sábado, 7 de setembro de 2013

Júlio Dinis: "O Espólio do Senhor Cipriano"

O ESPÓLIO DO SENHOR CIPRIANO

Desde que uma crença consegue radicar-se verdadeiramente na imaginação do  povo, difícil é ao poder dos séculos ou à evidência dos fatos desarraigá-la.  Parece que à medida que um por um se vão quebrando os laços que  a  prendiam à razão e diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a  fazia ainda aceite, mais atrativos ela ostenta à fantasia popular, sempre  afeiçoada ao maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras  ilusões, como as crianças a perseguirem as borboletas através das campinas.

Quando o povo vê fugir, por inverossímil, do campo da discussão um fato  controvertido, é quanto mais se apressa a recebê-lo como dogma, a adotá-lo  com a cegueira da fé; é então que o transmite aos filhos, à maneira de um  novo artigo do seu credo religioso, e olha para o que se atreve a levantar a  mão iconoclasta contra esses vagos objetos do seu culto ideal, como para um  ímpio, digno da fulminação celeste.

De historiadores e biógrafos se ri: não há provas nem documentos que  valham para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imaginou; mais  vezes aqueles cedem até, sacrificando a exatidão à poesia, e admitindo nos  seus escritos a colaboração da pena popular. Por isso nas crônicas dos tempos  passados é através das lendas que se pode procurar a história. Adornada com  as galas e louçainhas do maravilhoso, é que o povo se apraz de acolher a  tradição. Despida às mãos do historiador austero, parece afetar-lhe tão  escandalosamente à vista, como à dos mais castos monges da Tebaida as  formas nuas de tentadoras aparições.  

Igualmente, ao lado da biografia exata de um indivíduo, ainda dos mais  obscuros, o povo refere de ordinário outra, menos documentada talvez,  porém sempre mais curiosa.

Com olhar perscrutador penetra o seio das famílias a descobrir aí fatos  recônditos, pequenos incidentes da vida doméstica, onde, mais fielmente do  que nos da vida pública, se refletem os caracteres e as índoles.

Não julgueis que lhe basta a enumeração das batalhas, dos feitos brilhantes,  dos serviços humanitários, dos atos civis do herói do dia; quer vê-lo em  família, depois de despir a farda, a toga ou os arminhos, para envergar o  modesto robe-de-chambre; aspira a devassar-lhe no modo de viver íntimo e a  estudar-lhe os hábitos; obriga o personagem da história a representar diante de   si o papel de filho, de irmão, de amante, de esposo e de pai no drama da vida,  e é então que mais interesse lhe excita, é então que aplaude; e quando lhe  falecem as informações, inventa, recorre ao inesgotável tesouro de  imaginação, senão a alguma coisa de mais seguro. E nisto é o povo  verdadeiramente admirável! Há o que quer que é sobrenatural na maneira  porque se lhe revelam às vezes segredos, sabidos apenas por duas pessoas,  interessadas ambas em conservá-los ignorados; não espera por provas,  satisfaz-se já com indícios; pronuncia-se, quando os mais prudentes hesitam,  e, devemos confessá-lo, se em certos casos esta antecipação o leva ao erro,  muitas vezes também, ou quase sempre, por caminhos misteriosos, o conduz  à verdade.

Os boatos! Aí temos um desses problemas que desafiam toda a ciência  humana. Donde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes, emanações  subtis que aspiramos todos, os crédulos e os espíritos fortes, os ignorantes e  os ilustrados, como todos contraímos a epidemia, cujo foco se desconhece?

Suscita-se às vezes sobre qualquer indivíduo uma opinião que se diz pública,  somente porque cada qual em particular se não atreve a reconhecê-la por sua;  os fatos conhecidos da vida desse homem parece desmentirem-na, todas as  aparências lhe são contrárias, é humanamente impossível encontrar algures os  fundamentos dessa crença, nascida não se sabe onde, propagada não se sabe  como; e contudo persiste. Por quê? Quem o pode dizer? É, a meu ver, um  fato da ordem de outros que observa o naturalista na história dos animais. E  um fenômeno de instinto.

Na aproximação do Inverno, as aves viajoras reúnem-se em bandos para  desertarem das paragens que parecia oferecerem-lhes ainda por algum tempo  os últimos calores de uma estação favorável. Que indício lhes revelou o  perigo? Quem lhes apontou o caminho de mais amenas regiões? O instinto:  respondem os filósofos; e a mesma resposta obtereis, se os interrogardes  sobre tantos outros maravilhosos atos que nos surpreendem, nos costumes  de certas famílias zoológicas.

Concedam pois também ao povo instintos, instintos que o fazem adivinhar  fatos ocultos, como a ave pressente o Inverno; instintos sobre os quais se  elevam juízos, que a razão prudente repele ao princípio, mas que tantas vezes  o futuro vem confirmar mais tarde.

O povo tem uma fisiologia especial, que ainda está por escrever; esse  concurso de individualidades tão heterogêneas dá uma resultante, cuja noção  não nos pode vir só do conhecimento isolado dos componentes.

Quem o fosse estudar por uma análise minuciosa, quem, por um quase processo anatômico, o decompusesse em elementos, para um a um os  examinar com escrupuloso cuidado, não o teria compreendido; não seria mais  feliz do que se procurasse resolver o problema da vida, dissecando um  cadáver, e aplicando o microscópio a cada fibra dos seus tecidos e órgãos.  Onde os homens se reúnem em povo, uma influência oculta se lhes associa:  como uma inteligência comum, daí, os enigmas da multidão.

A solução destes enigmas não a procurem portanto nos indivíduos, que neles  não reside; está na entidade coletiva; assim como o modo de reagir do sal  neutro não se encontra no ácido, nem na base, seus elementos únicos; é o  resultado da combinação.

Sirvam estas reflexões de prefácio ao caso modesto e obscuro que vamos  narrar e que as exemplifica.

Por uma das tais vozes interiores que entretém o povo dos mais recatados mistérios da vida de família, como se linguareiro duende lhos andasse   segredando ao ouvido, era que numa pequena cidade da província do Minho  havia muito se tomara opinião geral que Cipriano Martins, octogenário que  vivia miseravelmente na mais estreita e mal esclarecida rua do menos limpo e  povoado bairro daquela já de si não muito apetecível terra, não obstante tais  aparências pouco inculcadoras, possuía fabulosas riquezas, e era devorado pela  mais sórdida e inqualificável sovinice.

Nada podia modificar a opinião pública a este respeito; era absoluta, geral,  intransigente, incapaz de vacilar, estável no seu posto, que defendia  heroicamente contra o ataque combinado de todas as aparências; sublime de  pertinácia, admirável de resistência.

Nunca experimentara destas oscilações vulgares nas mais enraizadas crenças;  nunca passara por as alternativas de desfavor que até as ideias mais generosas  sofrem no correr das épocas, nunca; nem quando os aguçados cotovelos do  velho Cipriano rompiam escandalosamente através das mangas coçadas e  beneméritas do seu casacão de saragoça; nem quando aos olhos dos  comentadores se patenteavam as laceradas plantas... das botas colossais de que  o nosso Harpagão usava, ou as numerosas cicatrizes — vestígios honrosos de  longos anos de assinalados serviços — que lhe criavam as calças, onde cada   fábrica de tecidos tinha um espécime dos seus produtos, combinados todos  em artístico mosaico.

Cada vez que o inofensivo tema dos longos e pouco misericordiosos  comentários populares entrava numa loja a comprar os parcos materiais da  sua diária alimentação e estendia a mão para receber os trocos miúdos, aos  quais, como outro qualquer, tinha direitos incontestáveis e garantidos por lei,  havia nos circunstantes certo resfolegar de mofa que, ao voltar costas o velho,  degenerava em bem significativas e nada equívocas exclamações.

— Olhem o unhas-de-fome!

— Some-te, porco!

— É capaz de se enforcar por um vintém!

— Se lhe caísse um pataco ao inferno, atirava-se lá para apanhá-lo, o  tinhoso.

— Sovina!

— A pobre irmã morre à míngua por causa da mesquinhez deste  tesoureiro do diabo.

— Come duas sardinhas barrentas, e cozinha só de três em três dias para  não fazer  despesa em lenha! Podem crê-lo?

— Junta, junta, para outros to gastarem!

— O peso do teu cofre é que te há de afogar na caldeira de Pêro Botelho!

E assim por diante iam as apóstrofes, cada qual mais lisonjeira para a  reputação do modesto velho, cujos nervos felizmente se não supra-excitavam  com tais estímulos.

Tinha uns invejáveis nervos o Sr. Cipriano! a única das suas qualidades que lhe  podiam invejar as leitoras.

Não há vício menos popular do que o da avareza, pela razão de serem poucos  os que com ele lucram.

Assim Cipriano Martins era uma personagem antipática para os seus  compatriotas.

Mas quem lhe vira o dinheiro? quem lhe descobrira a riqueza?

Neste ponto, cada qual, interrogado à parte, encolhia os ombros, prolongava  os beiços, enrugava a cara, e respondia:

— Diz-se.

Santa palavra! salvatério das asserções arrojadas! como a consciência fica  tranquila quando, após uma afirmação cuja responsabilidade não quer, a boca  oficiosa te pronuncia! Descendente em linha reta daquele traditur dos  historiadores romanos, tu és, como teu ilustre avô, o melhor e mais universal excipiente em que se administram ao público fortes doses de boatos, que ele  engole de mais boamente do que quantas pílulas têm arredondado de  Hipócrates para cá os dedos dos boticários ou apregoado os Holloways de  todos os tempos.

Cipriano Martins tinha uma vez por ano as suas liberalidades, circunstância  que, longe de amenizar a rudeza dos juízos públicos ao seu respeito, antes a  exacerbava; pois de fato nunca mais alto subiam as murmurações como  quando em Sexta-Feira Santa saía das algibeiras do sóbrio velho para a dos  pobres da freguesia a quantia realmente importante de... cem réis em moedas  de cinco.

Então é que era ouvir o povo.

— Arrancou hoje cem fibras do coração.

— Tem para chorar cem dias, o velho.

— E para jejuar outros tantos.

— Se isto assim continua, aparece-nos de alguma vez o homem enforcado  em sábado de Aleluia.

— Melhor, escusa o povo de queimar outro Judas.

Quando se entra na via das concessões é necessário não dar passos acanhados,  sob pena de aumentar ainda mais a indisposição dos ânimos.

Consideração esta de longo alcance político, não obstante as aparências  modestas que a revestem aqui.

Cipriano Martins caiu doente e não chamou médico.

A câmara, que adotava o pensamento público sobre o estado financeiro do  seu patrício, recusava inscrevê-lo no quadro dos pobres, razão pela qual o não  visitou o cirurgião de partido.

A câmara andou assisada nisto e mostrou-se convencida da seguinte verdade,  saída da boca de um grande vulto político:

«Quando os governos não tomam espontaneamente a iniciativa no  movimento das massas, são arrastados por ela.»

Ora a câmara, que era governo, e não pouco respeitável, não tinha grande  vontade de ser arrastada; um dos vereadores, mais que todos, em cuja caixa de  rapé estava representado em gravura o fim trágico de Mazzepa, sentia de si  para si um estremeção de grande desconforto só de ouvir o termo. Por isso, a  câmara adotou a opinião das massas.

Esta subiu ao auge da indignação vendo Cipriano desprezar a medicina.

— Olhem o miserável a regatear às portas da morte o apreço da vida!

— O homem tem razão — respondia o barbeiro, a quem por consenso  unânime fora decretado o diploma de espirituoso da terra — o homem tem  razão, que bem conhece quão pouco ela lhe vale.

Este dito do ilustrado superintendente das mais respeitáveis barbas da  freguesia foi repetido em todos os círculos com geral aplauso; e a reputação de  aguçado satírico, de que há muito gozava o digno colega de Fígaro, aumentou,  se de aumento era suscetível ainda.

Cipriano Martins morreu e então é que a curiosidade pública se pôs alerta e,  para entreter o tempo de espera, prestou ouvidos às historietas da imaginação.  Esta fez o seu dever, nada deixando a desejar. Cipriano a cerrar os olhos, e o  público mais do que nunca a torná-lo à sua conta. Discutiu-se-lhe a herança,  avaliou-se-lhe a fortuna, apontaram-se os herdeiros, inventaram-se  testamentos, fantasiaram-se cláusulas absurdas, anteviram-se demandas,  devassaram-se esconderijos, arrombaram-se cofres, desenterraram-se riquezas  monstruosas; isto tudo durante vinte e quatro horas, no fim das quais nem  riquezas, nem esconderijos, nem cofres, nem herança, nem testamento, nem  cláusulas e por conseguinte nem herdeiros nem demandas vieram justificar a  geral expectativa.

Foi um desapontamento, que, a falar a verdade, custou a digerir; os melhores  estômagos imparam com ele e mais de uma vez foi regurgitado.

E toda aquela boa gente se punha então a ruminá-lo do seu vagar, sem que o  fizesse mais digerível.

A irmã do morto, que, de si para si, nunca nutrira grandes esperanças, porque nunca tivera fé nas riquezas do mano, apresentou-se nesse mesmo dia, chorando, em casa do administrador a pedir-lhe que providenciasse para se  fazer o enterro do velho Cipriano, pois nas gavetas só lhe encontrara uns  cobres, que não bastavam para as despesas exigidas pela solenidade.

O administrador viera cético de Coimbra, doença que apanhara nas margens  do Mondego e que pelos modos se lhe tornara crônica no concelho, que,  como diziam os jornais da época, tão dignamente administrava. Por isso olhou  para a pobre Maquelina — pois era esse o nome dela — através dos vidros da  luneta pendente, ao mesmo tempo que o mais incrédulo sorriso que o espelho  lhe aconselhara vinha encrespar-lhe espirituosamente o lábio superior. Ao  desbaste de crenças, que este magistrado sofrera tinha por felicidade  sobrevivido entre poucas a crença no espelho, um dos principais conselheiros  a quem devia a manutenção da dignidade administrativa.

— Com que então só uns cobritos, diz vossemecê, hem?

O bacharel fizera a descoberta de que este bem lhe dava às palavras certa  melodia de bom gosto e por isso o adotara.

— Eis tudo quanto possuo — respondeu Maquelina, mostrando em  patacos um cruzado, quando muito — Va Sa bem vê — continuou — meu  irmão tinha o seu pequeno negócio de socos, há muito em decadência; ele,  coitado, estava velho e não queria oficiais... e agora com a moléstia... por mais  economias que a gente fizesse, sempre eram despesas certas e nenhum  dinheiro a apurar.

O administrador teve aqui um movimento de lábios, expressivo de inveterada  descrença; e, como para mais depressa se livrar do contacto de um ser  humano, respondeu secamente:

— Faça, se quiser, um requerimento à câmara, porque seu irmão não  figura no quadro dos pobres.

E mais não disse.

Maquelina à palavra requerimento empalideceu. Fazer um requerimento é um  negócio importante, um passo difícil na vida destes seres inofensivos e alheios  a processos judiciais a cuja confraria pertencia a boa mulher.

Mas que remédio!

Saiu dali e procurou o presidente da câmara.

Era este um gordo merceeiro, cuja cabeça se podia dizer um vulcão de  medidas tendentes todas ao melhoramento público e progresso social.  Durante a sua feliz administração dos negócios municipais, contava atos  realmente surpreendentes de tino governativo. Seja-me lícito citar aqui alguns  fatos da vida pública deste não aproveitado estadista.

Os moradores de uma rua estreita, onde os beirais dos telhados carairos quase  se encontravam, a ponto de intercetarem a passagem da luz solar, queixavam-se da mania, desenvolvida em alguns vizinhos, de cultivarem frondosos  arbustos nas sacadas das habitações, com grande incômodo e prejuízo dos  queixosos, para os quais anoitecia mais depressa, graças à sombra  impenetrável que projetavam os folhudos ramos na já de si pouco esclarecida  rua. O sábio edil legislou à vista disso:

«Ficam proibidas as árvores em todos os lugares onde a sua vegetação seja  impossível.»

Eu penso que se Montesquieu tivesse notícia desta lei havia de apreciá-la, pela  admirável concordância com as da imutável natureza.

De outra vez, os contribuintes pacíficos que habitavam próximos aos  arrabaldes lamentaram-se, em termos legais, pelas incômodas harmonias com  que todas as manhãs os despertavam os carreteiros com a infernal chiadeira  dos impertinentes carros. Pensava aquela boa gente que a sinfonia de  ouverture da criação não perdia nada se lhe suprimissem da orquestra o pouco  harmonioso instrumento. Atendendo à justa reclamação dos povos, o  judicioso funcionário promulgou que: «Todos os carros que chiassem contra  as posturas municipais, pagassem dois mil réis de multa, sendo metade para o  denunciante, dado o caso de serem ouvidos.»

Já se vê que chiar contra as posturas era coisa séria; a câmara tinha  suscetibilidades e, ofendida, chegava a multar... os carros.

Quando esta medida se discutiu em plena vereação, um dos camaristas  levantou-se e deu mostras de querer falar.

— Peço a palavra, Sr. presidente.

— Tem a palavra o ilustre colega.

— Eu desejava que se fosse mais severo contra os perturbadores do sono  público e se desse maior alcance a esta medida policial, multando todo o carro  que chiar, quer seja ouvido, quer não.

O conselho, atendendo porém a que não convinha ser demasiado ríspido com  os povos e que os carros, não sendo ouvidos, pouco podiam incomodar,  adotou a cláusula do autor do projeto, rejeitando a emenda.  
E foi muito bem considerado.

Outra ocasião ainda, ouvindo o nosso homem discutirem dois bacharéis,  classe de sábios que sempre respeitou, sobre a conveniência das Rodas, e  vendo-os acordes na necessidade de importantes e radicais reformas nestes  estabelecimentos, veio para casa pensativo, e o cérebro, fecundado por aquela  ideia, lidou toda a noite em gestação mental, tendo no fim o seu bom sucesso,  porquanto pela manhã o magistrado municipal apresentou à aprovação dos  colegas a seguinte medida regulamentar:

«Toda a mãe que expuser seu filho sem um bilhete do município, fica  tacitamente encarregada da educação deste.»

A entender-se gramaticalmente a coisa, rude tarefa cabia à pobre da mãe,  superior ao esforço humano.

Esta medida, de um incomensurável alcance econômico, por um triz ia  passando.

Mas emperrou no advérbio tacitamente, que de fato era a maior palavra do  período e que o legislador empregara para o arredondar; ele tinha lá as suas  ideias a respeito de estilo, não obstante viver antes das últimas reformas dos  liceus, na qual pelos modos este assunto foi regulado de uma vez para sempre.  Se a lacônica definição de Buffon é verdadeira, se o estilo é o homem,  ninguém de fato como o nosso vereador podia fazer períodos mais rotundos.  Mas o corpo camarário viu na frase não sei que sentido maquiavélico, e  mostrou escrúpulos. Em vão o digno chefe de tão respeitável corporação,  com aquela abnegação quase estóica que o caracterizava, se prontificou a  substituir esse advérbio por outro qualquer, sem escolha, tais como:  restritamente, completamente, impreterivelmente, categoricamente, etc., etc.;  ele só queria salvar a beleza da forma; não houve de que, o conselho, entrando  uma vez no caminho da desconfiança, não tinha por costume recuar.

Esteve ainda assim, vai não vai, a resolver-se pela adoção do categoricamente,  agradado da eufonia da palavra; mas enfim nem esse admitiu, e a medida foi  rejeitada.

Era pois diante deste vasto talento governativo que Maquelina fora enviada a  implorar um diploma de pobre.

Louvado seja Deus! até isto se implora!

— Mas — observou o judicioso presidente ao ouvi-la — pobre é todo  aquele que não tem dinheiro.

Maquelina concordou. Pudera não.

A definição satisfazia a todos os preceitos mencionados no Genuense; curta,  clara, etc., etc.; e mais o nosso vereador não estudara lógica.

O homem continuou:

— E segundo é voz e fama vocês têm mundos e fundos.

Aqui começava Maquelina a discordar, por infelicidade sua. Em única resposta  mostrou os cobres que trazia.

— Eis a minha riqueza.

— Pois sim, pois sim... mas... olhe, disso não quero eu saber. E pobre?  Peça ao pároco e ao regedor um atestado, e depois... depois... isso é com a  junta de paróquia.

— Mas...

— Adeus, minha amiga, temos conversado.

E o oráculo emudeceu.

Maquelina ao sair levava uma cara que seria a sua justificação, se o vereador  acreditasse na ciência dos fisionomistas; mas parece-me poder atestar o  contrário. O bom homem chamaria tolo a Lavater se o tivesse conhecido.

Dali passou a Maquelina a casa do pároco.

Eram horas da sesta e o reverendo dormia; único ponto de contacto que tinha  com Homero.

E que sono!

Bem pudera dos seus paroquiais flancos elevar-se toda a bem provida árvore  de Jessé, que está representada na nave direita da igreja dos Franciscanos no  Porto, que ele rivalizaria em impassibilidade com aquele venerável patriarca  que a sustenta.

Quando o foram acordar, o pastor daqueles povos resmungou, moveu-se,  voltou-se para o outro lado e... continuou a dormir. A segunda tentativa,  tomou a resmungar, tomou a mover-se, a voltar-se para o outro lado... tomou  a dormir; à terceira, sentou-se na cama, esfregou os olhos, abriu a boca  estrepitosamente e não deu acordo de si; pôs-se a olhar  depois para o  travesseiro com visíveis tentações de se precipitar de novo nele; obstou-o a  criada, que voltou a chamá-lo à vida real. Então seguiu-se o descer do leito, o  evacuar dos pulmões obstruídos por um catarro crônico, o fungar de uma  farta pitada e enfim apareceu o homem em toda a magnitude da sua... gordura.  

Dizem que o erguer do leito é a ocasião em que os monarcas são mais  acessíveis a pedidos; o nosso abade, conquanto também cabeça coroada, não  se parecia neste particular com as suas majestades; pelo contrário, se havia  para ele horas de mau humor, eram as que se seguiam ao momento em que a  inexorável força das circunstâncias o obrigava a emergir de entre os lençóis,  oceano onde voluntariamente aquele se mergulhava.

— Oh! oh! — bradou o indolente levita ao ver Maquelina — então foi-se  o homem?

— Assim o quis Nosso Senhor.

— E vamos a saber, quanto se herdou?

Maquelina exibiu os quatrocentos réis, que era todo o espólio em metal.

— Histórias da Maria Carocha resmungou o abade zangado.

— É isto que digo a Va Sa; meu irmão...

— Não me venha contar tonilhos. Diga lá o que quer?

Maquelina expôs o fim da visita.

O padre arregalou os olhos.

— Ui! Essa é de barbas! E hei de atestar que você é pobre!

Maquelina fez um sinal afirmativo.

Ora, santinha, ora. E para isso fez-me acordar de um sono que... que...

— Mas, Sr. abade, é a verdade que Va Sa atesta, e senão diga-me onde me  encontra a riqueza?

— O seu irmão há de ter deixado somas fabulosas!

— Pois venha Va Rev.ma ver e dirá depois. Jesus, meu Deus, procurem,  procurem, oxalá que achassem, meu divino Pai do Céu!

— Enfim, mulher, não se meta em trabalhos; vá ter-se com o regedor e, eu o mais que posso fazer é confirmar lá na junta o que ele certificar.

Maquelina passou à regedoria.

O regedor era taberneiro e naquele momento o seu duplo estabelecimento  estava atulhado de fregueses.

As largas mãos deste vigilador da ordem pública distribuíam simultaneamente  vinho e justiça aos circunstantes, e mais amplas medidas de justiça que de  vinho, a acreditarmos os consumidores.

A entrada de Maquelina causou sensação.

O regedor, em pleno gozo do seu funcionalismo, dignou-se interrogar a irmã  do falecido e, os olhos da importante autoridade pondo nela:

— Então que a traz por aqui, Sra. Maquelina? — disse com voz benigna.  — Não é bonito andar assim já pela rua quando tem seu irmão morto em  casa. Que há de dizer o público?!

Não sei de nada mais delicado do que é este ser misterioso e respeitável por  excelência a que se dá o nome de público.

É singular como todos tomam a peito manter-lhe a veneração devida e se  doem às mais leves infrações que esta sofre. Grita-se contra um fato  escandaloso, pateia-se no teatro uma produção imoral, fulmina-se um procedimento menos honesto, em respeito ao público, já se sabe. Não me  ofendi eu, nem vós, nem eles; interrogai-os um por um, nenhum se dará por  ofendido, mas todos vos responderão com a fórmula; «e o público!» Porém  valha-nos Deus, o público é exatamente constituído por mim, por ti, por vós  todos que assim respondeis; como é pois que de elementos tão pouco  suscetíveis resulta um produto tão melindroso?

Cada qual no gabinete lê uma obra de duvidosa moralidade, ri-se, diverte-se  com a leitura, e ninguém quererá admitir que ela lhe possa ter causado o  menor prejuízo. Aí temos portanto uma obra inofensiva; pois não é tal; antes  a vemos proclamar um verdadeiro veneno, servido pela imprensa ao público,  um miasma que se ergue dos prelos, um fermento de dissolução de costumes,  e outros nomes igualmente feios. A não vermos nestes fatos a confirmação  daquelas ideias que nas primeiras páginas expendi, não sei que outra solução  razoável daremos ao problema.

É certo porém que o público citado pelo regedor achava-se exatamente nestas  circunstâncias. Todos os presentes abanavam a cabeça em sinal de aprovação;  nenhum pela sua parte se mostrava escandalizado com o extemporâneo  aparecimento de Maquelina, mas o complexo pelos modos sofria muito com  isso.

À referida observação da autoridade umedeceram-se os olhos de Maquelina.

— E que lhe hei de eu fazer, Sr. Bento Maria? Quem é pobre...

Houve sussurro na assembleia; o adjetivo parecia beliscar o auditório.

— Pobre! É sempre o mesmo estribilho — disseram algumas vozes.

O regedor serenou o tumulto, dirigindo-se a Maquelina.

— Bem, deixemos agora isso. O que a traz por aqui?

Maquelina explicou-se.

A indignação dos circunstantes rebentou.

— Sempre é desaforo!

— Também é preciso ter descaramento.

— É digna do irmão, já vejo.

— A alma do sovina meteu-se-lhe no corpo.

— Quem esconjura esta mulher?

O regedor começou a franzir a testa.

— Ora vejam a pobrezinha.

— Nosso Senhor a favoreça, irmã.

— Ora já viram!

O regedor levantou-se.

— Quem enterra o mano?

— Forte perda, se fica de fora!

— Aquele nem os bichos o querem.

— Leva rumor! Ai, que eu... — rugiu por entre o regedor e todos  imediatamente... Silent, arrectis que auribus adstant.

Pudera; o ai, que eu... do Sr. Bento Maria não ficou a dever nada ao cérebro  quos ego... de Neptuno. O regedor sabia como Virgílio o valor de eloquentes  reticências.

Em auxílio da ordem veio ainda a observação de um circunstante, dotado de  sentimentos mais humanitários.

— A mulher tem razão, coitadinha, se o miserável deixou tudo escondido.

As massas são fáceis de impressionar. O alvitre modificou as opiniões.

— É assim, é assim.

— Pobre criatura!

— Que vale tê-lo, se se não sabe aonde?

Por este tê-lo entendia-se dinheiro; é de fato o substantivo que mais  completas elipses suporta; tão presente o trazem na ideia, que não necessita  estar nas orações antecedentes, para ser subentendido.

— Sim, sim, ela tem razão, é pobre, e...

O regedor, enfarinhado nas praxes constitucionais, não era homem que fosse  de encontro à opinião dos fregueses, e portanto, depois de concentrar por  algum tempo o espírito, operação que nem por isso lhe aumentou demasiado  a energia, passou o seguinte atestado, modelo de diplomacia e de exatidão  ortográfica:

«Eu Bento maria do portal, regidor de esta freguesia atesto, im como,  maquilina, rosa, martins, solteira, de esta Cidade, não tem, aberes para fazer, as  despesas do intero do seu irmon cepreano cujo, consta, ter dinheiro. Mas o  qué certo é que por morte se não incontrou i se é berdadeiro o dito do bulgo  o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade  o que Açupra, atesto e mo diseram peçoas diganas para mim de todo o creto,  pacei esta que juro.

Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de...

Bento maria do portal.»

Bento Maria era decididamente o funcionário público de mais expediente e de  mais arrojadas medidas que existia então na cidade.

Depois de mais algumas dificuldades e tropeços sempre se conseguiu enterrar,  à ordem da junta de paróquia, o velho Cipriano, o qual de outra maneira bem  teria de ficar fora do seio da terra, por não haver deixado dinheiro.

Todos estes acontecimentos, longe de desvanecerem os boatos das ocultas e  sonhadas riquezas de Cipriano, os aumentaram, e deram lugar a duas versões  diferentes.

Uns, mas eram a minoria, lançavam em rosto à nobre Maquelina o mesmo  que tinham imputado ao irmão; outros, porém, viam nela uma vítima, ainda  além da campa, da sórdida avareza do incorrigível octogenário.

Só Maquelina é que rejeitava uma e outra crença. Sabia-se inocente e não se  acreditava vítima. E, lutando com a idade avançada, tirava forças da fraqueza e  ia provendo conforme podia ao seu sustento quotidiano.

Não pôde porém resistir inteiramente às insinuações dos que falavam em  tesouros enterrados e as portas da casa abriram-se de par em par a uma junta  de inquérito, presidida pelo regedor, a qual, pelos mais escusos recantos, e a  grande profundidade no quintal, procurou o decantado tesouro, sem no fim  colher frutos de tantos esforços.

E as coisas conservaram-se por muito tempo neste pouco agradável statu quo.  

Um dia, porém, pioraram, longe de se desanuviarem, as circunstâncias de  Maquelina.

Um sobrinho seu, filho de uma irmã que morrera jovem, voltou do Brasil e,  contra o que era de esperar, vinha como partira, isto é, com a riqueza de Jó  na desgraça.

A história deste rapaz é uma história longa e curiosa, que desta vez não  contarei ao leitor.

Uma manhã pois, quando Maquelina estava meditando em não sei que medida  de economia doméstica, importantíssima para a melhor direção das suas  mesquinhas finanças, entrou-lhe pela porta dentro um rapaz magro, espigado,  de fisionomia denunciadora de sofrimentos, o qual lhe estendia as mãos,  dizendo:

— Bons-dias, madrinha, então não me conhece?

— Santa Maria! Querem ver que... És tu, Agostinho?

— Eu, eu mesmo.

A boa Maquelina saltou-lhe ao pescoço e devorou-o de beijos.

O rapaz viu-se em talas e com ameaças de asfixia.

Depois veio um pensamento à tia Maquelina, pensando um pouco interesseiro  é verdade, mas desculpem-na, e não ma comecem já por isso a olhar com  maus olhos; todos como ela o teriam e, o que pior é, a poucos viria apenas em  segundo lugar e só muito após dos espontâneos impulsos de uma afeição  desinteressada; «o rapaz vinha do Brasil... e o Brasil... sempre é o Brasil» foi a  ideia que lhe voou pelo espírito.

— Então — disse ela, movida por essa ideia — vens... rico!

Agostinho virou os bolsos do avesso por única resposta.

Maquelina juntou as mãos e também não deu palavra.

E para quê? Queriam ainda de parte a parte mímica mais expressiva!

— Vim para não morrer de fome.

Aqui benzeu-se a boa da tia.

— Embarquei como rapaz de navio por não ter dinheiro para a passagem.

Neste ponto persignou-se.

— E agora venho pedir-lhe — continuou o sobrinho — que me receba  em casa até... até... arranjar modo de vida.

Maquelina, quando, junto da pia batismal do pequeno Agostinho, se declarara  madrinha, à face da igreja, do filho querido da sua irmã, tinha já concebido  uma alta ideia da missão que desde aquele momento ia adotar pela sua e para  com o recém-nascido que sustentava nos braços; nem foram para ela simples  palavras de formalidade as que em tom de prédica ouvira ao pároco sobre os seus deveres futuros. «Na falta dos pais, dissera ele, aos padrinhos compete a  vigilância e a educação das crianças, que sob a sua proteção entraram no  grêmio da igreja católica.» Ora os pais de Agostinho lá se tinham já partido  para melhor morada e Maquelina, que, eminentemente escrupulosa em  negócios de consciência, se julgava por ela obrigada a cumprir até às últimas  extremidades os seus deveres de cristã, tinha para além do mais um coração  farto para afeições e sentimento.

Fechou pois os olhos aos sacrifícios futuros e aceitou a companhia do  afilhado.

Ele me ajudará também — dizia consigo mesmo a boa mulher, como se  quisesse colorir com um pensamento egoísta o impulso, que lhe viera  diretamente do coração!

Nós temos destas coisas.

Mas o certo é que, apesar da melhor vontade, em pouco podia Agostinho  auxiliar a madrinha.

Auxiliar de que maneira?

Emprego não o pôde ele obter. Naquela cidade, como em muitas outras terras  do reino, não se veem com bons olhos os infelizes que voltam do Brasil  pobres. Lá parece uma prova de pouco espírito e de nenhuma aptidão a essa  boa gente um semelhante sucesso.

O Brasil é, para ela, como o campo de batalha. Ou volta-se de lá vitorioso ou  morre-se combatendo. Fugir é de cobardes.

E ora aí têm os leitores a razão porque, dois meses depois da chegada de  Agostinho, era ainda Maquelina quem só provia às despesas da casa, as quais,  como era de supor, tinham aumentado; desenvolvendo a pobre velha esforços  sublimes para um duplo resultado: obter meios de subsistência e ocultar ao  sobrinho os imensos sacrifícios, a que para isso se sujeitava.

Mas Agostinho suspeitava-os e afligia-se.

Um dia falou à madrinha nas vozes que corriam ainda sobre as riquezas do  defunto. Maquelina sorriu tristemente, respondendo:

— Pois procura-as.

Agostinho deitou-se à obra com alma, revolveu de novo o quintal a mais de  um metro de profundidade, despregou as tábuas do soalho, sondou as  paredes, trepou aos mais altos escaninhos da casa... tudo foi inútil.

Disse adeus ainda a essa ilusão. O que lhe valeu foi estar já costumado a  despedir-se delas. A primeira vez custa mais.

No entretanto os esforços e as vigílias de Maquelina arruinaram-lhe a saúde.  Lutou braço a braço com a doença como lutara com a fome. Lutas heroicas  que passam ignoradas, enquanto tantas outras, muito menos merecedoras das  honras da epopeia, são extremamente celebradas em oitava rima.  

Afinal caiu vencida no leito, e então é que o futuro se lhe mostrou carregado.

A pobre mulher não se iludia nem sobre a gravidade da sua moléstia, nem  sobre as consequências da sua morte.

Que seria de Agostinho? Agostinho, a quem ela amava já como se amam os  entes fracos que vieram procurar a nossa proteção, com esse amor bem mais  intenso mesmo do que o votado aos seres que nos protegem.

Porque o primeiro lisonjeia o nosso orgulho, e o segundo, esse, revela a nossa  inferioridade.

Coisas humanas.

O futuro de Agostinho era a ideia negra de Maquelina; como ela ficaria  contente por morrer se não fora isso! Mas agora custava-lhe; esta lembrança  aumentava-lhe a doença. Que diria ela à irmã, quando do Céu lhe pedisse  notícias do filho? Que o deixara na miséria? E era isso de boa madrinha?

E estes pensamentos e apreensões definhavam-na a olhos vistos.

Agostinho aterrou-se, e reconheceu então tudo quanto tinha havido de  heroica abnegação no procedimento da tia.

O coração de homem teve um movimento pelo qual procurou libertar-se da  espécie de colapso em que infortúnios continuados o tinham lançado.  Agostinho curvara a cabeça sob a corrente de desgraças que sem interrupção  tinham sucedido na sua vida; agora tentava elevá-la num último esforço.

— É preciso tentar fortuna — dizia ele consigo — amanhã de manhã  sairei a pedir trabalho, a tudo que me sujeitar, a tudo.

E adormeceu com este pensamento, sonhando-se daí a pouco numa mina de  ouro, onde, ao fim de muita fadiga, só conseguia extrair enormes pedras de  carvão.

O leitor pode imaginar toda a agradável voluptuosidade de semelhante sonho.

Por a manhã ergueu-se disposto a realizar o projeto da véspera; mas foi  encontrar a tia num estado tão assustador, que não teve ânimo para abandoná-la.

— Não tem de ser! — disse consigo Agostinho, a quem a desgraça quase  tornara fatalista.

Maquelina mostrava-se de fato em risco iminente.

O facultivo de partido veio vê-la; pois Maquelina havia enfim conseguido  entrar no quadro dos pobres.

Tomou-lhe um pulso, depois o outro; deu-lhe três pancadas do lado direito do  tórax, igual número do esquerdo; pousou-lhe o ouvido sobre as descamadas  costelas, e, como se escutasse lá dentro os passos da morte, ergueu-se e fez  um gesto de descontentamento visível.

Receitou um chá de alteia e saiu.

Agostinho esperava-o à porta.

— Então?

O médico puxou pelo relógio, ao qual começou a dar corda, dizendo com a  indiferença profissional:

— Como àquela máquina se não dá corda como a esta, pára em poucas  horas.

Agostinho sentiu subirem-lhe as lágrimas aos olhos.

O médico voltou-se ainda de novo para dizer:

— Eu escuso de cá voltar, agora o padre.

Estas palavras, ditas em tom mais alto e da maneira mais natural possível,  como as sabem dizer alguns adeptos de ciência hipocrática que se jactam de  fortes, chegaram aos ouvidos de Maquelina, que juntou as mãos, e, erguendo  os olhos ao céu, disse com voz débil:

— Aqui está a serva do Senhor, cumpra-se em mim a Sua santíssima  vontade.

Quando Agostinho entrou no quarto, encontrou-a resignada.

Nessa mesma tarde confessou-se e sacramentou-se aquela pobre de Cristo.

Na cidade dizia-se:

— Coitada! o irmão matou-a. Morre de fome e fadiga e com dinheiro em  casa.

Era forte preocupação a do povo!

Mas há dessas teimas.

Ao pé da noite pediu Maquelina um chá para mitigar a sede. Naquele dia não  se acendera ainda o lume em casa. Agostinho esquecera-se de comer e, se se  lembrasse, não sei bem o que teria sucedido.

Melhor foi que se não lembrasse.

Agostinho correu à cozinha, reuniu a custo alguns cavacos já meio queimados  para acender o lume, e voltou à sala.

Maquelina dava-lhe instruções da cama.

— Ainda achaste lenha?

— Achei, sim, madrinha.

— Bem; ora agora... Essa lamparina está acesa ainda?

— Está, madrinha, está, pois não vê?

— Não, filho, já anão vejo.

Havia neste já uma significação que comoveu Agostinho.

Ela continuava:

— Encontraste carqueja?...

— Não, madrinha... mas...

— Valha-me Deus — disse ela, lutando já com dificuldades para se fazer  ouvir. — Olha, sabes, aí... na gaveta do toucador... esta uma papelada de que...  às vezes me sirvo para economizar. Acende alguma na... lamparina e... Ai! —  terminou ela com um suspiro, que o longo esforço que tinha feito para falar  lhe tornara necessário; e depois em voz mais baixa acrescentou:

— Louvado seja o Senhor, a que estado eu cheguei!

Agostinho abriu a gaveta.

— Aí — continuou Maquelina com voz sumida e trémula.

— Achaste? bem... ora agora...

Agostinho inflamou à chama escassa da lamparina um dos papéis que tirara do  velho toucador da tia.

— Isso — disse esta satisfeita por se ver compreendida.

Às sombras indistintas que reinavam no aposento sucedeu a claridade da  lavareda, mas foi de pouca duração. Ainda não teria ardido metade do papel,  já Agostinho, soltando um grito inexprimível, o atirava ao chão, abafava-o  com os pés, precipitando ao mesmo tempo pela vivacidade do movimento a  lamparina, que se fez em pedaços.

A escuridade tornou-se completa.

— Que foi, santo nome de Jesus! que foi, Agostinho? — dizia assustada  Maquelina, erguendo-se a meio corpo.

— Que papéis eram estes, minha madrinha?

— Eu sei lá, filho: mas que foi? valha-me o Senhor.

— Uma luz! uma luz! — bradou Agostinho fora de si; e saiu  repentinamente da casa, atravessou a rua, enfiou pela primeira porta que  encontrou aberta, galgou um lanço de escadas, penetrou num quarto onde  trabalhavam pacificamente algumas mulheres, apoderou-se da luz que viu no  meio da mesa, em volta da qual elas se formavam em círculo, e, sem dar uma  única palavra, saiu arrebatado, deixando em completa estupefação as  circunstantes, que só passados minutos voltaram a si, para correrem atrás do  mancebo, que parecia possesso.

Agostinho entrou de novo no quarto da tia moribunda, aproximou-se do lugar  onde deixara os restos do papel meio consumido, apanhou-o, examinou-o  com escrupulosa atenção, depois correu à gaveta do toucador, sujeitou a igual  exame os outros papéis semelhantes, que aí estavam a monte.

— Por amor de Deus, madrinha... mas... donde vieram estes papéis? —  exclamou ele, ao passo que um por um os passava em revista.

Maquelina, apoiada no braço convulso e com os olhos espantados, olhava  para o sobrinho estupefata.

— Eram do mano, o Senhor o tenha em glória; guardava-os naquela arca;  ele sempre me disse que de nada valiam e agora que eu me via precisada ia-os  queimando, para...

— Mas, valha-nos a Virgem! era uma riqueza inteira que queimava assim!

— Que dizes tu, filho?

Os combustíveis da tia Maquelina eram nem mais nem menos que boas notas  e excelentes notas de banco, às quais o velho Cipriano reduzira os seus  haveres porque o amedrontava o tinir do dinheiro metálico, como chamariz  de ladrões: enquanto que por outro lado nunca se pudera resignar a separar-se  do seu querido capital, em cuja contemplação saboreava aquela doce  voluptuosidade só dos avarentos conhecida.

Quando se procedeu a investigações em casa de Maquelina para descobrir o  tesouro oculto, esqueceram-se, como quase sempre acontece, de examinar os  lugares por onde deviam ter começado; enquanto aprofundavam a terra e  escavavam as paredes, ninguém se lembrou de abrir a pequena gaveta, que  nem chave tinha sequer, e onde Maquelina alojara toda a riqueza. Mas quem o  podia supor?

O instinto do povo não o enganara desta vez.

Cipriano era de fato rico. Viveu uma vida de privações, praticou um negócio  de alta usura debaixo das maiores cautelas e mistério impenetrável; aí está  explicada a sua riqueza.

É receita infalível para chegar ao mesmo resultado; as pessoas a quem não  nausearam os ingredientes adotem-na, porque não falha.

Desconfiando de todos, da própria irmã desconfiava e dava-lhe por isso a  entender que de nenhuma importância eram os papéis que ela às vezes por  acaso chegara a descobrir.

Maquelina era ignorante e nem imaginava sequer que se pudesse ter uma  riqueza em papéis. Na sua inteligência, como na das crianças, a ideia de  riqueza andava associada à de muito dinheiro em ouro e prata: gavetas,  cômodas, caixa, burras cheias dele; e por isso ia queimando agora lentamente  aquele tesouro que o irmão acumulara; e isto com o fim de poupar carqueja!

Cleópatra, brindando os amantes com soluções de pérolas preciosas, não  conseguiu ser mais magnífica.

Era um passatempo de milionária o de Maquelina.

Se Deus lhe prolongasse a vida, até onde iria aquela monstruosa combustão?  Que soma enorme seria aniquilada!

E ainda assim quanto não consumiria!

Nunca se pôde calcular.

Há o que quer que é de sublime neste quadro. Uma mulher velha, caquética,  esfomeada, agonizante, tendo ao alcance do braço uma riqueza, como ela nem  sequer concebera nos seus mais ambiciosos sonhos, e queimando-a!

A notícia inesperada que recebia agora imprimiu àquela existência o derradeiro  abalo. A alma, já quase desapegada do corpo, abandonou-o de todo e partiu.

À meia-noite morreu a santa criatura, contente porque deixara rico o sobrinho  e afilhado, único parente que possuía na terra.

Ainda assim, quando se divulgou a notícia, o que, graças à comunicabilidade  das mulheres a quem Agostinho usurpara a luz e que foram as primeiras a  sabê-la, se não fez esperar muito, houve quem se penteasse como herdeiro.

Faria rir se expusesse aqui os fundamentos das pretensões desta gente, e eu  não quero fazer rir o leitor, a quem peço antes uma lágrima para a memória de  Maquelina.

Não seguiremos agora a história de Agostinho, que se modela por a de todos  os homens ricos.

Apenas direi que pelas suas especulações comerciais conseguiu multiplicar o  capital tão inesperadamente herdado e hoje é milionário.


Vejam o instinto do povo!


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Nota:
Júlio Dinis: "Serões da Província" (1870)

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