DEZOITO ANOS
A tia Clara, essa adorável
velhinha que fez há dias cento e quatro anos, teve também os seus dezoito — e
por sinal encantadores de frescura e graça.
Mal podemos crer isto, nós que a
vemos hoje tão serena, tão identificada com a nossa vida, tão igual a nós pela
lucidez do espírito, sempre de uma inteligência e de um interesse perfeitamente
juvenil.
Eu adoro essa querida velhinha
que não se envolveu nas recordações e remordimentos egoístas como numa antipática
couraça eriçada de espinhos.
Não! Ela recorda todo o passado,
mas suavemente, sem comparações desfavoráveis para nós, como os velhos
impertinentes costumam!... Relembra, levemente melancólica, os tempos longínquos
da mocidade, tão distante aos nossos olhos, tão vivos ainda na sua memória.
A sua alma é um piedoso Campo
Santo habitado pela saudade de todos os seus amigos, de toda a sua família mais
próxima, que a um e um a foram deixando na velha casa senhorial, já em parte
abandonada de grande que é!... mas o seu coração santíssimo vai florindo sempre
jovem, amando com igual afeto todos os que de novo chegam á família...
Ah! Eu não me esqueço, minha boa
amiga, da saudade reconhecida que me ficou na alma quando, a ultima vez que a
visitei, a vi afastar-se lentamente na meia obscuridade do longo corredor.
Seguia-a um ligeiro esvoaçar de recordações, toadas simples vindas de muito
longe — os franceses, guerras, mortes, nascimentos, toda a sua vida singela
passada na hereditária quinta perdida entre serras, onde os ecos do mundo
devem ter chegado sempre esbatidos em meias tintas pálidas.
Tenho ainda no meu ouvido o som inolvidável
da sua vozinha quebrada dizendo serena e sorridente: «assisti ás ultimas
endoenças no convento de Maceira Dão!...» E tudo morto nesse passado cheio de
poesia, visto assim de longe, evocado pelo seu espírito bondoso!...
Mas a desvairada fuga aos franceses
é que eu, mais do que tudo, gosto de lhe ouvir contar.
***
— Era uma tarde de fins de setembro,
luminosa, quente ainda. O céu, todo em fogo no poente, flamejava num incêndio
colossal—toda a alma da Pátria agonizante levantando para Deus a ultima
esperança, no ultimo clarão de tiros ao longe.
«Os franceses, os franceses!...»
Esse grito estridente como uivos de animais apavorados corria de boca em boca,
era um sinal de fuga, de miséria, de espanto geral.
O povo ignorante e bom voltava
para o céu os punhos cerrados numa desesperada ameaça. Abandonado por todos na
sua pátria invadida, agarrava-se á terra como á sua única defesa, o seu único amor,
a única razão de existir.
As mães uivavam de dor pelos
caminhos, torciam os braços convulsos vendo do alto dos montes os filhos que
partiam para a guerra. Outras estarreciam-se num silencio medroso...
Toda a alma portuguesa fremia num
anseio de liberdade.
Os reis fugiam despresivelmente
covardes; os ricos ainda por vezes abriam os seus palácios em festa ao passeio triunfal
dos invasores; só no povo era sem tréguas o ódio. Ele saberia resistir ou
morrer! Miserável povo que sacudiu num ímpeto de revolta olímpica o jugo dos
invasores e acurvou a cabeça humilde ás exigências dos aliados! Desgraçada
gente que não teve a hombridade de receber na ponta das suas baionetas ensangüentadas
pelos inimigos os reis que o tinham abandonado nas horas más! Ingênuo povo que
todos vão acordar em sobressalto quando o perigo bate á porta e de que todos se
riem depois, quando não é já precisa a força do seu braço nem a fúria da sua
coragem!...
Também a Fornos de Maceira Dão, a
esse cantinho da Beira que parecia dever estar esquecido, guardado pelos matagais
e serranias bravas, chegou o desvairado clamor, o tremendo grito:
«Os franceses, os franceses!...»
a pôr em fuga toda a família da Clarinha—era assim chamada ha oitenta e seis anos
a minha boa tia Clara.
Ela era a mais nova das irmãs;
fina, graciosa, de uma palidez de reclusa, uma grande curiosidade perfulgindo
nos seus olhos castanhos.
Ao saber a noticia o coração
pulsou-lhe comovido numa inconfessada alegria... Qual de nós aos dezoito anos
não compreenderá essa alegria? Não ter saído nunca do seu vetusto solar — salas
e salas, quartos incontáveis, corredores tão compridos que é impossível
conhecer quem vem ao fundo!... Os santos da capela doirados e ridentes seriam
os seus mais queridos companheiros, aqueles que melhor compreenderiam a sua
alma inquieta, sedenta de novo!... Se ela não havia de estar alegre, no fundo,
bem no fundo do seu coração, por essa fuga decidida que a ia tirar por algum tempo
da monótona vida de todos os dias?!...
Era triste a existência da
Clarinha, passada na miserável aldeia de casebres colmados, que rodeiam a
quinta dos fidalgos como outrora as choupanas dos servos se encostavam medrosas
ás fortificações dos castelos feudais. As irmãs, casadas; os irmãos, passando a
vida dos fidalgos daquele tempo, caçavam, namoravam as primas de vinte léguas
em redor, estafavam cavalos e corriam as feiras.
De quando em quando, pelas festas
do ano, cortavam o fastidioso correr da vida cavalgadas que chegavam ao pátio,
primos e primas que se apeavam contentes abraçando a Clarinha, que alvoroçada
os vinha esperar á porta. Então, dançava-se, passeava-se e, mais do que tudo,
comiam-se jantares fenomenais e ceias luculianas.
Mal os hospedes saiam, a vida
regulava-se tediosamente como de costume e apesar da família ser muita,
passavam uns pelos outros como sombras na enormidade da casa. Quantas vezes,
pelas agonizantes tardes de outono, não atravessou ela a quinta e subindo o
outeiro em frente se foi sentar nos degraus do Santo Cristo, fantasiando o
mundo, sonhando com alguma coisa nova que a fizesse sofrer e viver?!...
Já então, como agora, como será daqui
a muitos anos, a imagem do Cristo era ingenuamente feita de uma fealdade que
espanta, escondendo-se no seu nicho branco, erguendo na tristeza da paisagem os
braços misericordiosos de Deus moribundo perdoando sempre á humanidade que
chora.
Como agora também, a Clarinha
ouvia pela quebrada das serras os carros chiando carregados com as dornas para
os lagares... Os bois olhavam-na pensativos, sacudindo as cabeças filosoficamente,
fazendo retinir as campainhas das coleiras de couro que lhes cingem os cachaços
robustos... Primitiva e sempre igual a vida passada naquele recanto de natureza
agreste.
Que admira pois que a Clarinha
ficasse intimamente alegre quando o medo aos franceses a atirou para longe — como
um passarito engaiolado a quem de súbito abrissem as portas do cárcere e visse
diante de si o luminoso espaço onde á vontade poderia bater as azas!?...
«Os franceses, os franceses!...»
Era alguma coisa de vivo, e espirituoso e brilhante, que ela não conhecia, mas
que a não assustava.
Nessa tarde luminosa de fins de
setembro os cavalos esperavam no pátio desde muito e só a Clarinha, impaciente,
estava montada. Toda a família partia: quarenta pessoas, entre velhos,
mulheres, crianças e criados — que eram, patriarcalmente, uma continuação menor
da família. Os homens válidos, os rapazes, esses lá andavam pela guerra, e
bastante invejados pela Clarinha!.. Os velhos despediam-se chorosos.
Arrancavam-se dali como quem tirasse de um peito ainda vivo um coração
sangrento. Fugia-lhes a vida em gemidos. Os cedros da quinta tinham para eles a
maguada significação dos ciprestes da igreja, onde toda a sua família, desde séculos,
ia dormir descansadamente; mais felizes eram esses...
Pela madrugada chegaram a Vizeu.
Deserta a pequena cidade, de sombrias e tortuosas ruas. Os cavalos batiam
rijamente nas calçadas, pondo em sobressalto os pacíficos habitantes. Abriam-se
janelas a medo e caras enfiadas de susto espreitavam inquirindo: seriam os franceses?!...—Não,
não eram ainda, mas gente que fugia deles!...—Então sempre era certo; vinham,
vinham!...—E as janelas fechavam-se rapidamente como se quisessem espancar assim
a visão dos franceses, monstros de pesadelo!
Caminhavam sempre. Em São Pedro
do Sul, a mais risonha terra da Beira, um jardim que a natureza cultiva
amoravelmente entre as rudes serranias beirãs, o mesmo pânico estampado em
todos os rostos que entreviam—que raros eram!.. Um deserto que se fazia por
toda a parte ao grito terrificante: «Os franceses, os franceses!...»
E esse grito de pavor
perseguia-os sempre, como dobre a finados para os velhos e medo para as
criancitas — que imaginavam o papão formidável e negro levando os meninos nas
garras aduncas!.. Só as mulheres, com o espírito mais vivo, mais aventuroso,
começavam a achar deliciosa aquela correria louca diante do desconhecido. Para
a Clarinha era sempre a mesma ideia: — eles seriam alguma coisa de vivo e
espirituoso e brilhante, que ela não conhecia, mas que a não assustava!...
A noite caía muito fria, desse
frio seco e cortante da serra. As estrelas brilhavam mais do que nunca, com um
nervoso piscar de olhos bonitos... Ela olhava-as, sonhando acordada! — Via um
cavaleiro vestido de ouro que levava pela estrada da via láctea todo um povo
conquistador e belo... E uma águia enorme, com azas feitas de soes, cobria o
mundo numa efabulação de luz!...
Ali tiveram que parar algumas
horas. O pequenino irmão da Clarinha, o mais novo da família, a criança que ela
amava já com entranhas maternais, ficou-lhe sem vida nos braços, morto quase
repentinamente pelo frio e incomodidades da jornada. E esse pequenino corpo que
em circunstancias normais ela teria chorado desesperada, cobrindo-o de beijos,
saiu-lhe quase indiferentemente dos braços fatigados. Era a própria mãe que lhe
dizia que não chorassem; era preciso fugir, fugir, fugir sempre: «Os franceses,
os franceses!...» Era a própria mãe, tão extremosa, tão cheia de cuidados por
todos, quem dizia aquilo!... Pasmava.
Bem certo é que as grandes dores
se fazem pequenas quando não ha tempo para as sentir. O medo é um grande
consolador.
Ao saírem de São Pedro do Sul,
entravam os franceses pelo outro lado. Algum destacamento perdido do grosso do
exercito, ou talvez esfomeados procurando viveres... Em todo o caso levando o
pânico até onde chegava o ruído das suas vozes de comando.
E esse dia passado sem comer,
porque apenas tinham levado um pão para cada um, não contando com o deserto em
que tudo se encontrava, enervava-os, fazia-lhes alucinações, mal se podiam
sustentar sobre os cavalos.
Chegaram á Trapa. Oh, a horrorosa
terra!—Casitas negras e baixas, feitas de pedras soltas cobertas de colmo e
telha vã, sem janelas nem frestas, uma única porta para dar luz e para a
entrada. Mais pareciam tocas de animais selvagens do que habitações de gente, num
país civilizado.
O avô da Clarinha, apesar de
velho a quase não poder mexer-se, viera deitado num carro de bois até ali; mas
então desanimou:—que o deixassem, que o deixassem!.. Morria mais descansado. Os
franceses não o descobririam naquela terra inculta que se debruça no abismo das
montanhas e nem de longe se distingue da negrura delas; que fugissem, que
fugissem depressa!... — E no egoísmo dos grandes perigos ninguém se lembrou de
contradizer o velho. Ele era um estorvo na viagem; ficarem todos seria talvez a
morte. Só a mãe da Clarinha ficou para acompanhar o sogro, que numa incoercível
lágrima de saudade deliu todas as mágoas da sua ultima hora. Porventura ele
revia nesse momento único toda a sua vida passada: — a casa onde nascera e
contara morrer, as arvores muito amadas... Festas de família, perfis de
parentes mortos havia muito, casamentos, caçadas, pressentimentos de desgraça
para os filhos e netos, que andavam na guerra... — Tudo isso se devia
confundir, amalgamar, no aturvado ânimo do pobre moribundo.
Os outros continuavam a jornada
passando por terreolas abandonadas, de uma desolação infinita. Essa região
montanhosa, largamente bosquejada, duma austeridade de contornos que limita a fantasia,
tem sempre uma estranha beleza selvática, que intimida os mais alegres. Então,
precipitadamente abandonada pelos seus bisonhos habitadores, devastada pelos
fugitivos que passavam em caravanas, em famílias, um a um, como lobos
perseguidos, tinha um aspecto quase trágico, macabro como um desenho de Doré,
mas para eles tudo era bom, tudo divertia e alegrava na excitação da fuga.
Aqui, tinham todos por cama uma casa térrea cheia de palha e de manhã acordavam
cobertos com um frio e branco lençol de geada... Alem, comiam feijões cosidos
sem nenhum tempero e pão de cevada negro e pegajoso como o pez... E tudo suportavam
alegremente no egoísmo brutal e profundamente humano — de viver e ter saúde.
Tias e primas da Clarinha, velhas
senhoras habituadas á doce paz do chazinho conventual, suspiravam,
lamentavam-se muito por o não terem tomado havia uns poucos de dias! Afirmavam—que
antes queriam ficar sem pão. Deu-se volta aos alforjes e numa algazarra cheia de
alegria cada um apareceu triunfante com sua coisa, que na precipitação da
ultima hora ali tinha metido sem saber para quê, sem mais se lembrar de tal.
Havia chá, açúcar e água, até xícaras apareceram; mas onde a chaleira?.. Todos
os olhos se dirigiram para a panela de barro negro onde se tinha cosido o
caldo... Era a única coisa que havia e essa mesmo serviu; sem que ninguém se
lembrasse de aventar repugnâncias... E por essa noite frigidíssima de fins de
setembro, numa casita negra esburacada, perdida entre serras e matas, elas
tomaram o seu chazinho quente, que teve um sabor particular — nada bom a dizer a
verdade — mas que lhes lembrou toda a vida.
Pela serra da Gralheira fora era
um nunca acabar de risos e gritos alegres, quando um caía do cavalo, quando
outro escorregava, e principalmente com as historias do guia, o padre Manuel da
Trapa. Era um bom homem rústico, folgazão e falador como poucos, um montanhês
ás direitas, português velho. Desprezava os franceses; não chegava mesmo a
acreditar neles. Por sua vontade tinham ficado todos na residência e os tais franceses
que aparecessem!...
Súbito, interrompendo uma
historia que ele ia contando aos da frente, um grito saiu dilacerante de uma boca
contorcida. Todos pararam ansiados, voltando a cabeça para traz. Aquele grito
tinha vindo tão do fundo da alma, revelava uma tal acuidade de sofrer, que a
todos fez pulsar o coração pensando em que alguém tivesse rebolado pela
montanha abaixo despedaçando as carnes pelos fraguedos! Não era isso, mas um
sofrimento maior ainda, que gritava assim desesperado:— uma tia da Clarinha saltara
do cavalo e, pálida de morte, estorcia-se no mais pavoroso inferno de dores!
Estava grávida no ultimo período e todas aquelas comoções e sustos tinham
apressado a crise. Que fazer? Olhavam-se todos aterrorizados, indecisos... Impossível
parar naquele descampado, seria matá-la... E os franceses!?...
«Com trezentos diabos, isto não
pode ser assim!»—gritava furioso o padre Manuel, sem nenhuma atenção nem sombra
de delicadeza pelo sofrimento crudelíssimo da pobre mulher. Com uma voz que ele
se esforçava por tornar ainda mais rude do que naturalmente era —para disfarçar
o diabo de um nó que se lhe pusera na garganta, explicava ele depois — mandou que
lhe dessem a senhora que ele a levaria diante de si. A boa égua podia com tudo
e depois—que diabo, já estavam perto da estalagem das Maçarocas, no caminho do
Porto, bem conhecida por aquelas redondezas.
E lá continuaram a marcha, agora
tristemente acompanhada pelos gemidos da infeliz criatura, que sofria cada vez
mais.
Chegaram emfim a Carregal de
Monhoce, uma insignificante aldeia quase desconhecida de todo. Em frente era o
Bussaco; sentiam-se tiros ao longe; o que iria por lá?...
«Os franceses, os franceses!...»
E a Clarinha, pondo os olhos na linha arroxeada e muito nítida da montanha
fronteira, pensava neles... Nunca os vira mas sonhara sempre com alguma coisa
de extraordinário e cintilante, que a não assustava no fim de contas!...
Terminada a guerra, tornaram
pacificamente para a grande casa, que ela encontrou ainda mais sombriamente solitária.
Muitos faltaram á chamada, no primeiro repasto de expatriados que reviam o seu
lar bem amado!...
E a Clarinha lá continuou a sua
vida, a mesma, sempre cortada pelos mesmos incidentes de visitas e festas.
O Santo Cristo era, como hoje é também
para nós, o seu passeio favorito nas tardes melancólicas de outono — estação de
tristezas e desalentos, que morre lentamente em cada folha que se desprende das
arvores, lagrimas silenciosas da natureza, que em breve será de luto, quando o
inverno vier implacável... Em frente, a verde cortina dos pinheiros mansos
esconde o antigo convento de Maceira Dão. Triste, bem triste, é hoje esse
convento em ruínas onde a erva cresce em liberdade, atravessado por todos os
ventos, por todas as chuvas; é quase um milagre estar ainda em pé! Nesses
tempos, que tão remotos nos parecem já, como ele devia ser bonito! E a tia Clara,
sentada nos degraus da capelinha, ouviria com um doloroso confranger de coração
a austeridade do bronze chamando ao coro os bons frades cistercienses.
Aquele som lacrimoso devia
repercutir-se de serra em serra como um soluçar de penitencia. Como ia longe, a
tarde luminosa de fins de setembro, quando o grito «Os franceses, os franceses!...»
afugentou e confundiu tudo!...
Mais tarde houve ainda um rasgão
de luz na sua vida monótona: um novo clamor de guerra punha as almas em sobressalto.
O grito de liberdade foi um rastilho de fogo que incendiou todas as cabeças. Os
frades fugiram; os irmãos, os homens da família, foram todos combater por D.
Miguel. Quando ele foi expulso, quando a guerra acabou tão frouxamente que a esperança
continuou por largos anos no ânimo dos legitimistas, os irmãos da tia Clara
recolheram á velha casa de província onde por muito tempo ainda se reuniram
todos os fieis partidários do rei absoluto que viviam nas Beiras e
Traz-os-montes.
Depois, tudo foi passando...
A morte e a vida vieram de mãos
dadas terminar muita esperança, muita alegria, como enxugar muitas lagrimas com
novas felicidades!... Na memória dulcíssima da nossa adorável velhinha é que
tudo vive intacto. Principalmente os longínquos fatos da sua mocidade, e, entre
eles, essa aventurosa fuga aos franceses — o que eu mais gosto de lhe ouvir
contar.
Recorda a com tantas
particularidades, com tal clareza de incidentes, que me enche de admiração.
Coisas passadas ha menos tempo não as recorda ela tão nitidamente! Lembra o
sinal vincado com a unha na passagem mais interessante de um romance e que de
folha para folha se vai conhecendo menos até desaparecer de todo.
Um dia perguntei-lhe também: «Tia
Clara, que ha de verdade no «Retrato de Ricardina», naquele romance de Camilo
passado aqui tão perto?!...»
«Alguma coisa ha!... Bem tristes
tempos eram esses!...» E a sua venerável cabeça branca inclinou-se umas poucas
de vezes numa recordação que lamentava ainda — lagrimas vistas correr ha muitos anos
e nunca esquecidas!..
Agosto de 96
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Infelizes: Histórias Vividas” (1898)
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