-se, afastar-se...
Os dois
escaleres da ré foram descidos ao mar, e dentro deles os mais robustos dos tripulantes.
— A modo que
ele não estava bom! disse o homem do leme. Que eu só reparei nele quando o vi
no ar...
— Deitem-lhe
a boia! gritou o contramestre.
Naquele
momento de ansiedade, procurou-se a boia e não se encontrou.
O
contramestre estava desesperado, as pragas mais violentas saíam-lhe em
borbotões por entre os dentes, que apertavam estreitamente o tubo fumoso do
cachimbo.
O navio
afrouxara a sua marcha, contudo os escaleres ainda iam bastante longe do ponto
negro que todos julgavam ser o capitão.
— Lá bom
nadador é ele, dizia o contramestre, mas se há tubarões assim! e reunia os
dedos em pinha.
Estendia os
braços, dependurava-se da grade da popa, e com gestos ansiosos tentava animar
os marinheiros dos escaleres.
— Força,
rapazes!
No rosto de
todos os passageiros lia-se um grande terror e uma pena profunda.
Era
impossível escapar. O capitão apesar de bom nadador já estava velho e. cansado,
depois os tubarões...
Os
marinheiros contavam casos horrendos que tinham presenciado, e em que figuravam
esses assanhados tigres do mar.
— Valha-nos
o senhor de Matosinhos! conclamavam num grito lancinante àqueles homens, que
tantas vezes tinham lutado heroicamente contra as coléricas sanhas da
tempestade, e que adoravam o bondoso velho, o seu capitão.
O ponto
negro ia-se distinguindo mais nitidamente: ás vezes afundava-se, outras vezes
imergia-se; e enquanto os escaleres voavam, o contramestre continuava a gritar,
posto que as puas vozes já não pudessem ser ouvidas pelos que iam em salvamento
de Navarro.
Quando o
vulto vinha a distância de uma milha o contramestre exclamou, afirmando a
vista:
— Ou eu me
engano, ou o capitão não vem sozinho... esperem! é a Cigana que traz a reboque
o patrão!...
Era a Cigana
efetivamente. Quando o velho caíra ao mar, o animal atirara-se logo atrás, e
mergulhando conseguira apertar nos dentes as roupas do capitão, e desde esse
instante nunca mais o largara.
Quando os
escaleres se aproximaram dos dois, a pobre Cigana estava quase exausta e sem
forças.
Arrancaram-lhe
a custo da boca o seu querido fardo e ela continuou a nadar frouxamente sem
poder resistir ás ondas que a levavam de chofre de encontro aos escaleres.
Quis subir,
galgar a borda de um dos escaleres, e não pôde, resvalou na água, ganindo
dolorosamente, sendo preciso que um dos marinheiros a empolgasse com força,
arrebatando-a assim à morte inevitável.
Da galera,
aplaudiram a ação da Cigana, e quando ela e o capitão chegaram, não sei bem
qual, dos dois foi mais abraçado.
— Bravo,
Cigana! exclamou o contramestre, não há homem que te valha. Dá cá um abraço!
O capitão
foi levado por dois marinheiros para a sua câmara, enquanto a Cigana,
resfolegando alto, com os olhos embaciados, o corpo escorrendo água e todo trêmulo,
tentava arrastar se para onde lhe levavam o dono.
****
Ora, aqui
está porque a Cigana era tão querida e estimada na pequena e alegre casa do
capitão em Lessa, e aqui está a razão porque a filha do velho e bondoso Navarro
lhe pedia com tão amável meiguice que deixasse ficar a Cigana quando para a
outra vez tivesse de fazer viagem.
Quando a
galera Terrível partiu, não levava a bordo nem o capitão nem a Cigana. Porque?
Se o leitor
é pai diga-me, se no caso do capitão Navarro, teria forças de fazer-se ao largo
e deixar sozinha uma filha de quinze anos, graciosa e encantadora.
Não tinha
forças para tal, acreditamos.
Ao capitão
sucedeu o mesmo. Despediu-se dos seus companheiros, chorou quando viu pela
primeira vez a Terrível fazer-se de vela sem ele, mas ficou em terra.
Tinha
saudades, isso tinha, do mar, da solidão majestosa das águas, da melancolia das
horas da calma, das tempestades que, de vez em quando, o visitavam, mas fitava
os olhos azuis da filha e bebia neles consolações que lhe amorteciam essas
mágoas.
As vezes,
saía de casa acompanhado pela Cigana, e ficava-se à beira do mar, observando os
navios que passavam a distância, absorvendo a plenos pulmões o saudável ar
marítimo, regalava-se conversando com os pescadores e com os
embarcadiços,
e nessas tardes recolhia mais alegre e com o corpo mais direito e
rejuvenescido.
Outras
vezes, ia num bote pelo ameníssimo rio Lessa acima, e nessas excursões levava
quase sempre a sua querida Luísa, e quase sempre nesses passeios em que ele
contava à filha as peripécias de toda a sua vida trabalhosa, encontrava-se com
outro bote em que ia ao leme um rapaz de vinte anos, elegante e galhardo que o
cumprimentava respeitosamente.
A terceira
vez que aquele encontro se deu, o velho disse à filha:
— Não sei se
conheço aquele rapaz? É o filho único de um meu antigo companheiro O pai está
rico, está. Eu também por aquele preço podia estar como ele ou melhor. Que se
ele tem muito de seu, a mim mo deve. Joaquim António Ferreira, que depois foi
feito Conde da Guaratiba, bem queria que eu fosse capitão de uma sua barca,
recusei, porém, sempre, e apresentei-lhe um dia Gouveia, o pai desse rapaz, que
afinal de contas depois de seis ou sete viagens felizes à África, deixa a vida
do mar e foi um dos que mais lotes .de escravos levava aos armazéns de
Valongo... Ser rico à custa de tantas lagrimas não era para o filho do meu
pai...
E aqui
entrava o capitão a contar a Luísa coisas da sua mocidade, e absorvido nessas
recordações não reparava que a filha seguia com a vista ansiosa o barco em que
ia o herdeiro do milionário Gouveia.
****
Luísa amava,
e amava com o primeiro e grande afeto de quinze anos.
Segregada
das raparigas da sua idade, não tinha a quem confiar tantos e tão amantíssimos
segredos: embriagada por aquele amor, deixava-se ir deliciosamente pela
correnteza, sem medo de encontrar um dia a voragem que a tragasse, o abismo em
que se lhe afundasse a honra e a vida.
Nunca tinha
falado ao noivo da sua alma; via-o de longe, ora passar a cavalo pela rua em
que morava, ora no rio quando o pai a levava aos costumados passeios.
Conhecia-o
pelas cartas, que lia, relia e decorava, e a todas elas respondera, menos à
última cujo conteúdo a trazia surpresa, enlevada, vibrante...
O não
responder a essa carta era como que um assentimento a um pedido que nela se
fazia.
O velho
capitão nessa noite pedira à filha que lhe lesse uns livros de viagem. Luísa
lia perfeitamente, com uma entoação harmoniosíssima, e dando com a voz um
relevo maravilhoso à narrativa. O capitão, com o corpo reclinado na poltrona, o
cachimbo apertado nos dentes, e a cabeça da Cigana nos joelhos, sorria na plena
beatitude de um gozo indefinido. De vez em quando, acordava
daquela
deliciosa sonolência e emendava as incoerências e os enganos do escritor.
— Nada,
nada, isso não é assim. Venham cá dizer-mo a mim, que passei por esse ponto
mais de trinta vezes...
As dez horas
serviu se o chá, a Cigana foi levada para o quintal, e Luísa acompanhou o pai
até ao limiar do quarto.
— Deus te
abençoe, minha filha, disse o velho ao despedir-se, e beijou Luísa na testa.
— Hoje tenho
pouco sono, papá, fico ainda a ler um bocadito na sala, se o papá quiser alguma
coisa chame-me, sim? Vou acabar de ler este livro, acho o muito bonito. Gosto
tanto da vida do mar!
— Filho de
peixe sabe nadar, disse o capitão sorrindo com o divino sorriso dos pais, que
se creem únicos senhores dos afetos dos filhos.
Passada meia
hora, ouviu-se no quintal o ladrar contínuo, frenético e raivoso da Cigana.
O capitão
gritou da cama:
— O que é
aquilo, filha? A Cigana está hoje como nunca a vi. Vai sossega-la, se não tens
sono, e prende-a. Naturalmente os pescadores saltaram-me à fruta. É o que é.
Deixa-los lá, coitados! Estes dias tem havido pouco peixe. Não vá a Cigana
fazer alguma das suas... Ora vai, anda, tem paciência... Eu não vou porque me
sinto fatigado e esquisito hoje... A Cigana ouvindo-te, sossega...
****
Luísa desceu
ao pátio.
Abriu com
mão tremula a cancela e encostou-se vacilante, agitada e convulsa ao muro. O
ladrar da cadela cessara. Adiantou-se. No fundo do jardim sob a latada, um
vulto cosia-se com a parede. A pobre menina levou as mãos ao peito, como para
sossegar a doida violência do coração que parecia sufoca-la; quis falar e não
pôde. O corpo vergava-se-lhe frouxo, mole, sem forças.
De repente
saiu das sombras das árvores a Cigana, que se arrastou para Luísa, ganindo
dilacerantemente, movendo com dificuldade a cauda, com a parte posterior do
corpo quase paralítica, escorrendo-lhe da boca uma baba espessa, com os olhos
dilatados desmedidamente...
Naquele
olhar que a claridade da lua deixava distinguir havia um pedido, uma súplica.
— Cigana!
exclamou Luísa.
Ouvindo
aquela voz, a cadela, que se sustentava dificilmente nas patas dianteiras,
ergueu ainda, por um supremo esforço, a cabeça, e, tomada de uma ansia
aflitiva, convulsionando-se-lhe o corpo num estremecimento instantâneo, soltou
um gemido rouco, escabujou violentamente, e caiu morta aos pés da filha do
capitão.
— A sua
Cigana é muito má, mas ainda é mais gulosa, disse o vulto que se escondia sob a
latada.
— Que mal
lhe fez este animal, Sr. Gouveia? perguntou repreensivamente Luísa,
estrangulando-se-lhe a voz na garganta.
— Boa
pergunta! Não subisse eu tão depressa para o muro e estava asseado a estas
horas! O demónio do bicho! Mas vinha prevenido, atirei-lhe uma bola, que lhe
soube como se fosse manteiga. Ora deixe lá o cão, querida, não se faça
piegas...
Luísa
interrompeu bruscamente aquelas palavras tolíssimas, e endireitando o corpo,
ergueu a voz quebrada pelas lagrimas:
— Saia, saia
depressa; se não quer que o meu pai o venha aqui matar sem ser tão cobardemente
como o senhor acaba de matar a minha pobre Cigana.
E em quanto
o vulto marinhava pelo muro, a desditosa criatura abraçava a Cigana, e chorava
como somente uma vez em vida chorara, quando lhe levaram para fora de casa o
corpo da sua mãe.
— Cigana,
minha pobre Cigana! repetia Luísa, fui eu que te matei!
Ao outro dia
murmurava o capitão, fingindo-se sereno e forte para poder consolar a filha:
— Vão lá
depois fazer bem... Eu mandava prender a Cigana para que não fizesse mal a
ninguém, e pagaram-me desta forma!...
E o velho,
para não chorar também, fingia que não reparava nas lagrimas que rolavam como
pérolas pelo rosto descolorido e pálido da filha.
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Nota:
Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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