JUSTIÇA DE SUA MAJESTADE
CAPÍTULO I
FERVET OPUS!
Era por uma manhã de Abril de
1852. O campo vestia-se dos seus mais opulentos
e matizados trajos.
O Minho estava fascinador.
Por toda a parte eram já
espessuras frondosas e impenetráveis; sombras discretas; vales misteriosos e encantadores,
graças ao claro-escuro, com que a vegetação
renascente os coloria; colinas adornadas e festivas, como um trono de altar em capela rústica; enfloradíssimos
silvados, veigas a exuberarem de vida;
e, por entre tudo isto, casas de brancura ofuscante, e acima de tudo um céu azul, daquele azul dos céus napolitanos, a
meu ver, tão culpados na existência dos lazzaroni.
As torrentes estavam nas suas
horas de bom humor não bramiam, murmuravam
apenas; não se precipitavam impetuosas do alto dos outeiros, deixavam-se escorregar pelas anfractuosidades
das quebradas.
Os ventos, como que arrependidos,
pretendiam com afagos fazer esquecer aos arbustos mais tenros as violências passadas.
A luz salutar da Primavera
convertia-se, por mágica metamorfose, em perfumes que embalsamavam os ares, em flores
que esmaltavam os prados, em harmonias
vagas que as brisas transportavam de selva em selva, que as aves escutavam atentas e os ecos repercutiam
sonoros.
Nestes dias assim sente-se
palpitar de vida a natureza inteira.
Por toda a parte se realiza um gênesis.
No solo é o grão que germina; nos troncos
as novas folhas que brotam; nos ramos as flores que desabrocham; nas águas, nas florestas, nos vergéis, nos
ares, uma jovem e inquieta geração de
aves e de insetos que surge, animando tudo com os seus magníficos concertos, com as valsas incessantes e
rápidas, iluminadas por um sol vivificador:
É contagiosa esta alegria da
natureza.
O coração recebe o impulso dela.
A vida tem então também a sua
inflorescência. Nesta quadra as ilusões, as esperanças, as mais puras e ideais concessões
de fantasias exaltadas pululam, como as
boninas na relva; a alegria, os risos e os prazeres refletem-se nos rostos, como a luz do arrebol nos cimos dos
outeiros; ama-se melhor, perdoa- se melhor, e a poesia e os cânticos saem tão
espontâneos, como o trinado dos pássaros
de entre a folhagem dos pomares.
A fisionomia das cidades perde
também então um pouco da sua habitual gravidade.
O vento que lhes vem dos arrabaldes inocula-lhes este fermento de folgazão regozijo. A Primavera desinquieta-os,
sedu-los, atrai-os, a esses soturnos
cidadãos, e a população urbana transborda nas aldeias circunvizinhas.
Os mais sisudos burgueses, que
durante o Inverno, revestidos da gravidade do seu paleta, e confiando os pés à
impermeabilidade dos seus sapatos de guta- percha, passavam sérios e
ponderosos, cortejando-se com irrepreensível compostura, agora vestidos de linho, de chapéu
de palha de forma pastoril e leveza que
não era de esperar da sua idade e posição, seguem, prazenteiros, caminho do campo, contando anedotas de índole
pouco edificante, fazendo sentir o sabor
do sal, não absolutamente ático, que as tempera: recordando as mais atrevidas coplas da Maria Cachucha,
acompanhadas de exibições coreográficas
de fazerem estalar de riso a parte feminina do rancho que capitaneiam.
É a época do esplendor dos «bons
retiros» campestres. Mas em 1852, alguma coisa havia, além da costumada influência da
Primavera, a sobressaltar a laboriosa
população do Norte do reino. A antiga província de Entre Douro e Minho mostrava o que quer que era
extraordinário no alvoroço e geral agitação,
que por toda ela ia.
No Porto trabalhavam com azáfama
as modistas, os alfaiates, os sapateiros, as luveiras e os doceiros; enchiam-se a deitar
por fora as hospedarias; espanavam-se,
como em dia de procissão, as varandas, a cujos pacíficos aracnídeos se declarava guerra de extermínio;
lavavam-se as vidraças, caiavam- se as fachadas, e, graças a esta limpeza geral
que se fazia nas casas, os passeios tornavam-se
intransitáveis. Ruas e largos eram calçados com uma atividade sem análoga nos fastos do município. As
sessões extraordinárias do excelentíssimo
corpo camarário não permitiam um momento de repouso aos preocupados edis.
Uma população exótica das
províncias, trajando de uma maneira incrível, acotovelava-se nas praças, e, extasiada diante
das exposições de ouro da Rua das Flores
dificultava a passagem ao cidadão portuense, cuja proverbial celeridade era desta vez, por força maior,
modificada. A guarnição militar da cidade
limpava e envernizava as correias e estudava o exercício, e nos quartéis de Santo Ovídio, S. Bento, Cano e Torre da Marca
ressoava de contínuo a música marcial
das bandas que se ensaiavam.
Na Rua das Flores e à entrada das
Hortas erguiam-se arcos triunfais de madeira
e lona e de uma arquitetura problemática; no cais da Ribeira construíra-se um pavilhão de duvidosa elegância;
no centro da Praça de D. Pedro
terminava-se um obelisco, diversamente comentado pelos cadeirinhas do passeio do poente, pelos políticos do sul,
pelos vigias e empregados municipais do
norte, e do lado do nascente pelos grupos de elegantes, e literatos, que então estacionavam nas
imediações do Guichard, aquele café que há
de merecer uma menção honrosa na história da literatura portuense, se alguém se lembrar de a escrever um dia.
À entrada dos Aloques... — mal
agourada procedência — montava-se o primeiro
gasômetro que viu a cidade invicta, destinado a iluminar a gás uma árvore alegórica, em que se trabalhava a toda
a pressa no Alto da Rua de S. João.
Este movimento não ficava
concentrado entre os limites das barreiras, estendia-se para o sul a Vila Nova de Gaia,
onde, no alto da Bandeira, se construíra
também um arco e por toda a estrada de Lisboa até além de Grijó; para o norte também a tranquila vida da
província havia sido alterada. Desde os
fidalgos que lavavam os brasões das suas armas e reformavam as librés desbotadas dos criados, até o aldeão, que
tirava do fundo da caixa meia dúzia de
cruzados novos, cuja integridade e boa conservação eram dignas daquelas dinheirosas épocas de D. João V que os mandara
cunhar; todos, mais ou menos,
participavam deste geral alvoroço.
É tempo de dizermos o motivo de
tanta e tão excecional agitação destes estranhos
preparativos de festa, se é que o leitor o não tem já descoberto. O motivo era efetivamente para todos estes
resultados.
As províncias do norte, que
muitos anos havia não tinham visto um monarca, preparavam-se para receber e saudar a virtuosa
filha do valente Soldado, de cuja
gloriosa história aqui se tinham escrito as páginas mais brilhantes e simpáticas.
No espaço de vinte anos o Porto,
e o Norte do reino, assistira a muitas revoluções,
passara por muitos sacrifícios, defendera a todo o transe o estandarte da liberdade, plantado pelas suas
mãos nas memoráveis areias do Mindelo;
acontecimentos políticos, quase que sem análogos na história das nações, observara-os o Minho, e nesse sentido
já de pouco se podia admirar, mas
desafizera-se da vista da realeza; era para toda esta boa gente quase um espetáculo novo.
Os mesmos soldados de D. Pedro
não estavam habituados a ela. Era o duque de Bragança, o coronel de Caçadores 5, que
militara ao seu lado, e não o rei ou o
imperador, que antes de desembainhar a espada e subir com os mais bravos às trincheiras do Porto, havia deposto
o cetro e as duas coroas, e despido os
arminhos e a púrpura real.
O geral do povo fazia dos
emblemas da majestade uma ideia fabulosa.
O manto de S. Luís, da igreja dos
Franciscanos, era um acessório, sem o qual não se podia conceber um rei, e de antemão
preparavam-se para admirarem o esplendor
e a preciosidade da coroa de ouro, que devia cingir a cara da soberana.
A multidão, como sempre e em toda
a parte, atraída pelos espetáculos novos, aglomerava-se à borda das estradas por onde
devia passar a real comitiva. Pinhas de
cabeças infantis rompiam por entre a folhagem dos álamos do caminho; as cobertas de damasco e as colchas
de chita ramosa adornavam as janelas,
onde se encaixilhavam curiosos e pitorescos grupos de fisionomias dos mais diversos aspetos, rindo, berrando,
gesticulando, pasmando; as câmaras
municipais estavam a postos, tendo em punho os formidáveis e irresistíveis documentos da sua eloquência; o
presidente suava; o regedor decretava, e
os cabos de polícia passeavam a sua autoridade por entre as turbas que se afastavam respeitosas.
De vez em quando, uma nuvem de
poeira ao longe, um coro desafinado de vivas
infantis punha tudo isto em alvoroço, ferviam os cotovelões, distribuíam-se com profusão as trilhadelas,
assobiava-se, gritava-se, berrava-se, imitavam-se
as vozes de todos os animais possíveis e impossíveis, esqueciam-se as
conveniências; um espectador pacífico sentia-se literalmente montado pelo vizinho, e vingava-se, procedendo de
igual sorte, com o que lhe ficava diante;
a população subia até aos telhados, pendia, como cariátides, das telhas e das cornijas; os camaristas sacudiam com os
lenços o pó das suas botas excepcionais
e começavam a tirar os chapéus, o presidente começava a desenrolar, com a gravidade que o caso pedia,
o monumental discurso...
Tudo em vão!
Era a carruagem de um
proprietário das imediações, o qual seguia para o Porto, onde tinha um peitoril à sua espera e
um lugar no teatro para essa noite.
Estes rebates falsos sucediam-se
a miúdo. Desde o princípio da manhã a vereação
estava esperando!
Afinal chegava o cortejo. Os
foguetes estouravam com um estampido digno do município; os vivas elevavam-se num
crescente ameaçador; uma nuvem de crianças
precedia os batedores; tudo falava na sua passagem, tudo arrastava consigo; o povo pendurava-se às portinholas do
carro em que vinha a família real,
devorava com o olhar a rainha, o rei e os príncipes, e ficava como que espantado de os ver rir e conversar como
simples mortais.
Às vezes, chegado o momento
solene, o orador municipal engasgava-se à leitura da felicitação que andava estudando
havia um mês. O povo, a arraia miúda,
sempre desatenciosa, atropelando então todas as noções de acatamento envolvia os camaristas com
irreverência indesculpável e impedia assim
que as suas municipais figuras se destacassem de um modo conveniente.
O cortejo passava, e cada qual
ficava fazendo comentários sobre o trajo, o chapéu, o sorrir, os modos, os gestos ou as
palavras das suas majestades e altezas.
E isto se reproduzia, quase
invariavelmente, em todos os pontos da estrada até ao Porto, onde cenas não menos curiosas se
passaram então.
A agitação, que, segundo já
dissemos, havia muitos dias alvoroçava a cidade, subira de ponto à medida que o telégrafo
noticiava a chegada dos reais viajantes
às terras mais próximas deste heroico baluarte das liberdades pátrias.
— Era assim que os poetas e os
jornalistas chamavam ao Porto nas odes e artigos que estavam elaborando para a ocasião.
Na manhã da véspera tinham
começado a rodar, em direção aos Carvalhos, as carruagens e trens das principais personagens
da cidade a esperar suas majestades e
altezas, que na noite desse dia ali repousaram. Para lá estava ainda o governador civil, o general da
divisão, e vários titulares antigos e recentes,
bem como uma turba muito maior de aspirantes a titulares; viam-se passar a todo o momento as deputações de
vários corpos coletivos que corriam a
felicitar os augustos hóspedes. As casacas, as gravatas e luvas brancas, as fitas dos hábitos e comendas, as
fardas agaloadas, os chapéus armados
perpassavam, como brilhantes e rápidos meteoros, perante os olhos curiosos dos peões que, depois de cortejarem
os seus possuidores, lhes ficavam
redigindo uma biografia digna de Tácito pela severidade.
O dia estava sereno e límpido. Um
noticiarista pôde escrever, esfregando as mãos por ter de empregar um pensamento sempre
novo: — Dir-se-ia que até o tempo,
ostentando o seu brilho e galas, quis manifestar alegrias confundindo as suas homenagens.com o regozijo público.
A ansiedade geral tocava o seu
auge. Ás onze horas da manhã interrompiam-se todas as transações comerciais.
Fechavam-se as lojas, como em dia santificado.
Os pais de família conduziam já a fascinadora prole para as sacadas do amigo, que tinha a infelicidade de
morar num a das ruas do trajeto, e
indiretamente arrastavam atrás de si, sem o saber, uma corte mais ou menos
numerosa de fascinados.
Os corpos da guarnição marchavam
ao som das músicas marciais, estimulavam
o entusiasmo da população. Precedia-os uma turba tumultuosa de garotos, que se voltavam seduzidos pelo
brilhantismo das fardas de grande gala e
pelas evoluções do tambor-mor. No cais da Ribeira, onde afluíam os curiosos de todos os lados para assistirem ao
desembarque e à cerimônia da entrega das
chaves, a multidão era compacta, a ponto de dificultar a trânsito das carruagens dos vereadores e as manobras
dos batalhões do cortejo.
Era um oceano de cabeças,
ruidoso, agitado, ameaçador! Donde como de um pandemônio, partia a gargalhada, o grito, a
aclamação, o insulto, o apupo, a ameaça,
os vivas e os morras que a curiosidade revolvia, e fazia ondular em grandes e impotentes marés. O Douro, coalhado
de navios, barcas, lanchas, escaleres e
canoas embandeirados, e refletindo nas suas águas, então serenas, a ponte pênsil, toda adornada de flâmulas e
galhardetes, oferecia um aspeto risonho
e festivo, que lhe não é habitual.
Ao meio-dia as salvas de
artilharia, o estourar das girândolas, e o repique dos sinos, comunicando uma violenta comoção às
turbas impacientes, anunciavam que a sua
majestade chegara ao alto da Bandeira.
Meia hora depois desembocando da
estreita e tortuosa Rua Direita na praia de Vila Nova, ao som dos vivas dos nossos
vizinhos de além-Douro, correspondidos pelos
dos portuenses, o cortejo real encaminhava-se para o rio, que, por entre fileiras de embarcações de
todo o gênero, atravessou.
No momento do desembarque, a
multidão teve um paroxismo de curiosidade entusiástica, para resistir ao qual a
guarnição militar obrou prodígios, que os fastos da polícia portuense deveriam registar.
Esta crise durou todo o tempo empregado
por o cortejo real em sair dos escaleres e entrar no pavilhão, onde o presidente da câmara pronunciou a
felicitação do estilo e ofereceu a suas majestades
as chaves da cidade, e só terminou quando de novo tudo se pôs em marcha, observando a pragmática que a
etiqueta cortesã instituiu para casos
tais.
Os sinos repicavam, os foguetes
subiam aos ares, as janelas e varandas vergavam
sob o peso dos espectadores, as flores choviam sobre o carro real, flutuavam as bandeiras, as flâmulas e os
damascos de diversas cores; o cheiro das
espadanas e mais verdes, que juncavam as ruas, completava as aparências de festa. A multidão continuava-se compacta da
Ribeira até à Lapa, onde devia ter lugar
o Te-Deum, e da Lapa ao palácio dos Carrancas, da Torre da Marca, ainda então propriedade de particulares.
Estava enfim D. Maria II nos
muros da cidade invicta.
CAPÍTULO II
EM QUE TRAVAM CONHECIMENTO ALGUMAS PERSONAGENS DESTA
HISTÓRIA
Nós, porém, deixaremos o Porto,
justamente na ocasião em que de todos os lados aflui gente para ele, atraída pelas
iluminações, paradas, espetáculos líricos e dramáticos, bailes, ceias, lanches e
almoços, com que, durante oito dias, se ocupou
a população desta invicta cidade, que não desmentiu seus brios de abastada e amante da dinastia.
Os poetas contribuíram com o seu
contingente de sonetos, odes, hinos, cantatas
e elogios para o esplendor dos festejos.
Nos diários da época mais
circunstanciadas notícias do que quantas eu lhes pudera aqui dar, encontrarão os que as
desejarem.
O Porto conservou-se em folguedo
permanente até os princípios de Maio. Na manhã do dia 5 partiu a corte em direção às províncias
do Norte, indo almoçar a Castedo, onde a
câmara de Bouças serviu à família real, juntamente com o almoço, uma felicitação.
Precedendo o luzido cortejo,
percorramos a extensão da estrada que vai deste lugar a Vila Nova de Famalicão, onde teremos
de nos demorar.
Por toda a parte era movimento e
vida!
Por baixo de um sem número de
arcos campestres e dos festões de murta e de flores, que adornavam todas estas léguas de
caminho, moviam-se e agitavam-se consideráveis magotes de gente da aldeia que,
a todo o momento, os caminhos laterais vazavam na estrada.
Os trajos pitorescos do Minho, as
cores garridas dos lenços e saias, a alvura das camisas de linho, o brilho dos cordões e
das arrecadas, as festas de viola e clarinete
acompanhando vilancetes improvisados de alguma cantadeira famosa, davam a toda esta multidão, que se
enfileirava de um e de outro lado da
estrada ou, acampada em grupos nas devesas e pinhais vizinhos, procedia a apetitosos repastos, complemento de todos os
regozijos populares no Minho, um ar de
satisfação indescritível.
De tempos a tempos viam-se passar
caleças, cabriolés ou carroções — esse portuguesíssimo
veículo, contra o qual o Sr. Ricardo Guimarães soltara já então o fatal grito de extermínio — conduzindo
famílias que regressavam, repletas de
festejos, à sua casa de província; outras vezes eram correios de secretaria, carroças de bagagem, oficiais da
corte encarregados de disposições para o
alojamento do séquito real, liteiras com eclesiásticos, militares a cavalo, destacamentos de infantaria e em suma toda
essa população que, em tais ocasiões, se
vê circular de terra em terra ou por obrigação e oficio ou por curiosidade e prazer.
Foi então que se deu um fato
notabilíssimo, que a posteridade acoimará de fabuloso, como nós hoje acoimamos, já não digo
as façanhudas proezas do cavalo de
Alexandre, mas até, com cena escola histórica, as históricas ações dos sete reis de Roma.
Um dia, o povo portuense viu
partir, caminho do Norte, uma legião de cadeirinhas,
que, a passo regrado, uniforme, imperturbável e filosófico até, transpôs as barreiras da cidade invicta, para
demandar as da augusta Brácara.
Na cara destes beneméritos da
humanidade reluzia uma auréola que revelava a importância da missão que iam cumprir assim!
Nunca tão sublimes de estoicismo
escutaram as chufas e apupadas dos garotos; nunca tão cônscios da sua importância social guardaram mais solene
silêncio, apenas, de vez em quando,
interrompido por uma interjeição galega, que o tropeço de um adepto novel desafiara. Com que denodada coragem
tomavam o caminho da peregrinação,
transportando, com cadenciado movimento, o inseparável veículo!
E contudo o projeto que assim os
reunia em bandos era para fazer enfiar os mais ousados.
As façanhas de Hércules não lhe
eram superiores; a empresa imposta por Carlos
Magno a Hugon ou Huol, do poema de Wieland, não era de mais difícil execução.
Estes destemidos heróis
propunham-se a nada menos que a fazer viajar no Gerês — a por 2$400 réis! — toda a corte e a
família real!
Que pena que circunstâncias,
alheias ao ânimo dos novos e intrépidos argonautas,
impedissem por fim a realização desse feito! A humanidade enriqueceria a sua crónica de heroicidades e a
águia das serras abateria o orgulho, vendo
ao seu lado o cadeirinha, limpando o suor que o nobilitava e pendurando o capote listrado nos mais altos
picos dos rochedos, como o guerreiro
vitorioso pendurava na sala de armas a cota, o elmo e o morrião dos combates.
Menos feliz que o Porto, Vila
Nova de Famalicão sentia um pesadelo no meio dos seus regozijos. O dia não estava seguro.
Grossas nuvens, assopradas do sul,
empanavam, de espaço a espaço, a claridade da manhã; aumentavam, corriam e cerravam-se prestes a fundirem-se
num a só massa, como para reprimir todas
aquelas expansões de entusiasmo festivo.
Junto a um arco de dimensões
colossais, flanqueado de um e outro lado por duas altas colunas, e que fora erigido logo à
entrada da vila, estacionava a câmara,
dignitários e mais convidados para a solenidade da receção. Deste numeroso grupo a todo o instante se erguia uma
cabeça para fitar as nuvens, de cujo
aspeto e movimento se auferiam vários prognósticos meteorológicos.
— Isto passa, — dizia um velho,
cujo pescoço, armado de uma inflexível gravata
branca, mal lhe permitia o movimento necessário para fitar o céu.
— Hum! Não sei, — respondeu-lhe
um dos vereadores com ar de abatimento.
— O vento está do sul.
— Ainda quando tenhamos chuva, é
lá mais para tarde. Quando o vento acalmar,
pode ser — opinava um terceiro.
— O pior é ser hoje quarto
crescente.
— Pois se temos água para a
noite, devem ser interessantes as iluminações! — observou um indivíduo, que, tendo sido
encarregado dessa parte dos festejos,
via a sua glória futura ameaçada de se evaporar, ou, mais propriamente, de se fundir na inundação que
receava.
— Uma coisa assim! — suspirava
um, lembrando-se do chapéu novo que estreara.
— Vão-se demorando! — respondia-lhe
outro, a quem a incômoda construção de
umas botas de polimento tomava impaciente.
— Faz-se-me tarde para o jantar,
— retorquia-lhes um velho, consultando o
relógio e dando a entender num a visagem expressiva que este adiamento era o máximo sacrifício que podia fazer à
realeza.
E com os ânimos assim dominados
pela impaciência ou pelo receio, uns bocejavam,
outros assobiavam, outros passeavam e todos estendiam a vista pela estrada, a descobrir vestígios do que tão
ardentemente esperavam.
De repente um som distante de
morteiros e foguetes veio aumentar-lhes a ansiedade.
Chegara enfim o momento?
Tudo se pôs a postos. Erguiam-se
nos bicos de pés e estendiam os pescoços.
De fato, passados alguns momentos
mais, assomava no extremo da estrada, onde
convergiam todos aqueles raios visuais, um cano de grandes dimensões e de formas ainda não conhecidas ali, que,
puxado por mais de uma parelha e envolvido
num turbilhão de poeira, se aproximava a toda a brida do lugar donde o observavam estes ansiosos
espectadores.
— Aí estão — disse um dos camaristas,
conjeturando que não podia deixar de ser
real um tão estranho meio de locomoção.
E, a um sinal dado, o morrão
aproximou-se dos foguetes aprestados, e uma
salva de girândolas subiu aos
ares, quando o referido carro parava junto do arco triunfal.
Estava dado o alarme na povoação.
A câmara aproximou-se da
portinhola.
Oh, desapontamento! Em vez do que
esperavam encontrar, apenas depararam com
meia dúzia de fisionomias, que os olhavam sorrindo, como se compreendessem e saboreassem o equívoco.
Caíram então em si.
Era uma das diligências da
companhia Viação Portuense, que escolhera aquele dia solene para inauguração das suas viagens.
Não inventamos. Os viajantes que
receberam nesta jornada um acolhimento de
príncipes, eram pela maior parte desta cidade, e ainda hoje não terão por certo esquecido a honraria que um engano lhes
proporcionou.
Quando o presidente, chegando ao
cano, se preparava talvez para recitar os primeiros períodos da sua alocução, deu de
chapa com o rosto rubicundo e jovial,
que, surgindo a um dos postigos, disse para os circunstantes:
— Guarda dentro, guarda dentro, e
à vontade. Safa! Não se pode viajar incógnito
por esta terra.
Os espectadores fizeram uma certa
careta expressiva porque tinham reconhecido
a pessoa que assim lhes falava.
— Então isso faz-se, José? —
disse-lhe em tom de amuo um dos enganados.
— E célebre! — continuava este, e
depois de descer do cano e recebendo de
um criado o saco de viagem. — É célebre! Viemos em triunfo! Nunca imaginei que me estavam reservadas estas
glórias! Com que preparavas-te para me
recitar a tua felicitação, não é assim? — dizia para o orador municipal, que começava a achar graça ao sucedido. — Escapamos
de boa, meus senhores — disse depois
para os seus companheiros de jornada — escapamos de boa! A eloquência de município! Que pesadelo! E os
foguetes? Com os diabos! Esgotaram a
provisão? Depressa! depressa! Olá, João das Pipas, acende outra vez o morrão, meu homem. Perdeste o teu tempo
e a tua ciência. Mas não tem dúvida.
Vocês, sem querer, saudaram um grande acontecimento — a inauguração da Companhia Viação Portuense, da
qual eu possuo vinte e três ações. Não
sabem o que saudaram com esses foguetes? Saudaram o Minho, saudaram Braga, saudaram o progresso, os
melhoramentos desta nossa terra, o engrandecimento
da província, do comércio e da agricultura. Não vos arrependais, meus amigos: não choreis o
dinheiro do município, que estourou agora
nos ares. São de bom agouro estes estouros. São palmas dadas a um grande cometimento. Não estivesse eu com fome,
que vos dissera já aqui quanto há a
esperar desta caranguejola em que eu vim mais estes cavalheiros, meus amigos, de quem me despeço hoje, porque
já agora aproveito a ocasião para ir a
Barcelos na comitiva real. Pensai vós nisto, e dai por bem empregada a pólvora que consumistes. Todavia ponde-vos
outra vez a postos, que as suas majestades
não tardam, e preparai também os guarda-chuvas, porque já sinto cair as primeiras pingas.
E, terminando este aranzel, que
os circunstantes escutaram com um sorriso nos lábios, o jovial acionista da Companhia
Viação Portuense dirigiu-se, a correr,
para a estalagem vizinha.
O seu prognóstico era verdadeiro.
A chuva começava a cair; e quando os coches
reais entraram na vila era já tal a cópia de água, que não pararam para se ler a felicitação camarária, e seguiram
imediatamente para a casa do Exmo. Sr.
António Emílio Brandão, onde a família real tinha de pernoitar.
Estava em maré de infelicidades a
câmara de Vila Nova de Famalicão.
No entretanto o indivíduo que
vimos sair da diligência, fazendo alarde do desapontamento dos seus amigos de Vila Nova,
subia apressado os lanços da escada da
hospedaria.
Era um velho baixo e magro, mas
todo viveza e atividade, de uma fisionomia aberta e expansiva, olhos penetrantes e lábios
habitualmente risonhos.
Trajava vestuário de jornada, e
mostrava claramente em certas particularidades do seu equipamento de viagem, não ser noviço
nestas empresas.
Trauteando um dos muitos hinos
com que, durante os dias que passara no Porto,
tivera vagar de encher os ouvidos, avançava a dois e dois os degraus, seguido do criado que lhe trazia as malas.
No primeiro patamar encontrou-se
frente a frente com o dono da hospedaria, que se descobriu ao avistá-lo.
— Olá! Viva o patrão. Passasse
muito bem. Quero um quarto para esta noite.
O estalajadeiro fez uma visagem
de embaraçado.
Então? Vamos, adiante. Mostre-me
um quarto, que tenho pressa.
— Mas... Valha-me Deus, Sr. José
Urbano... E que eu não tenho nenhum quarto
que lhe dê.
José Urbano fez um gesto de
espanto, e pôs-se a olhar fito para o seu interlocutor.
— Com os diabos! Sr. Manuel! Você
esquece-se que está falando com um dos
mais assíduos fregueses da sua baiúca?
— Não, senhor; mas é que eu não
podia adivinhar que Va Sa chegava hoje e
pretendia ficar aqui. Aluguei todos os quartos que tinha.
— Sr. Manuel! Olhe que eu sou
José Urbano de Melo Ribeiro, e nunca na minha
vida dormi uma noite ao relento. Arranje-se como puder; mas eu não saio daqui.
— Mas que quer Va Sa que eu faça!
Eu, se soubesse...
— Não tem desculpa nenhuma. Um
homem conta sempre com um amigo.
— Mas nestas ocasiões...
— Pois nestas ocasiões é que se
agradecem os favores. Então!
Decida-se. Eu quero hoje ficar em
Vila Nova. Parto amanhã para Barcelos. Não
desejo incomodar nenhum dos meus amigos que estão já abarrotados de hóspedes. Veja se me quer deixar numa
situação crítica. Tinha graça! Não saio daqui
ao poder que eu possa...
— Valha-me Deus! — disse o
estalajadeiro, coçando a cabeça.
— Deixemo-nos de lamentações. Se
você não é homem de expediente, eu vou
por aí pedir a esses inquilinos que me cedam metade do seu quarto. Alguns hão de concordar. Com os diabos! porque
não? Eu arrancho sofrivelmente a uma
partida de stromboy ou voltarete ou
de damas e gamão, e ainda não sou dos
piores companheiros. Vamos lá.
Quando José Urbano acabou de
pronunciar estas palavras, abriu-se por detrás dele uma porta, junto da qual se travara esta
altercação, e um velho, de aparência
marcial, vestido de um amplo capote ou sobretudo de mescla agaloado de vermelho e com botões de metal, e
cabelo cortado à escovinha, se intrometeu
na discussão, dizendo para José Urbano:
— Aqui tem um que lhe aceita a
companhia, se lha propuser e estiver disposto
a aturar um velho soldado, que por certo o não poupará à narração de uma das suas campanhas.
José Urbano voltou-se. Achava-se
na presença de um soberbo tipo de velho oficial,
que desde logo lhe agradou.
Era uma figura, cuja cor e
carnação revelavam saúde e robustez; bigode espesso e alvíssimo, umas certas rugas ao
canto dos olhos, características de bom
humor; porte airoso, movimentos fáceis, cabeça ereta; peito saliente.
— Bom! — disse José Urbano,
intimamente satisfeito. — Eu logo vi que não estávamos em terra de bárbaros. Aceito,
general, e agradeço.
— Devagar, devagar, meu ilustre
amigo. Não posso com a patente. General!
Safa! Como vai depressa! Major, major, e graças à febre promotora da Regeneração.
— Major! — disse José Urbano,
instalando-se sem mais cerimônia no quarto
do seu inesperado companheiro. — Como é isso? Apre! Que tem andado a passo, meu salvador Major!
— Que quer? Servi junta do Porto
em 1846. Está explicado o atraso.
— Hum! Então é dos meus! Está na
presença de um patuleia. Fique desde já
sabendo.
— Folgo imenso.
E os dois apertaram novamente as
mãos.
— Tirou-me de apertos, major —
continuou José Urbano, revolvendo as malas.
— Entre parênteses, não repare se eu, compensando de alguma sorte a incúria dos governos, lhe chamar às vezes
general.
— Chame-me o que quiser.
— Tirou-me de apertos, dizia eu.
Imagine que esse desalmado do estalajadeiro
me queria deixar sem quarto. A mim, que todos os meses lhe deixo aqui ficar alguns cruzados novos em
troca de uns bifes de cebolada que me dá
a tragar. Olá, rapaz, traz-me cerveja inglesa — exclamou para um criado que atravessava o corredor — Bebe
cerveja, major?
— Para lhe falar verdade, meu
caro amigo, nunca fui afeiçoado a essa bebida
de ingleses e flamengos. Lembra-me o tempo de emigração.
— Ah! emigrou também? Olá, rapaz,
vinho do Porto.
— É para mim que o pede? Por quem
é! Eu já não bebo antes de comer. Foi
tempo.
Está como eu. Rapaz, bifes de cebolada.
— Com os diabos, senhor... como
lhe hei de chamar?
— José Urbano, um seu criado.
— Meu caro Sr. José Urbano, veja
que para jantar ainda é cedo.
— Chame-lhe lunch, chame-lhe o que quiser O essencial é que eu coma. Em todo o caso... Rapaz, queijo londrino. Dá
licença que me ponha à vontade, general?
— Sem cerimônia. Está no seu
quarto.
José Urbano não esperou nova
autorização; vestiu um robe-de-chambre de chita, pôs um boné, calçou uns sapatos de
tapete, que tirou da mala, e começou a
fazer os preparativos para se barbear.
O major, acendendo um cigarro,
observava-o com visíveis mostras de satisfação.
— Então, com que o general ou o
major veio com alguns dos duques, não é
verdade?
— Rigorosamente falando, eu vim
só. Há muito que desejava percorrer o Minho.
Pedi licença em Lisboa, e aproveitei esta ocasião para levar a efeito esta visita.
— Não conhece a província.
— Ora! como as minhas mãos.
— Visto isso, não tem roteiro
marcado?
— Senão o instituído por mim
próprio. Quero abraçar alguns velhos camaradas
e tomar a ver certos lugares.
— Segue para Barcelos amanhã, não
é assim?
— Não; vou primeiro a Braga.
— Diabo!
— Que é?
— Sinto não estar lá para o
receber na minha casa.
— Agradecido.
— Talvez ainda nos encontremos.
Demora-se?
— Veremos. Pode ser.
— Então é provável. Apressarei os
meus negócios.
— É de Braga?
— Resido lá.
— É negociante?
— Às vezes. Quando me faz conta.
Quer dizer, quando vejo probabilidades
de bons resultados. No caso contrário vivo dos meus capitais. Cultivo a minha horta, enxerto as minhas
fruteiras, e uma vez ou outra, por desfastio,
trabalho em eleições. Assim vou vivendo.
E com estas conversas pouco e
pouco se foi estabelecendo a mais íntima familiaridade entre os dois: dentro de alguns
minutos mais estavam um em frente do
outro, prestando a devida homenagem ao talento culinário do Vate! da estalagem, manifestado num beef de
cebolada, que teve as honras de bis.
Não os distraiu o estrondo dos
morteiros, os hinos marciais e o murmúrio da populaça, que a chegada dos reais viajantes
ocasionara nas ruas.
Acabada a refeição, José Urbano,
que continuava a pôr de parte toda a cerimónia,
dirigia ao major uma pergunta que envolvia uma intenção, evidente para o major.
— Não costuma dormir a cesta,
coronel?
— Quase nunca, e hoje muito
menos. Tenho de visitar o duque de Saldanha.
— Nesse caso não se constranja.
Vá, vá. Eu dormirei, porque, para lhe falar
francamente, ando muito falto de sono. Estes dias passados no Porto arrasaram-me. Na quinta-feira estive em S.
João: representou a companhia dramática;
recitaram os poetas. Na sexta fui ao baile da assembleia. No sábado voltei ao teatro; cantou-se a Lucrécia Bórgia.
Na segunda fui ao baile da Feitoria...
num a palavra, não me tenho em pé. Até logo, general ou major, até logo. E verdade! Como se chama?
— Clemente Samora.
— Clemente! Tem graça. Esquisito
nome de militar Adeus, adeus.
E os dois separaram-se; José
Urbano para se entregar às delícias de uma sesta que se não fez esperar; o major Samora para
descer à rua, onde vários grupos de
oficiais, chegados ultimamente, estacionavam.
Não havia muito que ali chegara o
major, quando o chamou à parte um alferes ainda jovem e imberbe, de compleição delicada,
elegância irrepreensível e mãos
aristocráticas, e ocupado a calçar uma luva de pelica com o mesmo escrupuloso cuidado que empregaria na plateia
do teatro de S. Carlos.
A figura do recém-chegado, que a
julgar pelas aparências, dir-se-ia mais própria
para adornar os salões da capital ou os passeios do Chiado, e para ostentar garbos nas paradas, do que a
pernoitar em bivouas, vencer marchas
e contramarchas, e dirigir uma carga de
baioneta, contrastava com o ar marcial do
major, que o seguia a passos vagarosos, revelando o hábito de cavalgar e talvez um princípio de reumatismo, que a vida
de campanha lhe granjeara para a
velhice.
— Não é verdade que tenciona
seguir para Braga, amanhã, major?
— E, sim. Porque o pergunta?
Posso ser-lhe útil?
— Ofereço-lhe a minha companhia.
— Como! Pois não segue o cortejo?
— Não; o duque da Terceira
encarregou-me de uma mensagem para o comandante
do 8. Parto amanhã.
— Estimo. Faremos uma bela
jornada. e a sua mãe?
— Segue ainda para Barcelos;
depois parte para a quinta do Coural, cujos proprietários prometeu visitar. Esperam-na.
— Vai negociar o seu casamento,
Filipe; aposto. As filhas desse capitalista
são ricas e interessantes, dizem.
— Que importa? A minha mãe sabe
que para eu começar a odiá-las bastava
suspeitar que se tramava essa conspiração matrimonial. Mas descanse. As raparigas julgo que até estão prometidas a
não sei que fidalgos do Minho.
— Então amanhã conto consigo?
— Sem falta.
— Eu moro na hospedaria. Acolá. E
por sinal que tenho por companheiro de
quarto um originalão. E verdade, se puder, apareça-nos esta noite. Jogaremos uma partida de voltarete.
— Pode ser. Até à vista.
— Até à vista.
As nove horas da noite ia grande
rumor no quarto do major Samora.
Este, José Urbano e Filipe de
Rialva — que assim se chamava o jovem alferes, com quem acabamos de tomar conhecimento —
jogavam uma partida de voltarete, a qual
José Urbano acompanhava de observações críticas e sonoras exclamações.
A exigências suas, flanqueava a
mesa do jogo uma boa provisão de bolacha, charutos e garrafas de Xerez e Porto, que
concorriam em grande parte para o caráter
ruidoso da partida.
José Urbano estava infeliz ao
jogo. Rialva recordava-lhe, sorrindo, o velho adágio que lhe prometia felicidades nos
amores.
José Urbano torcia o nariz à
alusão.
— Não, meu caro amigo, —
exclamava ele, bebendo um cálice do Porto — desse achaque estou eu livre. Curti o
coração ao sol do Rio de Janeiro e nas roças
do sertão. Essas enxaquecas já não têm presa em mim.
— Vamos, Sr. José Urbano, —
continuava Rialva — se quiser ser franco, talvez tenha que nos contar Um episódio ameno
no meio desse viver árido que diz.
— E certo, — disse o velho
negociante, tomando subitamente um ar de seriedade — é certo que nem tudo tem sido
aridez na minha vida. Mas os poucos
episódios amenos, como diz, os meus únicos amores... esses... são para mim demasiado sérios para os contar à
mesa do jogo e entre dois goles de
Xerez. Agora... Bebamos em honra da Carta Constitucional — exclamou, ao ouvir romper por baixo das janelas da
hospedaria esse hino popular executado
por uma filarmônica da localidade.
— Apoiado — respondeu o major,
erguendo o cálice.
Rialva fitou por algum tempo José
Urbano.
— O que se não conta a uma mesa
de jogo, — disse passados alguns momentos
nesta contemplação — poderá contar-se um dia, dadas outras circunstâncias.
— Decerto — respondeu José
Urbano.
— Bem; nesse caso... Em honra da
Carta!
E Rialva associou-se ao brinde.
CAPÍTULO III
CONFIDÊNCIAS RECÍPROCAS
Na tarde do dia seguinte, a
laboriosa vila de Famalicão, tão alvoroçada e festeira na véspera, mostrava um ar, não
dissimulado, de abatimento e de tristeza.
Com as primeiras alvoradas desvanecera-se todo o fantástico efeito das iluminações da noite.
O sonho terminara, durava o
desgosto do acordar.
As colunas luminosas, os arcos
cintilantes, os esplêndidos obeliscos apresentavam-se
agora em toda a sua prosaica realidade de madeira pintada, lonas enodoadas, flores murchas, e verdura
defumada e sem viço. Os copos e as
laranjas de azeite, que, sob o prestígio da luz, horas antes atraiam com força irresistível as vistas da multidão, já não
desafiavam senão o tédio.
Raiara a luz verdadeira, e os
falsos astros, apagando-se, mostraram tudo o que eram. Quantas glórias, como eles, que no meio
das trevas ofuscam, não resistem aos
primeiros clarões de um real alvorecer!
Os restos e destroços dessas
máquinas de festa ali estavam expostos às fantasias, aos caprichos e espírito
aniquilador dos gaiatos, que os apedrejavam agora: de todos os esplendores que desmaiam,
de todas as reputações que periclitam,
as turbas costumam tirar destas vinganças, pelo entusiasmo e delírio em que momentaneamente as arrebataram.
O desalento parecia nem dar ânimo
para remover essas últimas, deterioradas e quase repelentes memórias dos regozijos
findos. Compreendo aquele sentimento.
Eu não sei de nada mais triste do
que o terminar de todas as festas.
Em criança arrasavam-se-me de água
os olhos quando assistia ao desfazer do presépio
que, em honra do Menino Deus, se armava na minha casa pelo Natal.
Cerrava-se-me o coração de
melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino, Nossa Senhora, S.
José, os grupos dos pastores, a vaca, o
jumento, os três reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias,
se rezava a coma em família e se cantavam
as loas da ocasião! Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me
enevoassem aquelas puras alegrias
infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos Magos! Que aquela milagrosa
estrela, que vos trouxe a Belém, vos não
fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! Fatal 6 de Janeiro! com o teu anoitecer, anoitecia-me o coração. Voltava
a vida normal, voltavam os bancos das
aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e o que
era pior que o mais — acabava naquela santa comunidade, em que
durante quinze dias vira a família; o lar doméstico já não oferecia o alegre tumulto e
desordem, em que velhos e crianças
tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos. A solenidade que nos reunira
sob o mesmo teto, que nos fizera viver a
mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas suspeitávamos que as nossas
lágrimas tinham companheiras envergonhadas.
Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro!
Suspeitava-o eu então, mas
acredito-o agora que, apesar de na idade em que a lei autoriza a não me considerar criança,
ainda não sou superior a cenas daquelas.
Se ainda hoje experimento uma
sensação desagradável ao entrar num teatro vazio, assistindo ao findar de uma romaria,
ouvindo as derradeiras notas de uma
valsa na última noite de carnaval! A transição do movimento para o repouso é como uma imagem do pensamento!
As vezes, nesses momentos
solenes, há convulsões até como as da agonia. Nem outra coisa é a vertigem da última valsa.
E tanto isto se dá comigo, que só
o considerar no estado de desanimação em que, depois da partida dos augustos viajantes,
ficou a vila do Minho, onde se passaram
as cenas do capítulo anterior, me arrastou por divagações pouco alegres, que talvez fossem avivar ao leitor
memórias adormecidas, cujo delicioso
pungir nem todos me perdoarão.
Mas o fato era que, ou por
abatimento moral ou por cansaço físico, o povo de Famalicão não andava na rua aquela tarde.
À porta da hospedaria, onde
contraímos conhecimentos, que teremos de cultivar, estacionavam apenas alguns raros
ociosos que se entretinham a contemplar,
com olhos de entendedores, dois soberbos cavalos de raça de Alter, que um soldado segurava pelas rédeas.
Os nobres animais, ansiosos por partir,
mordiam com impaciência os freios polidos, resfolgavam, sacudiam as clinas, escarvavam com as ferraduras as pedras
da calçada, e expeliam dos beiços
inquietos flocos de fumegante espuma.
Pelo selim e arreios que os
ajaezavam conhecia-se pertencerem a militares, e igual corolário se tirava da aparência bélica
do palafreneiro contra cuja astuciosa
impassibilidade, e calculado laconismo, se tinham vindo quebrar as mais inquisitoriais interrogações dos curiosos
do grupo.
O manhoso soldado, depois de ter
feito ampla provisão nos cigarros que, para o humanizar, um de mais expediente lhe
oferecera, limitara-se a responder por monossílabos,
pouco de satisfazer, aos quesitos sobre o preço, as manhas, a sustentação, o tratamento dos quadrúpedes, e
em seguida sobre a hierárquica posição,
merecimento e mais partes que concorriam na pessoa dos seus proprietários.
Com ciência superior foi
sustentado este jogo até que o tinir das esporas de alguém que descia as escadas pôs fim às
interlocuções.
Os grupos dispersaram para dar
praça aos viajantes; o soldado preparou as rédeas e fez a continência que, na posição em
que estava, lhe era possível fazer.
Seguidos pelo estalajadeiro, que
se desfazia em barretadas, assomaram ao patamar
os dois oficiais.
Não surpreenderei por certo o
leitor, dizendo-lhe que eram os nossos conhecidos,
o major Clemente Samora e o alferes Filipe de Rialva.
Depois de dirigirem ao
estalajadeiro um gesto familiar e cortejarem os curiosos que se descobriam, os dois, tomando
as rédeas da mão do soldado, montaram
com agilidade e partiram a passo em direção ao norte. Os espectadores seguiram-nos por muito tempo com
a vista e ficaram fazendo comentários
sobre o jogar das dianteiras dos cavalos, seus merecimentos absolutos e relativos, e sobre as qualidades,
posição oficial e até a missão de que
poderiam ir encarregados os cavaleiros.
Estes caminharam por muito tempo
silenciosos.
O major, deixando correr a vista
por todos os pontos da paisagem lateral à estrada, pelas veigas, almargens, devesas,
pinhais de um ameno e delicioso panorama
do Minho, dir-se-ia ressentir uma violenta comoção interior, como se lhe fossem conhecidos aqueles sítios, e lhe
estivessem evocando memórias de outros
tempos com toda a inquieta turba de saudades, que, de ordinário, as acompanham.
Filipe de Rialva tomara também
uma expressão de seriedade melancólica, que, lhe não era habitual.
Só a preocupação própria é que
podia fazer com que cada um não estranhasse a do seu companheiro, e não procurasse
devassar-lhe a causa.
Houve uma ocasião em que Clemente
Samora chegou a suspirar. Era isto nele tão
extraordinário, tão pouco dado a estas melancolias era o velho militar, que Filipe de Rialva saiu enfim da sua abstração
ao escutar este suspiro, e olhou admirado
para o seu companheiro de jornada.
Foi só então que reparou no ar de
tristeza que as feições acentuadas e expressivas
lhe refletiam naquele momento.
— Que é isso, major? Se me não
enganei, ouvi-o agora suspirar — disse o alferes, dando um certo entono jovial à
interpelação.
O major conservou-se algum tempo
calado, depois respondeu, afetando indiferença:
— Que quer você, Rialva? O meu
reumatismo não se esquece de me dar de
vez em quando notícias suas.
— Ai, major! major! a não descrer
muito da minha experiência na matéria, aquele
suspiro não era desafiado por uma dor articular.
— E então que quer dizer com
isso? Vejo-o com ares de quem me supõe apaixonado.
Olhe bem para mim, Rialva. Acha-me com cara de poeta erótico ou de galã de romance? Na minha idade!
— Um militar é sempre jovem,
major É aforismo de quartel. O coração não
teve tempo de envelhecer no campo da batalha.
— Mas contrai outros hábitos e
afeições por lá, e perde essa extrema inflamabilidade,
que ameaça a de pessoas, como você, de continuados incêndios. O meu não está sujeito àquelas
enxaquecas de que ontem nos falava o
nosso amigo José Urbano. Se se não curtiu, como o dele, nos calores dos sertões americanos, temperou-se no fogo da
metralha.
— Mas aquele suspiro, major?
— Que tem aquele suspiro? Que
significa isso? Suspira-se sem motivo também
e quantas vezes?
— Oh! mas é um terrível sintoma.
Deve confessá-lo.
— Olhe, Rialva, — disse o major
depois de alguns minutos de silêncio — vou
falar-lhe com toda a franqueza. Não é com indiferença e de ânimo tranquilo que tenho feito esta viagem do
Minho. Sabe que militei no Porto. Sabe
que, sob o comando de D. Pedro, ganhei muitas das minhas patentes e quase todas as minhas condecorações. A
história das minhas cicatrizes está escrita
por estes sítios. Os episódios das campanhas gravam-se-nos na memória e deixam saudades sempre. Sinto-as
agora e vivas e profundas! Se as sinto!
E verdade. Conheço ainda tudo isto! Acodem-me à imaginação coisas que julguei esquecidas para sempre. Lances
arriscados, situações difíceis, entusiasmos
de vitória, desesperos das derrotas, episódios cómicos no meio dos horrores da guerra, banquetes, onde
folgavam e riam, ao nosso lado, muitos
que momentos depois estavam inanimados na campa... mil aventuras enfim, pecados velhos, que agora vão
recordando com certo travor.
— Pecados velhos também? — disse
o alferes, sorrindo.
— Que dúvida? E oxalá que fossem
todos leves!
— E não serão?
— Nem todos, Rialva, nem todos. E
se tiver de ser franco consigo, talvez que
vá prender a um dos mais graves o suspiro de que há pouco você me pediu a explicação.
— Ah! Bem que me parecia que
vinha do coração.
— Mas não de um coração namorado
e casquilho. Entendamo-nos. Graças a
Deus e à minha boa sorte, tenho sido preservado desse mau achaque de velhice. Mas de um coração arrependido...
pode ser... é. São remorsos de um mal
feito, desejos de o remediar, desejos irrealizáveis agora, e que por isso me serão perpétuos tormentos.
— Repare, major, que está dando
às ideias uma direção demasiado sinistra. Nunca assim o conheci apreensivo e lúgubre.
— Tenho por costume não
manifestar os meus sentimentos. E pudor de coração que se não quadra com a empáfia
militar. Mas, à vista destes lugares, tão
cheios de recordações para mim, a comoção foi mais forte do que eu, venceu-me, zombou da minha repressão,
transbordou. Já agora deixá-la.
— Confie em mim, major; eu sei
compreender esses sentimentos.
— Não sabe tal. Na sua idade não
se pensa nisto. Somos imprudentes; mais
tarde, demasiadamente tarde é que sentimos o mal.
O alferes, longe de protestar
contra o conceito formulado pelo seu velho companheiro, calou-se e pareceu meditar.
— Desde 1843 que não voltei a
estes sítios — continuou o major. — Deveres
em parte, e em parte o natural descuido de ânimo dos que vivem aquela vida de Lisboa, mo impediram. E,
contudo, alguma coisa me devia ter trazido
aqui há mais tempo.
— Vestígios de passadas afeições?
— Sim; mas vestígios tristes,
vestígios de lágrimas talvez. Entre muitas aventuras da mocidade, eu tive também o meu
romance, Rialva. Sossegue, que não gastarei estilo em lho
narrar. Eu não me entendo com a vossa literatura de agora. Bem sabe que sou contemporâneo dos
sonetos, e por isso abstenho-me de fazer
narrações a rapazes que se alimentam de romanticismo puro. Em vez de arroubamentos, e enleios que estão agora na
moda, eu poderia falar-lhe nas clássicas
setas de Cupido e nas pouco ideais seduções das três filhas de Vênus.
— Ora vamos, major Quer-me
parecer que, ainda que tarde, também se sujeitou
àquela vacina, de que fala Garrett, para se preservar das bexigas, as quais, na frase dele, matavam a fazer odes
pindáricas e sonetos os rapazes da sua
época. Conte-me o seu romance.
— É preciso que lho conte? Pois
não o adivinhou já? Não o ia escrever capítulo
por capítulo, prescindindo da minha narração? É o eterno romance de um rapaz estouvado que, no meio das suas
afeições efêmeras, costumado a acreditar
na inconstância dos corações, não recua diante de nenhuma conquista; que se julga um profundo conhecedor
da humanidade, só porque lhe ignora o
seu lado melhor. A quem seduz a fama de um D. João ou Lovelace, e, como esses belos modelos, que
pretensiosamente procura imitar, fazendo
de todas as mulheres um leviano juízo, joga com as afeições de todas, sem se lembrar que um só coração que
sacrifique nesse jogo é pagar muito cara
uma distração de rapaz.
— Bravo, major! Nunca me lembra
de o ter ouvido falar assim!
— Pois aproveite a ocasião, que
talvez seja a última. Eu não gosto de andar a fazer pelo mundo estas profissões públicas
de sentimentalismo. Mas a verdade é
essa. Na época em que eu vivi por estes sítios... Era eu então alferes como você, Rialva, e igualmente estouvado.
— Agradecido pelo conceito,
major.
— Sabe que digo sempre o que
sinto. Nessa época contava as minhas aventuras
pelos dias da semana, e esquecia-as tão prontamente como elas se sucediam. Já ao terminar a campanha e próximo
a partir para Lisboa, pela primeira vez
me encontrei com um coração, que me coube em sorte despedaçar. Soube-o tarde, mas soube-o para a
minha condenação. Foi uma mulher que,
mais que todas as que até então conhecera, me produzira uma profunda impressão. Era uma rapariga que vivia
nas imediações de Barcelos só com uma
criada, que fora sua ama de leite, e nesse tempo exercia as funções de governanta da casa. A fortaleza não
estava bem defendida; pode prever que me
não foi difícil a conquista, desde que consegui obter simpatias na praça. Entreguei-me de olhos fechados a
todos os prazeres e a todas as consequências
daquele amor Os primeiros pode concebê-los; estas porém talvez lhe transtornassem as previsões que
formasse.
Voltei para Lisboa desde que uma
paz definitiva se consolidou; e, confesso-lhe francamente, na vida da capital, onde aos
vencedores esperavam outras vitórias
fáceis, e delícias dignas de Cápua, esqueci-me daquela mulher
Lembrei-me tarde. Quando escrevi
para Barcelos, pedindo cautelosas informações
a respeito dela, responderam-me que a infeliz tinha morrido logo depois da minha partida.
— E o major ficou acreditando que
ela morreu de amores!
— Rialva, não se faça cético —
disse Clemente Samora, tomando um ar de serenidade.
— Não há nada que fique tão mal a um
rapaz, do que essa endurecida descrença,
que está agora na moda. Com sinceridade, você não acredita que possa haver um amor verdadeiro?
— Acredito, mas julgo-o a civis
rara, que só a poucos felizes se mostra.
— Ora adeus! Em todo o caso, se
quiser que mais tarde o coração lhe não dê
destes momentos de amargura que me está dando hoje, não se deixe aconselhar por essa descrença. Receie sempre
do remorso.
— Remorso! É dura a palavra.
— E verdadeira. Quando em 1846
voltei ao Podo, tremia só em lembrar-me que os incidentes de campanha, que ia
empreender, me poderiam levar àqueles
sítios, e hoje vê que não sou tão senhor de mim, que domine a comoção que eles me despertam.
Depois destas palavras, que o
major efetivamente pronunciou comovido, reinou
por algum tempo o silêncio entre os dois.
— Sabe o major que possui um
notável poder de catequese? — disse Rialva,
passada esta pausa, procurando conservar às suas palavras o tom jovial em que até ali as mantivera.
— Por que diz isso?
— Porque estou quase arrependido
de uma pequena aventura, que o ano passado
tive nos arredores de Braga, quando, por ocasião dos movimentos militares que se seguiram à Regeneração, me
demorei alguns meses naquela cidade.
— Alguma imprudência sua.
— Sossegue, major; eu não sinto
grandes apreensões a respeito do caso, porque,
como lhe disse, não creio que se mona de amores cá por este mundo, e muito menos que seja eu o destinado para
inspirar uma dessas paixões excecionais.
— Mas enfim?
— Vi uma rapariga num convento de
Braga...
— E escalou-o, arrombou-o,
incendiou-o?
— Não, major E verá, pela
narração que lhe vou fazer, que nestas coisas ainda não deixei de ser noviço!
— Ouçamos a narração.
— Que interessantes olhos, meu
amigo! Uns olhos que valiam poemas; o rosto de uma cor de pérola fascinadora, e
a voz com mistérios de melodia, que a
arte ainda não decifrou. Não havia ser-lhe indiferente, major, acredite. O major que fosse...
— Bem, bem, adiante. Fale-me de
si, Rialva, fale-me de si. De mim sei eu de sobra o que devo pensar Conheço-me há
muito.
— Perdi a cabeça por aquela
mulher Não havia dia em que eu não procurasse
vê-la, e consegui fazer-me notado. Passando agora pelos pormenores desta inocente afeição, basta que
lhe diga que ela me correspondia.
Parece-me que o vi sorrir quando pronunciei a palavra inocente! Mas juro-lhe que é o epíteto apropriado.
— Longe de mim duvidá-lo.
Continue.
— Sob o pretexto de visitar a
escrivã do convento, que era das relações da minha família, fui admitido à grade, e ela,
não sei sob que pretexto, lá estava sempre
também.
Cada vez a admirava mais, porém
ardia de impaciência por lhe não poder falar de viva voz. O acaso...
— Mau, — disse o major com um
meio sorriso. — Agouro mal da intervenção
do acaso no romance. É sempre perigosa e inconveniente.
— Ouça, — continuou Rialva,
sorrindo também como se não fora sem fundamento
a observação do seu companheiro. — O acaso um pouco e muito a boa vontade dela, fez com que esta
rapariga viesse passar alguns dias fora
do convento e em casa de um comerciante de Braga, de cuja filha ela era íntima amiga. Eu tinha relações com este
comerciante, e pude então, mais à vontade, conversar com ela.
— Ora prossiga, prossiga.
— Pouco mais tenho para lhe
dizer. O meu amor foi tímido e respeitoso, como nem eu próprio suspeitava que fosse
possível sê-lo. Diante daquela mulher,
diante daquela candura, desconhecia-me, achava-me acanhado como qualquer rapaz de dezesseis anos. Creia,
major, que não sabia o que tinha feito da
minha audácia habitual. Tinha de partir para Lisboa. A minha mãe havia-me
alcançado do ministro uma transferência de como. Disse-o à pobre menina, que se banhou em lágrimas ao sabê-lo.
O seu amor havia adquirido uma
intensidade que o denunciara. Em Braga falava-se muito nisso. Na noite a minha partida consegui uma entrevista
dentro do jardim da casa onde ela ainda
então se achava.
— Aproxima-se a peripécia — disse
o major. — Adeus timidez...
— Juro-lhe, major, que a
respeitei, como se a protegesse um ambiente de pureza e castidade. Davam onze horas na igreja
de S. Marcos, e pela primeira e única
vez os nossos lábios se encontraram, e logo depois eu saltava o muro do jardim, montava o cavalo e seguia o caminho do
Porto, donde me transportei para Lisboa.
E assim terminou este inocente episódio da minha vida.
— E ela?
— Que lhe posso eu dizer dela? A
impossibilidade de nos correspondermos
era manifesta. Dois dias depois devia ela voltar ao convento, onde não podia receber cartas
minhas. Ainda lhe escrevi do Porto, esperando
receber a resposta em Lisboa. Esperei debalde, e...
— E esqueceu-a, não é verdade?
Nem mais pensou nessa rapariga, que talvez
a estas horas esteja chorando por si, ou pela sua causa.
— Acredita, major? Não acha mais
natural que esteja pensando em outro?
— Pode ser. Em todo o caso, basta
que por uma efêmera distração arriscasse
dessa maneira o destino do coração, que é o destino inteiro de uma mulher, para que não possa ou não deva, pelo
menos, encarar levianamente o sucedido e
deixar de sentir uns indícios de remorso.
— Acreditasse eu que produzira um
padecimento real...
— Que faria?
— Nunca o perdoaria a mim
próprio.
— Cingia os cilícios e
disciplinava as carnes, não é assim?
— Condenar-me-ia a uma completa
abstenção de galanteios, pelo menos.
— E dessa maneira secaria as
lágrimas que fizera derramar!
— Qual era então o meu dever,
major? diga.
— Quando estiver em Braga, se se
demorar por lá averigue do sucedido e depois
falaremos. Escusamos de estar agora a traçar planos de imaginárias campanhas.
A estas palavras do major
seguiu-se um silêncio prolongado, durante o qual as ideias tomaram outra direção a ponto de que,
ao restabelecer-se, o diálogo versou
sobre assuntos indiferentes que não precisamos de referir, e assim se manteve até à chegada dos dois cavaleiros a
Braga, ainda com algumas horas de dia.
Desempenhando nesta cidade a
missão oficial de que viera encarregado, Filipe de Rialva propunha-se no dia seguinte começar
as averiguações a que o major e a sua
própria curiosidade o convidavam, quando um acontecimento imprevisto o veio impedir de as realizar.
Pela madrugada do dia seguinte
chegara a Braga uma notícia telegráfica, que lançara o espanto e consternação nos ânimos de
todos os seus habitantes.
Constava que às onze horas da
noite antecedente o palácio onde repousava em Barcelos a família real havia sido devorado
por um incêndio.
Os noveleiros políticos, sempre
prontos a darem aos mais insignificantes acontecimentos um colorido lúgubre, filiavam
aquele fato casual num a trama premeditada
e misteriosa. As notícias que se davam em voz alta, comentavam-se depois ao
ouvido. As insinuações transluziam das frases estudadamente formuladas. Os ociosos agrupavam-se em frente
das repartições públicas e das casas das
autoridades, como se, das fachadas desses edifícios, esperassem elucidações. Exagerava-se o sucedido. Houve
tal que condenou às chamas a vila de
Barcelos inteira! Em outros grupos enumeravam-se as vítimas e especificavam-se com escrupulosa exatidão a
natureza e caráter dos ferimentos! Uns
revelavam a descoberta de uma máquina infernal; outros noticiavam a prisão dos criminosos.
Os ódios partidários, então mais
acesos que hoje, todos estes boatos acolhiam, e de boa ou má-fé concorriam para os divulgar,
ampliando-os.
A nova, ao chegar aos ouvidos dos
nossos dois conhecidos, Clemente Samora e
Filipe, havia adquirido já as mais formidáveis dimensões, e revestira-se das cores menos para tranquilizar.
Desesperando de saber a verdade
no meio de tantas variantes, e até encontrando
incertezas nas informações oficiais, os dois, que tinham em Barcelos por quem se inquietar e que nada os
prendia atualmente a Braga, resolveram
informar-se pelo seus próprios olhos, e com este intuito partiram essa mesma manhã em direção à vila.
Algum tempo mais que se tivessem
demorado, teriam serenado as suas inquietações.
O pânico desvanecera-se afinal.
Sabia-se enfim que o incêndio não atingira nunca as proporções medonhas que se dissera. A
inverosimilhança dos romances
inventados, com grande desespero dos seus autores, ia já fazendo sorrir.
CAPÍTULO IV
FOGOS DE MOCIDADE
Quatro dias depois dos sucessos
do capítulo anterior, percorria a estrada de Barcelos, em direção a Braga, uma jovial
cavalgada de oficiais do exército e de alguns
estudantes do Porto, que a promessa de um segundo perdão de ato trazia naquele tempo muito jubilosos e como
que em férias já.
Filipe de Rialva e o major Samora
tinham-se-lhe incorporado. Do rancho era talvez este último o único melancólico. A sua
estada em Barcelos avivara-lhe as
saudades que o perseguiam. Nenhumas informações pudera obter, nem sequer do Lugar onde repousava a morta. Nem um
só vestígio dos seus passados amores
tinha encontrado o pesaroso velho. Uma estrada em construção acabara de derrubar a pequena casa,
que a imaginação lhe estava agora ainda
reproduzindo, e com ela dir-se-ia haver destruído todas as memórias desse drama obscuro, que terminara em
túmulo.
Rialva, ao inverso do seu
companheiro, no descuido dos vinte e dois anos, entregara-se inteiro ao prazer da jornada.
Pouco avultavam já na memória do
estouvado alferes as recordações da sua aventura
de Braga. Tivera tempo e ocasião de se distrair. De Barcelos seguira a corte a Viana, e nessa marítima cidade do
Minho foram demasiados os prazeres em
que tomara parte, para que lhes resistisse qualquer ideia melancólica. Vinha-lhe o coração desafogado ao
voltar a Braga, onde se antecipava um
dia à comitiva real, que só no dia 12 devia sair de Barcelos.
O génio expansivo e bom humor de
Filipe valeram-lhe uma certa preponderância
sobre o rancho, que parecia havê-lo tacitamente elegido para seu chefe. Isto lisonjeava-o e obrigava-o a
fazer todos os esforços para justificar
a escolha.
A cada passo, estridentes
gargalhadas e hurras espantosos partiam em coro do bando turbulento. Por vezes a algazarra subiu
a ponto que o major Samora, em poucas
disposições para tomar parte nela, sopeou o passo ao seu cavalo para se distanciar do tropel.
— Meus senhores! — disse um dos
estudantes, a quem no ano anterior um
perdão de ato, poderoso Deus ex-machina,
arrebatara milagrosamente dos nevoeiros
da matemática, onde se vira perdido, e que esperava que um outro o ajudasse a livrá-lo da botânica, mau
grado do Sr. Costa Paiva que não conseguira
ensinar-lhe a classificar nem a Digitalis
purpurea. — Meus senhores, nem todo
o tempo gastemos a rir. A divina arte do canto está em decadência entre nós. De todas as nações do
mundo a portuguesa é a que menos canta!
Vergonha! Eu, digno e degenerado representante daquela antiga e característica classe de estudantes que
corria as estradas e estacionava nas praças
de capa traçada, espada ao lado e guitarra em punho, coro ao repeti-lo!
O estudante de Salamanca,
cantando seguidillas debaixo da
ventana da senhorita de tez morena e
olhos travessos, um pobre diabo sem dinheiro, mas cantando, cantando a escalar janelas, no meio
das rixas, cantando na cara dos guardas
civis, e dançando, ao som da pandereta, o fandango e o bolero — eis o tipo ideal, que se perde, que degenera desde
que a filosofia o estragou. O estudante
hoje é folhetinista, é político, é erudito, é sisudo e, mais que tudo, é sensaborão! Dá-lhe mais canseira a salvação da
república, do que o penteado da sua
amante! Que tremenda responsabilidade nos cabe, meus amigos! Nós, indignos depositários de um grande legado, que
deixamos esbanjar! Reajamos quanto nos
seja possível, e reajamos cantando. A cantar se têm feito revoluções. Dêem-me o poder das canções, e eu
revolverei o mundo. Cantemos!
— É justo que abras tu o exemplo
— respondeu-lhe um dos companheiros. O
convite foi repetido por toda a companhia.
O orador não se fez muito rogado,
e num a toada popular, que então andava na
boca de todos, cantou as seguintes coplas, que nos parece serem da sua lavra:
Ouvia gabar os beijos,
Dizer deles tanto bem,
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.
Que esta fruta não é rara,
Mas nem toda tem valor:
A melhor é muito cara,
E a barata é sem-sabor.
Colhi-os dos mais mimosos;
Provei três, mas, pelo meu mal,
Ao princípio saborosos,
Amargaram-me afinal.
Um colhi eu de uma bela,
Que era Rosa, sem ser flor.
Se tinha espinhos como ela,
Dela também tinha a cor.
Vi-a a dormir, e furtei-lhe
Um beijo que a acordou.
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto, que desmaiou.
Logo que a vi sem sentidos,
Fugi, sem outro lhe dar;
Que beijos, sem ser pedidos,
Não são coisas para brincar.
Outra vez, de uma morena.
Olhos azuis, cor de céu,
Corpo esbelto, mão pequena,
Um beijo me apeteceu.
Pedi-lho — e então por bons
modos,
Pedi-lho do coração.
Zombou dos meus rogos todos
E respondeu-me: que não.
Zombei, como ela zombava,
E um beijo, à força, lhe dei;
Mas... bem dado ainda não estava
E com um bofetão o paguei.
Custou-me caro o desejo,
Que muito caro ela o vendeu.
Pagar por tal preço um beijo!
Assim não os quero eu.
Este, mais do que o primeiro,
Me deixou fraca impressão;
Quis provar ainda um terceiro
Para não jurar em vão.
Mas não quis fruta roubada,
Que mal com ela me dei.
Uma dama delicada
Ofereceu-ma... Eu aceitei.
Ai, que boa fruta que era!
Estava mesmo a cobiçar.
Passar a vida quisera
Tal fruta saborear.
Mas, no meio da colheita...
Da fruta, o dono apareceu.
Zelosos olhos me deita:
Se zelava o que era seu!
Vendo o caso mal seguro,
Eu logo ali lhe jurei
Restituir e até com juro
A fruta que lhe tirei.
E, caso não discordasse,
Não me parecia mal
Que a ele os juros pagasse
E à senhora... o capital.
Esta sensata proposta
Em fúrias o arrebatou,
E, por única resposta,
A lutar se preparou!
Ouço ainda gabar os beijos,
Dizer deles muito bem:
Mas findaram-me os desejos,
Já sei o sabor que têm.
Uma estrepitosa algazarra rompeu
do grupo, quando o acadêmico terminou a sua
cantiga.
— Visto isso, — disse um dos
cavaleiros — puseste-te em dieta dessa ruta?
Tenho piedade da tua higiene meticulosa! Possuis um estômago demasiado suscetível. Eu por mim, meus
senhores, confesso-lhes que, verde ou
madura, não sei de outra fruta que me agrade tanto.
— Alto lá! — respondeu o que
cantara. — Nada de responsabilidades absurdas.
Eu não subscrevo todas as legítimas consequências da canção. E se julgam necessário neutralizar-se o efeito, eu
estou pronto a cantar-lhes uma outra.
Possuo-as para todos os gostos.
— Por esta vez dispensamos-te da
retratação. Acreditamos-te. Nada de lógica
em assuntos destes. Que os céticos cantem de crentes e os crentes encham as estrofes de ceticismo. Ninguém lhes
deve pedir contas. Outro cantor!
— Eu por mim, estou pronto a
cantar, — disse um alferes de Caçadores, — mas não a mulher nem o amor; inspira-me mais
um charuto, um cachimbo e até um
cigarro, sendo o tabaco forte e mortalha boa.
— Pois canta o cigarro. Admite-se
o culto. Vai entoando a antífona, enquanto
nós acendemos os fachos do rito sagrado — respondeu Filipe, distribuindo cigarros por todos os da
cavalgada.
E dentro em pouco o bardo
novamente indigitado, começava cantando:
No centro de círculos
E nuvens de fumo,
Um deus me presumo,
Um deus sobre o altar!
Nem doutros turíbulos
Me apraz tanto o incenso,
Como o deste imenso
Cachimbo exemplar!
Em divãs magníficos
De seda e veludo
Repousa sisudo
O ardente Sultão.
Fumando, inebria-se
E esquece odaliscas.
E os beijos, faíscas
De amor, e o Alcorão.
Longe, oh! longe o ópio,
Que os sonhos deleita
Da mísera seita
Dos Teriaquis,
Horror ao narcótico,
Que vem das papoulas
E ao que arde em caçoulas
No harém dos Alis!
Que a África tórrida
De areias candentes
Consuma as sementes
Do arábio café.
Bebido nas chávenas
De Índia e porcelana
A negra tisana
Veneno me é.
E a folha asiática,
Delícias da China,
Por nossa má sina
Trazida para cá?
Sorvida em família,
Em momo hidro-infuso!
Anátema ao uso
Das folhas de chá!
Nem tu, ó alcoólico
Licor dos lagares,
Terás meus cantares,
Meus hinos terás.
Embora das ânforas
Vazado nas taças,
Aos outros tu faças
A boca loquaz.
Meu canto é da América,
Pais do tabaco,
Melhor do que Baco,
Que o ópio melhor.
Que a Europa, Ásia e África
E a terra hoje toda
Já fuma por moda
O heroico vapor.
Até na Lacônia,
Da gente pequena,
Se fuma, e no Sena,
No Tibre e no Pó,
No Volga e Danúbio,
No Tejo e no Douro...
Que grande tesouro
Se deve a Nicot!
Nem venha da cânfora
Contar maravilhas
O das cigarrilhas
Famoso inventor.
Raspail é cismático,
E eu sou ortodoxo;
O seu paradoxo
Não me há de ele impor.
E os áridos lábios
Mais fumo ainda aspirem.
Que os néscios suspirem
Por beijos febris.
Não quero outros ósculos,
Não quero outra amante,
Qual mais doudejante
Que os fumo subtis?
Tomadas Vesúvios,
As bocas fumegam,
De nuvens que cegam,
Vomitam legiões.
Fumar! Oh, delícias!
Prazer de Nababo!
E leve o diabo
Do mundo as paixões!
É indescritível o entusiasmo que
se manifestou em seguida às últimas palavras da canção ou hino do tabaco. Foi tal a
gritaria que os ecos das montanhas vizinhas
despertaram estremunhados, e, como dizia Fernão Mendes Pinto, as carnes tremiam de medo.
Todas as bocas pediram bis, e de
novo se guardou um silêncio solene para escutar
as estâncias de tão popular produção, algumas das quais muitos já repetiam em coro.
— E tu, Filipe? — disse o cantor
favorecido da aura de popularidade — não
cantas também?
— Depois do teu triunfo, julgo
prudente prescindir dos meus direitos. Desisto
da palavra.
— Não admito. Não é facultativo,
é obrigatório o cantar.
— Isso é crueldade. Queres
imolar-me nas aras da tua musa rodeadas de fumo de tabaco?
— Isso é modéstia mal cabida. Ou
temes ferir a delicadeza da tua musa sentimental
com as baforadas do meu cachimbo?
— Apelo para a decisão do
conclave — disse o estudante que cantara primeiro.
— A votos! A votos! — bradaram
algumas vozes.
No momento em que isto se passava
havia a cavalgada chegado a um ponto da
estrada erma de habitações e perfeitamente deserta de viajantes. Era um extenso lanço que seguia em linha reta por
meio de lezírias sem cultura, e tapadas
de tojo e pinheirais ainda novos. A vista alcançava de extremo a extremo deste lanço tanto mais facilmente,
porque a atmosfera densa de vapores
apresentava, sob uma ótica favorável, os planos mais distantes.
Isto permitiu que os cavaleiros
avistassem ao longe sentada, a fiar, sobre as pedras de um dos muros que flanqueavam a
estrada, uma mulher, que na aparência
mostrava já ser de avançada idade, a qual, ao ver aproximarem-se os viajantes, se levantou açodada e colocou-se no
meio da estrada como se lhes desejara
falar.
— Aí tens quem te vai inspirar,
Filipe. Uma princesa desconhecida que desce
a escutar as namoradas endeixas do trovador — exclamou um dos que primeiro a avistara.
— Vem à fala. Respeito, senhores;
quem sabe se estaremos na presença da rainha
das fadas? Esta nossa peregrinação, digna de um segundo Ariosto para a cantar, precisava de uns jardins de Armida,
eis aqui quem no-los vai abrir...
— Restos do terremoto, eu vos
saúdo — disse um outro, tirando o chapéu e vergando a cabeça.
— Coitada! Alguma pobre mendiga —
disse Filipe, procurando já nas algibeiras
com que satisfizesse a que ele julgava indigente pela atitude que a vira tomar aguardando-os...
— Em todo o caso, vejamos o que
ela nos quer. Portemo-nos sérios para lhe
inspirarmos confiança. Está-me a parecer que se pode tirar partido disto.
E, seguindo este parecer, todos
guardaram silêncio e marcharam na maior compostura.
Estavam finalmente na presença da
velha. Era de fato de aspeto centenar; engelhada,
curvada e trêmula, mas ainda assim com certo ar de resolução.
Logo que os viu chegar,
dirigiu-lhes a palavra:
— Ora, Nosso Senhor venha na sua
companhia!
— Amém! santinha, e que também
esteja consigo.
— Ele está em toda a parte onde o
procurem. Boa é a sua assistência, e a da
Virgem Nossa Senhora, e a do milagroso Padre Santo António, que nos livre dos perigos e de trabalhos, de
testemunhos falsos e de ferros de el-rei e de maus vizinhos de ao pé da porta. Ora para
bem os fade a sua sorte. Amém.
— Então veio fiar para o
descampado? É melhor, são os ares mais livres — disse Filipe, para desviar a atenção da
velha do riso mal disfarçado dos seus companheiros.
— Nada, não senhor, eu digo-lhe.
O menino...
Desta vez os risos rebentaram.
— Olhem! Estão-se a rir por eu
lhe chamar menino. E eles que são todos para
mim, que para um cento só me faltam quatro anos! Vejam os grandes homens.
— Não faça caso, não faça caso.
Deixe-os lá. Diga o que ia a dizer.
— Ah! perguntava eu se os... vá
lá, senhores, se os senhores eram... criados da sua majestade? Sim, porque ser criados dos
reis não é baixeza nenhuma. Um morgado
da minha terra, fidalgo dos quatro costados e homem de teres e haveres, pois senhores, deu um bom par de
centos de mil réis para ser jovem do
paço, e pelos modos suas obrigações são as da mesma gente, mas aquele ainda assim quer que lhe paguem para as fazer,
por isso é que eu pergunto.
— Não se enganou, minha tia, —
disse Rialva, fazendo um sinal aos companheiros
— eu sou estribeiro-mor da casa real, aquele monteiro-mor, este copeiro-mor, camareiro-mor o outro,
esmoler-mor...
— Vejam que graça! Pelo que estou
ouvindo todos os empregos mores são para
os fidalgos, menos o de tambor-mor, que nesse tenho eu um neto, que é um rapagão como uma casa.
De novo a seriedade dos ouvintes
esteve para os abandonar.
— Visto que são o que eu
suspeitava, sabem dizer-me se a rainha se demorará ainda muito?
— Então queria vê-la?
— Vê-la? Não era só vê-la, é que
lhe queria também falar.
— Falar-lhe?! Aqui?
— Aqui mesmo, sim senhor, e
porque não?
— Então tem a pedir-lhe alguma
coisa?
— E verdade que tenho. Tenho a
pedir-lhe justiça.
— Justiça! — disseram admiradas
algumas vozes do grupo. — E contra quem?
— Isso basta que ela o saiba.
— Mas na estrada, boa mulher, a
falar verdade, não é das melhores ocasiões,
— disse o major Samora, que tendo-se agora reunido ao rancho, de que se separara, acabava de ouvir as últimas
palavras do diálogo.
A velha voltou-lhe uns olhos
desconfiados, e respondeu com certa aspereza:
— Para fazer justiça é sempre
ocasião.
— Bravo! — disse o estudante da
canção.
A velha, estimulada pelo sinal de
aprovação, prosseguiu:
— Não é ocasião! tem graça. Nem
que a gente não tenha mais que fazer do
que largar barcos e redes para ir ao palácio procurar sua majestade. E então para quê? Para vir o senhor porteiro-mor, o
senhor escudeiro-mor, o senhor lacaio-mor,
e nos mandar pôr fora sem que a rainha o saiba. Temos outro com as justiças dos tribunais. Andar uma
criatura num a barafunda de escrivães e
procuradores e letrados e testemunhas e jurados, e a gastar dinheiro, e tanto mais ganha quem mais gasta,
e tanto mais gasta quem mais tem. Nada,
não serve para mim. Aqui, no meio da estrada. Se me não deixarem chegar à carruagem, ponho-me a
gritar: Aqui-d'el-rei! aqui-d'el-rei e veremos
então o que vai. Forte coisa! Olha agora a grande dúvida!
— E assim, é assim, minha tia —
diziam do lado alguns oficiais.
— Vamos cá a saber, tardará muito
a rainha?
— Rialva, trocando um olhar com
os circunstantes, apressou-se a responder,
fazendo por dissimular um certo ar de malícia, que olhos mais exercitados que os da velha, poderiam
reconhecer:
— Duas horas o mais tardar.
Conhece-a?
— Nunca a vi, mas isso logo se
tira, pouco mais ou menos. Sempre há de vir
vestida de modo que...
— Não, não — disse Rialva. — A
rainha traja como qualquer outra senhora;
para além do mais como vem incógnita, nem acompanhamento traz. Não vê que nos mandou adiante?
— Sim, sim. Mas então como há de
ser?
— Olhe, daqui por duas ou três
horas pouco mais ou menos, vendo chegar
duas carruagens com criados de casaco azul, botões de prata e colete vermelho, e dentro da primeira uma senhora de
meia idade vestida de verde com xale e
um chapéu branco...
— E ela?
— É ela. Acompanham-na talvez
algumas mais novas, são damas do Paço. Na
segunda carruagem vêm os criados.
— E o rei e os príncipes?
— Esses vêm mais tarde, a cavalo,
e com os generais. Não lhe disse já que a
sua majestade quis vir incógnita?
— Bem, bem.
— Isso fica ao meu cuidado. Então
diz que daqui por duas horas?
— Duas ou três.
— Isto vai nas nove, — disse a
velha, falando consigo e fitando as nuvens — com mais três, nove, dez, onze,
doze. Meio-dia. Chega não chega, uma hora;
janta não janta são duas, às seis é noite. Não tem dúvida; uma vez não são vezes. E isto como assim há de fazer-se.
Ora então, muito obrigada, vão com a
nossa Senhora.
— Adeus, minha tia — disseram
todos com a possível gravidade. — Deus permita
que se saia bem da empresa.
— Amém! amém!
E o alegre bando, despedindo-se
da velha, que voltou a tomar a sua primeira posição, partiu a galope em direção
a Braga.
Quando a considerável distância
do sítio, onde esta cena se passara, afrouxaram
o passo às carruagens para pedirem a Filipe explicações sobre o que ultimamente dissera à velha.
— Pois não compreenderam? É uma
surpresa que preparei a minha mãe. A
minha mãe devia partir de Barcelos duas ou três horas depois de mim com as meninas do Coural, minhas primas não sei
em que grau, em casa de quem tenciona
ficar esta noite para depois de amanhã assistir em Braga à entrada da rainha. Portanto, dentro de duas horas estará
ela ouvindo uma reclamação em forma
dirigida por esta pobre velha, o que não pouco a há de divertir e às priminhas.
— Mas que necessidade tinha você
de enganar esta mulher? — disse o major
com um certo ar de amigável censura.
— Deixe lá, major, — disse um dos
oficiais — o episódio deve ser interessante,
e aquelas senhoras devem agradecer-no-lo.
— Quem sabe o que esta pobre
criatura teria a pedir à rainha?
— Se for esmola, não ficará sem
ela, pedindo-a a minha mãe.
— Sim; mas se for justiça?
— E julga que irá mal
encaminhada, se a minhamãe a guiar para obtê-la?
— Assim a julgue merecedora dela.
— Pois então, deixe correr,
major. Pena tenho de não poder presenciar a
cena.
CAPÍTULO V
A HEROÍNA DESTE ROMANCE NA CASA DE CAMPO DE JOSÉ URBANO
A meia légua de Braga, Filipe de
Rialva, o major Samora e os seus jovens companheiros
tiveram a surpresa de um feliz encontro.
Ao dobrarem um ângulo de estrada,
que nuns sítios aqui e ali era povoada de pequenas casas e vendas, como denunciando a
vizinhança de uma grande povoação,
acharam-se frente a frente com uma personagem muito nossa conhecida, José Urbano.
À ruidosa exclamação com que José
Urbano saudou a cavalgada, rompeu desta
um coro unânime de brados, que nuns desafiava o conhecimento que tinham do jovial negociante, e em outros o
estranho costume de jornada de que ele
vinha revestido.
José Urbano montava uma égua
corpulenta, mas não de raça apurada. Um chapéu
de palha de amplíssimas abas, preso por uma fita por baixo da barba, um barrete preto subjacente que lhe defendia
as orelhas de um leste em perspectiva,
que a sua ciência meteorológica prognosticava iminente; óculos verdes, baluarte contra a invasão da poeira;
guarda-sol minhoto, com honras de
barraca, mas o único que tem razão de ser; um capote de camelão, verdadeiro epigrama ao sol da
Primavera; galochas capazes de arrostar com o dilúvio ao lado da arca; alforges repletos,
uma cabaça ao tiracolo, diante de si uma
trouxa e na garupa uma pequena mala; tal o conjunto de acessórios que concorriam para o efeito prodigiosamente cômico
do recém-chegado.
— Aleluia! — exclamou José
Urbano, elevando para a testa os enormes óculos verdes, que o incomodavam quase tanto
como a poeira. — Aleluia! Encontro enfim
Aníbal. Juraria que me andavam a fugir, meus companheiros de Vila Nova. Receiam-se da desforra que me
devem ao voltarete. Inútil trabalho. Ela
é inevitável como os fados. Persegui-los-ei até os confins do mundo. Mas de fato! Apresso os meus negócios
em Barcelos para os encontrar em Braga.
Chego. Qual! Tinham-se evaporado. Acordaram uma manhã com a febre de passear, e partiram para
Barcelos! que eu acabava de deixar
justamente em companhia do correio que trouxe a Braga a notícia da terminação do incêndio. Com os diabos! disse
eu comigo. Os meus amigos teriam praça
assente nalguma companhia de bombeiros? Voltam agora a Braga, quando eu estava em caminho da minha
casa de campo.
— Eu iria jurar, meu caro José
Urbano, — disse o major Samora — que partia
para a Sibéria. — O aspeto respeitável do seu equipamento...
— Permita-me que lhe diga, major,
que essa observação desacredita um pouco
a reputação de homem experiente e cauteloso que merecia. Fie-se em calores de Maio! Bom, bom. Olhe-me para
aqueles riscos brancos do céu, aquilo é
leste, o impertinente, o endemoninhado leste. Eu nunca ouvi o sibilar dos pelouros, meu caro Cipião, mas afianço-lhe
que me não pode ser mais desagradável
que o do vento leste. Não o há assim.
— Nem o dos mosquitos? —
perguntou um estudante.
— Nem esse. Os mosquitos
matam-se, o leste... mata-nos. Bem vejo que o capote lhes está causando sensação. O capote,
meus amigos, é o mais útil artigo de
vestuário que desde a folha de figueira tem inventado o engenho do homem. Conserva-me o calor no Inverno e a
frescura no Verão. Os óculos livram-me
os olhos da poeira e conservam-me a vista. O guarda-sol, que os espanta pela enormidade, abriga a minha pessoa
e a bagagem dos ardores do sol e das
torrentes da chuva. A cabaça, meus amigos, contém o líquido que me sacia a sede, ou me dá o calor para arrostar
com o frio...
— Basta, basta, amigo José Urbano
— interrompeu Samora. — Vejo agora que
sou imprevidente. Desse modo, tanto pode viajar pela Cítia fria como pela Líbia ardente.
Esta observação do major foi
festejada com uma estrondosa gargalhada, na qual tomou parte José Urbano.
— Seja, — disse este, quando
serenou a hilaridade — mas o fato é que os meus amigos vão para Braga e eu para a minha
casa de campo. Não importa. Amanhã cedo
cá estou de volta, e fiquem certos que me não tornam a fugir. Cobardes! São militares, e fogem de um paisano
desarmado!
E José Urbano, despedindo-se de
Rialva e Samora, saudou a cavalgada, que lhe correspondeu com estrepitosos hurras.
Daí a pouco entrava a cavalgada
em Braga, e aquele grupo alegre e ruidoso dispersava-se, levando todos gratas
recordações da viagem de Barcelos à capital
do Minho.
Na manhã seguinte, véspera da
entrada da rainha em Braga, passeava o major Samora com alguns oficiais militares no campo
de Santana, quando um indivíduo
bem-trajado, de idade avançada, mas de aspeto vigoroso, lhe foi ao encontro com os braços estendidos, dizendo-lhe
com o sorriso nos lábios:
— O Sr. major Samora já tão cedo
por aqui?!
— Tão cedo? — disse Samora — pois
o amigo José Urbano não sabe que os
militares se levantam ao toque de alvorada?
— E verdade, é verdade; mas
quando se não está em serviço ativo... Naturalmente
não quis que o inimigo o surpreendesse na cama! Muito bem; como o prometido é devido, aqui estou em
cumprimento da minha palavra. Mas
diga-me, major, onde está hospedado?
— No quartel.
— Tem necessidade de estar hoje
em Braga?
— Nenhuma. Os meus deveres estão
cumpridos e só amanhã...
— Nesse caso quer-me fazer um
obséquio?
— Quantos quiser, meu caro
senhor.
— Há de vir jantar comigo.
— O pior é que o meu antigo
camarada, o capitão Melo, já me havia obrigado
a prometer-lhe jantar com ele.
— O capitão pode esperar, não é
verdade? — disse José Urbano, voltando-se
para o capitão, entre quem e ele existia a maior familiaridade. — Pode até vir conosco também.
— Isso é que não, — disse o
capitão interpelado — mas não quero também
privar o Samora do agradável passeio que lhe proporcionará o amigo Urbano. Aconselho-te que vás, e amanhã será o
meu dia.
— E não levas a mal?
— Essa é boa!
— As suas ordens, Sr. José
Urbano. É longe?
— Um quarto de légua afastado de
Braga. É um caminho excelente.
— Conta meia légua, Samora; o
nosso amigo tomou os costumes da aldeia; para ele não há longes.
— Isso também é com o meu cavalo.
— Então vamos! — continuou José
Urbano — mas, major, não julgue que pretendo
com isto pagar-lhe os obséquios que me fez em Famalicão. Não, senhor.
— Basta de agradecimentos por tão
pouco; não falemos mais nisso.
E os dois dirigiram-se para o
quartel, onde o major Samora residia; este montou a cavalo; José Urbano tomou na
alquilaria próxima uma possante égua que
ali dera a guardar, e partiram em direção à morada do negociante bracarense, vivenda retirada da cidade na
proximidade da estrada do Porto, mas
afastada dela mais de um quarto de légua.
— Então reside na quinta
permanentemente?
— Não, senhor. Eu vivo em Braga,
porque a isso me obriga o meu negócio.
Mas tenho há tempos a minha família fora da cidade, longe da qual, por gosto, eu viveria também.
— É numerosa a sua família?
— Uma sobrinha apenas. Pobre
rapariga. Eu sei que não é esta a vida a que naquela idade se dirigem seus suspiros...
E os dois prosseguiram no seu
caminho conversando acerca da agricultura, do comércio, da indústria, de política, até
avistarem a casa onde José Urbano vinha
descansar a miúdo das suas lidas comerciais.
Era uma agradável vivenda,
circundada por um viçoso quintal todo orlado de limoeiros, e onde florejavam as mais formosas
japoneiras e magnólias de algumas léguas
em redor. Penduravam-se pelos muros festões virentes de jasmins e balsaminas, em volta dos quais
zumbia incessante um buliçoso enxame de
abelhas, atraídas pelos aromas suaves que se exalavam em torno. Na extensão destes muros abriam-se sobre o
caminho duas janelas de grades, através
das quais se descobria a abundante verdura daquele perfumado recinto, e de fora se escutava já o murmúrio
contínuo e monótono de uma cascata, que
derramava a frescura e a vida por toda aquela vegetação interior. Respirava-se ali uma tranquilidade que
deliciava o coração. O horizonte, que rodeava
esta pitoresca residência, era extremamente aprazível. Para qualquer lado que as vistas se dirigissem repousavam
sempre agradavelmente sobre um ameno
fundo de folhagem e verdores, onde se demoravam irresistivelmente, seduzidas pela alegria e festa que se refletia
por toda a parte. No meio do repouso e
silêncio que reinava em torno dessa habitação campestre, como que se adivinhava a vida latente da natureza que
desperta no raiar da Primavera, e o
azulado e tenuíssimo véu de nuvens da manhã, que o sol não dissipara ainda de todo, era como a garça transparente que
longe de disfarçar, realça a formosura
de certos rostos e o fulgor de certos olhos. Através daquele cendal vaporoso pressentia-se sorrir a natureza, mais
fascinadora ainda nos seus trajos
simples da manhã, que nas ostentosas galas do meio-dia. As ervas dos silvados, ainda úmidas do orvalho, dispersavam
em cambiante íris os raios de luz,
fulgindo como brilhantes nas suas mudanças contínuas, ou imitando o fulgor do rubi, a amenidade da safira, e
limpidez da esmeralda e do topázio; só a
Primavera tem destes encantos.
Digam o que quiserem das outras
estações, nenhuma é tão agradável como esta.
A natureza é sempre admirável, é sempre artística, é sempre poética, mas o caráter da sua poesia é variado. No Inverno
é sublime e lúgubre como o Manfredo, o
Corsário, o Giaour e muitos outros poemas: Byron admira-se, surpreende-nos, aterra-nos, faz-nos estremecer
e mistura certo terror secreto ao seu
entusiasmo: é entre o ritmo das rajadas, as estrofes do mar agitado o que caracteriza os seus hinos. No Estio é
imaginosa, apaixonada, esplêndida, lasciva,
como um frêmito de Musset, como uma oriental, como um episódio de D. João. No Outono transparece nos seus
cânticos o que quer que seja de utilitário,
são os frutos sazonados pendentes das árvores, e das searas maduras, que chamam o pensamento para os
sérios problemas da vida, como este gênero
de poesia filosófica que entre as galas do estilo desenvolve um pensamento moral e humanitário. Mas na
Primavera a poesia da natureza é destas
composições fugitivas, em que tudo é harmonia e lirismo; abundam as flores, multiplicam-se as imagens, nos lagos e
ribeiros onde se reflete o céu, nos ares
onde os vapores se condensam fantasmagoricamente em pequenas nuvens de formas tão variadas como as concessões
de fantasia de poeta, combinam-se
surpreendentemente a luz e o orvalho como as lágrimas e os sorrisos num a balada germânica.
O concerto das selvas compõe-se de gemidos e
cantos, harmonizados em misteriosa consonância. A natureza é então como a
donzela que só cura de atavios e enfeites, e se entrega descuidada à alegria do
viver; refletem-se-lhe desanuviados os
sorrisos nos lábios inquietos, exalam-se-lhe do seio irreprimíveis os suspiros de envolta com os
cânticos, pulsa-lhe o coração ansioso
como se fosse excesso de vida. Mais tarde a maternidade tem também sua beleza, mas há alguma coisa de melancólico
nas alegrias de então; o futuro, que à
donzela fulgurava de esperanças, à mãe anuvia-se-lhe de preocupações; o coração sobressalta-se-lhe de
contínuo repartido por tantos afetos. A
natureza do Outono tem também o caráter grave da maternidade, mas na Primavera só há a despreocupação da
virgem.
Não sei se estes mesmos, se
análogos pensamentos, suscitava ao major Samora o belo espetáculo campestre que se
gozava dali; é certo que parecia não se
saciar de correr com os olhos por aquele horizonte vasto e pitoresco, e não participar da impaciência que manifestava
José Urbano pela demora que havia em lhe
abrirem o podão, ao qual estava batendo havia cinco minutos.
Respondiam-lhe do interior os
latidos formidáveis de dois cães, mas não se observava o menor vestígio de uma existência.
— Onde estará metida esta gente?
— exclamou José Urbano com azedume
notável.
O major nem deu fé da demora que
assim exasperava o seu anfitrião.
Finalmente ouviu-se o estalar da
areia do jardim: o ruído de uns passos ligeiros e uma voz feminina, cujo timbre agradável e
sonoro veio despertar o major da sua
contemplação extática, fez-se ouvir de uma das janelas do muro.
— Ah! é o padrinho! estava bem
longe de o esperar aqui a esta hora — disse
aquela voz ao reconhecer José Urbano; e o major elevando a cabeça na direção donde lhe tinham vindo aquelas
palavras, pôde perceber, ainda que de passagem,
a forma elegante de uma rapariga que se retirava com agilidade.
— Abre, Micas, abre — disse José
Urbano, cujo mau humor se desvaneceu ao
ouvir aquela voz. — Ainda não sei o que fez a Roberta a esta ente toda! — E voltando-se para o major,
acrescentou: — e a minha sobrinha. Uma
boa rapariguinha; coitada. — E suspirou.
Ouviu-se o correr de um ferrolho
no portão do quintal, que girou sobre os gonzos e se abriu aos recém-chegados, que se
apearam rapidamente, e recolheram os
cavalos.
O major, com a amabilidade de um
militar sensível aos encantos da beleza, cumprimentou a gentil porteira, que meio
enleada pelo inesperado da visita, se ia
sorrindo ao corresponder ao cumprimento.
— O meu padrinho é só o
responsável da má recessão que o senhor tem. Se me tivesse prevenido quando partiu de
madrugada...
— Minha senhora — disse o major
em tom jovial. — Va Exa há de permitir
que, fazendo eu próprio a minha
apresentação, lhe diga que tem na sua
presença um velho soldado, que dormiu muita vez no terreno e no agradável leito das tarimbas, comeu o caldo
pouco apetitoso do rancho, e saciou
muita vez a sede na água dos rios. Quando bato a uma porta a demandar quartel, só peço o pão, sal e água,
de que costumam rezar os boletos.
— Nesse caso ganho ânimo, porque
espero satisfarei a tão pouco exigente peregrino;
mas está-me parecendo que o padrinho não se satisfaz com tão pouco.
— Não, Micas, pelo menos não te
perdoo aquele pudding de batatas que sabes
cozinhar tão bem; o mais fica por conta de Roberta.
— De Roberta, sim! Quando a
teremos nós cá!
— Como?
— Disse-me, depois do padrinho
ter partido, que tinha que fazer na cidade.
Uma compra de linho ou estopa, ao que julgo. Ou é natural que aproveite a ocasião para ver a rainha...
— A rainha? hoje!
— Pois não entra hoje em Braga?
— Amanhã.
— Disse-nos aqui a leiteira que
entrou já ontem, e à Roberta afirmaram-lhe que era hoje de tarde...
— Deixa afirmar. Mas então quem
ficou em casa?
— Eu. Os criados foram para a
lavoura.
— Só! — exclamou José Urbano com
certo ar de censura e desagrado.
— Com estes — respondeu,
voltando-se para ele sorrindo, a gentil rapariga,
ao passo que afagava a cabeça de dois enormes cães acorrentados que, como se desejassem justificar a confiança
que depositava neles, a afagavam com
humildade.
O major não disse palavra. Não se
cansava de admirar a singeleza e graça da interlocutora.
Para justificar esta contemplação
admirativa do major, precisamos nós também
de esboçarmos aqui o perfil desta nova personagem da nossa história, minudência cuja falta nenhuma leitora me
perdoaria por certo.
E contudo a tarefa é de
desanimar.
A HEROÍNA DO ROMANCE — A AÇORDA
DO MAJOR
Não sei de maior dificuldade que
a de descrever a heroína de um romance. Tão
pouca coisa basta para a desconceituarmos aos olhos da leitora!... Eu, porém, sacrificarei à verdade algumas
simpatias que poderia angariar a maior, se
a menosprezasse. Descrevo-a tal qual ela era. Em primeiro lugar começarei por dizer que o modo porque ela trajava,
realçava-lhe tudo que eram dotes naturais.
Maria Clementina, sobrinha de
José Urbano, era de uma configuração elegante,
na qual se observavam as regulares proporções que a arte não teria decerto a corrigir. De um porte
desafetadamente majestoso, inexplicavelmente combinado a uma expressão de bondade
insinuante e atrativa, havia no andar, nas
feições, na maneira de olhar, um ar de dignidade e de nobreza, que intimidava os mais ousados. Um singelo vestido
de riscado escocês adornado apenas por
um colarinho liso, e por uns punhos apertados por duas coralinas, deixava-lhe sobressair todo o correto contorno
daquelas gentis formas femininas, de uma
flexibilidade admirável. No rosto não havia aquela combinação de rosas e neve, que para muita gente
constitui o supremo grau de beleza, e
contudo não era trigueira, nem de uma alvura desmaiada dos tipos alemães que tão frequentemente se combinam com
cabelos ruivos, antipática combinação;
mas para lhes dar uma ideia daquele colorido encontro-me gravemente embaraçado; a natureza concedeu
àquelas tintas uma singular influência
sobre a fantasia do coração, empregou-as apenas em alguns rostos de mulher, que exercem então um poder
verdadeiramente magnetizador. Um romancista
português, e outros franceses, comparou uma dessas cores à da pérola; e tem um pouco disto efetivamente, mas
excede-a em beleza. Quanto a mim
considero-as as mais perigosas. Imaginem um rosto assim, animado pelo cintilar de uns olhos negros, orlado por
uma moldura de cabelos também pretos,
cujas ondulações naturais semelhavam elegantes ornatos; concebam a mais bem modelada boca, cujos lábios,
convenientemente grossos, agitava incessante
um mal percetível tremor, sinal evidente de uma exaltada sensibilidade; suponham agora toda esta
simpática cabeça, graciosamente coberta
por um largo chapéu de palha, que a assombrava de uma penumbra de feitos óticos e fascinadores, e terão
explicada a razão pela qual o major não se
fartava de fixar esta rapariga com os mais inequívocos sinais de uma sincera admiração e decidida simpatia.
Caminharam todos os três por
entre ruas orladas de arbustos que se entrelaçavam,
formando um toldo de folhagem, e cobertas de areia que fazia sobressair a verdura matizada dos tabuleiros
em que estava repartido o jardim.
José Urbano fazia notar ao major
o desenvolvimento de algumas árvores fruteiras,
à afilhada a raridade de certas flores. E assim chegaram à entrada de casa, que não desdizia do aspeto festival de
toda a vivenda. José Urbano subiu mais
apressado os quatro degraus de pedra que davam entrada por a porta envidraçada, e abrindo-a de par em par, disse,
voltando-se para o major:
— Tenho a honra de o receber na
minha casa, senhor major.
— E agora hão de me dar licença,
o senhor major e o padrinho — disse a elegante
sobrinha do proprietário — que me retire para tratar do seu jantar.
— A falar verdade, minha senhora,
eu preferia o pão do boleto, a privar-me do prazer da sua companhia.
— Mas o padrinho é mais exigente.
Não tem esses hábitos militares.
— Mas se nós esperássemos por a
Roberta...?
— Não pode ser.
— Porém, Micas, a falar verdade
tu só...
— Meu caro Sr. José Urbano, —
disse o major em tom meio jovial — estou
tentado a fazer-lhe uma proposta...
— Qual é major?
— Receio que não ma admitam; mas
desde já lhes declaro que mau é que a chegue a formular, porque sou teimoso.
— Vamos, major, diga. A Micas já
está cheia de curiosidade. Repare...
— A falar verdade... Ainda quando
não seja senão para ver como o Sr. major
é teimoso — observou esta sorrindo.
— Proponho que nós todos
colaboremos no jantar.
— Essa agora! — disse José Urbano
admirado.
— Pois o Sr. major também
cozinha?
— Oh! minha senhora. Um militar
precisa de saber de tudo um bocado; pois
deve afazer-se a contar consigo apenas. Tenho tido ocasião de cozinhar para mim mesmo, de compor a minha própria
roupa, e até de me medicamentar.
— Confesso-lhe, Sr. major, que
estava com a minha vontade de experimentar
o seu talento culinário.
— Pois com permissão aqui do seu
padrinho, minha senhora, parece-me que
chegou a ocasião.
— Não, senhor, a minha permissão
não pode...
— Meu caro José Urbano, você, que
viajou também, deve saber alguma coisa
de cozinha. Eu pela minha parte prometo uma saborosa açorda, na confeção da qual granjeei certa fama entre os
meus antigos camaradas, que também me
diziam inimitável em manejar o espeto; e, se houver ocasião, folgarei de lhes demonstrar que não sou
indigno de crédito. E você que sabe fazer,
ó José Urbano? diga lá, ande, e vamos a isto.
— Confesso que nunca tive
disposição para a cozinha.
— Nem se atreverá a fritar uns
ovos com umas rodelas de salpicão? pois eu
creio que o fumeiro deve estar bem provido, hem?
— Não é por falta de materiais...
— E verdade que isto de fritar
uns ovos ainda requer seu engenho e tato culinário; no grau devido, é um prato
delicioso, um pouco acima é detestável. Mas
eu vigiarei, vamos.
— Ora, o Sr. major está a
gracejar.
— Basta-me saber — disse a
sobrinha de José Urbano — que posso contar
com o seu auxílio em caso de maior urgência.
— Minha senhora, eu não lhe disse
que era teimoso? É fama que tenho no exército,
e já agora não a hei de desmentir.
— Mas...
— Para outra vez...
— Não recuo, faço disto questão
ministerial... O meu amor-próprio exige que
eu lhes faça apreciar as qualidades da minha açorda.
E o major, gracejando e rindo, de
tal maneira insistiu, que os três acabaram por passar todos para a cozinha às risadas e
já sem o menor constrangimento.
O major era destas pessoas, cujo
bom humor se comunica, e que põe à vontade
e nas mais joviais disposições as pessoas com quem se acha. Logo às primeiras palavras que se tivesse com ele
cessava todo o constrangimento, e estabelecia-se
uma familiaridade e sem-cerimônia, como um amigo de longos anos.
O próprio José Urbano participava
daquela alegria e arregaçava as mangas do casaco, preparando-se para a tarefa culinária
às ordens do seu comensal.
Maria Clementina assistia rindo
com vontade a toda aquela azáfama dos dois.
O major era admirável de
atividade. Tomara posse do terreno e não se mostrava constrangido.
— Minha senhora — dizia ele,
voltando-se para a afilhada de José Urbano — porá Va Exa à minha disposição um
fornecimento de água, pão, sal, azeite, vinagre,
pimenta, alho, cravo, cebola, salsa, salpicão e toucinho.
— Misericórdia, major... Tenha
misericórdia dos nossos estômagos... Os desgraçados
não resistem a essa metralha.
— José Urbano, você não sabe o
que diz. Não há tônico mais eficaz do que
a açorda preparada assim! Verá, verá.
— Pode satisfazer a minha
requisição, minha senhora?
— Prontamente.
— Bem; agora, José Urbano, vai
você empunhando essa sertã para logo, e partindo
os ovos já...
— Confesso-lhe que é uma tarefa
melindrosa. Partir ovos!
— Que pusilânime! Homem, é assim!
— E com a maior presteza, o major prelecionava
praticamente o seu hospedeiro, que ria a bandeiras despregadas.
— A Va Exa declaro-a emancipada
da minha tutela e livre em todos os seus
movimentos.
— Ainda bem — disse José Urbano —
quando não, recearia pelo destino do
nosso jantar.
— Homem, não faça injustiça à
experiência da vida de campanha. Prometo-lhe
que se há de lembrar com saudade da minha açorda.
Na cozinha ia uma desusada animação.
Parecia que se preparava um banquete, esplêndido.
O major, de per si só, fazia mais ruído que meia dúzia de cozinheiros. E com uma gravidade, que Maria
Clementina não podia ver sem se perder
de riso, mexia e remexia a açorda, que exalava um cheiro apetitoso, e de vez em quando ia vigiar o trabalho de José
Urbano, que ele empregara a bater uns
ovos, aos quais associara uma quantidade de ingredientes. José Urbano executava fielmente as ordens do major,
e havia um quarto de hora que estava batendo
os ovos com um escrúpulo e regularidade admiráveis.
Ao meio-dia, graças aos esforços
combinados dos três, o jantar foi declarado completo, e José Urbano, que observava os
costumes patriarcais folgou ao antever
que não seria alterada a sua hora do costume.
Enquanto o major dava a última
demão à sua decantada açorda, Maria Clementina
pôs a mesa, à qual deu um ar festivo, graças às flores com que a adornou: e José Urbano, descendo à garrafeira,
foi procurar o mais precioso vinho de
que ela constava. No entretanto o major apareceu na sala de jantar, junto de Maria Clementina.
— Pois já está posta a mesa! —
exclamou ele ao entrar na sala.
— E eu que vinha para a ajudar!
— Mil vezes agradecida; mas o
coronel...
— Assim me despacha já, se os ministros
lhe quiserem honrar a palavra.
— O Sr. major, queria dizer, foi
apenas justo para o serviço da cozinha.
— Há de fazer-me a honra de
provar a minha açorda, não é verdade?
— Decerto. E parece-me poder já
assegurar que há de estar deliciosa.
— Não me queira mal pela minha
impertinência; mas é gênio meu...
— Querer-lhe mal! Se eu lhe
assegurar que há tempo que não rio como hoje...
O Sr. major conseguiu fazer-me esquecer por algumas horas as mortificações da minha vida.
— Pois também tem mortificações?
— perguntou-lhe o major com um carinho
que a maior parte das pessoas que o conhecessem lhe estranhariam, ouvindo-o.
— E pergunta-mo?
— E duvido-o. Chama mortificações
a quê? Desgostos por o padrinho não
viver aqui, saudades de alguma amiga mais íntima, zangas pela rabugice da sua criada, a doença de algumas das suas
pombas mais bonitas... pretextos para
mostrar mais uma maneira de serem belos esses bonitos olhos que tem.
Maria Clementina sorriu a este
galanteio do velho militar; mas através deste sorriso descobriam-se uns longes de tristeza.
— Se o major soubesse o motivo
porque eu vivo triste, talvez, longe de me estranhar a tristeza, se admiraria ainda de me
ver sorrir... as vezes.
— Ora adeus. Não é difícil
penetrar no seu segredo. Perdoe dizer-lho. Afinal é o segredo dos... vinte anos... não é
essa a sua idade?
— E — disse Maria Clementina,
corando e desviando os olhos do major. —
Mas ainda não adivinhou tudo.
Nisto ouviram-se passos no
corredor, e a conversa, com aprazimento de Maria Clementina, foi interrompida por José
Urbano, que voltava da sua excursão à
garrafeira, exclamando ao entrar na sala:
— Major! Eu cá sou nacional.
Porto e Madeira.
— Apoiado, Sr. Urbano. Eu secundo
o seu patriotismo.
E sentaram-se todos os três à
mesa. José Urbano, contente e jovial; o major
fazendo as despesas da conversa com anedotas que faziam rir até às
lágrimas o negociante, e assomar um
sorriso aos lábios de Maria Clementina, que, da curta conversa que tivera com o major, conservava
uns vislumbres de melancolia.
A açorda preparada pelo major
teve um efeito monumental. José Urbano declarou-a
a mais deliciosa comida que na sua vida tinha provado. E não obstante ao princípio não poder eximir-se em
fazer uma careta, abrindo a boca para
minorar o excesso dos condimentos, depois de costumar o paladar, reclamava repetições com uma insistência, que
lisonjeava um pouco o orgulho do major.
— Bravo, major! Já vejo que o
cheiro da pólvora apura e aperfeiçoa o paladar.
É deliciosa!
— Mais outra vez, Sr. José
Urbano.
— Vá mais outra.
— Tenha cautela, meu padrinho,
que lhe não vá fazer mal. E tão forte!
— Deixe, minha senhora, isto dá
tom ao estômago. E com um cálice de Madeira
por cima... Va Exa é que não lhe é afeiçoada.
— Estava excelente, Sr. major.
Bem viu que comi.
Aqui para nós, a sensação que a
açorda deixara em Maria Clementina não era das mais favoráveis ao talento culinário do
major.
Reinou em todo o resto do jantar
a mesma jovial animação com que começara a manhã. O major fez um brinde a Maria
Clementina, José Urbano outro ao major;
este outro a José Urbano, ambos um a sua majestade; o comerciante ao exército, o militar outro ao comércio; e
estavam no seu undécimo brinde, quando
se ouviu bater à portaria duas grandes argoladas.
CAPÍTULO VI
A VISITA INESPERADA
O som estridente das argoladas no
portão da casa determinou, por alguns momentos,
completo silêncio na sala, e os três convivas, olhando-se interrogativamente, como que se perguntavam —
quem será?
— Já sei. É a Roberta — disse
Maria Clementina, respondendo à interrogação
tácita dos dois. — Ninguém senão ela podia entrar no quintal.
E levantando-se chegou à janela,
cuja vidraça correu para ver quem batia.
— É você, Roberta?
— Sou eu, menina, sou eu —
respondeu uma voz de mulher, na qual se notava
um evidente cansaço. — Ai que venho mais morta que viva! Depressa, faz favor de atirar cá abaixo a chave da
portaria, e abrir a sala das visitas...
Pois quem vem lá?
— Uma senhora de carroça, para
visitar a menina.
José Urbano levantou-se
sobressaltado.
— Uma senhora!
— Mas quem é? — perguntou Maria
Clementina, igualmente admirada.
— Mas que senhora é? — insistiu
Clementina.
— Eu não conheço — respondeu
Roberta, já impaciente — mas ande depressa,
pelo amor de Deus.
Clementina voltou para dentro a
procurar a chave da portaria.
— Diz que é uma senhora que me
procura.
— Mas quem pode ser? — perguntou
José Urbano, admirado.
— Ignoro-o.
E deitando a correr com uma
graciosa agilidade, foi buscar a chave que Roberta lhe pedia.
José Urbano chegou à janela, e
dirigindo-se a Roberta:
— Ó Roberta, quem é que vem lá?
A criada ouvindo a voz do seu
amo, estremeceu e mostrou-se profundamente embaraçada.
— Pois o Sr. José Urbano... Boa
te vai! Então o senhor... olhem os meus pecados!...
Pois na verdade... Em nome do Padre... Então que quer isto dizer!... Temo-la travada!
E continuava resmungando como se
a presença do amo a contrariasse.
— Responde: quem é que vem lá?
— Aí tem a chave — disse Maria
Clementina, atirando-lha pela janela e voltando
para ordenar a sala das visitas.
A velha não esperava por mais
nada; sem atender ao seu amo, fugiu com uma ligeireza de que ninguém julgaria capazes as
suas pernas estropiadas.
— Roberta, ó Roberta! demônio de
mulher.
O major, que nesse tempo se
aproximara da janela, fez um movimento de surpresa ao observar a mulher que corria em
direção ao portão.
— Ah! é aquela a sua criada?
— E, uma velha já meio tonta e
teimosa, mas, coitada, conheceu-me pequeno.
Veja, major, a idade que ela terá.
O major calou-se. O motivo da sua
surpresa fora o ter reconhecido na criada de José Urbano a velha que ele e o seu jovem
companheiro Rialva tinham encontrado no
dia antecedente na estrada, e que lhes perguntou pela chegada da rainha.
— Mas quem poderá ser? —
perguntou a si próprio José Urbano. — Uma senhora que procura a minha sobrinha!
Durante este tempo passeava Maria
Clementina na sala de receção, igualmente preocupada em saber quem seria a pessoa que a
procurava.
Desde que Maria Clementina vivia
no campo, raras tinham sido as visitas que recebera; por isso a surpreenderam as palavras
de Roberta, e mais ainda a expressão da
sua fisionomia, na qual se lia um certo espanto inexplicável. Absorvida por estes pensamentos, a sobrinha de
José Urbano desceu ao jardim a receber a
sua desconhecida visita.
Não esperou muito tempo. Roberta
assomou pouco depois à entrada de uma das
ruas que conduziam ali, e após ela uma senhora de meia-idade magnificamente vestida e com certo ar de
nobreza e dignidade, que revelavam distinção.
Maria Clementina foi ao seu
encontro.
Roberta, colocando-se por detrás
da recém-chegada, a quem tributava extremas
atenções, fazia sinais telegráficos a Maria Clementina, que esta não podia entender, o que cada vez mais a
embaraçava, pois nada lhe recordava as feições
da senhora que pretendia visitá-la.
— Não sei a quem nem ao que devo
a honra desta inesperada visita, mas em
todo o caso é-me sumamente agradável receber uma tão lisonjeira distinção — disse Clementina, aproximando-se
da senhora, cuja fisionomia denotava um
ar de bondade simpática e atraente, que dispôs o ânimo de Maria Clementina no seu favor.
— Minha senhora — disse a
recém-chegada, fixando em Maria Clementina um olhar penetrante — ainda que lhe pareça
estranha a minha visita, peço-lhe que me
dispense de a explicar enquanto não estivermos mais à vontade.
— Essa é boa — disse Clementina,
sorrindo. — Se Va Exa até não quiser dar-me
explicações algumas, não serei eu por certo que me atreva a pedir-lhas. Quer ter a bondade de entrar?
— Se o ordena? Mas para falar
verdade, se lhe não fosse incómodo, aquela rua de romãzeiras tem uma sombra
convidativa...
— Como Va Exa quiser.
E as duas desviaram-se na direção
da rua de romãzeiras.
Maria Clementina, cada vez mais
admirada da estranheza da visita; a senhora idosa envolvendo-a nos seus olhares vivos e
penetrantes.
Roberta, ao afastar-se delas,
pôde obter oportunidade de dizer a sua ama em tom enigmático:
— Cautela! trate-a com muito
respeito! Eu depois lhe direi...
Maria Clementina estava vendida,
como vulgarmente se diz. Estranhava os modos
da criada pelo menos tanto quanto o inesperado da visita.
— Quer dar-me o seu braço? —
disse a Clementina à senhora, cuja visita tanto a preocupava.
— Com todo o gosto.
E as duas mulheres penetraram,
assim juntas e silenciosas, durante algum tempo, pela copada rua do jardim. Chegaram à
extremidade oposta à rua, onde, junto de
uma pequena fonte, havia um convidativo banco de cortiça assombrado por um toldo de trepadeiras.
— Quer-me fazer o favor de se
sentar aqui comigo?
— Com muito prazer.
A desconhecida, tomando então as
mãos de Maria Clementina, disse-lhe com um
tom meigo e afetuoso:
— Sabe que me está inspirando
muita simpatia?
— Oh! minha senhora...
— Quero enfim dizer-lhe o que me
trouxe aqui. Eu sou de Lisboa.
— Ah! de tão longe!? — exclamou
Maria Clementina, para dizer alguma coisa.
— E verdade. E havia muito que
desejava conhecê-la.
— A mim!? em Lisboa...
— Admira-se?
— Não sei como Va Exa me pudesse
conhecer num a terra, onde ninguém me
conhece.
— Ninguém?
— Decerto. A minha única família
resume-se no meu tio, que vive comigo.
— Mas algumas amigas...
— Amigas! Engana-se Va Exa; eu
não tenho amigas.
— Diz-me isso com um ar de
descrença, que é de estranhar num a menina tão nova.
— Há pessoas para quem a
experiência é prematura.
— Santo Deus! que desconsoladora
dúvida! Ora vamos, quer-me parecer que é
menos justa nesse seu ceticismo.
— Não chame a isto ceticismo,
minha senhora; graças a Deus, eu tenho a amizade do padrinho.
— Só?!
— Tem razão; era injusta. E a da
minha criada Roberta.
— E a de mais ninguém? Parece-me
que ainda mais uma vez terá de reconhecer
a sua injustiça. Em Lisboa alguém existe que a estima.
— A mim? — perguntou Maria
Clementina, corando enleada sob os olhares
da sua interlocutora.
— E é dessa pessoa que eu lhe
queria falar.
— Va Exa?
— Eu, sim. Quer ser franca
comigo?
— Eu? Mas...
— Ouça-me. Uma das minhas amigas
tem um filho oficial no exército.
Maria Clementina sobressaltou-se
a estas palavras.
— No ano passado — continuou a
senhora — este rapaz, que é meu afilhado,
e por quem eu me interesso muito, passou algum tempo em Braga em serviço. Quando voltou a Lisboa, por
diligências da mãe, ia preocupado e triste.
Estranhavam-no todos que o tinham conhecido o mais alegre, e direi mesmo, estouvado rapaz da capital. A mãe dele,
sobressaltada no seu coração materno,
escreveu para alguém do seu conhecimento, residente aqui próximo, e a carta que
obteve... Quer-me fazer o favor de a ler? — continuou a senhora idosa, oferecendo uma carta a Maria
Clementina. — E neste ponto...
— Mas para que hei de eu... —
dizia Clementina, tremendo e estendendo quase
involuntariamente as mãos para aquela carta: apesar da sua turbação lançou-lhe os olhos, e pôde ler as seguintes
linhas:
«Quanto ao que me perguntas a
respeito do teu filho, colocas-me em sérios embaraços; pois não sei se o mau pensamento
lisonjeará demasiado a tua vaidade
maternal. Em todo o caso, eu com a franqueza que sempre me conheceste, dir-te-ei que, a meu ver, o teu
filho Filipe é digno de censura...»
As mãos de Maria Clementina
tremiam cada vez mais ao ler estas palavras; vencendo a sua comoção prosseguiu:
«Há tempos que a sua assiduidade
junto de uma menina destes lugares havia sido notada; no dia da sua partida uma
imprudência dele sacrificou a reputação
daquela que inocentemente confiara nele e...»
Maria Clementina devolveu a carta
que estava lendo.
— Entendo, minha senhora —
exclamou ela com a voz alterada e com as faces tingidas de um vivo rubor. — Va Exa sabe
que eu sou a pessoa assim caluniada, não
é verdade?
— Sei.
— E então com que fim me
procurou? — prosseguiu Maria Clementina com
certo tom de amargura.
— Para lhe assegurar que a mãe de
Filipe de Rialva, ao receber esta carta, comoveu-se, e que, por secreto pressentimento,
acreditou na pureza da mulher que uma
imprudência do seu filho assim sacrificara; que ela me pediu que se pudesse encontrá-la, lhe
assegurasse isto mesmo, e que lhe transmitisse um beijo, que eu espero me não recusará.
— Oh! minha senhora! — exclamou
Clementina, verdadeiramente comovida.
E as duas mulheres por muito
tempo confundiram seus beijos e as suas lágrimas.
— Ora agora — continuou afinal a
senhora de Lisboa — faça-se justiça a todos.
Filipe ainda não é tão culpado, como nesta carta se diz. Ele, quer-me parecer, ainda se não esqueceu da menina.
Maria Clementina abanou a cabeça
em ar de dúvida.
— Oh! não faça esse movimento que
se não quadra com esses olhares tão cheios
de confiança, com uma expressão de lábios, que, mesmo contra sua vontade, se conformam num sorriso. Não seja
desconfiada. Sobretudo não me fique
odiando Filipe... não?
Desta vez o sorriso de Maria
Clementina tinha outra significação.
— Odiá-lo! — dizia-lhe, baixinho,
o coração. — E julgam necessário recomendar-me
que o não odeie!
Ora, apesar do coração falar tão
baixo, não sei que admirável acústica era a senhora lisbonense que o percebeu, e
aproximando-se de Maria Clementina disse-lhe
com voz afetuosa:
— Ainda o ama, não é verdade?
Diga-me que sim.
Maria Clementina corou e
calou-se.
— Bem, bem, este rubor é também
uma resposta. Adeus. Permite-me que volte
a visitá-la?...
— Quando Va Exa quiser.
— Agora retiro-me.
— E nem ao menos há de descansar
na nossa casa?
— Se me dispensa...
— O meu padrinho há de sentir.
— Quê! pois não está só?
Tinham-me dito...
— O meu padrinho chegou, sem ser
esperado, com um amigo que jantou conosco.
Eles lá vêm ao nosso encontro.
A senhora de Lisboa seguiu com os
olhos a direção em que apontou Maria Clementina,
e não pôde disfarçar um movimento de espanto ao reconhecer o major.
— O Sr. Clemente Samora aqui?
O major pela sua parte parecia
tê-la também reconhecido, e não mostrava menor estupefação.
— Longe estava eu de esperar
encontrar Va Exa neste lugar, Sra. D. Joana.
— Não menos alheia estava eu ao
prazer do seu encontro, major.
José Urbano, depois de
cumprimentar, segundo a etiqueta, a dama desconhecida, voltou para sua afilhada e para
o major olhares interrogadores.
— Para evitar-lhes o incômodo de
uma apresentação, eu própria me apresento
— disse ela, olhando para o major de uma maneira particular, como se lhe quisesse recomendar o silêncio.
— Va Sa é, segundo julgo, o tio
desta menina, não é verdade? — disse D. Joana,
sorrindo-se amavelmente para José Urbano.
— As ordens de Va Exa aqui e em
toda a parte. José Urbano, negociante em
Braga.
— Muito bem, Sr. José Urbano.
Pois eu sou de Lisboa, e aproveitei a vinda da rainha para visitar o Minho, que há muito
tinha desejos de ver. Ao despedir-me de
algumas minhas amigas em Lisboa recebi de uma a incumbência agradável de procurar esta menina
para lhe assegurar da parte dela que,
apesar da ausência, sempre a teve presente no coração. O acaso fez com que eu na estrada encontrasse a sua
criada, de cuja conversa vim a saber ser
aqui a morada de quem eu procurava, e resolvi por isso cumprir imediatamente a minha comissão. Agora
retiro-me, mas já autorizada para voltar
a visitá-la pela minha própria conta, se o Sr. José Urbano se não opõe...
— Oh! minha senhora! Va Exa
honra-nos muito com a sua visita.
— O major fica?
— Vinha também despedir-me desta
menina, e se Va Exa quiser aceitar a minha
companhia...
— Porém, o major vai para Braga,
e eu fico em casa do Visconde de P...
— Pessoa de bem — disse José
Urbano ao ouvir este nome. — Mas o major
pode acompanhar Va Exa até perto da quinta do visconde, sem torcer muito caminho.
E José Urbano, profundamente
conhecedor da topografia do lugar, indicou ao major Samora o itinerário que devia seguir.
— Então até breve... É verdade;
quer-me fazer o obséquio de aceitar um lugar
na minha carruagem para vermos amanhã a entrada da rainha? — perguntou D. Joana, voltando-se para Maria
Clementina.
— Peço a Va Exa que me dispense
de aceitar tão lisonjeiro favor; mas não me agrada o tumulto.
— Basta; eu também prefiro
falar-lhe mais com sossego. Adeus.
E aproximando-se de Maria
Clementina beijou-a afetuosamente, dizendo-lhe ao mesmo tempo:
— É verdade, peço-lhe que não
dissuada a sua criada das ideias que formar ao meu respeito.
O major Samora, ao ajudar D.
Joana a subir para a carruagem, estava pensativo,
e olhava para Maria Clementina de um modo particular.
— Entre, major. O André que lhe
conduza o cavalo até ao sítio onde teremos de nos separar.
E depois de fazer um último sinal
de afetuosa despedida a Maria Clementina, cortejar José Urbano, e ter enviado a Roberta,
que se desfazia em mesuras, um gesto
particular, deu ordem de partir, e em pouco tempo a carruagem se afastava do lugar.
— Parece uma excelente senhora —
disse José Urbano, fechando a porta. —
Mas de quem te trouxe ela visitas, Micas?
— Ah!... — respondeu Maria
Clementina, turbada — da filha do juiz de Direito, que se retirou o ano passado.
Em todo o resto da tarde Maria
Clementina mostrou-se preocupada.
José Urbano passeava no quintal,
examinando minuciosamente o estado dos enxertos,
o adiantamento dos renovos, e limpando os alegretes com a solicitude de um horticultor de vocação.
Maria Clementina permaneceu
imóvel, encostada à varanda, seguindo com os olhos o volutear
das andorinhas no espaço, nessa posição cheia de languidez e poesia de mulher de vinte anos que sonha. O
sonhar nesta idade é uma das variadas
manifestações do amor e a mais ideal, a mais pura, e mais sublime. Pensa-se antes que o coração tenha decifrado o
enigma proposto, antes que o amor tenha
recebido uma solução real. E o estremecimento da alma, precursor de uma vida nova. Após uma longa
viagem, e depois de flutuar suspenso
entre o céu e o abismo no mar, o nauta, encostado um dia à amurada do navio, estendendo os olhos pela
amplidão das águas, sublimes de mais
para lhe bastarem por muito tempo ao coração, e procurando ao menos nas nuvens um simulacro de montanhas, lagos
fantásticos, campinas e florestas, sente
que o vento, que lhe agita os cabelos e que sibila pelas enxárcias, o perfuma de fragrâncias suaves;
que lhe recorda a terra porque suspira,
e que lhe anuncia prazeres que ainda não vê. Então aspira com sofreguidão estas brisas, que roubaram às
flores os seus perfumes, e deixa-se cair
num a contemplação extática, imaginando os bosques e os vergéis da terra de que se sente próximo.
Na vida há uma situação idêntica,
em que também a atmosfera nos vem perfumar
de misteriosa fragrância, e em que ao aspirá-la sonhamos venturas e esquecemos os dissabores de viagens
empreendidas. É a aurora do amor; quadra
de devaneios e fantasias, em que a vida do coração começa e exerce sobre nós o seu mágico influxo.
Maria Clementina estava naquele
momento num a dessas situações. O que lhe estaria a fantasiar a imaginação? Imaginem as
leitoras.
E tão absorvida estava naquele
seu íntimo cismar, que nem dava pela presença da sua criada Roberta, cujo entrar e sair, e
ruído que de propósito fazia, tinha o
que quer que fosse de suspeito, e noutra ocasião teria já evidentemente sido notado por ela.
Roberta acabou de se convencer
que não conseguira tomar-se notada; por isso,
aproximando-se de Maria Clementina, dirigiu-lhe a palavra.
— Então diga-me cá, menina, que
lhe pareceu a visita daquela senhora?
Maria Clementina olhou para a
criada com certo sobressalto, como se aquelas palavras a desviassem, mau grado seu, de um
agradável meditar.
— Que me havia de parecer,
Roberta? Uma delicadeza daquela senhora, que assim quis ter um incômodo pela minha
causa.
— Sabe quem ela é? — perguntou
Roberta com certo ar de mistério.
— Uma senhora de Lisboa.
— Mas que senhora?
— Que senhora?! Não entendo a
pergunta.
— Sim; pergunto eu se sabe quem é
aquela senhora?
— Eu, não.
Roberta tomou-se cada vez mais
misteriosa; foi à porta observar se alguém a escutava; depois aproximou-se de Maria
Clementina, e disse-lhe em voz baixa:
— Quer que lhe diga quem ela é?
— Diga lá.
— E promete segredo?
— Prometo — respondeu Maria
Clementina, sorrindo ao lembrar-se da recomendação
de D. Joana.
— Pois olhe; mas não se assuste,
nem diga nada ao padrinho.
— Mas então quem é?
— É a rainha!
— A rainha? Ah! ah! ah! — disse
Maria Clementina, não podendo reter uma gargalhada.
— Olhem! E a menina ri-se! É o
que eu lhe digo.
— Então era a rainha?
— Era, sim, senhora, era. E sabe
quem a trouxe aqui?
— Eu não.
— Fui eu.
— Ah! Então você tem esse poder
sobre a rainha?
— Ora escute.
E Roberta, com toda a
familiaridade, puxou uma cadeira para junto de Maria Clementina e prosseguiu:
— Aquela história do alferes...
— Roberta! já lhe disse que não
queria que me falasse mais nisto.
— E não tenho falado. Agora, o
que eu não podia era deixar de pensar também.
Que quer a menina? Eu vi-a nascer, assim como vi nascer a mãezinha, e já que não pude dar àquela as
venturas que lhe desejei sempre, disse
cá de mim para mim: Esta não há de ter uma sorte infeliz, ao poder que eu possa.
— Mas a que vem isso agora,
Roberta?
— A que vem? Ora escute. Aquela
doida da leiteira veio-nos aqui dizer que a rainha chegava ontem. Quando ela me disse
aquilo, eu pus-me cá a malucar.
A rainha é rainha. Ela é quem
manda e governa, os outros têm de lhe
obedecer. Se eu lhe contasse
tudo...
— Se lhe contasse o quê, Roberta?
— exclamou Maria Clementina com certa
inquietação.
— Tudo. A história do tal
alferes.
— Roberta!
— Ora valha-me Deus, menina. Com
esses escrúpulos não se faz nada de jeito.
Se eu tivesse estado com a menina em Braga, eu me acautelaria; assim ao menos vamos a remediar o mal. A rainha dizem
que é boa senhora. Se eu lhe fizer
constar que, por causa de um alferes, as más-línguas se atreveram a murmurar da mais virtuosa menina que eu tenho
conhecido, ela há de tomar as suas
medidas e remediar tudo.
— Você tem coisas, Roberta!
— Diga-lhe que sim. Eu o que não
tenho são papas na língua. Sabe a menina
que para dizer a verdade, tanto a digo diante dos reis como dos da minha igualha. Já uma vez fui jurar como
testemunha de dizer o que sabia, e até o
juiz disse que eu era uma mulher desenganada. Eu cá sou assim. Pedi-lhe ontem licença e fui-me pôr na estrada à espera
da rainha. Bem podia esperar até pela
manhã. Passou este senhor general, que cá jantou hoje; quando me lembro como a menina cá se arranjou sem mim,
ainda me benzo; o que valeu é que ele é
um homem como se quer, e o padrinho estava hoje de boa maré. Ainda assim! Mas não tem dúvida,
ainda que tivesse de cair a sé, por bem empregado
dava eu o meu tempo... Mas como ia dizendo, passou este senhor e um rapazote novo, e foram eles que me
disseram que a rainha só chegaria daí a
duas ou três horas, e até me deram os sinais certos para eu a conhecer. Esperei, esperei e por fim sempre apareceu:
conheci-a logo.
— Ah! então conheceu-a?
— Conheci logo. Vi a carruagem e
disse com os meus botões: E aquela. Vinham
dois criados a cavalo atrás e outra carruagem com senhoras também. Não trazia estadão, porque, como me disse o
tal rapaz, ela viaja... viaja... ora como
disse ele?... Era assim uma coisa como em cólicas, mas que vinha a dizer que viajava sem estrondo. Cheguei-me à
carruagem, apesar do sinal do boleeiro,
e ela ao ver-me fez logo sinal para parar. Atenciosa é ela com os pobres, Deus Nosso Senhor lho pague.
Maria Clementina ouvia com
curiosidade a narração desta aventura da criada.
— Qual de V.^ Ex.^ é a rainha? —
disse eu para as três senhoras que iam dentro,
apesar de logo ver que havia de ser a mais idosa. As mais novas desataram a rir... como a menina ri também...
não sei porquê. Lembrou-me que seria por
eu não dar o tratamento que devia e emendei a tempo: Qual das vossas majestades é a rainha? As outras riam
ainda... Eram uns galos dourados,
coitadinhas, nem por estarem diante de quem estavam!... Raparigas. Mas a senhora então, tocando-lhes com o
cotovelo, disse muito séria, voltando-se
para mim:
«— Sou eu; por quê?
— Ah! eu logo vi, ora primeiro
que tudo seja vossa majestade muito bem- vinda a esta sua terra, onde tem
muitos amigos. O meu amo fala muito no paizinho
da vossa majestade. Ora muito bem. Vossa majestade há de ter pressa; mas é que eu sempre lhe queria
pedir...
A rainha julgou que era esmola,
pois já ia a meter a mão ao bolso...
— Em cortesia — disse eu, que a
percebi — não é isso que eu peço, é justiça.
— Justiça! — disse a rainha,
tomando-se logo séria. — Fale, fale... quem lhe fez mal?
— Eu lhe conto, não foi a mim
verdadeiramente, mas... e o mesmo que se fosse, se fui eu que a trouxe ao colo...
— A quem? — perguntou a rainha.
— À minha menina!
— Roberta — disse Maria
Clementina, interrompendo-a — você não tem juízo! Ir assim, diante dessa gente toda,
falar em coisas das quais eu já lhe tinha
proibido de dizer uma palavra mais!
— Ora venha cá ensinar-me como as
coisas se fazem! Cuida que me pus mesmo
agora a tagarelar para quem me quisesse ouvir. Era o que faltava. Eu disse à... à rainha: se a vossa majestade
quiser ter o incômodo de se chegar aqui,
eu conto-lhe tudo. Ela chegou à porta da carruagem, e eu disse-lhe tudo ao ouvido.
— Tudo o quê?
— Contei-lhe que, estando eu na
quinta e o padrinho no Porto, a menina fora
para o convento. Que foi por ocasião do Saldanha andar por cá e que deixara ficar em Braga um tal alferes, que
inquietou a menina; porquanto enfim,
como eu disse à rainha, quando a gente é nova o coração é o coração, o sangue ferve...
— Jesus, meu Deus! que mulher
esta! — exclamou Maria Clementina, corando.
Roberta não atendeu à
interrupção, e continuou:
— Que depois a viu em casa do Sr.
Domingos Pedral, e que na noite em que o
tal alferes tinha de partir para Lisboa, foi falar com a menina ao jardim do Sr. Pedral, onde a menina estava. Asneira,
como eu disse à rainha, em que se eu lá
estivesse, a não deixaria cair. E logo então com tanta infelicidade, que ao saltar o muro foi visto por um grupo de
estudantes que dobrava uma esquina, e o
mesmo foi verem-no eles que vê-lo toda a cidade, a qual já falava nestes amores há muito. No dia seguinte, a
reputação da menina andava já por essas
bocas do mundo; as delambidas das freiras puseram-se a fazer biquinhos à volta da menina para o convento. E eu e a
quem contaram isto fomos buscar a menina
para a quinta, porque, graças a Deus, a sobrinha do Sr. José Urbano não precisa dos favores de ninguém.
Disse-lhe que o Sr. José Urbano chegara
aqui a Braga espavorido, mas que depois de falar com a menina ficara manso como um cordeiro, e nunca falara mais
nisto.
— Sabe, Roberta, que se o meu
padrinho soubesse o que você fez havia de ficar muito satisfeito! Não viu como ele lhe
ordenou que nunca mais falasse em tal?
— Pois sim; com esses escrúpulos
ficávamos sempre nesta vida. A menina sem
voltar à cidade, sem visitar ninguém, aqui metida.
— Bem me importa a cidade. Que
canseira lhe dá isso a você? Eu já lhe disse
que não me distraio aqui?
— Ora deixemo-nos disso. Os
passarinhos cantam muito bem, as flores são
muito bonitas; mas, vindo o Inverno, nem passarinhos nem flores. Depois sempre quero ver como a menina se diverte. E
como o ano passado. Chorava, chorava...
— O ano passado estava doida. Já
sabe que me curei daquela loucura.
— Diga-o a quem quiser, menos a
mim. Olhem para onde ela vem com os seus
esquecimentos!
— Mas que lucrou você em contar a
essa senhora a minha história?
— À rainha...
— A rainha, seja lá rainha. Para
quê?
— Pois quem lhe pode dar remédio,
senão ela? Eu lá lhe disse:
Agora veja vossa majestade se
isto deve ficar assim. Se os militares que a vossa majestade para cá nos manda vêm para manter a
paz, ou para meter a desordem nas
famílias e fazer a infelicidade de meninas bem-educadas...
Como se chamava esse oficial? —
perguntou a rainha, e eu bem vi que ela já estava interessada por a história.
— Olhe, eu só sei que ele era
Filipe.
— E disse-lho! valha-me Deus!
— Disse, disse... Era o que
faltava se eu me punha com biocos.
— Filipe de Rialva?! — perguntou
a rainha assim com mostras de o conhecer...
— Tanto não posso dizer a vossa
majestade; eu só sei que ele é Filipe.
A rainha não perguntou mais nada
dele.
— Mora daqui longe essa menina?
— É ali logo.
— Pode lá ir uma carruagem?
— Indo pela banda de cima, estou
que pode.
— Ela estará amanhã só?
— De todo só. Porque não esperava
que o padrinho viesse de Braga.
— Vou ficar hoje em casa do
visconde de P., sabe onde é?
— Perfeitamente, majestade, é
logo ali — e apontei para o sítio.
— Amanhã, a esta mesma hora,
esteja lá para me guiar no caminho. Vá com
Deus.
Eu desviei-me da carruagem, que
desapareceu num abrir e fechar de olhos.
Quando cheguei a casa e vi o Sr.
José Urbano, fiquei atarantada de todo, porque
me lembrei que já não podia ir buscar a rainha. Passei a noite muito triste, e nem dormi, mas rezei muito a Nossa
Senhora.
Hoje de madrugada, vendo partir o
padrinho para a cidade, fiquei tão contente,
que por pouco não me deu o sono. Boa te vai. Olha agora se eu adormecia nesta ocasião, estava bem servida! E
levantei-me logo, e quando foram horas
pedi à menina que me deixasse ir a Braga comprar linho, mas fui ter com a rainha, que já estava à minha
espera. Pelos modos parece que também
madruga, porque ainda não era meio-dia! Depois ela... a rainha... fez- me
entrar na carruagem. Oh! Eu bem não queria, mas não houve de quê. Hem? Que lhe parece? desta poucas se gabarão!
Não é assim? Ora aqui tem como a rainha
aqui veio ter.
Mas julgue como eu ficaria quando
vi o Sr. José Urbano à janela. Credo! Fiquei
sem pinga de sangue, e por pouco não caí redondamente no chão. Decerto me valeu o meu padre Santo António.
Também olhe que uma aquela assim como
esta poucas vezes acontece à gente. O que me admirou foi o padrinho não a conhecer. Agora, quando a vir
em Braga, é que há de ser bonito. O
major, esse logo vi que a conheceu; porém ela fez-lhe sinal, que eu bem reparei. Mas como veio o major cá ter...?
E como se arranjaram com o jantar? É
verdade, ó menina, quem fez aquela sopa, que... santo nome de Deus! por pouco me não punha a boca em carne
viva! Onde aprendeu a menina a cozinhar
aquilo?»
Maria Clementina sorriu-se a esta
referência à açorda do major. Mas naquele momento achava-se possuída de veemente desejo
de estar só, e por isso, voltando-se
para Roberta, disse-lhe:
— É necessário ir tratar do chá
do padrinho, que ele não tarda por aí. Vá; depois conversaremos.
Roberta retirou-se murmurando:
— A rainha nesta casa e eu na
carruagem da rainha! Quando me lembro!
Maria Clementina ficou outra vez
só. Outra vez se deixou arrebatar pelos devaneios
da sua fantasia. Ficar só é a suprema felicidade em situações como a sua. Escuta-se melhor o que murmura o coração
agitado, percebem-se todas as íntimas
vibrações dos misteriosos sentidos donde procedem os afetos. Nas trevas, em que a imaginação de Maria
Clementina se confundia, via raiar enfim um raio de luz. Não era pois ainda desesperada
a sua situação. Seria possível desanuviar-se-lhe
ainda o céu, para o qual já não olhava com esperança? Não seria ainda a resignação a única arma que lhe
podia dar a paz do coração que perdera?
Tudo isto lhe propunha o
pensamento, e entre estas questões vacilava aquele pobre coração, que julgava ter abafado todas
as esperanças, e agora as via surgir de
súbito umas após outras, a povoarem-lhe de novo a fantasia, mais inquieta que nunca, e a seduzirem-na com o
esplendor do seu brilho, com o vivo das
suas cores.
Como é ilusória a placidez dos
vinte anos! O fogo latente alimenta uma iminente
erupção. Ó transparente máscara de sisudez posta nestes lindos rostos de mulher, como ocultas mal os risos
inquietos que se agitam por debaixo!
pensai, pensai, sonhai, imaginações juvenis; pulsai, amai, corações virginais; a vida na vossa quadra é isto. Não
há gelo que apague o fogo que vos
escalda; e, se o sufocais com gelo, funde-se em lágrimas e a paixão rebenta mais forte.
Deixemos Maria Clementina
entregue aos seus pensamentos de amor, acompanhem-na as imaginações dos
leitores, mais capazes de as seguirem aí, e vamos nós a outro ponto, onde o
desfiamento desta narração nos chama.
CAPÍTULO VII
O ENCONTRO INESPERADO
Ao separar-se do major, perto da
quinta onde devia pernoitar a senhora de Lisboa, a que este chamara D. Joana, disse-lhe
ela, estendendo-lhe a mão:
— Então ficamos nisto, major?
— Pela minha parte prometo
cumprir quanto Va Exa me ordene.
— Não diga ordene, por quem é. Eu
peço só...
— Não é o mesmo que ordenar?
— Bem, major, não insistamos em
galanteios. Combinamos então o major em
colher informações de família. Eu em sondar o coração de Filipe.
— Eu posso dar a Va Exa
informação nesse ponto.
— Como?!
— Filipe falou-me nesta
inclinação, e confessou conservar da pequena uma ideia muito superior à de todos quantos amores
tem experimentado. Mas Va Exa está
resolvida...
— A evitar que Filipe cometa uma
deslealdade. Que quer, major? meteu-se-me na cabeça fazer do meu filho um
perfeito cavalheiro...
— E não lhe será muito difícil o
empenho na execução, minha senhora. Mas
adiante. Va Exa e Maria Clementina serão tudo, menos o fruto de alguma antiga árvore genealógica.
— Olhe, major, eu não tenho o
defeito de me esquecer que o meu pai era um negociante da capital; e se o pai de Filipe
não julgou desonrar-se aliando-se com a minha família, eu renegaria a minha
procedência, se adotasse esses preconceitos.
Ora agora, para o mundo, que para desculpar uma ação boa precisa de a explicar por uma ideia
interesseira, ficarei absolvida dizendo-se que os capitais de José Urbano sossegaram os
escrúpulos aristocráticos, que, como
sabe, eu nunca tive.
— Bem, minha senhora. Agora, que
recebi as suas instruções, retiro-me e até
à vista.
— Conto com a sua aliança?
— De vida e de morte.
E o major despediu-se de D. Joana
Rialva com a galanteria de um perfeito militar;
e montando a cavalo partiu em direção a Braga.
Momentos depois estava D. Joana
no salão do visconde de P.... onde a aventura
da estrada ainda era comentada com alegria. D. Joana contou ao seu modo o que lhe sucedera na visita que acabava
de fazer, inventando uma história de uma
família desgraçada, que a exoneração de um emprego público reduziu à miséria, e agradeceu a Filipe o
haver-lhe fornecido a ocasião de reparar
um mal.
— E Va Exa visitou essa família?
— perguntou Filipe — se é que a mãe não
exige que a trate por majestade também.
Nova hilaridade das senhoras do
salão.
— Visitei, e voltarei ainda a
vê-la. Assim lho prometi. Já agora quero tomar a sério o papel de rainha. Imaginei que devia
levar a felicidade àquela família que
assim recorreu a mim. Parece que andou aqui a mão da Providência. E tu, Filipe, terás também o teu papel em tudo isto.
Preciso da tua coadjuvação para secundar
os meus projetos.
— De todo o coração, minha mãe, lha
prometo.
— Reclamo já a tua companhia para
a visita que tenciono fazer-lhe.
— Da melhor vontade... prometo.
— E nós todas vamos também —
exclamaram algumas senhoras.
— Não vai nenhuma. Eu quero
continuar a ser suposta rainha, e 2 o riso das meninas não mo permitiria.
— Prometemos estar serias.
— Não creio na promessa. Desta
vez irei eu só com Filipe...
E, combinando nisto, passou-se a
conversar noutros assuntos, a discutir toilettes,
a planear projetos de passeios, voltando-se de vez em quando ao objeto que evidentemente mais preocupava D.
Joana.
O dia seguinte foi de grande
alvoroço para Braga. Todos os nossos conhecidos,
à exceção de Maria Clementina e de Roberta, andavam envolvidos naquele mare magnum de povo, e
tomando parte no tumulto e agitação, em
que a chegada da sua majestade lançou a população de Braga.
Deixemos porém passar este dia,
pois que não nos compete tomar parte naqueles
regozijos, e juntemo-nos às personagens desta história no dia seguinte a esse para seguirmos a série de
acontecimentos que formam o entrecho
desta narração.
O carro, que já uma vez havia
conduzido D. Joana à quinta de José Urbano, corria agora com ela e Filipe de Rialva pela
estrada de Braga na mesma direção. O
major encarregou-se de conservar na cidade o proprietário da quinta, porque a visita evidentemente não se
destinava a este.
Rialva fazia notar a sua mãe as
belezas do caminho, e exaltava os encantos da província do Minho com entusiasmo de artista.
— Deve Va Exa concordar que é uma
aprazível província esta. Os campos são
jardins, os montes são cômoros de verdura, parece que se sente tudo cantar e sorrir.
— E efetivamente esta gente do
campo é essencialmente amante da música.
Ainda não cessámos de ouvir cantar.
Naquele mesmo momento uma fresca
e suave voz aldeã cantava num campo:
Aquele que tanto amei
Esqueceu o meu pensamento,
Como o rio esquece as rosas
Que retratou um momento.
— É uma acusação de infidelidade
— disse D. Joana, fitando no seu filho um
olhar alicioso, que este não percebeu.
— Mas que bonita voz a da
cantora! Parece-me que ainda em S. Carlos não se ouviu tão sonoro timbre.
Mais adiante uma lavadeira
cantava num ribeiro, vizinho à estrada:
O amor que me juraste
Bem cedo o vi acabar,
Foi fumo de lavareda
Que já se desfez no ar.
— Outro queixume. Parece-me que a
cada passo se ergue uma voz a acusar a
inconstância do coração.
— É porque só os corações
infelizes é que cantam; a alegria e a felicidade são mudas.
Ao voltar um ângulo do caminho
era outra rapariga que fiava à porta, cantando:
O teu amor era falso,
Teve pouca duração,
Mas deixou mágoas eternas
No meu pobre coração.
— É singular! — disse D. Joana
com certa intenção. — Parece de propósito;
sempre a mesma poesia. Nem que nos perseguisse uma voz como a da consciência a
acusar-nos de alguma culpa de inconstância. Ora dos dois, quem com mais alguma
probabilidade poderá ser acusado disso, não serei eu decerto. Se fosses tu,
Filipe?...
— Quem sabe, minha mãe? —
respondeu Filipe com uma seriedade que não estava em harmonia com o tom jovial
em que D. Joana lhe fizera a observação.
— Ah! quem sabe? Ninguém senão tu
e a Providência, que talvez esteja falando pela boca desta pobre gente. Só me
admira que fale no Minho para emendar o mal feito em Lisboa.
— E se fosse o mal feito no
Minho?
— No Minho? mas... ah? sim, tu
estiveste alguns meses aqui. Então, Filipe, por acaso inspirar-te-iam estas
belas paisagens alguns capítulos do romance? porque mo não contaste? Sabes que
tudo quanto escreves e contas me excita sempre
interesse; pois nem te lembras que até os teus trabalhos acadêmicos eu gostava
de ler? Nem aos de matemática perdoava: não os decifrava, mas entendia-os. Não
sei se me admites este paradoxo.
— Eu sei, minha mãe, avaliar o
seu muito afeto, mas que quer? O conceito elevado que Va Exa na sua indulgência
materna faz de mim, lisonjeia-me tanto, causa-me tal orgulho, que recuo perante
a ideia das confissões que lhe podem lançar a mais leve sombra na imagem que a
sua muita bondade formou de mim.
— Deve ser bem grave a culpa
cometida, que assim te está causando remorsos.
— Ainda não pude avaliar toda a
extensão e gravidade dela.
— Porquê?
— Porque não pude saber ainda as
consequências que resultaram.
— E se eu exigir que ma confies?
— Basta que lhe diga, que essas
cantigas populares que nos têm acompanhado,
podem considerar-se, como Va Exa disse há pouco, a voz da minha consciência ou dos meus remorsos.
— Remorsos! Repara que são a
consequência de um crime. Por acaso...
— Pelas convenções sociais não me
pode ninguém chamar criminoso; mas por
um outro código, pelo código da consciência, eu sou acusado.
— De que crime?
— De ter feito nascer uma paixão,
prevendo quase que ela teria de morrer sufocada,
prognosticando-lhe o seu nenhum futuro.
— E que motivos tens para julgar
nela mais sincera essa paixão do que o era
em ti? Vaidoso! Imaginas que ninguém te poderia aceitar a corte sem morrer de amores por ti?
— Por um lado tem razão no que
diz; mas um pressentimento...
— Bem. A coisa não passa de um
pressentimento? Pois nesse caso oponho-lhe
um outro pressentimento meu. Já nem sequer pensa em ti essa em quem pensas ainda tanto. E o mais natural.
Tranquiliza os teus escrúpulos; mas
parece-me que não te seria demasiado lisonjeiro o convencimento desta verdade. Ora diz-me: tu ainda a amarás?
— Julgo que não, minha mãe. Eu
sinto-me tão volúvel!
— Mas como tu dizes isso! que ar
de remorso! Nunca te acusaste com tanta
contrição do teu rompimento com a Alberta dos Prazeres, com quem estiveste quase esposado. Ó Filipe, dar-se-á
que o teu coração entre deveras nisso?
— Quero acreditar que não, minha
mãe. Seria uma calamidade.
— Porquê?
— Va Exa permite-me que fale
francamente?
— Ordeno-te.
— Pois bem. É porque se eu me
sentisse deveras apaixonado, podia estabelecer-se
entre mim e Va Exa um conflito, do qual, fosse o resultado qual fosse, eu sairia sempre com feridas que não
sarariam nunca, ou acabaria por lhe não
obedecer; e se o amor fosse verdadeiro, sofrendo por ele, eu venceria a paixão, e nunca me perdoaria a
desobediência.
— E qual a razão porque julgavas
inevitável um conflito? Essa mulher era indigna
de ti?
— A sociedade em que Va Exa vive
é de umas exigências ridículas, mas a que
se costumam a obedecer os que a frequentam. Conveniências sociais. A mulher a quem me refiro era filha de um
negociante de Braga.
— Não te sabia desses
preconceitos heráldicos tão arreigados!
— Em mim? Engana-se, minha mãe,
se eu fosse só... Mas sabe que lhe não quero
dar desgosto...
— Se me não engano, achamo-nos em
frente da casa da família que vamos socorrer.
Efetivamente a carruagem parou
diante do portão da quinta de José Urbano, e o boleeiro, apeando-se, puxou o cordão da
sineta, cujo ruído se fez ouvir ao longe,
despertando os latidos dos cães, fiéis guardadores daqueles jardins.
Passados tempos o portão
abriu-se, e Roberta apareceu, depois de perguntar de dentro quem era, com voz um pouco
resolvida; ao dar com os olhos na carruagem,
deu um salto, como se a picasse uma víbora.
— Vossa... — ia exclamar a pobre
velha atônita.
— Psiu! — disse D. Joana, pondo o
dedo na boca e com um sorriso benevolente.
Roberta calou-se, mas, ao ver
saltar Rialva do carro, fez um novo movimento de surpresa.
— Agora é o outro. Pelo que vejo
eram grandes fidalgos ambos. Rialva, que
conheceu logo em Roberta a velha da estrada, procurou tomar-se ouvido dela, dizendo à mãe, ao ajudá-la a descer:
— Se vossa majestade se quiser
utilizar do meu braço...
D. Joana sorriu, e, saltando
junto de Roberta, perguntou-lhe em voz baixa:
— Onde está a menina?
— Deve andar pela quinta. Eu vou
chamá-la.
— De modo nenhum. Iremos ter com
ela.
— Como vossa majestade quiser;
nesse caso eu vou adiante.
— Também não. Se me quiser antes
fazer o favor de me preparar um copo de
água chalada...
— Com todo o gosto. Mas se a
vossa majestade se engana no caminho?...
— Melhor, mais tempo gozaremos da
quinta.
E tomando o braço de Filipe, D.
Joana desceu as escadas que conduziam à quinta.
— Sabe, minha mãe, que para um
empregado demitido é esta uma magnífica
vivenda? disse Rialva, admirando o bom aspeto de quanto
o rodeava.
— Restos de um bem-estar passado
— respondeu D. Joana, entranhando- se num a rua orlada de roseiras todas
enfloradas.
— Que deliciosa habitação! —
exclamava Rialva a cada passo.
— Sigamos na direção donde nos
chega o sussurro do cair da água.
Rialva atrasara-se de D. Joana
alguns passos de distância, tendo-se demorado a colher um botão de rosa que se pendurava num a
das ruas...
Preparava-se a apressar o passo
para alcançar a sua mãe, quando viu esta levantar pé ante pé, e com a mão nos lábios
como a recomendar-lhe silêncio.
Filipe parou.
D. Joana chegou-se a ele e
disse-lhe baixinho:
— Devagar, muito devagar. Dorme
alguém ali adiante. Quero preparar-te um
belo espetáculo. Devagar!
E os dois caminharam tão de
manso, que mal se escutava o estalar da areia da rua e de uma só folha seca que o vento
destacava das árvores.
— É agora — disse D. Joana,
desviando-se para deixar patente ao seu filho a vista do largo junto a uma pequena cascata,
no qual penetraram.
Rialva olhou e estremeceu de
surpresa.
Reconhecera Maria Clementina
adormecida.
A mãe e o filho permaneceram
silenciosos perante aquele espetáculo.
Quem o poderia conceber tão belo!
Languidamente recostada no banco
rústico que existia ao lado da cascata, conservara
Maria Clementina uma posição naturalmente artística, na qual lhe sobressaíam todas as formas elegantes e
corretas daquele corpo flexível e delicado.
O braço direito, dobrado sob a
cabeça e um pouco descoberto, exagerava pela flexão as curvas graciosas e suaves do seu
regular contorno; o esquerdo, pendente
ao longo do corpo, permitia observar uma mão encantadora. Não era destas pequeninas mãos, galantes como as
de uma criança, e que se abrangem num a
só das nossas; reconhecendo a graça desses modelos, confesso que me produzem mais sensação as mãos
como as de Maria Clementina. Algum tanto
compridas e estreitas, cobertas por uma pele alvíssima e transparente, sob a qual se
desenhava uma complicada rede de veias
azuladas, tinham estas mãos assim o que quer que seja de distinção e encanto, que atrai as vistas, que as fixa, que
as fascina.
Eu, a respeito de belezas
femininas, não sou partidário ardente do galante, do mignon, como os franceses dizem; prefiro-lhe o
ar de dignidade e grandeza que se lê em
certos tipos, temperado pelo que possui de brandura todo o rosto de mulher verdadeiramente bela. A cabeça
de Maria Clementina, um pouco inclinada
para trás, descobria, em toda a sua vantajosa forma, o colo,
cuja transição para a face e para
os seios se fazia por curvas tão disfarçadas e brandas, que a vista insensivelmente deslizava
por elas e perdia-se a divagar naqueles
lábios, que a respiração entreabria, pousava amorosamente nas suas graciosas comissuras, que se elevavam num
quase imperceptível sorriso, nas pálpebras,
que pareciam denunciar o fulgor dos olhos que mal encobriam; ou baixava ardente como insinuando-se por entre o
corpilho do vestido, que subia até o
pescoço, avaro das belezas que ocultava, e como fascinada por aquele movimento cadenciado e um respirar
tranquilo.
— É ela — disse afinal Filipe,
olhando para a sua mãe e ainda comovido por
sentimentos encontrados que o dominavam.
— Eu sei! — respondeu D. Joana,
continuando a sorrir.
— Sabe?!
— Bem vês que te trouxe aqui.
— Mas... como foi isto?
— Pediam justiça, enviaste a
queixosa para mim. Eu prometi fazê-la. A isso venho.
— A fazer justiça?
— Sim.
— E o ofendido é...
— E ela e o culpado és tu. Não to
diziam há pouco os teus remorsos, Filipe?
Ao partires para Lisboa deixaste comprometida a reputação desta menina.
— Pois acaso...
— Viram-te descer o muro do
jardim...
— Oh! meu Deus...
— Desde então a sociedade
escrupulosa obrigou-a a procurar esta solidão. Deves supor se lhe terão sorrido os dias
passados aqui. E no entretanto tu
esquecia-la na capital...
— Oh! minha mãe... juro-lhe...
— Não jures, Filipe; ora que vais
tu jurar? Confessa, é melhor; e arrepende-te,
que é mais nobre.
— Eu sou um miserável, minha mãe.
— Que nome tão feio! Agora
cais-me num outro extremo. E preciso emendar o mal feito.
— E como?
— De uma maneira possível.
— Pois quer...
— Então que é? Hesitas em fazer
justiça, quando não hesitaste em cometer a culpa...
— E consente...
— Ordeno, se ainda podem ter para
ti valor as minhas ordens.
— Mas essas são para mim uma
bênção do Céu, creia-me! — exclamou Filipe,
apoderando-se da mão da sua mãe e beijando-lha com efusão.
Um movimento de Maria Clementina
deu a conhecer que ela despertava, enfim,
do seu sono tranquilo ao rumor do diálogo, que se travara entre D. Joana e o seu filho. Esta correu ao encontro
de Maria Clementina, ocultando por este
movimento a presença de Filipe.
— Va Exa aqui! — disse Maria
Clementina sobressaltada ao abraçar D. Joana.
— Estava a gostar de a ver
dormir...
E depois de a beijar
afetuosamente, D. Joana afastou-se, descobrindo assim a figura de Filipe, que se conservara imóvel a
distância.
Maria Clementina, dando com os
olhos nele, estremeceu, exclamando:
— Oh! meu Deus.
— E meu filho — disse D. Joana,
beijando-a na cara com uma carinhosa solicitude.
Maria Clementina vacilou,
deixou-se cair no banco em que estivera sentada, e pelas faces, que passavam de uma súbita
palidez a um intenso rubor, deslizaram
as lágrimas que lhe inundavam os olhos...
Nisto assomava na extremidade de
uma das ruas a velha Roberta com o copo de
água e chá, que D. Joana lhe pediu.
Esta correu a encontrá-la para
lhe encobrir a turbação dos dois.
— Agradecida pelo incômodo que
teve. Agora faz-me um favor? Ajuda- me a cortar um ramo de japoneiras? — E
aproximando-se de Roberta, acrescentou a
meia voz:
— Deixemos sós os dois; este é o
tal alferes...
— E este! — disse Roberta,
olhando para Filipe com os olhos espantados e com certa indignação. — E logo foi a ele que
eu...
— Está bom, deixemo-los, que tudo
se há de arranjar.
— Deveras?
— Comprometo a minha palavra.
— É a palavra real... — disse
Roberta.
— Tem razão... não volta atrás —
terminou, sorrindo, D. Joana de Rialva.
E D. Joana, conduzida pela velha,
foi efetivamente cortar um ramo de camélias,
com grande orgulho de Roberta, que toda se desvanecia em estar colhendo flores para sua majestade.
Filipe e Maria Clementina
ficaram. Esta, vendo afastar-se D. Joana, levantou- se para segui-la; mas viu
diante de si Filipe ainda imóvel e atencioso, e as forças faltaram-lhe, deixando-se cair de novo.
— Ainda poderei esperar de si a
minha absolvição, Maria? — disse Filipe aproximando-se
da donzela.
— Pois eu já o acusei? —
respondeu timidamente Maria Clementina.
— Acusa-me a consciência.
— De que o acusa então? De me ter
mentido?...
— Não, que lhe não mentia quando
lhe disse que a amava...
— Então? De me ter esquecido?
— Também não. Podia eu
esquecê-la?
— Não sei. Mas de que o acusa a
consciência? Diga.
— De não ter sido eu próprio que
há mais tempo tivesse vindo oferecer- lhe a reparação do mal que lhe fiz.
— Do mal? Pois sabe se me fez
mal?
— Sei. Soube-o agora... da minha
mãe.
— Entendo. E vem oferecer-me uma
reparação?
— Era o meu dever, mesmo
quando...
— É uma generosidade. Mas ouça-me
— disse Maria Clementina, levantando-se
e caminhando para Filipe, com uma resolução que contrastava com a sua timidez de há pouco. — Eu não posso
aceitar um sacrifício.
— Um sacrifício...
— Olhe, Filipe, um ano de solidão
faz-nos pensar com madureza. Há um ano
receberia com alvoroços de alegria as palavras que me disse. Hoje não. Sou culpada para com o mundo. Que me importa!
Sou inocente para com a minha
consciência. Mas quando mesmo esta me acusasse, acredite que não me moveria a aceitar de si isso que 3 chama o
cumprimento de um dever. Deveres! Quem
lhos impôs? A sociedade? Eu não lhe pedi que advogasse a minha causa. Eu? Bem vê que não. Tranquilize
os escrúpulos da sua consciência; se é
ela que o impele a esse passo, desista de obedecer-lhe; eu absolvo-o de toda a responsabilidade.
Obrigada, Filipe, mas bem vê que não devo
aceitar.
— E se a voz da consciência se
harmonizar neste caso com a do coração?
— E quem mo há de assegurar? —
disse Maria Clementina, voltando à sua anterior
confusão.
— Incrédula? Exigir provas é
renegar a persuasão do amor. Sabe porque há um ano me acreditava e hoje duvida?
— Porque se passou um ano! E que
ano, Filipe! que experiência colhida nestes
doze meses passados a sós com o meu pensamento e com o desprezo dos outros...
— Do desprezo, pois acaso...
— Oh! Não julgue que lhe falei
nisto como uma arguição. Não era o que mais
me fazia sofrer esse desprezo; esquecia-me dele. Outra causa movia as minhas lágrimas.
— E era?
Maria Clementina calou-se
embaraçada.
Filipe aproximou-se dela, e
tomando-lhe a mão insistiu:
— O que a fazia chorar então,
Maria?
Maria Clementina levantou os
olhos úmidos de lágrimas e com um sorriso angélico respondeu suspirando:
— E pergunta-mo? Chorava, chorava
de saudade.
— Pois lembrava-se de mim?...
— Duvida, e quer que acredite no
seu amor!
— Se eu era indigno de tanto! E
agora...
— Agora?
— Por que mudou de pensar?
— Por que mudei? Eu mudei! E
julga que posso deixar de acreditar; julga que me restam forças para resistir a uma
tentação! Devia pedir-lhe misericórdia,
mas... Nem sei... Olhe, que exige de mim? que diga que o amo?... Pois sim, amo-o, amo-o. Que mais quer? É a
minha perdição talvez.
— E a sua salvação, minha filha —
disse D. Joana, que se aproximou de Maria
Clementina e a apertou nos braços.
Nisto ouviu-se tocar a sineta do
portão.
CAPÍTULO VIII
EXPLICAÇÕES — NÃO HÁ JUSTIÇA COMO A JUSTIÇA DE SUA MAJESTADE
Os sons vibrantes da sineta
interromperam de chofre as carinhosas efusões de D. Joana e Maria Clementina, que se olharam
como se perguntassem uma à outra — quem
será?
Em seguida novos e mais rápidos
sons se fizeram ouvir, ecoando pelo jardim, indicando que quem tangia a sineta queria ser
ouvido e tinha pressa de transpor o
portão.
— Quem será — disse Maria
Clementina — que tão apressado se mostra?
— Deve ser — respondeu D. Joana —
seu padrinho e o major, que ficou de
estar aqui com ele por estas horas. Filipe conservar-se-á por enquanto aqui fora; a menina quer-me acompanhar ao encontro
dos recém-chegados?
Maria Clementina cedeu o braço a
D. Joana, que, apoiando-se nele, caminhou na direção do portão.
— Vamos trabalhar no seu futuro;
quero dispor tudo antes de partir.
— Pois quando parte?
— Depois de amanhã.
— Já? Tão cedo.
— Assim me é indispensável. Mas
em breve a tomarei a ver em Lisboa. Não
é verdade?
— Em Lisboa?... — disse Maria
Clementina, corando.
— Sim, e bem junto de nós. Sempre
desejei ter uma filha. Dou graças por me
deparar uma tão boa.
— Oh! minha senhora — exclamou
Maria Clementina, não podendo conter o
seu reconhecimento e apoderando-se-lhe da mão, que beijou comovida.
— Vejo que me aceita por mãe...
Obrigada.
— E é a senhora que me diz
obrigada? A mim, que pela primeira vez conheço
a ventura que há em ser filha!
— Pobre menina. Mas vamos, não
nos sensibilizemos, que estamos próximos
ao último ataque decisivo.
Esta observação foi sugerida a D.
Joana pela vinda de José Urbano, que na companhia
do major se aproximava delas.
— Que agradável surpresa! Va Exa
aqui?
— E verdade, Sr. José Urbano.
Espero que me perdoará esta invasão da sua
propriedade.
— Oxalá que ela se reproduzisse.
— Mas veja que não me retiro sem
paga! — acrescentou, mostrando-lhe o ramo
de camélias que colheu.
— E na verdade só agora que
começo a conhecer o preço dessas flores...
— A benevolência do proprietário
anima-me a confessar-lhe que as minhas
intenções vão mais longe. Premedito um roubo de mais valor.
— Va Exa?
— É verdade, e receio não lhe
encontrar tão boas disposições de mo perdoar
como agora.
— Deveras! — respondeu José
Urbano, sorrindo.
— Vou fazer-lhe a confissão dele,
se me quiser ouvir.
— Com a melhor vontade. Quer Va
Exa entrar?
— Aceito. Venha, major.
— Pois também entro na
confidência?
— Não o dispenso.
Maria Clementina deixou-se ficar
um pouco atrás, enleada e confusa, porque previa do que se ia tratar.
D. Joana aproximou-se dela e
disse-lhe a meia voz:
— Poupo-lhe o dissabor de
assistir ao processo; dentro em pouco lhe comunicarei a sentença.
Maria Clementina retirou-se.
José Urbano, D. Joana e o major
entraram no salão.
José Urbano tinha um ar
prazenteiro, o major puxava o bigode com certo embaraço, D. Joana meditava um plano de campanha.
Sentaram-se todos.
— Sr. José Urbano, eu não sou
partidária dos rodeios. Costumo ir direita ao fim. O roubo que eu lhe premedito fazer é
nada menos que o da sua sobrinha.
— De minha sobrinha! — repetiu
José Urbano, entre sério e risonho, como
se esperasse a explicação destas palavras.
— E verdade. Queria pedir-lha
para filha.
— Como?!...
— Imagine, Sr. José Urbano, que
eu tenho um filho por quem sou doida, perdidamente
doida, e que concebi que era Maria Clementina a mulher que lhe podia dar a
felicidade que eu ambiciono para ele.
José Urbano olhava estupefato
para D. Joana, como se não tivesse compreendido.
— Então diz Va Exa que...
— Que lhe peço a mão da sua
afilhada para...
— Mas um projeto tão pouco
meditado...
— Talvez menos do que julga.
— Menos do que julgo.... — disse
José Urbano com manifesta intenção. Seja assim; mas o que Va Exa me pede não
pode realizar-se.
— Que diz, Sr. José Urbano?! Não
posso acreditar que me negue a satisfação de obter o que lhe peço, porque já
considero sua sobrinha como minha filha muito amada.
— Não duvido; mas Maria
Clementina, que é um anjo, não pode casar com o filho de Va Exa, porque se
opõem a isso... circunstâncias e melindres que é necessário respeitar.
E José Urbano carregou de tal
maneira o rosto, que parecia indicar à sua interlocutora que não continuasse a
falar-lhe naquele assunto.
D. Joana, porém, pareceu não
atentar nisso, e, mostrando-se risonha,
continuou, dizendo:
— Parece-me compreender, Sr. José
Urbano, que tem receio do meu filho não ser digno da sua sobrinha, nem capaz de
a fazer feliz.
— Não é isso, minha senhora —
interrompeu José Urbano, com vivacidade. — São motivos particulares, que dizem
respeito a uma pessoa da minha família, que já não vive e a quem muito amei.
— Mas — disse D. Joana — se não
há desonra para sua sobrinha no enlace dela com o meu filho, porque me recusa a
sua mão? Dar-se-á que a destine para outro mais digno que o meu filho?
— Não destino, não. Enfim — disse
José Urbano, um pouco enfadado — acabemos com isto. Para Va Exa conhecer a
razão da minha negativa, era necessário contar-lhe a minha e a história da
minha irmã, que não vive há muito e a quem amei extremosamente. Essa história
cansará a paciência de Va Exa e do Sr. major, que desejo poupar...
— Conte, conte — disse D. Joana —
que nos dará com isso muito prazer. Não é assim, major?
— Decerto — respondeu este —
porque estou ansioso de a ouvir.
O rosto de José Urbano
empalideceu e mostrou-se anuviado de tanta tristeza que causou profunda
impressão em D. Joana e no major.
— Seja como querem — disse por
fim José Urbano, depois de ter estado algum tempo silencioso, e como que
invocando as recordações do passado. — E doloroso avivar feridas que desejo
cicatrizadas, mas não tenho outro meio de acabar com isto. Ouçam:
«Quando a minha mãe morreu, tinha
eu vinte anos. Foi em 1818. Até aí, vivera eu como rapaz.
De pequeno senhor da minha
vontade, eu não sabia o que eram sujeições e constrangimentos. A minha mãe era
uma santa mulher, que vivia absorvida entre as suas devoções e as suas
economias. Os pequenos haveres em bens rurais, que o meu pai deixara ao morrer,
eram por ela tão bem administrados, que nunca a menor sombra de privações nos
veio amargurar a vida.
Quando morreu, achei-me eu à
testa da família. A minha mãe tinha-me dito pouco antes: «Tenho-te deixado
gozar a tua vida de rapaz, porque bem sabia que dentro em pouco terias de
renunciar a ela. Vê se compreendes o teu dever. Deixo-te uma irmã de oito
anos.»
Aterrou-me ao princípio esta
responsabilidade, e o novo encargo fez-me pensar seriamente. Obedeci a minha
mãe; desde o dia da sua morte, abandonei a companhia dos meus companheiros de
prazer e votei-me de coração ao trabalho. Sentia-me recompensado com a alegria
que experimentava quando podia dar um vestido novo a minha irmãzita.
Cedo as minhas ambições começaram
a crescer. E sempre a mesma história. Já me não contentava com os modestos, mas
continuados, proventos que tirava do meu negócio de cereais. Queria lucros mais
visíveis.
O Brasil começou-me então a
sorrir com as suas promessas de riquezas, com que a tantos atrai. Não descansei
mais enquanto não realizei o meu intento.
Regulei com um negociante meu
amigo uma mesada a minha irmã, e deixei-a em companhia da Roberta, que foi ama
de nós ambos, e parti.
Seria curiosa e rica de
experiência a história da minha vida no Rio de Janeiro, se o contá-la me não
afastasse do fim que tenho em vista. Basta que diga que trabalhei! Trabalhei
deveras. Não me fazia hesitar qualquer trabalho, por penoso que fosse.
Recusava apenas as empresas menos honestas.
Tive que sofrer e muito. Estive
no Brasil por ocasião da guerra da independência.
Basta que diga isto. Mas a minha perseverança valeu-me e não me deixou
soçobrar. No fim de seis anos, aumentava consideravelmente a mesada a minha
irmã. No fim de oito, podia-me dizer rico. Mais um ano no Brasil, e voltarei
para Portugal, disse eu comigo.
Não havia dia em que não pensasse
nisto com entusiasmo.
Por meados de 1833, andava eu
tratando da liquidação, quando, ainda me lembro bem, recebi de Portugal uma
carta tarjada de preto. Abri-a a tremer. Era do negociante meu amigo,
participando-me que a minha irmã, que havia tempos se achava incomodada,
morrera no dia 23 de Julho de 1833, apesar de todos os socorros da medicina.
Não posso dizer como fiquei
quando li esta carta. Caí em tal abatimento, que os médicos agouraram mal da
minha vida. Aconselharam-me ares pátrios. Mas eu já não tinha coração para
voltar aqui; ao mesmo tempo, a minha vida no Rio de Janeiro era-me
insuportável. Terminei a liquidação do meu negócio, e fui viajar.
Percorri a Europa; durante quatro
anos, vivi vida errante e aventureira. No fim deste tempo, conheci que estava
cicatrizada a chaga do meu coração, começaram a crescer em mim uns veementes
desejos de voltar à minha terra. A mesma saudade me chamava. Não pude
resistir-lhe. Entrei em Portugal em 1837. Quando avistei a casa onde eu nascera
e onde vivi com a minha irmã, senti uma profunda comoção interior. Vir
encontrá-la vazia, sem aquela linda menina, que eu deixara de dez anos a
brincar, que viera à janela ver-me dobrar a esquina quando eu parti, para a não
tomar a ver! E, pensando isto, eu parei em frente da casa a olhá-la e sem
forças que me levassem mais adiante. Quando de repente — que ilusão aquela, meu
Deus! — a mesma janela se abriu, e ela... a minha irmã, tão pequena como eu a
deixara, se encostou ao peitoril, olhando-me exatamente como me olhava dantes.
Eu não pensei no impossível da
visão. Acreditei nela. Corri, corri como um louco, e bati à porta, gritando:
— Abre, Roberta, abre... A minha
irmã ainda está viva!... Eu logo vi que não podia ser.
Roberta veio-me abrir a porta a
tremer. Não sei como ela me reconheceu nem o que me disse. Eu estava alucinado.
— Deixa-ma ver, deixa-ma ver!
Para que me tinham dito que ela morrera?
Não posso dizer como corri e o
que se passou; lembra-me que dentro em pouco tempo eu abraçava e beijava uma
bonita criança de dez anos, julgando beijar minha irmã. E ela também me
abraçava, sorrindo e a chorar... a pobre pequena. Porém, a ilusão passou; a
razão voltou-me, reconheci que havia nisto tudo um engano. Mas a semelhança era
tanta! Um ar de tristeza se apoderou de mim; e voltando-me para Roberta, que
chorava a um canto, perguntei-lhe:
— Quem é esta menina, Roberta?
— E sua sobrinha, filha da sua
irmã.
Dei um salto, como se aquelas
palavras me atravessassem o coração. Um relâmpago terrível me iluminou o
espírito; ia a passar das carícias talvez a alguma crueldade, quando aquele
anjo, ouvindo as palavras de Roberta, exclamou:
— Ai, pois, é este o meu tio! e
saltou-me ao pescoço, beijando-me com meiguice. Desarmou-me; desatei a chorar,
e não pude deixar de a apertar ao coração.
Passados poucos instantes, Maria
retirou-se para ir buscar flores, disse ela, e eu fiquei só com Roberta.
Voltou-me o ar sinistro que aquela criança me havia conjurado, e disse a
Roberta que me contasse a história da minha irmã. A história era curta.
— A infeliz foi enganada por um
infame, que, abusando da sua inocência, fora a causa do seu infortúnio e da sua
morte.
— E era assim que vigiavas pela
irmã que eu te confiei, Roberta?
A pobre mulher respondia-me
chorando.
Mas a voz da minha consciência
acusava-me mais do que a ela. Eu é que não devia ter abandonado a irmã, para
satisfazer ambições desmedidas. Agora, cumpre-me chorá-la e proteger-lhe a
filha melhor do que a protegera a ela. Pobre criança! Quem podia deixar de
querer-lhe? Ela reproduziu-me as venturas que eu julgava perdidas para sempre.
Nela cri renascer minha irmã. E por isso a amei. Amei-a logo e cada vez mais! E
veja como parece a sorte perseguir-me; durante meses que tive de passar no
Porto, por pouco a não ia sacrificando, e lhe causei, sem querer, um mal irremediável!
Está terminada a história de Maria Clementina.
A sorte infeliz da minha irmã era
muito notória, para que eu pudesse viver feliz na minha terra. Vim por isso
para Braga, deixando Barcelos, onde nascera, com vivas saudades.»
— Barcelos! — exclamou o major,
que havia momentos não podia dissimular a sua agitação.
— Sim — respondeu José Urbano —
julgava ter já dito que tinha sido em Barcelos que eu nasci. Agora, já vê Va
Exa a razão porque eu há pouco lhe dizia que a proposta que se dignou fazer era
impossível. Maria Clementina é filha ilegítima e eu não conheço o pai.
— Não conhece? — perguntou D.
Joana com interesse.
— Nunca me puderam dar sinais
dele. Em Roberta encontrei sempre uma reserva, nesse ponto, que me fez julgar
ser recomendação da minha irmã. Sei apenas que era um militar, um dos muitos
que por aqueles tempos (foi em 1832) cobriam o reino. Era vida de guerra a de
então... algum aventureiro, que nunca mais se lembrou da vileza que cometera,
nem talvez mesmo ao cair no campo atravessado por uma bala inimiga.
— Sua irmã chamava-se...? —
perguntou o major com voz alterada.
— Maria Luísa — respondeu José
Urbano.
O major não se pôde vencer.
Olhando para Maria Clementina, que passeava então no terraço adjacente,
exclamou, juntando as mãos:
— Justo Deus! pois eu tinha uma
filha?
Esta exclamação do major fez
estremecer José Urbano, que empalideceu. D. Joana ergueu-se também
sobressaltada.
— Sr. José Urbano — disse o
major, comovido — o militar, o aventureiro, o miserável que acusou, sou eu; não
ficou atravessado por uma bala no campo de batalha, mas por muito tempo o
conservou num leito de doença, e quando se ergueu foi seu primeiro pensamento a
mulher que verdadeiramente amara; disseram-lhe que tinha morrido, mas nunca ele
soube que lhe ficara uma filha. Ai, se o soubesse! Eu, que tantas vezes me
atormentava na minha solidão vazia de afetos... Se eu suspeitasse que existia
na terra aquele anjo! — E o major juntava as mãos, olhando para Clementina.
José Urbano conservava-se mudo e
taciturno.
— Quando mesmo Maria Clementina
não tivesse achado um pai — disse D. Joana — não julgue que eu desistiria do
meu pedido, Sr. José Urbano. Mas agora parece-me que cessam da sua parte todos
os escrúpulos.
José Urbano ergueu a cabeça e,
fitando o major, disse:
— Ainda bem, major Samora, que só
nos reconhecemos na idade em que se apagaram os fogos da juventude; ainda bem.
— Então, é a ambos que peço a mão
de Maria Clementina para o meu filho... — disse D. Joana; seja esta união a que
faça desvanecer a nuvem que parece meter-se entre os senhores. Deem as mãos
como amigos. Vamos.
O major ficou quieto, e José
Urbano caminhou para ele com as mãos estendidas.
— Acredito, major, que foi
leviano, mas não foi vil. A minha irmã mandar-me-ia perdoar.
Os dois apertaram as mãos.
Dentro em pouco tempo, eram tudo
abraços na sala de José Urbano.
A um sinal de Joana, Maria
Clementina entrara em casa, com o coração alvoroçado e as faces tingidas de
rubor.
Filipe, que entendeu também o
sinal da sua mãe, seguia a pequena distância. Quando Maria Clementina entrou,
D. Joana foi-lhe ao encontro, e tomando-a pela mão levou-a junto do major.
— É de justiça que seja para o
major o primeiro abraço — disse D. Joana.
O major tremia ao abrir os braços
a Maria Clementina, e a custo exclamou:
— Minha filha!
Maria Clementina olhava com
estranheza.
José Urbano disse-lhe, comovido,
apontando para o major:
— Podes abraçá-lo, Micas, é teu
pai... Filipe entrou neste momento.
Maria Clementina achava-se nos
braços do major, desfeita em lágrimas, mal compreendendo ainda o que se
passava.
Samora, que não se fartava de a
abraçar, disse, meio a rir meio a chorar, para Filipe, que o olhava estupefato:
— E o complemento daquela minha
história; eu tinha uma filha... Era esta... este anjo.
E desprendendo-a dos braços,
acrescentou:
— Como vamos ser felizes todos!
José Urbano aproximou-se de
Filipe, e disse-lhe:
— E tem fé que a tomará feliz?
— Quanto a puder fazer um amor
verdadeiro.
— Ora não desanimem então.
Imaginem as efusões mútuas que se
seguiram.
Ao entrar Roberta na sala, o
major foi-lhe ao encontro, exclamando:
— Roberta ! Lembra-se ainda do
alferes Clemente Samora?
— Santo nome de Deus! Que nome
foi dizer! — exclamou a velha, olhando para seu amo com ar de mistério e susto.
— Saiba que ele vive ainda, e que
encontrou sua filha, a que abraço agora...
— Quê?... pois então... E verdade
que tem avultações. Mas... santo nome!... Santo... então?
— Então, este dia é um dia de
ventura. Achei minha filha, e exatamente na ocasião de encontrar também um
filho no melhor rapaz do exército.
— Oh! major!
Os dois militares apertaram as
mãos afetuosamente.
— Ah! pois já está tudo
arranjado? — exclamou Roberta, exultando de contente.
— Tudo, graças ao seu expediente,
Roberta. Pode ufanar-se de ter feito a felicidade dos seus amos.
— Como? — perguntou José Urbano.
— Ora como? — disse Roberta —
indo a fonte limpa. Quem pode...
— Psiu ! ... — disse D. Joana,
olhando-a com mistério.
— Ah! pois ele não sabe ainda? —
murmurou Roberta, olhando para seu amo com ar de mistério. — Não importa; eu
não posso deixar de bradar: Viva a sua majestade a rainha!
A saudação foi jovialmente
acolhida.
Do mais que se seguiu, deixo-o à
imaginação do leitor concebê-lo.
D. Joana partiu no dia seguinte
para Lisboa.
O major Samora, Filipe, José
Urbano e Maria Clementina seguiram-na passados oito dias.
O casamento fez-se na capital,
onde os noivos ficaram residindo na companhia do major, que remoçava com o
inesperado sucesso, e recebendo visitas amiudadas de José Urbano, que reside
ainda em Braga. Roberta vive na firme persuasão que foi a rainha D. Maria II
quem interveio no casamento dessa menina, e toda ufana repete muitas vezes, com
grande prazer de José Urbano.
— Aqui está quem deslindou este
negócio todo. Não fora eu, que ainda hoje estaríamos como dantes: eu nem sei o
que seria. Não há justiça como a justiça da sua majestade.
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Nota:
Júlio Dinis: "Serões da Província" (1870)
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