A ESCOLHA DE
GASTÃO
Fez
verdadeiramente o que se chama escândalo, em todas as salas da alta roda, o
casamento do filho do visconde das Lagoas.
O visconde,
cujo nome primitivo era João do Moinho Novo, e que depois não sei porque artes
se apelidava João Silveira, fora para o Brasil muito novo, creio que com
dezoito anos, e voltara de lá com cinquenta e arquimilionário.
Rosnava-se
muito acerca das origens desta nebulosa e extraordinária fortuna.
Uns falavam
de escravatura, alguns de contrabando, todos de negócios pouco lisos e poucos
lícitos. No fim de contas, porém, o principal é que uma pessoa seja muito rica.
Lá o como e
porquê são questões secundarias, com que se preocupam muito os invejosos, e um
pouco os escrupulosos.
O resto das
pessoas, e já se vê que são muitas, essas nem para aí voltam os olhos.
Acham este
esmiuçar impertinente das vidas alheias além de enfadonho pouco aristocrático.
O visconde
passava o verão na província do Minho, numa povoação perto de Viana, onde
comprara um velho palácio, cuja frontaria enegrecida ele mandara cuidadosamente
caiar.
O portão do
palácio era encimado pelo brasão darmas da família arruinada a que pertencera.
O visconde, que não quisera conservar mais nada intacto, teve a caridosa
lembrança de o conservar a ele.
Mandou-o
limpar das ervas e dos musgos daninhos que se tinham introduzido entre as
fisgas da pedra, e dos ninhos que a fantasia errante das andorinhas ali armara
no estio.
Depois de
limpo pareceu-lhe um ornato simpático e nada contraditório com os seus gostos
plebeus, e deixou-o ali ficar, com tenção firme de o cobrir de crepe, no caso
de lhe morrer algum dos seus.
Foi depois
disto que se decidiu a pedir ou por outra a comprar, dos poderes públicos
complacentes o seu título de visconde.
O mais modificou-o
e transformou-o à sua vontade.
Detestava as
ruínas por instinto.
As vastas
salas apaineladas e forradas de custosos panos de Arrás, mandou-as estucar à
moderna, de cores claras e alegres, vendendo a um amador de curiosas velharias,
— o mais caro que pôde, já se entende — aquelas
colgaduras
enegrecidas e esfiadas, cujo mérito não tinha nunca logrado perceber.
Vendeu
igualmente a velha mobília, que punha como que um perfume de grandeza extinta
no arruinado casarão, as credencias marchetadas, os tremós de espelho partido
ao meio, e em cuja moldura dançavam estranhas figurinhas, as cadeiras abaciais
de couro e pregaria amarela, os cofres de pau santo, os tamboretes de carvalho,
as relíquias de um mundo que desabara.
Os domínios
do visconde depois de transfigurados pelo seu opulento proprietário perderam
aquele aspeto desolador, saudoso e melancólico que os recomendava aos artistas
e aos... morcegos.
Ninguém por
mais fantasioso e poeta que fosse, seria capaz de evocar na sombra dos longos
corredores claustrais, uma daquelas figuras que são a graça misteriosa do
passado.
Uma castelã
pálida e esguia, sustendo nas suas mãos de marfim o missal de ricas
iluminuras... Um pajem louro e namorado, embevecido no sonho de longínquas
aventuras e de impossíveis amores. .. Um vulto de abade austero e glacial,
trazendo para o meio do mundo a gélida mortalha da sua piedade monástica...
Nenhuma
dessas visões podia agora evocar-se.
Foram
derrubadas as árvores silvestres cuja sombra envolvia o palácio numa austera
solidão; arrancaram-se as heras possantes que cobriam com o manto vigoroso da
sua folhagem verdenegra os muros gastos e esburacados; calçaram e ladrilharam
os pátios por onde a erva crescia indomada e livre, e onde fontes enormes
choravam dia e noite com uma triste e sonolenta melopeia.
Um
jardineiro inglês veio de propósito cortar as moitas de buxo espesso do jardim,
onde umas estátuas de pedras mutiladas e musgosas pareciam ainda relembrar no
desamparo da sua nudez friorenta, uma vida inteira que o passado abismara.
Aquela
desolação das ruínas e aquele indômito luxo da natureza entregue a si, foram
substituídos por todas as graças e coquetismos da moderna jardinagem.
Uma estufa
de plantas raras, de estranho colorido, de formas fantásticas e inquietadoras,
de cheiro irritante e acre; tabuleiros de gazon
de uma frescura esmeraldina, camélias, rosas, trepadeiras floridas, tudo que as
tiranias da arte tem misturado nas liberdades da Natureza.
O visconde
depois de haver-se rodeado de tudo que pode tornar aos ricos a vida não só
aprazível o que é pouco, mas invejável o que é muitíssimo, começou a granjear
relações, e a receber com bizarra hospitalidade os amigos que durante o inverno
adquiria nas salas da capital.
Em Lisboa
não era menos rica, nem menos confortável, a habitação do milionário.
Vastos
salões ricamente mobilados, equipagens de alto estilo, criadagem insolente e
ociosa, escadarias alcatifadas, bailes e ceias onde toda a corte concorria tão
cheia de curiosidade como de gulodice, jantares aos quais eram convidados os
ministros, os titulares, os diplomatas estrangeiros e os funcionários mais
influentes, tudo, enfim, que pode dar à vida um aspeto opulento e principesco,
tudo que constitui o orgulho supremo dos medíocres e a inveja brutal dos
ambiciosos.
De resto o
dono da casa era tão pouco conhecido da maioria dos frequentadores das suas
festas, que mais de um o tomou pelo criado de si mesmo, e lhe pediu com
desdenhosa insolência, o paletó, ou um copo de água.
O visconde
enviuvara antes de deixar o Brasil, e os que tinham conhecido a sua mulher, não
lamentavam que a pobre senhora fosse dispensada pela Providencia de assistir à
espetaculosa mise-en-scêne da vida
dos que tinham sido seus.
O visconde
tivera do seu matrimônio, duas filhas e dois filhos.
Na época em
que ele maior ostentação desenvolvia, teriam as meninas dezoito a vinte anos.
Tinham sido
educadas em casa, por uma mestra francesa escolhida pelo pai. Vestiam-se da
Aline, quando não mandavam vir diretamente de Paris as suas toilletes extraordinárias, e sempre muito
além da moda.
Usavam tudo
que havia de mais excêntrico. Os chapéus mais pequenos, ou os chapéus de mais
largas abas, os vestidos que deixassem ver o pé todo, ou os vestidos cuja cauda
roçagante lembrasse um manto de rainha.. . de teatro.
Havia tempos
em que usavam na cabeça o cabelo de uma dúzia de mulheres, e outros tempos em
que apareciam de repente de cabelo cortado como os rapazes, encaracolado e de
risco ao lado.
Timbravam em
não se parecer com mais ninguém.
Mas não
podiam eximir-se a um defeito especial que as fazia darem muito na vista.
Ocupavam-se extremamente de si.
Falavam do
seu boudoir, das suas toilletes, das
meias de seda de três libras ou doze mil réis — as únicas que traziam —, do
elegante édredon do seu leito, das
finas perfumarias do seu toucador.
Isto fazia
rir com riso amarelo as amigas mais intimas, que à frente de gente, costumavam
puxar-lhes pela língua.
De resto as
filhas do visconde seguiam rigorosamente os preceitos e regras da alta-vida.
Tinham
assinatura em S. Carlos, para serem vistas, e frequentavam assiduamente a
igreja, para se parecerem com as filhas de condes pálidas e anêmicas, cujo luxo
superior é a devoção e a caridade, diluídas ambas as coisas em pequeninas
práticas de todos os dias.
Sabiam
conversar pouco mais ou menos sobre tudo, sendo no fundo de uma crassa
ignorância acerca de todas as coisas.
Como
dissemos fora francesa a mestra que as dirigira. Dera-lhes o verniz da
educação, e mais nada.
De línguas
sabiam o bastante para conversarem com os diplomatas; de música, para
criticarem o físico das cantoras; de artes para revelarem a cada instante a
negação profunda que tinham para o belo.
Respeitavam
e invejavam todas as superioridades sociais; o dinheiro, a fidalguia herdada ou
comprada, a posição, as honras, a formosura.
Desprezavam
profundamente uma só coisa: a pobreza.
Quando viam
alguém pobre, pouca ou nenhuma atenção lhe prestavam; mas se esse alguém
tivesse a inaudita ousadia de apresentar uma ideia, uma opinião, um juízo, de
contraria-las, de escarnecer alguma das coisas que elas acima de tudo
reverenciavam, viam-nas então revelar um pasmo sincero, um espanto que tinha o
seu quê de tragicamente ridículo.
Um dia ouviu
alguém a uma delas este aforismo extraordinário.
Quem é pobre
não tem opinião.
E tinham um
modo de levantar a voz, de alçar altivamente a cabeça, de sublinhar
vigorosamente as palavras, que mais do que tudo confirmava que elas como
pessoas que possuíam duzentos mil réis por mês, só para os seus alfinetes, não
tinham nunca imaginado sequer a possibilidade de não terem razão.
Era uma
maneira não menos autoritária, porém menos correta de dizer o que à senhora de
Stael disse um dia a duquesa de la Ferté.
Il n’y a que moi, chère amie, qui aie
toujours raison.
Aí estão
pouco mais ou menos as duas filhas do visconde.
****
O filho mais
velho, que partilhara no Brasil os primeiros trabalhos e as primeiras lutas do
seu pai, adquirira com a vitória dele, que era também sua, o mesmo ar de ingênua
superioridade.
Tinham
trazido do Brasil uma fortuna colossal, logo tinham o direito de dominarem onde
quer que estivessem.
Toda a gente
que frequentava a casa deles, que lhes aturava a impertinência boçal,
confirmava pela sua servil condescendência esta convicção; porque é que não
tinham de a sentir?
O primogênito
do visconde ocupava-se muito, com verdadeira alegria do seu pai, de cifras e de
operações bancarias; jogava em fundos estrangeiros, tinha a vocação mercantil
pronunciadíssima, e nos intervalos que estas ocupações transcendentes lhe
deixavam, governava um carro, e mandava correr os seus cavalos.
Estivera em
Londres, quando lá fora deixar num colégio o seu irmão mais novo, e voltara com
certas aspirações a gentleeman rider.
Falava
pouco, com ar sacudido, apressado e sentencioso.
Usava suíças
e vestia de um alfaiate inglês. Queria ser homem sério, respeitável, homem de
peso, e pensava numa candidatura como num pedestal próprio para as suas
atitudes.
É no meio
desta família admiravelmente feita para a sua época e para a posição que tem,
que vamos encontrar Gastão, o ultimo filho do visconde, um fenômeno destinado a
contrariar tudo que se tem dito e escrito sobre a lei da hereditariedade.
Gastão tem
vinte e um ano, é Alto, delgado, de uma constituição tão delicada e nervosa,
que ao lado das suas irmãs com o seu ar masculino e as suas inflexões duras,
ele é que parece a mulher e elas é que parecem os homens.
Dizem os que
um dia se atreveram a chasqueá-lo pelo ar tímido e suave que aparenta, que nos
seus olhos azuis, de uma expressão triste e sofredora, passou um relâmpago de
cólera, pouco tranquilizador para os que abusarem da sua excelente educação.
Gastão da
Silveira, chegara há pouco de uma viagem que fizera pela Europa, depois de
concluir a sua formatura numa Universidade de Inglaterra.
Da sua
família não sabia senão que era rica, e que vivia grandemente, como ele tinha
visto viver os opulentos banqueiros ingleses, nas suas deliciosas casas dos
arrabaldes da cidade, confortáveis e luxuosas.
Esta
informação não lhe faltava porque o seu pai, as suas irmãs e o seu irmão mais
velho, nunca se cansavam de lha repetir em todas as cartas.
Isto porém
não bastava a Gastão. O que ele desejaria profundamente, era conhecer a fundo o
caráter dos seus, e o que desse caráter lhe revelavam as cartas secas e lacônicas
de que falíamos, teimava ele na sua fé juvenil, em não o aceitar como prova ou
como manifestação.
Tinha pelos
seus amigos e condiscípulos conhecido a vida inglesa em relação à família, fora
convidado para passar as ferias, em casa de ricos industriais na
companhia de
alguns dos seus mais caros colegas de estudo, e poder a conceber um ideal
realizável, de paz, de conchego, de conforto domestico, que ansiava encontrar
no seio da sua família.
Tinham-lhe
dito que o seu pai ganhara pelo trabalho a grande fortuna que possuía, e Gastão
habituado a observar a atividade enorme, incansável, persistente, a fecunda
atividade inglesa, sentira crescer o amor pelo visconde ao saber a tenacidade
com que ele trabalhara.
Inteligente,
de uma inteligência fina e delicada, a viagem que fizera desenvolvera-lhe o espírito,
e afinara-lhe o gosto.
Voltava
cheio de ideias, de fatos, de noções práticas, respeitando acima de tudo a
inteligência, e a dignidade da vida.
Como homem
educado ao contacto da vida inglesa, avaliava o dinheiro mas não como um fim,
simplesmente como um meio, o mais enérgico e infalível dos meios para chegar a
grandes fins.
No dia em
que Gastão conheceu o seu pai e os seus irmãos imaginem a dolorosa surpresa que
ele sentiria.
****
No ânimo do
visconde e dos seus filhos excitou porém o aparecimento daquele belo rapaz de
maneiras distintas, afavelmente dignas, de espírito superiormente cultivado, de
conhecimentos científicos excepcionalmente desenvolvidos, a mais agradável das
impressões.
Um irmão
daqueles, um filho de tal maneira elegante e fino, dava-lhes honra, dava-lhes
importância e realce. Se fosse um estranho ter-lhe-iam inveja, mas, enfim,
Gastão pertencia-lhes, era deles, a sua graça, a sua superioridade, a sua
distinção comunicava-se-lhes, destingia sobre as suas pessoas.
O visconde pensava
que no fim de contas o que constituía o especial encanto do tilho, a educação,
fora ele quem a comprara muitíssimo cara.
Podia
orgulhar-se de Gastão à frente dos estranhos mas queria domina-lo, subordinar
as opiniões dele ás suas, mostrar lhe bem claro, que o adorava pelo que ele
transmitia a sua vida de elegante e de superior, mas que o considerava um
objeto raro adquirido por muito bom preço, e do qual dispunha absolutamente.
As manas,
essas não ocultaram no primeiro momento de entusiasmo que a posse de Gastão
lhes dava muito mais chic do que a
posse do seu coupé novo tirado por
dois cavalos ingleses pur sang e
cujos arreios irrepreensíveis tinham sido louvados pelo embaixador de França.
— Ora tu
verás, dizia a mais velha para a outra, que as Pimentas em vendo Gastão ficam
de fel e vinagre. Repara bem para a cara que elas fazem,
sobretudo se
vierem acompanhadas do mano, daquele Leopoldo, de olhos vesgos, de quem toda
gente se ri, e que ainda não acertou a fazer uma conta de somar.
E exibiam o
irmão pelas salas das suas amigas, sob pretexto de que não tinham quem as
acompanhasse, e repetiam em segredo a todas as pessoas do seu conhecimento:
— Não fazem
ideia! O mano Gastão é um poço de ciência. Sabe todas as línguas. Eu creio que
ele até sabe sânscrito. O papá gastou imenso, mas que educação que ele lhe
deu!.
E por aqui
adiante uma ladainha em que se confundiam a ciência do mano, os gastos do papá,
a inveja que todos tinham de ambos, e a glória que a elas provinha da inveja,
dos gastos e da ciência.
Gastão
tornara-se o luxo superior da família.
****
Foi por esse
tempo que o visconde entendeu que era necessário casar o filho mais novo, visto
que o mais velho dissera com desdém supremo que só se atiraria a esse abismo do
casamento, quando tivesse completado os seus folgados quarenta anos.
Quando
Gastão casar, as pequenas poderão frequentar mais os bailes, os saraus e os
passeios.
Eu gosto de
receber em casa; não me incomodo com isso, mas lá para andar sempre pelo meio
da rua é que não estou. E depois Gastão pode fazer um casamento esplendido.
Está nesses casos por todos os motivos.
E foi
resolvido em conselho de família, que Gastão tomasse estado.
A casa do
visconde das Lagoas tornou-se a mansão de todos os prazeres, como o bom do
homem dizia na praça aos seus amigos titulares e merceeiros. Bailes, jantares, petites sauteries intimes, concertos, a
fortuna!
A leda
destas reuniões, que os noticiaristas imortalizavam na secção da alta elegância
mundana, chamava-se Clotilde de Magalhães. O pai ambicionava um título que
ainda não tinha podido alcançar dos governos, mas que mediante um avultado
donativo a não sei que estabelecimento bafejado pelo favor da corte, lhe fora
prometido para muito breve.
O
conselheiro Magalhães dissera porém ao seu amigo o visconde das Lagoas, que
essa promessa lhe não bastava, que o que ele queria e alcançaria decerto, visto
que ao dinheiro nada é impossível, era um título em duas vidas, um título que
ele pudesse transmitir à sua filha e portanto ao seu genro.
O visconde
ouviu e compreendeu.
Desde esse
dia as duas famílias acariciaram como uma esperança lisonjeira, o projeto de
enlace entre Clotilde de Magalhães, a filha única desse conselheiro milionário,
e Gastão da Silveira, o elegante filho do visconde das Lagoas.
Clotilde
tinha vinte e dois anos. Uma esplendida fisionomia peninsular iluminada por um
par de olhos negros, dos que ateariam incêndios há trinta anos no seio
apaixonado dos tétricos trovadores.
Era
inteligente o bastante para ocultar o soberano orgulho, que lhe esterilizava o
coração.
Tudo quanto
a educação das salas tem de mais requintado e precioso possuía-o Clotilde em
larga escala.
Manejava
facilmente duas ou três línguas, cantava com uma voz de contralto quente e
apaixonada as arias mais enervantes dos mestres italianos, dançava com uma
perfeição de atitudes que a tornavam celebre nos salões, vestia-se bem, sem
excentricidades e sem plebeísmos de mau gosto.
As filhas do
visconde das Lagoas invejavam-na ardentemente conhecendo-lhe a superioridade
dominadora, mas fingiam adora-la, porque da frequência de Clotilde em casa
delas, resultava grande animação para as suas soirées.
Clotilde que
era caridosa em certas horas, e que ostentava o capricho da proteção, tinha na
sua casa, como companheira,, pupila ou o que quer que fosse, uma parenta pobre
da sua falecida mãe.
Muitas vezes
a levava consigo ás reuniões mais » íntimas talvez por um refinado instinto de
garridice.
Tão
admirável e triunfante era a beleza de Clotilde, como doce, modesta, sofredora,
era a aparência de Angelina. Deste contraste que a todos os olhos se impunha,
resultavam sempre grandes alegrias de amor próprio para a elegante herdeira.
Angelina
tinha pois uma dupla missão, inteiramente passiva. Fazer sobressair a bondade
de Clotilde e à sua formosura.
****
Quando Clotilde
conheceu mais de perto aquele que o seu pai lhe prometera muito brevemente para
esposo, compreendeu logo, com a rara perspicácia que a distinguia, que o que na
sua pessoa havia de mais brilhante e admirado pouca ou nenhuma influencia
exerceria no coração dele.
Uma noite em
que a filha do conselheiro Magalhães estivera mais rodeada de admirações lorpas
e de cultos banais, em que, se cheira a esse grosseiro incenso das salas, ela
exibira todas as suas raras e distintas prendas de mulher bonita e de mulher
garrida, ousou sorrindo perguntar a Gastão, que mais de uma vez a tinha olhado
com mal disfarçada ironia:
— Não me
dirá qual é o seu ideal de mulher? Vejo-o sempre tão reservadamente cortês com
todas as senhoras, que ainda não percebi o que é preciso ser para lhe agradar.
— Meu Deus!
não há nada mais fácil — respondeu o rapaz fitando o olhar límpido e honesto no
altivo olhar de Clotilde. — É preciso ser uma mulher em quem ninguém repare.
— Julguei
que a mediocridade o não cativava a esse ponto — disse Clotilde mordendo os
beiços de cólera.
— Mas é que
não é ser medíocre ser modesta. E que a mulher que gosta de brilhar, não sabe o
que é sacrifício e abnegação, é que para mim todos os encantos que se apreciam
nas salas, não valem um bom e cândido coração que saiba amar-me e viver só para
mim.
Não se pode
dizer que Clotilde adorava Gastão, mas, enfim, a verdade é que gostava muito
dele. Achava-o superior, correto, distinto, de uma aristocracia inata que a
encantava.
Achava-o
digno de si.
Não lhe
sacrificaria nenhum dos seus triunfos, nenhuma das suas vaidades, nenhum dos
seus gozos, mas sacrificava-lhe com certeza todos os seus adoradores.
Ser mulher
dele era para ela um sonho radioso.
Discordavam,
porém, em tudo, nos gostos, nas ideias, nos sentimentos, na maneira de
entenderem a vida.
Clotilde na
arte preferia tudo que é brilhante e aparatoso; Gastão amava tudo quanto é
grande e dedicado. Clotilde só vivia no meio das opulências sociais; Gastão
tinha a ambição das alegrias íntimas e ignoradas.
Ela gostava
do incenso de todas as lisonjas por mais grosseiramente capitoso que fosse; ela
mais de uma vez dissera que achava ignóbil da parte de uma mulher consentir que
um sujeito de casaca, engravatado e ridículo, tivesse a audácia de lhe declarar
perto do ouvido que a estava achando formosa e cobiçável.
— Só digo
finezas ás mulheres a quem desprezo. São as únicas que nos dão direito de lhes
dizermos o que nos passa pela cabeça.
Um homem que
diz coisas ternas a uma senhora, fazendo boquinhas e frases românticas, insulta-a
de um modo indigno.
Como é que
as mulheres são tão absurdamente educadas que não percebem isto?
Um dia
perguntaram a Gastão à frente de Clotilde se gostava da música italiana.
— Conforme!
Gosto do bom que há em todas as escolas. Nesse ponto sou eclético e creio que
todos o deviam ser. Agora a música italiana das salas acho-
a ridícula e
pouco decente. Uma senhora a cantar arias em que se falia de amor, de paixão,
de exta ris inolvidáveis, etc., que diz io t’amo revirando os olhos ao
primeiro sujeito que passa, perdeu o direito a que um homem sério a escolha
para sua mulher.
Desde esse
dia Clotilde deixou de cantar.
Gastão não
percebeu o sacrifício, ou pelo menos não mostrou que o percebera.
Era um espírito
lógico e reto, e tinha o defeito de se guiar na vida pelas opiniões que
professava.
****
Dançavam
todos em casa do visconde das Lagoas, e junto de uma pequena mesa de trabalho,
no gabinete das filhas do visconde, uma figura loura e delicadíssima, inclinada
sobre um álbum de retratos, parecia ignorada e esquecida de toda aquela
multidão que se divertia.
— Porque não
dança, senhora D. Angelina? perguntou jovialmente a voz de Gastão. Se eu lhe
pedir que seja meu par, recasa-me?
— Recuso,
respondeu ela docemente, e uma cor viva tingiu-lhe as faces.
Recuso por
muitas razões. Em primeiro lugar é um pouco estranho dançar quando se tem a
posição que eu tenho, porque, enfim, eu não sou mais que uma dame de companhia,
uma aia, uma governante ou como queiram chamar-me, de casa dos meus caridosos
parentes. — Ao dizer isto, talvez involuntariamente, na voz de Angelina havia
umas inflexões de amargura resignada.
— Depois —
continuou — não danço porque me faria mal. Dói-me muito o peito!
Gastão
sentiu dentro da alma como que a brotar subitamente, um sentimento que lhe era
desconhecido e em que havia dó, tristeza, admiração, um enternecimento sem nome
que lhe embargava a voz.
Angelina era
tão delgada, tão frágil, de uma fisionomia tão delicadamente melancólica!
Para tudo a
fizera o destino, menos para combater e para lutar. A desgraça despedaçara-a
sem que ela tentasse resistir-lhe sequer.
Como seria
doce protege-la, guiai-a na vida, abriga-la no peito contra os embates hostis
da adversidade!
Era assim
que Gastão tinha sonhado uma adorável e submissa mulherzinha, com aquele olhar
largo e límpido que lembrava um lago da Suíça, com aqueles louros cabelos
ondados emoldurando uma testa cetinosa e cor de marfim.
Trocaram
mais duas ou três palavras, e depois separaram-se de novo. Angelina talvez
ficasse a pensar, que nunca mais teria ocasião de ver postos nos seus uns olhos
onde se lesse tão doce e tão honesta simpatia.-
****
O visconde
das Lagoas convidou a família do conselheiro para estar um mês na sua quinta do
Alto Minho.
Angelina
acompanhou naturalmente a sua gentil parenta e protetora.
No campo
estabelecem se facilmente intimidades que na cidade parecem inconvenientes e
impossíveis.
Gastão entre
aquelas duas belas criaturas, de uma beleza tão diversa como diversos eram os
caracteres, pude apreciar e aquilatar a alma e o coração de ambas.
Durante um
mês Clotilde foi a rainha aclamada e triunfante do solar provinciano povoado de
numerosos hospedes que alternadamente chegavam, ou partiam.
Era ela quem
organizava as festas, quem dirigia as partidas, quem inventava as distrações e
os jogos. Ativa, inteligente, soberanamente caprichosa, ser
dominada por
ela constituía uma sedução. Enquanto assim era o centro da animação festiva que
se notava na opulenta casa do visconde, Clotilde empregava para cativar Gastão
todos os seus artifícios de sereia.
Envolvia-o
no magnetismo irresistível dos seus sorrisos misteriosos, do seu espírito
acerado e mordaz, da sua graça majestosa e altiva.
Punha aos
pés dele todas as homenagens de que era objeto.
As vezes à
noite, sentava-se à mesa com o desleixo crioulo que sabia fingir, e punha-se a
desenhar, com uma verve cômica incomparável, as caricaturas dos galãs
suspirosos que a cercavam. Depois, cônscia de que a sua mão valia um milhão, e
sem atender aos desesperos que excitava, oferecia a Gastão os desenhos com um
gesto irônico e submisso de que só ela possuía o segredo encantador.
Os serões
animava-os com a sua presença, com a sua voz, com a sua mestria musical, com os
seus conhecimentos variados adquiridos nas viagens e nas leituras.
Angelina
voluntariamente oculta no canto mais escuro da sala, assistia a todo este jogo
brilhantíssimo com a silenciosa resignação de quem se sente para sempre expulsa
de todos os prazeres da vida.
Nem sequer
percebia que era para o lugar em que ela trabalhava, que os; olhos de Gastão se
dirigiam constantemente, e que ele tão desdenhoso e tão irônico
para com as
outras, lhe falava sempre timidamente, respeitosamente, como os devotos faliam
com o seu Deus, como as mães faliam com os seus filhos doentes.
Houve um dia
em que uma resposta quase insolente de Clotilde a fez padecer muito.
Arrasaram-se-lhe
os olhos de lagrimas, levantou-se e foi encostar-se à varanda toda enredada de
trepadeiras que dava sobre o jardim.
Não percebeu
que a crueldade de Clotilde significava um despeito, um ciúme, talvez uma
agonia profunda de amor próprio! Pensou somente que a herdeira rica e poderosa
insultava diante da sua família, diante do seu noivo, a órfã desamparada, e
chamou baixinho pela sua mãe, pedindo-lhe que a levasse consigo para o céu.
Então uma
voz grave, sonora e viril, a voz de um homem de coração e de coragem, murmurou
perto dela:
— Quer ser
minha mulher, Angelina? Há muitos dias que tenho vontade de fazer-lhe esta
pergunta e não me atrevia!
É que se me
recusar, juro-lhe que me dá um desgosto muito grande! Não faz ideia! Parece-me
que a conheço desde que nasci, que nunca vi outra mulher, que nunca achei
possível ter outra esposa... Talvez não creia... mas olhe... hei de faze-la
muito feliz... hei de ama-la com uma devoção tão profunda...
Angelina não
o deixou concluir. Tapou-lhe a boca com uma das suas mãos diáfanas, e pálida, a
tremer, deixou-lhe cair a cabeça sobre o peito a soluçar.
****
A família de
Gastão quando o rapaz lhe participou a resolução definitiva que adotara, repeliu-o
do seu grêmio ilustre com o mais indignado espanto.
Aquele
mesquinho enlace que vinha destruir tantas esperanças pomposas, era para todos
uma vergonha.
O visconde,
as duas manas, o irmão mais velho, o conselheiro Magalhães, tudo se revoltara
contra o que chamavam o romantismo de Gastão.
Só uma
pessoa o aceitou sem cólera e sem protestos.
Foi
Clotilde.
Quis ela
própria conduzir à igreja a sua juvenil protegida, e até à última hora teve
para com ela e para com o homem a quem um dia no íntimo do coração chamara — o
seu noivo — uma atitude irrepreensível de serena dignidade.
Gastão e
Angelina vivem numa deliciosa casinha em Buenos-Aires, onde há dias os visitei.
Ele alcançou
uma excelente colocação numa casa bancaria; ela tem o singular segredo de ser econômica
com elegância e laboriosa com gentil dignidade.
São ambos
felizes como dois leais corações que se estremecera e se entendem.
No seu
gabinete confortável e artisticamente arranjado pelas mãos de Angelina, quantas
vezes à noite no tranquilo recolhimento do serão comum, os dois noivos não
lamentam a sorte dos seus parentes milionários!
Clotilde não
casou ainda nem casará talvez.
Aparece em
todas as festas, em todos os bailes, em todos os teatros, sempre com o seu
eterno sorriso mordaz nos lábios empalidecidos.
Há porém
quem julgue ler na sua bela fisionomia altiva, uns toques de intraduzível
sofrimento.
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Nota:Maria Amália Vaz de Carvalho: "Contos e Fantasias" (1880)
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