O ESPÓLIO DO SENHOR CIPRIANO
Desde que uma crença consegue
radicar-se verdadeiramente na imaginação do povo, difícil é ao poder dos séculos ou à
evidência dos fatos desarraigá-la. Parece
que à medida que um por um se vão quebrando os laços que a prendiam
à razão e diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a fazia ainda aceite, mais atrativos ela ostenta
à fantasia popular, sempre afeiçoada ao
maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras ilusões, como as crianças a perseguirem as
borboletas através das campinas.
Quando o povo vê fugir, por inverossímil,
do campo da discussão um fato controvertido,
é quanto mais se apressa a recebê-lo como dogma, a adotá-lo com a cegueira da fé; é então que o transmite
aos filhos, à maneira de um novo artigo
do seu credo religioso, e olha para o que se atreve a levantar a mão iconoclasta contra esses vagos objetos do
seu culto ideal, como para um ímpio,
digno da fulminação celeste.
De historiadores e biógrafos se
ri: não há provas nem documentos que valham
para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imaginou; mais vezes aqueles cedem até, sacrificando a
exatidão à poesia, e admitindo nos seus
escritos a colaboração da pena popular. Por isso nas crônicas dos tempos passados é através das lendas que se pode
procurar a história. Adornada com as
galas e louçainhas do maravilhoso, é que o povo se apraz de acolher a tradição. Despida às mãos do historiador
austero, parece afetar-lhe tão escandalosamente
à vista, como à dos mais castos monges da Tebaida as formas nuas de tentadoras aparições.
Igualmente, ao lado da biografia
exata de um indivíduo, ainda dos mais obscuros,
o povo refere de ordinário outra, menos documentada talvez, porém sempre mais curiosa.
Com olhar perscrutador penetra o
seio das famílias a descobrir aí fatos recônditos,
pequenos incidentes da vida doméstica, onde, mais fielmente do que nos da vida pública, se refletem os
caracteres e as índoles.
Não julgueis que lhe basta a
enumeração das batalhas, dos feitos brilhantes, dos serviços humanitários, dos atos civis do
herói do dia; quer vê-lo em família,
depois de despir a farda, a toga ou os arminhos, para envergar o modesto robe-de-chambre; aspira a devassar-lhe
no modo de viver íntimo e a estudar-lhe
os hábitos; obriga o personagem da história a representar diante de si o papel de filho, de irmão, de amante, de
esposo e de pai no drama da vida, e é
então que mais interesse lhe excita, é então que aplaude; e quando lhe falecem as informações, inventa, recorre ao
inesgotável tesouro de imaginação, senão
a alguma coisa de mais seguro. E nisto é o povo verdadeiramente admirável! Há o que quer que é
sobrenatural na maneira porque se lhe
revelam às vezes segredos, sabidos apenas por duas pessoas, interessadas ambas em conservá-los ignorados;
não espera por provas, satisfaz-se já
com indícios; pronuncia-se, quando os mais prudentes hesitam, e, devemos confessá-lo, se em certos casos
esta antecipação o leva ao erro, muitas
vezes também, ou quase sempre, por caminhos misteriosos, o conduz à verdade.
Os boatos! Aí temos um desses
problemas que desafiam toda a ciência humana.
Donde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes, emanações subtis que aspiramos todos, os crédulos e os
espíritos fortes, os ignorantes e os
ilustrados, como todos contraímos a epidemia, cujo foco se desconhece?
Suscita-se às vezes sobre
qualquer indivíduo uma opinião que se diz pública, somente porque cada qual em particular se não
atreve a reconhecê-la por sua; os fatos
conhecidos da vida desse homem parece desmentirem-na, todas as aparências lhe são contrárias, é humanamente
impossível encontrar algures os fundamentos
dessa crença, nascida não se sabe onde, propagada não se sabe como; e contudo persiste. Por quê? Quem o pode
dizer? É, a meu ver, um fato da ordem de
outros que observa o naturalista na história dos animais. E um fenômeno de instinto.
Na aproximação do Inverno, as
aves viajoras reúnem-se em bandos para desertarem
das paragens que parecia oferecerem-lhes ainda por algum tempo os últimos calores de uma estação favorável.
Que indício lhes revelou o perigo? Quem
lhes apontou o caminho de mais amenas regiões? O instinto: respondem os filósofos; e a mesma resposta
obtereis, se os interrogardes sobre
tantos outros maravilhosos atos que nos surpreendem, nos costumes de certas famílias zoológicas.
Concedam pois também ao povo
instintos, instintos que o fazem adivinhar fatos ocultos, como a ave pressente o Inverno;
instintos sobre os quais se elevam
juízos, que a razão prudente repele ao princípio, mas que tantas vezes o futuro vem confirmar mais tarde.
O povo tem uma fisiologia
especial, que ainda está por escrever; esse concurso de individualidades tão heterogêneas
dá uma resultante, cuja noção não nos
pode vir só do conhecimento isolado dos componentes.
Quem o fosse estudar por uma
análise minuciosa, quem, por um quase processo anatômico, o decompusesse em
elementos, para um a um os examinar com
escrupuloso cuidado, não o teria compreendido; não seria mais feliz do que se procurasse resolver o problema
da vida, dissecando um cadáver, e
aplicando o microscópio a cada fibra dos seus tecidos e órgãos. Onde os homens se reúnem em povo, uma
influência oculta se lhes associa: como
uma inteligência comum, daí, os enigmas da multidão.
A solução destes enigmas não a
procurem portanto nos indivíduos, que neles não reside; está na entidade coletiva; assim
como o modo de reagir do sal neutro não
se encontra no ácido, nem na base, seus elementos únicos; é o resultado da combinação.
Sirvam estas reflexões de
prefácio ao caso modesto e obscuro que vamos narrar e que as exemplifica.
Por uma das tais vozes interiores
que entretém o povo dos mais recatados mistérios da vida de família, como se
linguareiro duende lhos andasse segredando
ao ouvido, era que numa pequena cidade da província do Minho havia muito se tomara opinião geral que
Cipriano Martins, octogenário que vivia
miseravelmente na mais estreita e mal esclarecida rua do menos limpo e povoado bairro daquela já de si não muito
apetecível terra, não obstante tais aparências
pouco inculcadoras, possuía fabulosas riquezas, e era devorado pela mais sórdida e inqualificável sovinice.
Nada podia modificar a opinião
pública a este respeito; era absoluta, geral, intransigente, incapaz de vacilar, estável no
seu posto, que defendia heroicamente
contra o ataque combinado de todas as aparências; sublime de pertinácia, admirável de resistência.
Nunca experimentara destas
oscilações vulgares nas mais enraizadas crenças; nunca passara por as alternativas de desfavor
que até as ideias mais generosas sofrem
no correr das épocas, nunca; nem quando os aguçados cotovelos do velho Cipriano rompiam escandalosamente
através das mangas coçadas e beneméritas
do seu casacão de saragoça; nem quando aos olhos dos comentadores se patenteavam as laceradas
plantas... das botas colossais de que o
nosso Harpagão usava, ou as numerosas cicatrizes — vestígios honrosos de longos anos de assinalados serviços — que lhe
criavam as calças, onde cada fábrica de
tecidos tinha um espécime dos seus produtos, combinados todos em artístico mosaico.
Cada vez que o inofensivo tema
dos longos e pouco misericordiosos comentários
populares entrava numa loja a comprar os parcos materiais da sua diária alimentação e estendia a mão para
receber os trocos miúdos, aos quais,
como outro qualquer, tinha direitos incontestáveis e garantidos por lei, havia nos circunstantes certo resfolegar de
mofa que, ao voltar costas o velho, degenerava
em bem significativas e nada equívocas exclamações.
— Olhem o unhas-de-fome!
— Some-te, porco!
— É capaz de se enforcar por um
vintém!
— Se lhe caísse um pataco ao
inferno, atirava-se lá para apanhá-lo, o tinhoso.
— Sovina!
— A pobre irmã morre à míngua por
causa da mesquinhez deste tesoureiro do
diabo.
— Come duas sardinhas barrentas,
e cozinha só de três em três dias para não
fazer despesa em lenha! Podem crê-lo?
— Junta, junta, para outros to
gastarem!
— O peso do teu cofre é que te há
de afogar na caldeira de Pêro Botelho!
E assim por diante iam as
apóstrofes, cada qual mais lisonjeira para a reputação do modesto velho, cujos nervos
felizmente se não supra-excitavam com
tais estímulos.
Tinha uns invejáveis nervos o Sr.
Cipriano! a única das suas qualidades que lhe podiam invejar as leitoras.
Não há vício menos popular do que
o da avareza, pela razão de serem poucos os que com ele lucram.
Assim Cipriano Martins era uma
personagem antipática para os seus compatriotas.
Mas quem lhe vira o dinheiro?
quem lhe descobrira a riqueza?
Neste ponto, cada qual,
interrogado à parte, encolhia os ombros, prolongava os beiços, enrugava a cara, e respondia:
— Diz-se.
Santa palavra! salvatério das
asserções arrojadas! como a consciência fica tranquila quando, após uma afirmação cuja
responsabilidade não quer, a boca oficiosa
te pronuncia! Descendente em linha reta daquele traditur dos historiadores romanos, tu és, como teu ilustre
avô, o melhor e mais universal excipiente em que se administram ao público
fortes doses de boatos, que ele engole
de mais boamente do que quantas pílulas têm arredondado de Hipócrates para cá os dedos dos boticários ou
apregoado os Holloways de todos os
tempos.
Cipriano Martins tinha uma vez
por ano as suas liberalidades, circunstância que, longe de amenizar a rudeza dos juízos
públicos ao seu respeito, antes a exacerbava;
pois de fato nunca mais alto subiam as murmurações como quando em Sexta-Feira Santa saía das
algibeiras do sóbrio velho para a dos pobres
da freguesia a quantia realmente importante de... cem réis em moedas de cinco.
Então é que era ouvir o povo.
— Arrancou hoje cem fibras do
coração.
— Tem para chorar cem dias, o
velho.
— E para jejuar outros tantos.
— Se isto assim continua,
aparece-nos de alguma vez o homem enforcado em sábado de Aleluia.
— Melhor, escusa o povo de
queimar outro Judas.
Quando se entra na via das
concessões é necessário não dar passos acanhados, sob pena de aumentar ainda mais a indisposição
dos ânimos.
Consideração esta de longo
alcance político, não obstante as aparências modestas que a revestem aqui.
Cipriano Martins caiu doente e
não chamou médico.
A câmara, que adotava o
pensamento público sobre o estado financeiro do seu patrício, recusava inscrevê-lo no quadro
dos pobres, razão pela qual o não visitou
o cirurgião de partido.
A câmara andou assisada nisto e
mostrou-se convencida da seguinte verdade, saída da boca de um grande vulto político:
«Quando os governos não tomam
espontaneamente a iniciativa no movimento
das massas, são arrastados por ela.»
Ora a câmara, que era governo, e
não pouco respeitável, não tinha grande vontade
de ser arrastada; um dos vereadores, mais que todos, em cuja caixa de rapé estava representado em gravura o fim
trágico de Mazzepa, sentia de si para si
um estremeção de grande desconforto só de ouvir o termo. Por isso, a câmara adotou a opinião das massas.
Esta subiu ao auge da indignação
vendo Cipriano desprezar a medicina.
— Olhem o miserável a regatear às
portas da morte o apreço da vida!
— O homem tem razão — respondia o
barbeiro, a quem por consenso unânime
fora decretado o diploma de espirituoso da terra — o homem tem razão, que bem conhece quão pouco ela lhe vale.
Este dito do ilustrado
superintendente das mais respeitáveis barbas da freguesia foi repetido em todos os círculos
com geral aplauso; e a reputação de aguçado
satírico, de que há muito gozava o digno colega de Fígaro, aumentou, se de aumento era suscetível ainda.
Cipriano Martins morreu e então é
que a curiosidade pública se pôs alerta e, para entreter o tempo de espera, prestou
ouvidos às historietas da imaginação. Esta
fez o seu dever, nada deixando a desejar. Cipriano a cerrar os olhos, e o público mais do que nunca a torná-lo à sua
conta. Discutiu-se-lhe a herança, avaliou-se-lhe
a fortuna, apontaram-se os herdeiros, inventaram-se testamentos, fantasiaram-se cláusulas
absurdas, anteviram-se demandas, devassaram-se
esconderijos, arrombaram-se cofres, desenterraram-se riquezas monstruosas; isto tudo durante vinte e quatro
horas, no fim das quais nem riquezas,
nem esconderijos, nem cofres, nem herança, nem testamento, nem cláusulas e por conseguinte nem herdeiros nem
demandas vieram justificar a geral
expectativa.
Foi um desapontamento, que, a
falar a verdade, custou a digerir; os melhores estômagos imparam com ele e mais de uma vez
foi regurgitado.
E toda aquela boa gente se punha
então a ruminá-lo do seu vagar, sem que o fizesse mais digerível.
A irmã do morto, que, de si para
si, nunca nutrira grandes esperanças, porque nunca tivera fé nas riquezas do
mano, apresentou-se nesse mesmo dia, chorando, em casa do administrador a
pedir-lhe que providenciasse para se fazer
o enterro do velho Cipriano, pois nas gavetas só lhe encontrara uns cobres, que não bastavam para as despesas
exigidas pela solenidade.
O administrador viera cético de
Coimbra, doença que apanhara nas margens do Mondego e que pelos modos se lhe tornara crônica
no concelho, que, como diziam os jornais
da época, tão dignamente administrava. Por isso olhou para a pobre Maquelina — pois era esse o nome
dela — através dos vidros da luneta
pendente, ao mesmo tempo que o mais incrédulo sorriso que o espelho lhe aconselhara vinha encrespar-lhe
espirituosamente o lábio superior. Ao desbaste
de crenças, que este magistrado sofrera tinha por felicidade sobrevivido entre poucas a crença no espelho,
um dos principais conselheiros a quem
devia a manutenção da dignidade administrativa.
— Com que então só uns cobritos,
diz vossemecê, hem?
O bacharel fizera a descoberta de
que este bem lhe dava às palavras certa melodia
de bom gosto e por isso o adotara.
— Eis tudo quanto possuo —
respondeu Maquelina, mostrando em patacos
um cruzado, quando muito — Va Sa bem vê — continuou — meu irmão tinha o seu pequeno negócio de socos, há
muito em decadência; ele, coitado,
estava velho e não queria oficiais... e agora com a moléstia... por mais economias que a gente fizesse, sempre eram
despesas certas e nenhum dinheiro a
apurar.
O administrador teve aqui um
movimento de lábios, expressivo de inveterada descrença; e, como para mais depressa se
livrar do contacto de um ser humano,
respondeu secamente:
— Faça, se quiser, um requerimento
à câmara, porque seu irmão não figura no
quadro dos pobres.
E mais não disse.
Maquelina à palavra requerimento
empalideceu. Fazer um requerimento é um negócio
importante, um passo difícil na vida destes seres inofensivos e alheios a processos judiciais a cuja confraria
pertencia a boa mulher.
Mas que remédio!
Saiu dali e procurou o presidente
da câmara.
Era este um gordo merceeiro, cuja
cabeça se podia dizer um vulcão de medidas
tendentes todas ao melhoramento público e progresso social. Durante a sua feliz administração dos negócios
municipais, contava atos realmente
surpreendentes de tino governativo. Seja-me lícito citar aqui alguns fatos da vida pública deste não aproveitado
estadista.
Os moradores de uma rua estreita,
onde os beirais dos telhados carairos quase se encontravam, a ponto de intercetarem a
passagem da luz solar, queixavam-se da mania, desenvolvida em alguns vizinhos,
de cultivarem frondosos arbustos nas
sacadas das habitações, com grande incômodo e prejuízo dos queixosos, para os quais anoitecia mais
depressa, graças à sombra impenetrável
que projetavam os folhudos ramos na já de si pouco esclarecida rua. O sábio edil legislou à vista disso:
«Ficam proibidas as árvores em
todos os lugares onde a sua vegetação seja impossível.»
Eu penso que se Montesquieu
tivesse notícia desta lei havia de apreciá-la, pela admirável concordância com as da imutável
natureza.
De outra vez, os contribuintes
pacíficos que habitavam próximos aos arrabaldes
lamentaram-se, em termos legais, pelas incômodas harmonias com que todas as manhãs os despertavam os
carreteiros com a infernal chiadeira dos
impertinentes carros. Pensava aquela boa gente que a sinfonia de ouverture da criação não perdia nada se lhe
suprimissem da orquestra o pouco harmonioso
instrumento. Atendendo à justa reclamação dos povos, o judicioso funcionário promulgou que: «Todos os
carros que chiassem contra as posturas
municipais, pagassem dois mil réis de multa, sendo metade para o denunciante, dado o caso de serem ouvidos.»
Já se vê que chiar contra as
posturas era coisa séria; a câmara tinha suscetibilidades e, ofendida, chegava a
multar... os carros.
Quando esta medida se discutiu em
plena vereação, um dos camaristas levantou-se
e deu mostras de querer falar.
— Peço a palavra, Sr. presidente.
— Tem a palavra o ilustre colega.
— Eu desejava que se fosse mais
severo contra os perturbadores do sono público
e se desse maior alcance a esta medida policial, multando todo o carro que chiar, quer seja ouvido, quer não.
O conselho, atendendo porém a que
não convinha ser demasiado ríspido com os
povos e que os carros, não sendo ouvidos, pouco podiam incomodar, adotou a cláusula do autor do projeto,
rejeitando a emenda.
E foi muito bem considerado.
Outra ocasião ainda, ouvindo o
nosso homem discutirem dois bacharéis, classe
de sábios que sempre respeitou, sobre a conveniência das Rodas, e vendo-os acordes na necessidade de importantes
e radicais reformas nestes estabelecimentos,
veio para casa pensativo, e o cérebro, fecundado por aquela ideia, lidou toda a noite em gestação mental,
tendo no fim o seu bom sucesso, porquanto
pela manhã o magistrado municipal apresentou à aprovação dos colegas a seguinte medida regulamentar:
«Toda a mãe que expuser seu filho
sem um bilhete do município, fica tacitamente
encarregada da educação deste.»
A entender-se gramaticalmente a
coisa, rude tarefa cabia à pobre da mãe, superior ao esforço humano.
Esta medida, de um incomensurável
alcance econômico, por um triz ia passando.
Mas emperrou no advérbio
tacitamente, que de fato era a maior palavra do período e que o legislador empregara para o
arredondar; ele tinha lá as suas ideias
a respeito de estilo, não obstante viver antes das últimas reformas dos liceus, na qual pelos modos este assunto foi
regulado de uma vez para sempre. Se a lacônica
definição de Buffon é verdadeira, se o estilo é o homem, ninguém de fato como o nosso vereador podia
fazer períodos mais rotundos. Mas o
corpo camarário viu na frase não sei que sentido maquiavélico, e mostrou escrúpulos. Em vão o digno chefe de
tão respeitável corporação, com aquela
abnegação quase estóica que o caracterizava, se prontificou a substituir esse advérbio por outro qualquer,
sem escolha, tais como: restritamente,
completamente, impreterivelmente, categoricamente, etc., etc.; ele só queria salvar a beleza da forma; não
houve de que, o conselho, entrando uma
vez no caminho da desconfiança, não tinha por costume recuar.
Esteve ainda assim, vai não vai,
a resolver-se pela adoção do categoricamente, agradado da eufonia da palavra; mas enfim nem
esse admitiu, e a medida foi rejeitada.
Era pois diante deste vasto
talento governativo que Maquelina fora enviada a implorar um diploma de pobre.
Louvado seja Deus! até isto se
implora!
— Mas — observou o judicioso
presidente ao ouvi-la — pobre é todo aquele
que não tem dinheiro.
Maquelina concordou. Pudera não.
A definição satisfazia a todos os
preceitos mencionados no Genuense; curta, clara, etc., etc.; e mais o nosso vereador não
estudara lógica.
O homem continuou:
— E segundo é voz e fama vocês
têm mundos e fundos.
Aqui começava Maquelina a
discordar, por infelicidade sua. Em única resposta mostrou os cobres que trazia.
— Eis a minha riqueza.
— Pois sim, pois sim... mas...
olhe, disso não quero eu saber. E pobre? Peça ao pároco e ao regedor um atestado, e
depois... depois... isso é com a junta
de paróquia.
— Mas...
— Adeus, minha amiga, temos
conversado.
E o oráculo emudeceu.
Maquelina ao sair levava uma cara
que seria a sua justificação, se o vereador acreditasse na ciência dos fisionomistas; mas
parece-me poder atestar o contrário. O
bom homem chamaria tolo a Lavater se o tivesse conhecido.
Dali passou a Maquelina a casa do
pároco.
Eram horas da sesta e o reverendo
dormia; único ponto de contacto que tinha com Homero.
E que sono!
Bem pudera dos seus paroquiais
flancos elevar-se toda a bem provida árvore de Jessé, que está representada na nave
direita da igreja dos Franciscanos no Porto,
que ele rivalizaria em impassibilidade com aquele venerável patriarca que a sustenta.
Quando o foram acordar, o pastor
daqueles povos resmungou, moveu-se, voltou-se
para o outro lado e... continuou a dormir. A segunda tentativa, tomou a resmungar, tomou a mover-se, a
voltar-se para o outro lado... tomou a
dormir; à terceira, sentou-se na cama, esfregou os olhos, abriu a boca estrepitosamente e não deu acordo de si;
pôs-se a olhar depois para o travesseiro com visíveis tentações de se
precipitar de novo nele; obstou-o a criada,
que voltou a chamá-lo à vida real. Então seguiu-se o descer do leito, o evacuar dos pulmões obstruídos por um catarro crônico,
o fungar de uma farta pitada e enfim
apareceu o homem em toda a magnitude da sua... gordura.
Dizem que o erguer do leito é a
ocasião em que os monarcas são mais acessíveis
a pedidos; o nosso abade, conquanto também cabeça coroada, não se parecia neste particular com as suas
majestades; pelo contrário, se havia para
ele horas de mau humor, eram as que se seguiam ao momento em que a inexorável força das circunstâncias o obrigava
a emergir de entre os lençóis, oceano
onde voluntariamente aquele se mergulhava.
— Oh! oh! — bradou o indolente
levita ao ver Maquelina — então foi-se o
homem?
— Assim o quis Nosso Senhor.
— E vamos a saber, quanto se
herdou?
Maquelina exibiu os quatrocentos
réis, que era todo o espólio em metal.
— Histórias da Maria Carocha
resmungou o abade zangado.
— É isto que digo a Va Sa; meu
irmão...
— Não me venha contar tonilhos.
Diga lá o que quer?
Maquelina expôs o fim da visita.
O padre arregalou os olhos.
— Ui! Essa é de barbas! E hei de
atestar que você é pobre!
Maquelina fez um sinal
afirmativo.
Ora, santinha, ora. E para isso
fez-me acordar de um sono que... que...
— Mas, Sr. abade, é a verdade que
Va Sa atesta, e senão diga-me onde me encontra
a riqueza?
— O seu irmão há de ter deixado
somas fabulosas!
— Pois venha Va Rev.ma ver e dirá
depois. Jesus, meu Deus, procurem, procurem,
oxalá que achassem, meu divino Pai do Céu!
— Enfim, mulher, não se meta em
trabalhos; vá ter-se com o regedor e, eu o mais que posso fazer é confirmar lá
na junta o que ele certificar.
Maquelina passou à regedoria.
O regedor era taberneiro e
naquele momento o seu duplo estabelecimento estava atulhado de fregueses.
As largas mãos deste vigilador da
ordem pública distribuíam simultaneamente vinho e justiça aos circunstantes, e mais
amplas medidas de justiça que de vinho, a
acreditarmos os consumidores.
A entrada de Maquelina causou
sensação.
O regedor, em pleno gozo do seu
funcionalismo, dignou-se interrogar a irmã do falecido e, os olhos da importante
autoridade pondo nela:
— Então que a traz por aqui, Sra.
Maquelina? — disse com voz benigna. —
Não é bonito andar assim já pela rua quando tem seu irmão morto em casa. Que há de dizer o público?!
Não sei de nada mais delicado do
que é este ser misterioso e respeitável por excelência a que se dá o nome de público.
É singular como todos tomam a
peito manter-lhe a veneração devida e se doem às mais leves infrações que esta sofre.
Grita-se contra um fato escandaloso,
pateia-se no teatro uma produção imoral, fulmina-se um procedimento menos
honesto, em respeito ao público, já se sabe. Não me ofendi eu, nem vós, nem eles; interrogai-os um
por um, nenhum se dará por ofendido, mas
todos vos responderão com a fórmula; «e o público!» Porém valha-nos Deus, o público é exatamente
constituído por mim, por ti, por vós todos
que assim respondeis; como é pois que de elementos tão pouco suscetíveis resulta um produto tão melindroso?
Cada qual no gabinete lê uma obra
de duvidosa moralidade, ri-se, diverte-se com a leitura, e ninguém quererá admitir que
ela lhe possa ter causado o menor
prejuízo. Aí temos portanto uma obra inofensiva; pois não é tal; antes a vemos proclamar um verdadeiro veneno,
servido pela imprensa ao público, um
miasma que se ergue dos prelos, um fermento de dissolução de costumes, e outros nomes igualmente feios. A não vermos
nestes fatos a confirmação daquelas
ideias que nas primeiras páginas expendi, não sei que outra solução razoável daremos ao problema.
É certo porém que o público
citado pelo regedor achava-se exatamente nestas circunstâncias. Todos os presentes abanavam a
cabeça em sinal de aprovação; nenhum
pela sua parte se mostrava escandalizado com o extemporâneo aparecimento de Maquelina, mas o complexo
pelos modos sofria muito com isso.
À referida observação da
autoridade umedeceram-se os olhos de Maquelina.
— E que lhe hei de eu fazer, Sr.
Bento Maria? Quem é pobre...
Houve sussurro na assembleia; o
adjetivo parecia beliscar o auditório.
— Pobre! É sempre o mesmo
estribilho — disseram algumas vozes.
O regedor serenou o tumulto,
dirigindo-se a Maquelina.
— Bem, deixemos agora isso. O que
a traz por aqui?
Maquelina explicou-se.
A indignação dos circunstantes
rebentou.
— Sempre é desaforo!
— Também é preciso ter
descaramento.
— É digna do irmão, já vejo.
— A alma do sovina meteu-se-lhe
no corpo.
— Quem esconjura esta mulher?
O regedor começou a franzir a
testa.
— Ora vejam a pobrezinha.
— Nosso Senhor a favoreça, irmã.
— Ora já viram!
O regedor levantou-se.
— Quem enterra o mano?
— Forte perda, se fica de fora!
— Aquele nem os bichos o querem.
— Leva rumor! Ai, que eu... —
rugiu por entre o regedor e todos imediatamente...
Silent, arrectis que auribus adstant.
Pudera; o ai, que eu... do Sr.
Bento Maria não ficou a dever nada ao cérebro quos ego...
de Neptuno. O regedor sabia como Virgílio o valor de eloquentes reticências.
Em auxílio da ordem veio ainda a
observação de um circunstante, dotado de sentimentos mais humanitários.
— A mulher tem razão, coitadinha,
se o miserável deixou tudo escondido.
As massas são fáceis de
impressionar. O alvitre modificou as opiniões.
— É assim, é assim.
— Pobre criatura!
— Que vale tê-lo, se se não sabe
aonde?
Por este tê-lo entendia-se
dinheiro; é de fato o substantivo que mais completas elipses suporta; tão presente o
trazem na ideia, que não necessita estar
nas orações antecedentes, para ser subentendido.
— Sim, sim, ela tem razão, é
pobre, e...
O regedor, enfarinhado nas praxes
constitucionais, não era homem que fosse de encontro à opinião dos fregueses, e
portanto, depois de concentrar por algum
tempo o espírito, operação que nem por isso lhe aumentou demasiado a energia, passou o seguinte atestado, modelo
de diplomacia e de exatidão ortográfica:
«Eu Bento maria do portal,
regidor de esta freguesia atesto, im como, maquilina, rosa, martins, solteira, de esta
Cidade, não tem, aberes para fazer, as despesas
do intero do seu irmon cepreano cujo, consta, ter dinheiro. Mas o qué certo é que por morte se não incontrou i
se é berdadeiro o dito do bulgo o debe
ter, nalgum iscondrijo, que ainda se não inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesto e mo diseram peçoas
diganas para mim de todo o creto, pacei
esta que juro.
Dada em esta Cidade a 12 de
Janeiro de...
Bento maria do portal.»
Bento Maria era decididamente o
funcionário público de mais expediente e de mais arrojadas medidas que existia então na
cidade.
Depois de mais algumas
dificuldades e tropeços sempre se conseguiu enterrar, à ordem da junta de paróquia, o velho Cipriano,
o qual de outra maneira bem teria de
ficar fora do seio da terra, por não haver deixado dinheiro.
Todos estes acontecimentos, longe
de desvanecerem os boatos das ocultas e sonhadas
riquezas de Cipriano, os aumentaram, e deram lugar a duas versões diferentes.
Uns, mas eram a minoria, lançavam
em rosto à nobre Maquelina o mesmo que
tinham imputado ao irmão; outros, porém, viam nela uma vítima, ainda além da campa, da sórdida avareza do
incorrigível octogenário.
Só Maquelina é que rejeitava uma
e outra crença. Sabia-se inocente e não se acreditava vítima. E, lutando com a idade
avançada, tirava forças da fraqueza e ia
provendo conforme podia ao seu sustento quotidiano.
Não pôde porém resistir
inteiramente às insinuações dos que falavam em tesouros enterrados e as portas da casa
abriram-se de par em par a uma junta de
inquérito, presidida pelo regedor, a qual, pelos mais escusos recantos, e a grande profundidade no quintal, procurou o
decantado tesouro, sem no fim colher
frutos de tantos esforços.
E as coisas conservaram-se por
muito tempo neste pouco agradável statu
quo.
Um dia, porém, pioraram, longe de
se desanuviarem, as circunstâncias de Maquelina.
Um sobrinho seu, filho de uma
irmã que morrera jovem, voltou do Brasil e, contra o que era de esperar, vinha como
partira, isto é, com a riqueza de Jó na
desgraça.
A história deste rapaz é uma
história longa e curiosa, que desta vez não contarei ao leitor.
Uma manhã pois, quando Maquelina
estava meditando em não sei que medida de
economia doméstica, importantíssima para a melhor direção das suas mesquinhas finanças, entrou-lhe pela porta
dentro um rapaz magro, espigado, de
fisionomia denunciadora de sofrimentos, o qual lhe estendia as mãos, dizendo:
— Bons-dias, madrinha, então não
me conhece?
— Santa Maria! Querem ver que...
És tu, Agostinho?
— Eu, eu mesmo.
A boa Maquelina saltou-lhe ao
pescoço e devorou-o de beijos.
O rapaz viu-se em talas e com
ameaças de asfixia.
Depois veio um pensamento à tia
Maquelina, pensando um pouco interesseiro é verdade, mas desculpem-na, e não ma comecem
já por isso a olhar com maus olhos;
todos como ela o teriam e, o que pior é, a poucos viria apenas em segundo lugar e só muito após dos espontâneos
impulsos de uma afeição desinteressada;
«o rapaz vinha do Brasil... e o Brasil... sempre é o Brasil» foi a ideia que lhe voou pelo espírito.
— Então — disse ela, movida por
essa ideia — vens... rico!
Agostinho virou os bolsos do
avesso por única resposta.
Maquelina juntou as mãos e também
não deu palavra.
E para quê? Queriam ainda de
parte a parte mímica mais expressiva!
— Vim para não morrer de fome.
Aqui benzeu-se a boa da tia.
— Embarquei como rapaz de navio
por não ter dinheiro para a passagem.
Neste ponto persignou-se.
— E agora venho pedir-lhe —
continuou o sobrinho — que me receba em
casa até... até... arranjar modo de vida.
Maquelina, quando, junto da pia
batismal do pequeno Agostinho, se declarara madrinha, à face da igreja, do filho querido
da sua irmã, tinha já concebido uma alta
ideia da missão que desde aquele momento ia adotar pela sua e para com o recém-nascido que sustentava nos braços;
nem foram para ela simples palavras de
formalidade as que em tom de prédica ouvira ao pároco sobre os seus deveres
futuros. «Na falta dos pais, dissera ele, aos padrinhos compete a vigilância e a educação das crianças, que sob
a sua proteção entraram no grêmio da
igreja católica.» Ora os pais de Agostinho lá se tinham já partido para melhor morada e Maquelina, que,
eminentemente escrupulosa em negócios de
consciência, se julgava por ela obrigada a cumprir até às últimas extremidades os seus deveres de cristã, tinha
para além do mais um coração farto para
afeições e sentimento.
Fechou pois os olhos aos sacrifícios
futuros e aceitou a companhia do afilhado.
Ele me ajudará também — dizia
consigo mesmo a boa mulher, como se quisesse
colorir com um pensamento egoísta o impulso, que lhe viera diretamente do coração!
Nós temos destas coisas.
Mas o certo é que, apesar da
melhor vontade, em pouco podia Agostinho auxiliar a madrinha.
Auxiliar de que maneira?
Emprego não o pôde ele obter.
Naquela cidade, como em muitas outras terras do reino, não se veem com bons olhos os
infelizes que voltam do Brasil pobres.
Lá parece uma prova de pouco espírito e de nenhuma aptidão a essa boa gente um semelhante sucesso.
O Brasil é, para ela, como o
campo de batalha. Ou volta-se de lá vitorioso ou morre-se combatendo. Fugir é de cobardes.
E ora aí têm os leitores a razão
porque, dois meses depois da chegada de Agostinho,
era ainda Maquelina quem só provia às despesas da casa, as quais, como era de supor, tinham aumentado;
desenvolvendo a pobre velha esforços sublimes
para um duplo resultado: obter meios de subsistência e ocultar ao sobrinho os imensos sacrifícios, a que para
isso se sujeitava.
Mas Agostinho suspeitava-os e
afligia-se.
Um dia falou à madrinha nas vozes
que corriam ainda sobre as riquezas do defunto.
Maquelina sorriu tristemente, respondendo:
— Pois procura-as.
Agostinho deitou-se à obra com
alma, revolveu de novo o quintal a mais de
um metro de profundidade, despregou as tábuas do soalho, sondou as paredes, trepou aos mais altos escaninhos da
casa... tudo foi inútil.
Disse adeus ainda a essa ilusão.
O que lhe valeu foi estar já costumado a despedir-se delas. A primeira vez custa mais.
No entretanto os esforços e as
vigílias de Maquelina arruinaram-lhe a saúde. Lutou braço a braço com a doença como lutara
com a fome. Lutas heroicas que passam
ignoradas, enquanto tantas outras, muito menos merecedoras das honras da epopeia, são extremamente celebradas
em oitava rima.
Afinal caiu vencida no leito, e
então é que o futuro se lhe mostrou carregado.
A pobre mulher não se iludia nem
sobre a gravidade da sua moléstia, nem sobre
as consequências da sua morte.
Que seria de Agostinho?
Agostinho, a quem ela amava já como se amam os entes fracos que vieram procurar a nossa
proteção, com esse amor bem mais intenso
mesmo do que o votado aos seres que nos protegem.
Porque o primeiro lisonjeia o
nosso orgulho, e o segundo, esse, revela a nossa inferioridade.
Coisas humanas.
O futuro de Agostinho era a ideia
negra de Maquelina; como ela ficaria contente
por morrer se não fora isso! Mas agora custava-lhe; esta lembrança aumentava-lhe a doença. Que diria ela à irmã,
quando do Céu lhe pedisse notícias do
filho? Que o deixara na miséria? E era isso de boa madrinha?
E estes pensamentos e apreensões
definhavam-na a olhos vistos.
Agostinho aterrou-se, e
reconheceu então tudo quanto tinha havido de heroica abnegação no procedimento da tia.
O coração de homem teve um
movimento pelo qual procurou libertar-se da espécie de colapso em que infortúnios
continuados o tinham lançado. Agostinho
curvara a cabeça sob a corrente de desgraças que sem interrupção tinham sucedido na sua vida; agora tentava
elevá-la num último esforço.
— É preciso tentar fortuna —
dizia ele consigo — amanhã de manhã sairei
a pedir trabalho, a tudo que me sujeitar, a tudo.
E adormeceu com este pensamento,
sonhando-se daí a pouco numa mina de ouro,
onde, ao fim de muita fadiga, só conseguia extrair enormes pedras de carvão.
O leitor pode imaginar toda a
agradável voluptuosidade de semelhante sonho.
Por a manhã ergueu-se disposto a
realizar o projeto da véspera; mas foi encontrar
a tia num estado tão assustador, que não teve ânimo para abandoná-la.
— Não tem de ser! — disse consigo
Agostinho, a quem a desgraça quase tornara
fatalista.
Maquelina mostrava-se de fato em
risco iminente.
O facultivo de partido veio
vê-la; pois Maquelina havia enfim conseguido entrar no quadro dos pobres.
Tomou-lhe um pulso, depois o
outro; deu-lhe três pancadas do lado direito do tórax, igual número do esquerdo; pousou-lhe o
ouvido sobre as descamadas costelas, e,
como se escutasse lá dentro os passos da morte, ergueu-se e fez um gesto de descontentamento visível.
Receitou um chá de alteia e saiu.
Agostinho esperava-o à porta.
— Então?
O médico puxou pelo relógio, ao
qual começou a dar corda, dizendo com a indiferença
profissional:
— Como àquela máquina se não dá
corda como a esta, pára em poucas horas.
Agostinho sentiu subirem-lhe as
lágrimas aos olhos.
O médico voltou-se ainda de novo
para dizer:
— Eu escuso de cá voltar, agora o
padre.
Estas palavras, ditas em tom mais
alto e da maneira mais natural possível, como as sabem dizer alguns adeptos de ciência
hipocrática que se jactam de fortes,
chegaram aos ouvidos de Maquelina, que juntou as mãos, e, erguendo os olhos ao céu, disse com voz débil:
— Aqui está a serva do Senhor,
cumpra-se em mim a Sua santíssima vontade.
Quando Agostinho entrou no
quarto, encontrou-a resignada.
Nessa mesma tarde confessou-se e
sacramentou-se aquela pobre de Cristo.
Na cidade dizia-se:
— Coitada! o irmão matou-a. Morre
de fome e fadiga e com dinheiro em casa.
Era forte preocupação a do povo!
Mas há dessas teimas.
Ao pé da noite pediu Maquelina um
chá para mitigar a sede. Naquele dia não se acendera ainda o lume em casa. Agostinho
esquecera-se de comer e, se se lembrasse,
não sei bem o que teria sucedido.
Melhor foi que se não lembrasse.
Agostinho correu à cozinha,
reuniu a custo alguns cavacos já meio queimados para acender o lume, e voltou à sala.
Maquelina dava-lhe instruções da
cama.
— Ainda achaste lenha?
— Achei, sim, madrinha.
— Bem; ora agora... Essa
lamparina está acesa ainda?
— Está, madrinha, está, pois não
vê?
— Não, filho, já anão vejo.
Havia neste já uma significação
que comoveu Agostinho.
Ela continuava:
— Encontraste carqueja?...
— Não, madrinha... mas...
— Valha-me Deus — disse ela,
lutando já com dificuldades para se fazer ouvir. — Olha, sabes, aí... na gaveta do
toucador... esta uma papelada de que... às
vezes me sirvo para economizar. Acende alguma na... lamparina e... Ai! — terminou ela com um suspiro, que o longo
esforço que tinha feito para falar lhe
tornara necessário; e depois em voz mais baixa acrescentou:
— Louvado seja o Senhor, a que
estado eu cheguei!
Agostinho abriu a gaveta.
— Aí — continuou Maquelina com
voz sumida e trémula.
— Achaste? bem... ora agora...
Agostinho inflamou à chama
escassa da lamparina um dos papéis que tirara do velho toucador da tia.
— Isso — disse esta satisfeita
por se ver compreendida.
Às sombras indistintas que
reinavam no aposento sucedeu a claridade da lavareda, mas foi de pouca duração. Ainda não
teria ardido metade do papel, já
Agostinho, soltando um grito inexprimível, o atirava ao chão, abafava-o com os pés, precipitando ao mesmo tempo pela
vivacidade do movimento a lamparina, que
se fez em pedaços.
A escuridade tornou-se completa.
— Que foi, santo nome de Jesus!
que foi, Agostinho? — dizia assustada Maquelina,
erguendo-se a meio corpo.
— Que papéis eram estes, minha
madrinha?
— Eu sei lá, filho: mas que foi?
valha-me o Senhor.
— Uma luz! uma luz! — bradou
Agostinho fora de si; e saiu repentinamente
da casa, atravessou a rua, enfiou pela primeira porta que encontrou aberta, galgou um lanço de escadas,
penetrou num quarto onde trabalhavam
pacificamente algumas mulheres, apoderou-se da luz que viu no meio da mesa, em volta da qual elas se
formavam em círculo, e, sem dar uma única
palavra, saiu arrebatado, deixando em completa estupefação as circunstantes, que só passados minutos
voltaram a si, para correrem atrás do mancebo,
que parecia possesso.
Agostinho entrou de novo no
quarto da tia moribunda, aproximou-se do lugar onde deixara os restos do papel meio
consumido, apanhou-o, examinou-o com
escrupulosa atenção, depois correu à gaveta do toucador, sujeitou a igual exame os outros papéis semelhantes, que aí
estavam a monte.
— Por amor de Deus, madrinha...
mas... donde vieram estes papéis? — exclamou
ele, ao passo que um por um os passava em revista.
Maquelina, apoiada no braço
convulso e com os olhos espantados, olhava para o sobrinho estupefata.
— Eram do mano, o Senhor o tenha
em glória; guardava-os naquela arca; ele
sempre me disse que de nada valiam e agora que eu me via precisada ia-os queimando, para...
— Mas, valha-nos a Virgem! era
uma riqueza inteira que queimava assim!
— Que dizes tu, filho?
Os combustíveis da tia Maquelina
eram nem mais nem menos que boas notas e
excelentes notas de banco, às quais o velho Cipriano reduzira os seus haveres porque o amedrontava o tinir do
dinheiro metálico, como chamariz de
ladrões: enquanto que por outro lado nunca se pudera resignar a separar-se do seu querido capital, em cuja contemplação
saboreava aquela doce voluptuosidade só
dos avarentos conhecida.
Quando se procedeu a
investigações em casa de Maquelina para descobrir o tesouro oculto, esqueceram-se, como quase
sempre acontece, de examinar os lugares
por onde deviam ter começado; enquanto aprofundavam a terra e escavavam as paredes, ninguém se lembrou de
abrir a pequena gaveta, que nem chave
tinha sequer, e onde Maquelina alojara toda a riqueza. Mas quem o podia supor?
O instinto do povo não o enganara
desta vez.
Cipriano era de fato rico. Viveu
uma vida de privações, praticou um negócio de alta usura debaixo das maiores cautelas e
mistério impenetrável; aí está explicada
a sua riqueza.
É receita infalível para chegar
ao mesmo resultado; as pessoas a quem não nausearam os ingredientes adotem-na, porque
não falha.
Desconfiando de todos, da própria
irmã desconfiava e dava-lhe por isso a entender
que de nenhuma importância eram os papéis que ela às vezes por acaso chegara a descobrir.
Maquelina era ignorante e nem
imaginava sequer que se pudesse ter uma riqueza
em papéis. Na sua inteligência, como na das crianças, a ideia de riqueza andava associada à de muito dinheiro
em ouro e prata: gavetas, cômodas,
caixa, burras cheias dele; e por isso ia queimando agora lentamente aquele tesouro que o irmão acumulara; e isto
com o fim de poupar carqueja!
Cleópatra, brindando os amantes
com soluções de pérolas preciosas, não conseguiu
ser mais magnífica.
Era um passatempo de milionária o
de Maquelina.
Se Deus lhe prolongasse a vida,
até onde iria aquela monstruosa combustão? Que soma enorme seria aniquilada!
E ainda assim quanto não
consumiria!
Nunca se pôde calcular.
Há o que quer que é de sublime
neste quadro. Uma mulher velha, caquética, esfomeada, agonizante, tendo ao alcance do
braço uma riqueza, como ela nem sequer
concebera nos seus mais ambiciosos sonhos, e queimando-a!
A notícia inesperada que recebia
agora imprimiu àquela existência o derradeiro abalo. A alma, já quase desapegada do corpo,
abandonou-o de todo e partiu.
À meia-noite morreu a santa
criatura, contente porque deixara rico o sobrinho e afilhado, único parente que possuía na
terra.
Ainda assim, quando se divulgou a
notícia, o que, graças à comunicabilidade das mulheres a quem Agostinho usurpara a luz e
que foram as primeiras a sabê-la, se não
fez esperar muito, houve quem se penteasse como herdeiro.
Faria rir se expusesse aqui os
fundamentos das pretensões desta gente, e eu não quero fazer rir o leitor, a quem peço
antes uma lágrima para a memória de Maquelina.
Não seguiremos agora a história
de Agostinho, que se modela por a de todos os homens ricos.
Apenas direi que pelas suas
especulações comerciais conseguiu multiplicar o capital tão inesperadamente herdado e hoje é
milionário.
Vejam o instinto do povo!
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Nota:
Júlio Dinis: "Serões da Província" (1870)
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