sábado, 7 de setembro de 2013

Júlio Dinis: "Justiça de Sua Majestade"

JUSTIÇA DE SUA MAJESTADE

CAPÍTULO I

FERVET OPUS! 

Era por uma manhã de Abril de 1852. O campo vestia-se dos seus mais  opulentos e matizados trajos.

O Minho estava fascinador.

Por toda a parte eram já espessuras frondosas e impenetráveis; sombras  discretas; vales misteriosos e encantadores, graças ao claro-escuro, com que a  vegetação renascente os coloria; colinas adornadas e festivas, como um trono  de altar em capela rústica; enfloradíssimos silvados, veigas a exuberarem de  vida; e, por entre tudo isto, casas de brancura ofuscante, e acima de tudo um  céu azul, daquele azul dos céus napolitanos, a meu ver, tão culpados na  existência dos lazzaroni.

As torrentes estavam nas suas horas de bom humor não bramiam,  murmuravam apenas; não se precipitavam impetuosas do alto dos outeiros,  deixavam-se escorregar pelas anfractuosidades das quebradas.

Os ventos, como que arrependidos, pretendiam com afagos fazer esquecer aos  arbustos mais tenros as violências passadas.

A luz salutar da Primavera convertia-se, por mágica metamorfose, em  perfumes que embalsamavam os ares, em flores que esmaltavam os prados,  em harmonias vagas que as brisas transportavam de selva em selva, que as  aves escutavam atentas e os ecos repercutiam sonoros.

Nestes dias assim sente-se palpitar de vida a natureza inteira.

Por toda a parte se realiza um gênesis. No solo é o grão que germina; nos  troncos as novas folhas que brotam; nos ramos as flores que desabrocham;  nas águas, nas florestas, nos vergéis, nos ares, uma jovem e inquieta geração  de aves e de insetos que surge, animando tudo com os seus magníficos  concertos, com as valsas incessantes e rápidas, iluminadas por um sol  vivificador:

É contagiosa esta alegria da natureza.

O coração recebe o impulso dela.

A vida tem então também a sua inflorescência. Nesta quadra as ilusões, as  esperanças, as mais puras e ideais concessões de fantasias exaltadas pululam,  como as boninas na relva; a alegria, os risos e os prazeres refletem-se nos  rostos, como a luz do arrebol nos cimos dos outeiros; ama-se melhor, perdoa- se melhor, e a poesia e os cânticos saem tão espontâneos, como o trinado dos  pássaros de entre a folhagem dos pomares.

A fisionomia das cidades perde também então um pouco da sua habitual  gravidade. O vento que lhes vem dos arrabaldes inocula-lhes este fermento de  folgazão regozijo. A Primavera desinquieta-os, sedu-los, atrai-os, a esses  soturnos cidadãos, e a população urbana transborda nas aldeias  circunvizinhas.

Os mais sisudos burgueses, que durante o Inverno, revestidos da gravidade do  seu paleta, e confiando os pés à impermeabilidade dos seus sapatos de guta- percha, passavam sérios e ponderosos, cortejando-se com irrepreensível  compostura, agora vestidos de linho, de chapéu de palha de forma pastoril e  leveza que não era de esperar da sua idade e posição, seguem, prazenteiros,  caminho do campo, contando anedotas de índole pouco edificante, fazendo  sentir o sabor do sal, não absolutamente ático, que as tempera: recordando as  mais atrevidas coplas da Maria Cachucha, acompanhadas de exibições  coreográficas de fazerem estalar de riso a parte feminina do rancho que  capitaneiam.

É a época do esplendor dos «bons retiros» campestres. Mas em 1852, alguma  coisa havia, além da costumada influência da Primavera, a sobressaltar a  laboriosa população do Norte do reino. A antiga província de Entre Douro e  Minho mostrava o que quer que era extraordinário no alvoroço e geral  agitação, que por toda ela ia.

No Porto trabalhavam com azáfama as modistas, os alfaiates, os sapateiros, as  luveiras e os doceiros; enchiam-se a deitar por fora as hospedarias;  espanavam-se, como em dia de procissão, as varandas, a cujos pacíficos  aracnídeos se declarava guerra de extermínio; lavavam-se as vidraças, caiavam- se as fachadas, e, graças a esta limpeza geral que se fazia nas casas, os passeios  tornavam-se intransitáveis. Ruas e largos eram calçados com uma atividade  sem análoga nos fastos do município. As sessões extraordinárias do  excelentíssimo corpo camarário não permitiam um momento de repouso aos  preocupados edis.

Uma população exótica das províncias, trajando de uma maneira incrível,  acotovelava-se nas praças, e, extasiada diante das exposições de ouro da Rua  das Flores dificultava a passagem ao cidadão portuense, cuja proverbial  celeridade era desta vez, por força maior, modificada. A guarnição militar da  cidade limpava e envernizava as correias e estudava o exercício, e nos quartéis  de Santo Ovídio, S. Bento, Cano e Torre da Marca ressoava de contínuo a  música marcial das bandas que se ensaiavam.

Na Rua das Flores e à entrada das Hortas erguiam-se arcos triunfais de  madeira e lona e de uma arquitetura problemática; no cais da Ribeira  construíra-se um pavilhão de duvidosa elegância; no centro da Praça de D.  Pedro terminava-se um obelisco, diversamente comentado pelos cadeirinhas  do passeio do poente, pelos políticos do sul, pelos vigias e empregados  municipais do norte, e do lado do nascente pelos grupos de elegantes, e  literatos, que então estacionavam nas imediações do Guichard, aquele café que  há de merecer uma menção honrosa na história da literatura portuense, se  alguém se lembrar de a escrever um dia.

À entrada dos Aloques... — mal agourada procedência — montava-se o  primeiro gasômetro que viu a cidade invicta, destinado a iluminar a gás uma  árvore alegórica, em que se trabalhava a toda a pressa no Alto da Rua de S.  João.

Este movimento não ficava concentrado entre os limites das barreiras,  estendia-se para o sul a Vila Nova de Gaia, onde, no alto da Bandeira, se  construíra também um arco e por toda a estrada de Lisboa até além de Grijó;  para o norte também a tranquila vida da província havia sido alterada. Desde  os fidalgos que lavavam os brasões das suas armas e reformavam as librés  desbotadas dos criados, até o aldeão, que tirava do fundo da caixa meia dúzia  de cruzados novos, cuja integridade e boa conservação eram dignas daquelas  dinheirosas épocas de D. João V que os mandara cunhar; todos, mais ou  menos, participavam deste geral alvoroço.

É tempo de dizermos o motivo de tanta e tão excecional agitação destes  estranhos preparativos de festa, se é que o leitor o não tem já descoberto. O  motivo era efetivamente para todos estes resultados.

As províncias do norte, que muitos anos havia não tinham visto um monarca,  preparavam-se para receber e saudar a virtuosa filha do valente Soldado, de  cuja gloriosa história aqui se tinham escrito as páginas mais brilhantes e  simpáticas.

No espaço de vinte anos o Porto, e o Norte do reino, assistira a muitas  revoluções, passara por muitos sacrifícios, defendera a todo o transe o  estandarte da liberdade, plantado pelas suas mãos nas memoráveis areias do  Mindelo; acontecimentos políticos, quase que sem análogos na história das  nações, observara-os o Minho, e nesse sentido já de pouco se podia admirar,  mas desafizera-se da vista da realeza; era para toda esta boa gente quase um  espetáculo novo.

Os mesmos soldados de D. Pedro não estavam habituados a ela. Era o duque  de Bragança, o coronel de Caçadores 5, que militara ao seu lado, e não o rei  ou o imperador, que antes de desembainhar a espada e subir com os mais  bravos às trincheiras do Porto, havia deposto o cetro e as duas coroas, e  despido os arminhos e a púrpura real.

O geral do povo fazia dos emblemas da majestade uma ideia fabulosa.

O manto de S. Luís, da igreja dos Franciscanos, era um acessório, sem o qual  não se podia conceber um rei, e de antemão preparavam-se para admirarem o  esplendor e a preciosidade da coroa de ouro, que devia cingir a cara da  soberana.

A multidão, como sempre e em toda a parte, atraída pelos espetáculos novos,  aglomerava-se à borda das estradas por onde devia passar a real comitiva.  Pinhas de cabeças infantis rompiam por entre a folhagem dos álamos do  caminho; as cobertas de damasco e as colchas de chita ramosa adornavam as  janelas, onde se encaixilhavam curiosos e pitorescos grupos de fisionomias  dos mais diversos aspetos, rindo, berrando, gesticulando, pasmando; as  câmaras municipais estavam a postos, tendo em punho os formidáveis e  irresistíveis documentos da sua eloquência; o presidente suava; o regedor  decretava, e os cabos de polícia passeavam a sua autoridade por entre as  turbas que se afastavam respeitosas.  

De vez em quando, uma nuvem de poeira ao longe, um coro desafinado de  vivas infantis punha tudo isto em alvoroço, ferviam os cotovelões,  distribuíam-se com profusão as trilhadelas, assobiava-se, gritava-se, berrava-se,  imitavam-se as vozes de todos os animais possíveis e impossíveis, esqueciam-se as conveniências; um espectador pacífico sentia-se literalmente montado  pelo vizinho, e vingava-se, procedendo de igual sorte, com o que lhe ficava  diante; a população subia até aos telhados, pendia, como cariátides, das telhas  e das cornijas; os camaristas sacudiam com os lenços o pó das suas botas  excepcionais e começavam a tirar os chapéus, o presidente começava a  desenrolar, com a gravidade que o caso pedia, o monumental discurso...

Tudo em vão!

Era a carruagem de um proprietário das imediações, o qual seguia para o  Porto, onde tinha um peitoril à sua espera e um lugar no teatro para essa  noite.

Estes rebates falsos sucediam-se a miúdo. Desde o princípio da manhã a  vereação estava esperando!

Afinal chegava o cortejo. Os foguetes estouravam com um estampido digno  do município; os vivas elevavam-se num crescente ameaçador; uma nuvem de  crianças precedia os batedores; tudo falava na sua passagem, tudo arrastava  consigo; o povo pendurava-se às portinholas do carro em que vinha a família  real, devorava com o olhar a rainha, o rei e os príncipes, e ficava como que  espantado de os ver rir e conversar como simples mortais.

Às vezes, chegado o momento solene, o orador municipal engasgava-se à  leitura da felicitação que andava estudando havia um mês. O povo, a arraia  miúda, sempre desatenciosa, atropelando então todas as noções de  acatamento envolvia os camaristas com irreverência indesculpável e impedia  assim que as suas municipais figuras se destacassem de um modo conveniente.

O cortejo passava, e cada qual ficava fazendo comentários sobre o trajo, o  chapéu, o sorrir, os modos, os gestos ou as palavras das suas majestades e  altezas.

E isto se reproduzia, quase invariavelmente, em todos os pontos da estrada  até ao Porto, onde cenas não menos curiosas se passaram então.

A agitação, que, segundo já dissemos, havia muitos dias alvoroçava a cidade,  subira de ponto à medida que o telégrafo noticiava a chegada dos reais  viajantes às terras mais próximas deste heroico baluarte das liberdades pátrias.

— Era assim que os poetas e os jornalistas chamavam ao Porto nas odes e  artigos que estavam elaborando para a ocasião.

Na manhã da véspera tinham começado a rodar, em direção aos Carvalhos, as  carruagens e trens das principais personagens da cidade a esperar suas  majestades e altezas, que na noite desse dia ali repousaram. Para lá estava  ainda o governador civil, o general da divisão, e vários titulares antigos e  recentes, bem como uma turba muito maior de aspirantes a titulares; viam-se  passar a todo o momento as deputações de vários corpos coletivos que  corriam a felicitar os augustos hóspedes. As casacas, as gravatas e luvas  brancas, as fitas dos hábitos e comendas, as fardas agaloadas, os chapéus  armados perpassavam, como brilhantes e rápidos meteoros, perante os olhos  curiosos dos peões que, depois de cortejarem os seus possuidores, lhes  ficavam redigindo uma biografia digna de Tácito pela severidade.

O dia estava sereno e límpido. Um noticiarista pôde escrever, esfregando as  mãos por ter de empregar um pensamento sempre novo: — Dir-se-ia que até  o tempo, ostentando o seu brilho e galas, quis manifestar alegrias confundindo  as suas homenagens.com o regozijo público.

A ansiedade geral tocava o seu auge. Ás onze horas da manhã interrompiam-se todas as transações comerciais. Fechavam-se as lojas, como em dia  santificado. Os pais de família conduziam já a fascinadora prole para as  sacadas do amigo, que tinha a infelicidade de morar num a das ruas do trajeto,  e indiretamente arrastavam atrás de si, sem o saber, uma corte mais ou menos
numerosa de fascinados.

Os corpos da guarnição marchavam ao som das músicas marciais,  estimulavam o entusiasmo da população. Precedia-os uma turba tumultuosa  de garotos, que se voltavam seduzidos pelo brilhantismo das fardas de grande  gala e pelas evoluções do tambor-mor. No cais da Ribeira, onde afluíam os  curiosos de todos os lados para assistirem ao desembarque e à cerimônia da  entrega das chaves, a multidão era compacta, a ponto de dificultar a trânsito  das carruagens dos vereadores e as manobras dos batalhões do cortejo.

Era um oceano de cabeças, ruidoso, agitado, ameaçador! Donde como de um  pandemônio, partia a gargalhada, o grito, a aclamação, o insulto, o apupo, a  ameaça, os vivas e os morras que a curiosidade revolvia, e fazia ondular em  grandes e impotentes marés. O Douro, coalhado de navios, barcas, lanchas,  escaleres e canoas embandeirados, e refletindo nas suas águas, então serenas, a  ponte pênsil, toda adornada de flâmulas e galhardetes, oferecia um aspeto  risonho e festivo, que lhe não é habitual.

Ao meio-dia as salvas de artilharia, o estourar das girândolas, e o repique dos   sinos, comunicando uma violenta comoção às turbas impacientes, anunciavam  que a sua majestade chegara ao alto da Bandeira.

Meia hora depois desembocando da estreita e tortuosa Rua Direita na praia de  Vila Nova, ao som dos vivas dos nossos vizinhos de além-Douro,  correspondidos pelos dos portuenses, o cortejo real encaminhava-se para o  rio, que, por entre fileiras de embarcações de todo o gênero, atravessou.  

No momento do desembarque, a multidão teve um paroxismo de curiosidade  entusiástica, para resistir ao qual a guarnição militar obrou prodígios, que os  fastos da polícia portuense deveriam registar. Esta crise durou todo o tempo  empregado por o cortejo real em sair dos escaleres e entrar no pavilhão, onde  o presidente da câmara pronunciou a felicitação do estilo e ofereceu a suas  majestades as chaves da cidade, e só terminou quando de novo tudo se pôs  em marcha, observando a pragmática que a etiqueta cortesã instituiu para  casos tais.

Os sinos repicavam, os foguetes subiam aos ares, as janelas e varandas  vergavam sob o peso dos espectadores, as flores choviam sobre o carro real,  flutuavam as bandeiras, as flâmulas e os damascos de diversas cores; o cheiro   das espadanas e mais verdes, que juncavam as ruas, completava as aparências  de festa. A multidão continuava-se compacta da Ribeira até à Lapa, onde devia  ter lugar o Te-Deum, e da Lapa ao palácio dos Carrancas, da Torre da Marca,  ainda então propriedade de particulares.

Estava enfim D. Maria II nos muros da cidade invicta.


CAPÍTULO II

EM QUE TRAVAM CONHECIMENTO ALGUMAS PERSONAGENS DESTA HISTÓRIA

Nós, porém, deixaremos o Porto, justamente na ocasião em que de todos os  lados aflui gente para ele, atraída pelas iluminações, paradas, espetáculos líricos  e dramáticos, bailes, ceias, lanches e almoços, com que, durante oito dias, se  ocupou a população desta invicta cidade, que não desmentiu seus brios de  abastada e amante da dinastia.

Os poetas contribuíram com o seu contingente de sonetos, odes, hinos,  cantatas e elogios para o esplendor dos festejos.

Nos diários da época mais circunstanciadas notícias do que quantas eu lhes  pudera aqui dar, encontrarão os que as desejarem.

O Porto conservou-se em folguedo permanente até os princípios de Maio. Na  manhã do dia 5 partiu a corte em direção às províncias do Norte, indo  almoçar a Castedo, onde a câmara de Bouças serviu à família real, juntamente  com o almoço, uma felicitação.

Precedendo o luzido cortejo, percorramos a extensão da estrada que vai deste  lugar a Vila Nova de Famalicão, onde teremos de nos demorar.

Por toda a parte era movimento e vida!

Por baixo de um sem número de arcos campestres e dos festões de murta e de  flores, que adornavam todas estas léguas de caminho, moviam-se e agitavam-se consideráveis magotes de gente da aldeia que, a todo o momento, os caminhos laterais vazavam na estrada.

Os trajos pitorescos do Minho, as cores garridas dos lenços e saias, a alvura  das camisas de linho, o brilho dos cordões e das arrecadas, as festas de viola e  clarinete acompanhando vilancetes improvisados de alguma cantadeira  famosa, davam a toda esta multidão, que se enfileirava de um e de outro lado  da estrada ou, acampada em grupos nas devesas e pinhais vizinhos, procedia a  apetitosos repastos, complemento de todos os regozijos populares no Minho,  um ar de satisfação indescritível.

De tempos a tempos viam-se passar caleças, cabriolés ou carroções — esse  portuguesíssimo veículo, contra o qual o Sr. Ricardo Guimarães soltara já  então o fatal grito de extermínio — conduzindo famílias que regressavam,  repletas de festejos, à sua casa de província; outras vezes eram correios de  secretaria, carroças de bagagem, oficiais da corte encarregados de disposições  para o alojamento do séquito real, liteiras com eclesiásticos, militares a cavalo,  destacamentos de infantaria e em suma toda essa população que, em tais  ocasiões, se vê circular de terra em terra ou por obrigação e oficio ou por  curiosidade e prazer.

Foi então que se deu um fato notabilíssimo, que a posteridade acoimará de  fabuloso, como nós hoje acoimamos, já não digo as façanhudas proezas do  cavalo de Alexandre, mas até, com cena escola histórica, as históricas ações  dos sete reis de Roma.

Um dia, o povo portuense viu partir, caminho do Norte, uma legião de  cadeirinhas, que, a passo regrado, uniforme, imperturbável e filosófico até,  transpôs as barreiras da cidade invicta, para demandar as da augusta Brácara.

Na cara destes beneméritos da humanidade reluzia uma auréola que revelava a  importância da missão que iam cumprir assim! Nunca tão sublimes de  estoicismo escutaram as chufas e apupadas dos garotos; nunca tão cônscios da  sua importância social guardaram mais solene silêncio, apenas, de vez em  quando, interrompido por uma interjeição galega, que o tropeço de um adepto  novel desafiara. Com que denodada coragem tomavam o caminho da  peregrinação, transportando, com cadenciado movimento, o inseparável  veículo!

E contudo o projeto que assim os reunia em bandos era para fazer enfiar os  mais ousados.

As façanhas de Hércules não lhe eram superiores; a empresa imposta por  Carlos Magno a Hugon ou Huol, do poema de Wieland, não era de mais  difícil execução.

Estes destemidos heróis propunham-se a nada menos que a fazer viajar no  Gerês — a por 2$400 réis! — toda a corte e a família real!

Que pena que circunstâncias, alheias ao ânimo dos novos e intrépidos  argonautas, impedissem por fim a realização desse feito! A humanidade  enriqueceria a sua crónica de heroicidades e a águia das serras abateria o  orgulho, vendo ao seu lado o cadeirinha, limpando o suor que o nobilitava e  pendurando o capote listrado nos mais altos picos dos rochedos, como o  guerreiro vitorioso pendurava na sala de armas a cota, o elmo e o morrião dos  combates.

Menos feliz que o Porto, Vila Nova de Famalicão sentia um pesadelo no meio  dos seus regozijos. O dia não estava seguro. Grossas nuvens, assopradas do  sul, empanavam, de espaço a espaço, a claridade da manhã; aumentavam,  corriam e cerravam-se prestes a fundirem-se num a só massa, como para  reprimir todas aquelas expansões de entusiasmo festivo.

Junto a um arco de dimensões colossais, flanqueado de um e outro lado por  duas altas colunas, e que fora erigido logo à entrada da vila, estacionava a  câmara, dignitários e mais convidados para a solenidade da receção. Deste  numeroso grupo a todo o instante se erguia uma cabeça para fitar as nuvens,  de cujo aspeto e movimento se auferiam vários prognósticos meteorológicos.

— Isto passa, — dizia um velho, cujo pescoço, armado de uma inflexível  gravata branca, mal lhe permitia o movimento necessário para fitar o céu.

— Hum! Não sei, — respondeu-lhe um dos vereadores com ar de  abatimento. — O vento está do sul.

— Ainda quando tenhamos chuva, é lá mais para tarde. Quando o vento  acalmar, pode ser — opinava um terceiro.

— O pior é ser hoje quarto crescente.

— Pois se temos água para a noite, devem ser interessantes as iluminações!  — observou um indivíduo, que, tendo sido encarregado dessa parte dos  festejos, via a sua glória futura ameaçada de se evaporar, ou, mais  propriamente, de se fundir na inundação que receava.

— Uma coisa assim! — suspirava um, lembrando-se do chapéu novo que  estreara.

— Vão-se demorando! — respondia-lhe outro, a quem a incômoda  construção de umas botas de polimento tomava impaciente.

— Faz-se-me tarde para o jantar, — retorquia-lhes um velho, consultando  o relógio e dando a entender num a visagem expressiva que este adiamento  era o máximo sacrifício que podia fazer à realeza.

E com os ânimos assim dominados pela impaciência ou pelo receio, uns  bocejavam, outros assobiavam, outros passeavam e todos estendiam a vista  pela estrada, a descobrir vestígios do que tão ardentemente esperavam.

De repente um som distante de morteiros e foguetes veio aumentar-lhes a  ansiedade.

Chegara enfim o momento?

Tudo se pôs a postos. Erguiam-se nos bicos de pés e estendiam os pescoços.

De fato, passados alguns momentos mais, assomava no extremo da estrada,  onde convergiam todos aqueles raios visuais, um cano de grandes dimensões e  de formas ainda não conhecidas ali, que, puxado por mais de uma parelha e  envolvido num turbilhão de poeira, se aproximava a toda a brida do lugar  donde o observavam estes ansiosos espectadores.

— Aí estão — disse um dos camaristas, conjeturando que não podia deixar  de ser real um tão estranho meio de locomoção.

E, a um sinal dado, o morrão aproximou-se dos foguetes aprestados, e uma
salva de girândolas subiu aos ares, quando o referido carro parava junto do  arco triunfal.

Estava dado o alarme na povoação.

A câmara aproximou-se da portinhola.

Oh, desapontamento! Em vez do que esperavam encontrar, apenas depararam  com meia dúzia de fisionomias, que os olhavam sorrindo, como se  compreendessem e saboreassem o equívoco. 

Caíram então em si.

Era uma das diligências da companhia Viação Portuense, que escolhera aquele  dia solene para inauguração das suas viagens.

Não inventamos. Os viajantes que receberam nesta jornada um acolhimento  de príncipes, eram pela maior parte desta cidade, e ainda hoje não terão por  certo esquecido a honraria que um engano lhes proporcionou.

Quando o presidente, chegando ao cano, se preparava talvez para recitar os  primeiros períodos da sua alocução, deu de chapa com o rosto rubicundo e  jovial, que, surgindo a um dos postigos, disse para os circunstantes:  

— Guarda dentro, guarda dentro, e à vontade. Safa! Não se pode viajar  incógnito por esta terra.

Os espectadores fizeram uma certa careta expressiva porque tinham  reconhecido a pessoa que assim lhes falava.

— Então isso faz-se, José? — disse-lhe em tom de amuo um dos  enganados.

— E célebre! — continuava este, e depois de descer do cano e recebendo  de um criado o saco de viagem. — É célebre! Viemos em triunfo! Nunca  imaginei que me estavam reservadas estas glórias! Com que preparavas-te para  me recitar a tua felicitação, não é assim? — dizia para o orador municipal, que  começava a achar graça ao sucedido. — Escapamos de boa, meus senhores —  disse depois para os seus companheiros de jornada — escapamos de boa! A  eloquência de município! Que pesadelo! E os foguetes? Com os diabos!  Esgotaram a provisão? Depressa! depressa! Olá, João das Pipas, acende outra  vez o morrão, meu homem. Perdeste o teu tempo e a tua ciência. Mas não  tem dúvida. Vocês, sem querer, saudaram um grande acontecimento — a  inauguração da Companhia Viação Portuense, da qual eu possuo vinte e três  ações. Não sabem o que saudaram com esses foguetes? Saudaram o Minho,  saudaram Braga, saudaram o progresso, os melhoramentos desta nossa terra, o  engrandecimento da província, do comércio e da agricultura. Não vos  arrependais, meus amigos: não choreis o dinheiro do município, que estourou  agora nos ares. São de bom agouro estes estouros. São palmas dadas a um  grande cometimento. Não estivesse eu com fome, que vos dissera já aqui  quanto há a esperar desta caranguejola em que eu vim mais estes cavalheiros,  meus amigos, de quem me despeço hoje, porque já agora aproveito a ocasião  para ir a Barcelos na comitiva real. Pensai vós nisto, e dai por bem empregada  a pólvora que consumistes. Todavia ponde-vos outra vez a postos, que as suas  majestades não tardam, e preparai também os guarda-chuvas, porque já sinto  cair as primeiras pingas.

E, terminando este aranzel, que os circunstantes escutaram com um sorriso  nos lábios, o jovial acionista da Companhia Viação Portuense dirigiu-se, a  correr, para a estalagem vizinha.

O seu prognóstico era verdadeiro. A chuva começava a cair; e quando os  coches reais entraram na vila era já tal a cópia de água, que não pararam para  se ler a felicitação camarária, e seguiram imediatamente para a casa do Exmo.  Sr. António Emílio Brandão, onde a família real tinha de pernoitar.

Estava em maré de infelicidades a câmara de Vila Nova de Famalicão.

No entretanto o indivíduo que vimos sair da diligência, fazendo alarde do  desapontamento dos seus amigos de Vila Nova, subia apressado os lanços da  escada da hospedaria.

Era um velho baixo e magro, mas todo viveza e atividade, de uma fisionomia  aberta e expansiva, olhos penetrantes e lábios habitualmente risonhos.

Trajava vestuário de jornada, e mostrava claramente em certas particularidades  do seu equipamento de viagem, não ser noviço nestas empresas.

Trauteando um dos muitos hinos com que, durante os dias que passara no  Porto, tivera vagar de encher os ouvidos, avançava a dois e dois os degraus,  seguido do criado que lhe trazia as malas.

No primeiro patamar encontrou-se frente a frente com o dono da hospedaria,  que se descobriu ao avistá-lo.

— Olá! Viva o patrão. Passasse muito bem. Quero um quarto para esta  noite.

O estalajadeiro fez uma visagem de embaraçado.
  
Então? Vamos, adiante. Mostre-me um quarto, que tenho pressa.

— Mas... Valha-me Deus, Sr. José Urbano... E que eu não tenho nenhum  quarto que lhe dê.

José Urbano fez um gesto de espanto, e pôs-se a olhar fito para o seu  interlocutor.

— Com os diabos! Sr. Manuel! Você esquece-se que está falando com um  dos mais assíduos fregueses da sua baiúca?

— Não, senhor; mas é que eu não podia adivinhar que Va Sa chegava hoje  e pretendia ficar aqui. Aluguei todos os quartos que tinha.

— Sr. Manuel! Olhe que eu sou José Urbano de Melo Ribeiro, e nunca na  minha vida dormi uma noite ao relento. Arranje-se como puder; mas eu não  saio daqui.

— Mas que quer Va Sa que eu faça! Eu, se soubesse...

— Não tem desculpa nenhuma. Um homem conta sempre com um amigo.

— Mas nestas ocasiões...

— Pois nestas ocasiões é que se agradecem os favores. Então!

Decida-se. Eu quero hoje ficar em Vila Nova. Parto amanhã para Barcelos.  Não desejo incomodar nenhum dos meus amigos que estão já abarrotados de   hóspedes. Veja se me quer deixar numa situação crítica. Tinha graça! Não saio  daqui ao poder que eu possa...

— Valha-me Deus! — disse o estalajadeiro, coçando a cabeça.

— Deixemo-nos de lamentações. Se você não é homem de expediente, eu  vou por aí pedir a esses inquilinos que me cedam metade do seu quarto.  Alguns hão de concordar. Com os diabos! porque não? Eu arrancho  sofrivelmente a uma partida de stromboy ou voltarete ou de damas e gamão, e  ainda não sou dos piores companheiros. Vamos lá.

Quando José Urbano acabou de pronunciar estas palavras, abriu-se por detrás  dele uma porta, junto da qual se travara esta altercação, e um velho, de  aparência marcial, vestido de um amplo capote ou sobretudo de mescla  agaloado de vermelho e com botões de metal, e cabelo cortado à escovinha, se  intrometeu na discussão, dizendo para José Urbano:

— Aqui tem um que lhe aceita a companhia, se lha propuser e estiver  disposto a aturar um velho soldado, que por certo o não poupará à narração  de uma das suas campanhas.

José Urbano voltou-se. Achava-se na presença de um soberbo tipo de velho  oficial, que desde logo lhe agradou.
  
Era uma figura, cuja cor e carnação revelavam saúde e robustez; bigode   espesso e alvíssimo, umas certas rugas ao canto dos olhos, características de  bom humor; porte airoso, movimentos fáceis, cabeça ereta; peito saliente.

— Bom! — disse José Urbano, intimamente satisfeito. — Eu logo vi que  não estávamos em terra de bárbaros. Aceito, general, e agradeço.

— Devagar, devagar, meu ilustre amigo. Não posso com a patente.  General! Safa! Como vai depressa! Major, major, e graças à febre promotora  da Regeneração.

— Major! — disse José Urbano, instalando-se sem mais cerimônia no  quarto do seu inesperado companheiro. — Como é isso? Apre! Que tem  andado a passo, meu salvador Major!

— Que quer? Servi junta do Porto em 1846. Está explicado o atraso.

— Hum! Então é dos meus! Está na presença de um patuleia. Fique desde  já sabendo.

— Folgo imenso.

E os dois apertaram novamente as mãos.

— Tirou-me de apertos, major — continuou José Urbano, revolvendo as  malas. — Entre parênteses, não repare se eu, compensando de alguma sorte a  incúria dos governos, lhe chamar às vezes general.

— Chame-me o que quiser.

— Tirou-me de apertos, dizia eu. Imagine que esse desalmado do  estalajadeiro me queria deixar sem quarto. A mim, que todos os meses lhe  deixo aqui ficar alguns cruzados novos em troca de uns bifes de cebolada que  me dá a tragar. Olá, rapaz, traz-me cerveja inglesa — exclamou para um  criado que atravessava o corredor — Bebe cerveja, major?

— Para lhe falar verdade, meu caro amigo, nunca fui afeiçoado a essa  bebida de ingleses e flamengos. Lembra-me o tempo de emigração.

— Ah! emigrou também? Olá, rapaz, vinho do Porto.

— É para mim que o pede? Por quem é! Eu já não bebo antes de comer.  Foi tempo.

Está como eu. Rapaz, bifes de cebolada.

— Com os diabos, senhor... como lhe hei de chamar?

— José Urbano, um seu criado.

— Meu caro Sr. José Urbano, veja que para jantar ainda é cedo.

— Chame-lhe lunch, chame-lhe o que quiser O essencial é que eu coma.  Em todo o caso... Rapaz, queijo londrino. Dá licença que me ponha à  vontade, general?

— Sem cerimônia. Está no seu quarto.
  
José Urbano não esperou nova autorização; vestiu um robe-de-chambre de  chita, pôs um boné, calçou uns sapatos de tapete, que tirou da mala, e  começou a fazer os preparativos para se barbear.

O major, acendendo um cigarro, observava-o com visíveis mostras de  satisfação.

— Então, com que o general ou o major veio com alguns dos duques, não  é verdade?

— Rigorosamente falando, eu vim só. Há muito que desejava percorrer o  Minho. Pedi licença em Lisboa, e aproveitei esta ocasião  para levar a efeito  esta visita.

— Não conhece a província.

— Ora! como as minhas mãos.

— Visto isso, não tem roteiro marcado?

— Senão o instituído por mim próprio. Quero abraçar alguns velhos  camaradas e tomar a ver certos lugares.

— Segue para Barcelos amanhã, não é assim?

— Não; vou primeiro a Braga.

— Diabo!

— Que é?

— Sinto não estar lá para o receber na minha casa.

— Agradecido.

— Talvez ainda nos encontremos. Demora-se?

— Veremos. Pode ser.

— Então é provável. Apressarei os meus negócios.

— É de Braga?

— Resido lá.

— É negociante?

— Às vezes. Quando me faz conta. Quer dizer, quando vejo  probabilidades de bons resultados. No caso contrário vivo dos meus capitais.  Cultivo a minha horta, enxerto as minhas fruteiras, e uma vez ou outra, por  desfastio, trabalho em eleições. Assim vou vivendo.

E com estas conversas pouco e pouco se foi estabelecendo a mais íntima  familiaridade entre os dois: dentro de alguns minutos mais estavam um em  frente do outro, prestando a devida homenagem ao talento culinário do Vate!  da estalagem, manifestado num beef de cebolada, que teve as honras de bis.

Não os distraiu o estrondo dos morteiros, os hinos marciais e o murmúrio da  populaça, que a chegada dos reais viajantes ocasionara nas ruas.

Acabada a refeição, José Urbano, que continuava a pôr de parte toda a  cerimónia, dirigia ao major uma pergunta que envolvia uma intenção, evidente  para o major.

— Não costuma dormir a cesta, coronel?

— Quase nunca, e hoje muito menos. Tenho de visitar o duque de  Saldanha.

— Nesse caso não se constranja. Vá, vá. Eu dormirei, porque, para lhe  falar francamente, ando muito falto de sono. Estes dias passados no Porto  arrasaram-me. Na quinta-feira estive em S. João: representou a companhia   dramática; recitaram os poetas. Na sexta fui ao baile da assembleia. No sábado  voltei ao teatro; cantou-se a Lucrécia Bórgia. Na segunda fui ao baile da  Feitoria... num a palavra, não me tenho em pé. Até logo, general ou major, até  logo. E verdade! Como se chama?

— Clemente Samora.

— Clemente! Tem graça. Esquisito nome de militar Adeus, adeus.

E os dois separaram-se; José Urbano para se entregar às delícias de uma sesta  que se não fez esperar; o major Samora para descer à rua, onde vários grupos  de oficiais, chegados ultimamente, estacionavam.

Não havia muito que ali chegara o major, quando o chamou à parte um alferes  ainda jovem e imberbe, de compleição delicada, elegância irrepreensível e  mãos aristocráticas, e ocupado a calçar uma luva de pelica com o mesmo  escrupuloso cuidado que empregaria na plateia do teatro de S. Carlos.

A figura do recém-chegado, que a julgar pelas aparências, dir-se-ia mais  própria para adornar os salões da capital ou os passeios do Chiado, e para  ostentar garbos nas paradas, do que a pernoitar em bivouas, vencer marchas e  contramarchas, e dirigir uma carga de baioneta, contrastava com o ar marcial  do major, que o seguia a passos vagarosos, revelando o hábito de cavalgar e  talvez um princípio de reumatismo, que a vida de campanha lhe granjeara para  a velhice.

— Não é verdade que tenciona seguir para Braga, amanhã, major?

— E, sim. Porque o pergunta? Posso ser-lhe útil?

— Ofereço-lhe a minha companhia.

— Como! Pois não segue o cortejo?

— Não; o duque da Terceira encarregou-me de uma mensagem para o  comandante do 8. Parto amanhã.

— Estimo. Faremos uma bela jornada. e a sua mãe?

— Segue ainda para Barcelos; depois parte para a quinta do Coural, cujos  proprietários prometeu visitar. Esperam-na.
  
— Vai negociar o seu casamento, Filipe; aposto. As filhas desse capitalista  são ricas e interessantes, dizem.

— Que importa? A minha mãe sabe que para eu começar a odiá-las   bastava suspeitar que se tramava essa conspiração matrimonial. Mas descanse.  As raparigas julgo que até estão prometidas a não sei que fidalgos do Minho.  
— Então amanhã conto consigo?

— Sem falta.

— Eu moro na hospedaria. Acolá. E por sinal que tenho por companheiro  de quarto um originalão. E verdade, se puder, apareça-nos esta noite.  Jogaremos uma partida de voltarete.

— Pode ser. Até à vista.

— Até à vista.

As nove horas da noite ia grande rumor no quarto do major Samora.

Este, José Urbano e Filipe de Rialva — que assim se chamava o jovem alferes,   com quem acabamos de tomar conhecimento — jogavam uma partida de  voltarete, a qual José Urbano acompanhava de observações críticas e sonoras  exclamações.
  
A exigências suas, flanqueava a mesa do jogo uma boa provisão de bolacha,  charutos e garrafas de Xerez e Porto, que concorriam em grande parte para o  caráter ruidoso da partida.

José Urbano estava infeliz ao jogo. Rialva recordava-lhe, sorrindo, o velho  adágio que lhe prometia felicidades nos amores.

José Urbano torcia o nariz à alusão.

— Não, meu caro amigo, — exclamava ele, bebendo um cálice do Porto  — desse achaque estou eu livre. Curti o coração ao sol do Rio de Janeiro e nas  roças do sertão. Essas enxaquecas já não têm presa em mim.

— Vamos, Sr. José Urbano, — continuava Rialva — se quiser ser franco,  talvez tenha que nos contar Um episódio ameno no meio desse viver árido  que diz.

— E certo, — disse o velho negociante, tomando subitamente um ar de  seriedade — é certo que nem tudo tem sido aridez na minha vida. Mas os  poucos episódios amenos, como diz, os meus únicos amores... esses... são  para mim demasiado sérios para os contar à mesa do jogo e entre dois goles  de Xerez. Agora... Bebamos em honra da Carta Constitucional — exclamou,  ao ouvir romper por baixo das janelas da hospedaria esse hino popular  executado por uma filarmônica da localidade.

— Apoiado — respondeu o major, erguendo o cálice.

Rialva fitou por algum tempo José Urbano.

— O que se não conta a uma mesa de jogo, — disse passados alguns  momentos nesta contemplação — poderá contar-se um dia, dadas outras  circunstâncias.  

— Decerto — respondeu José Urbano.

— Bem; nesse caso... Em honra da Carta!

E Rialva associou-se ao brinde.


CAPÍTULO III

CONFIDÊNCIAS RECÍPROCAS
  
Na tarde do dia seguinte, a laboriosa vila de Famalicão, tão alvoroçada e  festeira na véspera, mostrava um ar, não dissimulado, de abatimento e de  tristeza. Com as primeiras alvoradas desvanecera-se todo o fantástico efeito  das iluminações da noite.

O sonho terminara, durava o desgosto do acordar.

As colunas luminosas, os arcos cintilantes, os esplêndidos obeliscos  apresentavam-se agora em toda a sua prosaica realidade de madeira pintada,  lonas enodoadas, flores murchas, e verdura defumada e sem viço. Os copos e  as laranjas de azeite, que, sob o prestígio da luz, horas antes atraiam com força  irresistível as vistas da multidão, já não desafiavam senão o tédio.

Raiara a luz verdadeira, e os falsos astros, apagando-se, mostraram tudo o que  eram. Quantas glórias, como eles, que no meio das trevas ofuscam, não  resistem aos primeiros clarões de um real alvorecer!

Os restos e destroços dessas máquinas de festa ali estavam expostos às  fantasias, aos caprichos e espírito aniquilador dos gaiatos, que os apedrejavam  agora: de todos os esplendores que desmaiam, de todas as reputações que   periclitam, as turbas costumam tirar destas vinganças, pelo entusiasmo e  delírio em que momentaneamente as arrebataram.

O desalento parecia nem dar ânimo para remover essas últimas, deterioradas e  quase repelentes memórias dos regozijos findos. Compreendo aquele  sentimento.

Eu não sei de nada mais triste do que o terminar de todas as festas.

Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia ao desfazer do  presépio que, em honra do Menino Deus, se armava na minha casa pelo  Natal.

Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra vez na arca — e  por um ano! — o Menino, Nossa Senhora, S. José, os grupos dos pastores, a  vaca, o jumento, os três reis, os anjos e todos os mais acessórios do pitoresco  santuário, diante do qual, nesses quinze dias, se rezava a coma em família e se  cantavam as loas da ocasião! Amargo dia de Reis, último desta abençoada  quinzena, já te não via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras  alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos pelo caminho,  venerandos Magos! Que aquela milagrosa estrela, que vos trouxe a Belém, vos  não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! Fatal 6 de Janeiro! com o  teu anoitecer, anoitecia-me o coração. Voltava a vida normal, voltavam os  bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia sobretudo tão  associada à férula do mestre-escola! e o que era pior que o mais — acabava naquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família; o lar  doméstico já não oferecia o alegre tumulto e desordem, em que velhos e  crianças tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no  coração de todos. A solenidade que nos reunira sob o mesmo teto, que nos  fizera viver a mesma vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na  despedida; mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras  envergonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos  redobrava o choro!

Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na idade em que a  lei autoriza a não me considerar criança, ainda não sou superior a cenas  daquelas.

Se ainda hoje experimento uma sensação desagradável ao entrar num teatro  vazio, assistindo ao findar de uma romaria, ouvindo as derradeiras notas de  uma valsa na última noite de carnaval! A transição do movimento para o  repouso é como uma imagem do pensamento!

As vezes, nesses momentos solenes, há convulsões até como as da agonia.  Nem outra coisa é a vertigem da última valsa.

E tanto isto se dá comigo, que só o considerar no estado de desanimação em  que, depois da partida dos augustos viajantes, ficou a vila do Minho, onde se  passaram as cenas do capítulo anterior, me arrastou por divagações pouco  alegres, que talvez fossem avivar ao leitor memórias adormecidas, cujo  delicioso pungir nem todos me perdoarão.

Mas o fato era que, ou por abatimento moral ou por cansaço físico, o povo  de Famalicão não andava na rua aquela tarde.

À porta da hospedaria, onde contraímos conhecimentos, que teremos de  cultivar, estacionavam apenas alguns raros ociosos que se entretinham a  contemplar, com olhos de entendedores, dois soberbos cavalos de raça de  Alter, que um soldado segurava pelas rédeas. Os nobres animais, ansiosos por  partir, mordiam com impaciência os freios polidos, resfolgavam, sacudiam as  clinas, escarvavam com as ferraduras as pedras da calçada, e expeliam dos  beiços inquietos flocos de fumegante espuma.

Pelo selim e arreios que os ajaezavam conhecia-se pertencerem a militares, e  igual corolário se tirava da aparência bélica do palafreneiro contra cuja  astuciosa impassibilidade, e calculado laconismo, se tinham vindo quebrar as  mais inquisitoriais interrogações dos curiosos do grupo.

O manhoso soldado, depois de ter feito ampla provisão nos cigarros que, para  o humanizar, um de mais expediente lhe oferecera, limitara-se a responder por  monossílabos, pouco de satisfazer, aos quesitos sobre o preço, as manhas, a  sustentação, o tratamento dos quadrúpedes, e em seguida sobre a hierárquica  posição, merecimento e mais partes que concorriam na pessoa dos seus proprietários. 

Com ciência superior foi sustentado este jogo até que o tinir das esporas de  alguém que descia as escadas pôs fim às interlocuções.

Os grupos dispersaram para dar praça aos viajantes; o soldado preparou as  rédeas e fez a continência que, na posição em que estava, lhe era possível  fazer.

Seguidos pelo estalajadeiro, que se desfazia em barretadas, assomaram ao  patamar os dois oficiais.

Não surpreenderei por certo o leitor, dizendo-lhe que eram os nossos  conhecidos, o major Clemente Samora e o alferes Filipe de Rialva.

Depois de dirigirem ao estalajadeiro um gesto familiar e cortejarem os  curiosos que se descobriam, os dois, tomando as rédeas da mão do soldado,  montaram com agilidade e partiram a passo em direção ao norte. Os  espectadores seguiram-nos por muito tempo com a vista e ficaram fazendo  comentários sobre o jogar das dianteiras dos cavalos, seus merecimentos  absolutos e relativos, e sobre as qualidades, posição oficial e até a missão de  que poderiam ir encarregados os cavaleiros.

Estes caminharam por muito tempo silenciosos.

O major, deixando correr a vista por todos os pontos da paisagem lateral à  estrada, pelas veigas, almargens, devesas, pinhais de um ameno e delicioso  panorama do Minho, dir-se-ia ressentir uma violenta comoção interior, como  se lhe fossem conhecidos aqueles sítios, e lhe estivessem evocando memórias  de outros tempos com toda a inquieta turba de saudades, que, de ordinário, as  acompanham.

Filipe de Rialva tomara também uma expressão de seriedade melancólica, que,  lhe não era habitual.

Só a preocupação própria é que podia fazer com que cada um não estranhasse  a do seu companheiro, e não procurasse devassar-lhe a causa.

Houve uma ocasião em que Clemente Samora chegou a suspirar. Era isto nele  tão extraordinário, tão pouco dado a estas melancolias era o velho militar, que  Filipe de Rialva saiu enfim da sua abstração ao escutar este suspiro, e olhou  admirado para o seu companheiro de jornada.

Foi só então que reparou no ar de tristeza que as feições acentuadas e  expressivas lhe refletiam naquele momento.

— Que é isso, major? Se me não enganei, ouvi-o agora suspirar — disse o  alferes, dando um certo entono jovial à interpelação.

O major conservou-se algum tempo calado, depois respondeu, afetando  indiferença:

— Que quer você, Rialva? O meu reumatismo não se esquece de me dar  de vez em quando notícias suas.
  
— Ai, major! major! a não descrer muito da minha experiência na matéria,  aquele suspiro não era desafiado por uma dor articular.

— E então que quer dizer com isso? Vejo-o com ares de quem me supõe  apaixonado. Olhe bem para mim, Rialva. Acha-me com cara de poeta erótico  ou de galã de romance? Na minha idade!

— Um militar é sempre jovem, major É aforismo de quartel. O coração  não teve tempo de envelhecer no campo da batalha.

— Mas contrai outros hábitos e afeições por lá, e perde essa extrema  inflamabilidade, que ameaça a de pessoas, como você, de continuados  incêndios. O meu não está sujeito àquelas enxaquecas de que ontem nos  falava o nosso amigo José Urbano. Se se não curtiu, como o dele, nos calores  dos sertões americanos, temperou-se no fogo da metralha.

— Mas aquele suspiro, major?

— Que tem aquele suspiro? Que significa isso? Suspira-se sem motivo  também e quantas vezes?

— Oh! mas é um terrível sintoma. Deve confessá-lo.

— Olhe, Rialva, — disse o major depois de alguns minutos de silêncio —  vou falar-lhe com toda a franqueza. Não é com indiferença e de ânimo  tranquilo que tenho feito esta viagem do Minho. Sabe que militei no Porto.  Sabe que, sob o comando de D. Pedro, ganhei muitas das minhas patentes e  quase todas as minhas condecorações. A história das minhas cicatrizes está  escrita por estes sítios. Os episódios das campanhas gravam-se-nos na  memória e deixam saudades sempre. Sinto-as agora e vivas e profundas! Se as  sinto! E verdade. Conheço ainda tudo isto! Acodem-me à imaginação coisas  que julguei esquecidas para sempre. Lances arriscados, situações difíceis,  entusiasmos de vitória, desesperos das derrotas, episódios cómicos no meio  dos horrores da guerra, banquetes, onde folgavam e riam, ao nosso lado,  muitos que momentos depois estavam inanimados na campa... mil aventuras  enfim, pecados velhos, que agora vão recordando com certo travor.

— Pecados velhos também? — disse o alferes, sorrindo.

— Que dúvida? E oxalá que fossem todos leves!

— E não serão?

— Nem todos, Rialva, nem todos. E se tiver de ser franco consigo, talvez  que vá prender a um dos mais graves o suspiro de que há pouco você me  pediu a explicação.

— Ah! Bem que me parecia que vinha do coração.

— Mas não de um coração namorado e casquilho. Entendamo-nos.  Graças a Deus e à minha boa sorte, tenho sido preservado desse mau achaque  de velhice. Mas de um coração arrependido... pode ser... é. São remorsos de  um mal feito, desejos de o remediar, desejos irrealizáveis agora, e que por isso  me serão perpétuos tormentos.

— Repare, major, que está dando às ideias uma direção demasiado sinistra.  Nunca assim o conheci apreensivo e lúgubre.

— Tenho por costume não manifestar os meus sentimentos. E pudor de  coração que se não quadra com a empáfia militar. Mas, à vista destes lugares,  tão cheios de recordações para mim, a comoção foi mais forte do que eu,  venceu-me, zombou da minha repressão, transbordou. Já agora deixá-la.

— Confie em mim, major; eu sei compreender esses sentimentos.

— Não sabe tal. Na sua idade não se pensa nisto. Somos imprudentes;  mais tarde, demasiadamente tarde é que sentimos o mal.

O alferes, longe de protestar contra o conceito formulado pelo seu velho  companheiro, calou-se e pareceu meditar.

— Desde 1843 que não voltei a estes sítios — continuou o major. —  Deveres em parte, e em parte o natural descuido de ânimo dos que vivem  aquela vida de Lisboa, mo impediram. E, contudo, alguma coisa me devia ter  trazido aqui há mais tempo.

— Vestígios de passadas afeições?

— Sim; mas vestígios tristes, vestígios de lágrimas talvez. Entre muitas  aventuras da mocidade, eu tive também o meu romance, Rialva. Sossegue, que não gastarei estilo em lho narrar. Eu não me entendo com a vossa literatura de  agora. Bem sabe que sou contemporâneo dos sonetos, e por isso abstenho-me  de fazer narrações a rapazes que se alimentam de romanticismo puro. Em vez  de arroubamentos, e enleios que estão agora na moda, eu poderia falar-lhe nas  clássicas setas de Cupido e nas pouco ideais seduções das três filhas de Vênus.

— Ora vamos, major Quer-me parecer que, ainda que tarde, também se  sujeitou àquela vacina, de que fala Garrett, para se preservar das bexigas, as  quais, na frase dele, matavam a fazer odes pindáricas e sonetos os rapazes da  sua época. Conte-me o seu romance.

— É preciso que lho conte? Pois não o adivinhou já? Não o ia escrever  capítulo por capítulo, prescindindo da minha narração? É o eterno romance  de um rapaz estouvado que, no meio das suas afeições efêmeras, costumado a  acreditar na inconstância dos corações, não recua diante de nenhuma  conquista; que se julga um profundo conhecedor da humanidade, só porque  lhe ignora o seu lado melhor. A quem seduz a fama de um D. João ou  Lovelace, e, como esses belos modelos, que pretensiosamente procura imitar,  fazendo de todas as mulheres um leviano juízo, joga com as afeições de todas,  sem se lembrar que um só coração que sacrifique nesse jogo é pagar muito  cara uma distração de rapaz.

— Bravo, major! Nunca me lembra de o ter ouvido falar assim!
  
— Pois aproveite a ocasião, que talvez seja a última. Eu não gosto de andar  a fazer pelo mundo estas profissões públicas de sentimentalismo. Mas a  verdade é essa. Na época em que eu vivi por estes sítios... Era eu então alferes  como você, Rialva, e igualmente estouvado.

— Agradecido pelo conceito, major.

— Sabe que digo sempre o que sinto. Nessa época contava as minhas  aventuras pelos dias da semana, e esquecia-as tão prontamente como elas se  sucediam. Já ao terminar a campanha e próximo a partir para Lisboa, pela  primeira vez me encontrei com um coração, que me coube em sorte  despedaçar. Soube-o tarde, mas soube-o para a minha condenação. Foi uma  mulher que, mais que todas as que até então conhecera, me produzira uma  profunda impressão. Era uma rapariga que vivia nas imediações de Barcelos  só com uma criada, que fora sua ama de leite, e nesse tempo exercia as  funções de governanta da casa. A fortaleza não estava bem defendida; pode  prever que me não foi difícil a conquista, desde que consegui obter simpatias  na praça. Entreguei-me de olhos fechados a todos os prazeres e a todas as  consequências daquele amor Os primeiros pode concebê-los; estas porém  talvez lhe transtornassem as previsões que formasse.

Voltei para Lisboa desde que uma paz definitiva se consolidou; e, confesso-lhe  francamente, na vida da capital, onde aos vencedores esperavam outras  vitórias fáceis, e delícias dignas de Cápua, esqueci-me daquela mulher

Lembrei-me tarde. Quando escrevi para Barcelos, pedindo cautelosas  informações a respeito dela, responderam-me que a infeliz tinha morrido logo  depois da minha partida.

— E o major ficou acreditando que ela morreu de amores!

— Rialva, não se faça cético — disse Clemente Samora, tomando um ar de  serenidade.  — Não há nada que fique tão mal a um rapaz, do que essa  endurecida descrença, que está agora na moda. Com sinceridade, você não  acredita que possa haver um amor verdadeiro?

— Acredito, mas julgo-o a civis rara, que só a poucos felizes se mostra.

— Ora adeus! Em todo o caso, se quiser que mais tarde o coração lhe não  dê destes momentos de amargura que me está dando hoje, não se deixe  aconselhar por essa descrença. Receie sempre do remorso.

— Remorso! É dura a palavra.

— E verdadeira. Quando em 1846 voltei ao Podo, tremia só em lembrar-me que os incidentes de campanha, que ia empreender, me poderiam levar  àqueles sítios, e hoje vê que não sou tão senhor de mim, que domine a  comoção que eles me despertam.

Depois destas palavras, que o major efetivamente pronunciou comovido,  reinou por algum tempo o silêncio entre os dois.

— Sabe o major que possui um notável poder de catequese? — disse  Rialva, passada esta pausa, procurando conservar às suas palavras o tom jovial  em que até ali as mantivera.

— Por que diz isso?

— Porque estou quase arrependido de uma pequena aventura, que o ano  passado tive nos arredores de Braga, quando, por ocasião dos movimentos  militares que se seguiram à Regeneração, me demorei alguns meses naquela  cidade.

— Alguma imprudência sua.

— Sossegue, major; eu não sinto grandes apreensões a respeito do caso,  porque, como lhe disse, não creio que se mona de amores cá por este mundo,  e muito menos que seja eu o destinado para inspirar uma dessas paixões  excecionais.

— Mas enfim?

— Vi uma rapariga num convento de Braga...

— E escalou-o, arrombou-o, incendiou-o?

— Não, major E verá, pela narração que lhe vou fazer, que nestas coisas  ainda não deixei de ser noviço!

— Ouçamos a narração.

— Que interessantes olhos, meu amigo! Uns olhos que valiam poemas; o rosto de uma cor de pérola fascinadora, e a voz com mistérios de melodia, que  a arte ainda não decifrou. Não havia ser-lhe indiferente, major, acredite. O  major que fosse...

— Bem, bem, adiante. Fale-me de si, Rialva, fale-me de si. De mim sei eu  de sobra o que devo pensar Conheço-me há muito.

— Perdi a cabeça por aquela mulher Não havia dia em que eu não  procurasse vê-la, e consegui fazer-me notado. Passando agora pelos  pormenores desta inocente afeição, basta que lhe diga que ela me  correspondia. Parece-me que o vi sorrir quando pronunciei a palavra inocente!  Mas juro-lhe que é o epíteto apropriado.

— Longe de mim duvidá-lo. Continue.

— Sob o pretexto de visitar a escrivã do convento, que era das relações da  minha família, fui admitido à grade, e ela, não sei sob que pretexto, lá estava  sempre também.

Cada vez a admirava mais, porém ardia de impaciência por lhe não poder falar  de viva voz. O acaso...

— Mau, — disse o major com um meio sorriso. — Agouro mal da  intervenção do acaso no romance. É sempre perigosa e inconveniente.

— Ouça, — continuou Rialva, sorrindo também como se não fora sem  fundamento a observação do seu companheiro. — O acaso um pouco e  muito a boa vontade dela, fez com que esta rapariga viesse passar alguns dias  fora do convento e em casa de um comerciante de Braga, de cuja filha ela era  íntima amiga. Eu tinha relações com este comerciante, e pude então, mais à vontade, conversar com ela.

— Ora prossiga, prossiga.

— Pouco mais tenho para lhe dizer. O meu amor foi tímido e respeitoso,  como nem eu próprio suspeitava que fosse possível sê-lo. Diante daquela  mulher, diante daquela candura, desconhecia-me, achava-me acanhado como  qualquer rapaz de dezesseis anos. Creia, major, que não sabia o que tinha feito  da minha audácia habitual. Tinha de partir para Lisboa. A minha mãe havia-me alcançado do ministro uma transferência de como. Disse-o à pobre  menina, que se banhou em lágrimas ao sabê-lo. O seu amor havia adquirido  uma intensidade que o denunciara. Em Braga falava-se muito nisso. Na noite   a minha partida consegui uma entrevista dentro do jardim da casa onde ela  ainda então se achava.

— Aproxima-se a peripécia — disse o major. — Adeus timidez...

— Juro-lhe, major, que a respeitei, como se a protegesse um ambiente de  pureza e castidade. Davam onze horas na igreja de S. Marcos, e pela primeira e  única vez os nossos lábios se encontraram, e logo depois eu saltava o muro do  jardim, montava o cavalo e seguia o caminho do Porto, donde me transportei  para Lisboa. E assim terminou este inocente episódio da minha vida.

— E ela?

— Que lhe posso eu dizer dela? A impossibilidade de nos  correspondermos era manifesta. Dois dias depois devia ela voltar ao  convento, onde não podia receber cartas minhas. Ainda lhe escrevi do Porto,  esperando receber a resposta em Lisboa. Esperei debalde, e...

— E esqueceu-a, não é verdade? Nem mais pensou nessa rapariga, que  talvez a estas horas esteja chorando por si, ou pela sua causa.

— Acredita, major? Não acha mais natural que esteja pensando em outro?

— Pode ser. Em todo o caso, basta que por uma efêmera distração  arriscasse dessa maneira o destino do coração, que é o destino inteiro de uma  mulher, para que não possa ou não deva, pelo menos, encarar levianamente o  sucedido e deixar de sentir uns indícios de remorso.

— Acreditasse eu que produzira um padecimento real...

— Que faria?

— Nunca o perdoaria a mim próprio.

— Cingia os cilícios e disciplinava as carnes, não é assim?

— Condenar-me-ia a uma completa abstenção de galanteios, pelo menos.


— E dessa maneira secaria as lágrimas que fizera derramar!

— Qual era então o meu dever, major? diga.

— Quando estiver em Braga, se se demorar por lá averigue do sucedido e  depois falaremos. Escusamos de estar agora a traçar planos de imaginárias  campanhas.

A estas palavras do major seguiu-se um silêncio prolongado, durante o qual as  ideias tomaram outra direção a ponto de que, ao restabelecer-se, o diálogo  versou sobre assuntos indiferentes que não precisamos de referir, e assim se  manteve até à chegada dos dois cavaleiros a Braga, ainda com algumas horas  de dia.

Desempenhando nesta cidade a missão oficial de que viera encarregado, Filipe  de Rialva propunha-se no dia seguinte começar as averiguações a que o major  e a sua própria curiosidade o convidavam, quando um acontecimento  imprevisto o veio impedir de as realizar.

Pela madrugada do dia seguinte chegara a Braga uma notícia telegráfica, que  lançara o espanto e consternação nos ânimos de todos os seus habitantes.

Constava que às onze horas da noite antecedente o palácio onde repousava  em Barcelos a família real havia sido devorado por um incêndio.

Os noveleiros políticos, sempre prontos a darem aos mais insignificantes  acontecimentos um colorido lúgubre, filiavam aquele fato casual num a trama  premeditada e misteriosa. As notícias que se davam em voz alta, comentavam-se depois ao ouvido. As insinuações transluziam das frases estudadamente  formuladas. Os ociosos agrupavam-se em frente das repartições públicas e das  casas das autoridades, como se, das fachadas desses edifícios, esperassem  elucidações. Exagerava-se o sucedido. Houve tal que condenou às chamas a  vila de Barcelos inteira! Em outros grupos enumeravam-se as vítimas e  especificavam-se com escrupulosa exatidão a natureza e caráter dos  ferimentos! Uns revelavam a descoberta de uma máquina infernal; outros  noticiavam a prisão dos criminosos.

Os ódios partidários, então mais acesos que hoje, todos estes boatos acolhiam,  e de boa ou má-fé concorriam para os divulgar, ampliando-os.

A nova, ao chegar aos ouvidos dos nossos dois conhecidos, Clemente Samora  e Filipe, havia adquirido já as mais formidáveis dimensões, e revestira-se das  cores menos para tranquilizar.

Desesperando de saber a verdade no meio de tantas variantes, e até  encontrando incertezas nas informações oficiais, os dois, que tinham em  Barcelos por quem se inquietar e que nada os prendia atualmente a Braga,  resolveram informar-se pelo seus próprios olhos, e com este intuito partiram  essa mesma manhã em direção à vila.

Algum tempo mais que se tivessem demorado, teriam serenado as suas  inquietações.
  
O pânico desvanecera-se afinal. Sabia-se enfim que o incêndio não atingira  nunca as proporções medonhas que se dissera. A inverosimilhança dos  romances inventados, com grande desespero dos seus autores, ia já fazendo  sorrir.


CAPÍTULO IV

FOGOS DE MOCIDADE 

Quatro dias depois dos sucessos do capítulo anterior, percorria a estrada de  Barcelos, em direção a Braga, uma jovial cavalgada de oficiais do exército e de  alguns estudantes do Porto, que a promessa de um segundo perdão de ato  trazia naquele tempo muito jubilosos e como que em férias já.

Filipe de Rialva e o major Samora tinham-se-lhe incorporado. Do rancho era  talvez este último o único melancólico. A sua estada em Barcelos avivara-lhe  as saudades que o perseguiam. Nenhumas informações pudera obter, nem  sequer do Lugar onde repousava a morta. Nem um só vestígio dos seus  passados amores tinha encontrado o pesaroso velho. Uma estrada em  construção acabara de derrubar a pequena casa, que a imaginação lhe estava  agora ainda reproduzindo, e com ela dir-se-ia haver destruído todas as  memórias desse drama obscuro, que terminara em túmulo.

Rialva, ao inverso do seu companheiro, no descuido dos vinte e dois anos,  entregara-se inteiro ao prazer da jornada.

Pouco avultavam já na memória do estouvado alferes as recordações da sua  aventura de Braga. Tivera tempo e ocasião de se distrair. De Barcelos seguira a  corte a Viana, e nessa marítima cidade do Minho foram demasiados os  prazeres em que tomara parte, para que lhes resistisse qualquer ideia  melancólica. Vinha-lhe o coração desafogado ao voltar a Braga, onde se  antecipava um dia à comitiva real, que só no dia 12 devia sair de Barcelos.

O génio expansivo e bom humor de Filipe valeram-lhe uma certa  preponderância sobre o rancho, que parecia havê-lo tacitamente elegido para  seu chefe. Isto lisonjeava-o e obrigava-o a fazer todos os esforços para  justificar a escolha.

A cada passo, estridentes gargalhadas e hurras espantosos partiam em coro do  bando turbulento. Por vezes a algazarra subiu a ponto que o major Samora,  em poucas disposições para tomar parte nela, sopeou o passo ao seu cavalo  para se distanciar do tropel.

— Meus senhores! — disse um dos estudantes, a quem no ano anterior  um perdão de ato, poderoso Deus ex-machina, arrebatara milagrosamente  dos nevoeiros da matemática, onde se vira perdido, e que esperava que um  outro o ajudasse a livrá-lo da botânica, mau grado do Sr. Costa Paiva que não  conseguira ensinar-lhe a classificar nem a Digitalis purpurea. — Meus  senhores, nem todo o tempo gastemos a rir. A divina arte do canto está em  decadência entre nós. De todas as nações do mundo a portuguesa é a que  menos canta! Vergonha! Eu, digno e degenerado representante daquela antiga  e característica classe de estudantes que corria as estradas e estacionava nas  praças de capa traçada, espada ao lado e guitarra em punho, coro ao repeti-lo!

O estudante de Salamanca, cantando seguidillas debaixo da ventana da  senhorita de tez morena e olhos travessos, um pobre diabo sem dinheiro, mas  cantando, cantando a escalar janelas, no meio das rixas, cantando na cara dos  guardas civis, e dançando, ao som da pandereta, o fandango e o bolero — eis  o tipo ideal, que se perde, que degenera desde que a filosofia o estragou. O  estudante hoje é folhetinista, é político, é erudito, é sisudo e, mais que tudo, é  sensaborão! Dá-lhe mais canseira a salvação da república, do que o penteado  da sua amante! Que tremenda responsabilidade nos cabe, meus amigos! Nós,  indignos depositários de um grande legado, que deixamos esbanjar! Reajamos  quanto nos seja possível, e reajamos cantando. A cantar se têm feito  revoluções. Dêem-me o poder das canções, e eu revolverei o mundo.  Cantemos!

— É justo que abras tu o exemplo — respondeu-lhe um dos  companheiros. O convite foi repetido por toda a companhia.

O orador não se fez muito rogado, e num a toada popular, que então andava  na boca de todos, cantou as seguintes coplas, que nos parece serem da sua  lavra:

Ouvia gabar os beijos,
Dizer deles tanto bem,
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.

Que esta fruta não é rara,
Mas nem toda tem valor:
A melhor é muito cara,
E a barata é sem-sabor.

Colhi-os dos mais mimosos;
Provei três, mas, pelo meu mal,
Ao princípio saborosos,
Amargaram-me afinal.

Um colhi eu de uma bela,
Que era Rosa, sem ser flor.
Se tinha espinhos como ela,
Dela também tinha a cor.

 Vi-a a dormir, e furtei-lhe
Um beijo que a acordou.
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto, que desmaiou.

Logo que a vi sem sentidos,
Fugi, sem outro lhe dar;
Que beijos, sem ser pedidos,
Não são coisas para brincar.

 Outra vez, de uma morena.
Olhos azuis, cor de céu,
Corpo esbelto, mão pequena,
Um beijo me apeteceu.

 Pedi-lho — e então por bons modos,
Pedi-lho do coração.
Zombou dos meus rogos todos
E respondeu-me: que não.

Zombei, como ela zombava,
E um beijo, à força, lhe dei;
Mas... bem dado ainda não estava
E com um bofetão o paguei.

Custou-me caro o desejo,
Que muito caro ela o vendeu.
Pagar por tal preço um beijo!
Assim não os quero eu.

Este, mais do que o primeiro,
Me deixou fraca impressão;
Quis provar ainda um terceiro
Para não jurar em vão.

Mas não quis fruta roubada,
Que mal com ela me dei.
Uma dama delicada
Ofereceu-ma... Eu aceitei.

 Ai, que boa fruta que era!
Estava mesmo a cobiçar.
Passar a vida quisera
Tal fruta saborear.

Mas, no meio da colheita...
Da fruta, o dono apareceu.
Zelosos olhos me deita:
Se zelava o que era seu!

 Vendo o caso mal seguro,
Eu logo ali lhe jurei
Restituir e até com juro
A fruta que lhe tirei.

 E, caso não discordasse,
Não me parecia mal
Que a ele os juros pagasse
E à senhora... o capital.

Esta sensata proposta
Em fúrias o arrebatou,
E, por única resposta,
A lutar se preparou!

Ouço ainda gabar os beijos,
Dizer deles muito bem:
Mas findaram-me os desejos,
Já sei o sabor que têm.

Uma estrepitosa algazarra rompeu do grupo, quando o acadêmico terminou a  sua cantiga.

— Visto isso, — disse um dos cavaleiros — puseste-te em dieta dessa   ruta? Tenho piedade da tua higiene meticulosa! Possuis um estômago  demasiado suscetível. Eu por mim, meus senhores, confesso-lhes que, verde  ou madura, não sei de outra fruta que me agrade tanto.

— Alto lá! — respondeu o que cantara. — Nada de responsabilidades  absurdas. Eu não subscrevo todas as legítimas consequências da canção. E se  julgam necessário neutralizar-se o efeito, eu estou pronto a cantar-lhes uma  outra. Possuo-as para todos os gostos.

— Por esta vez dispensamos-te da retratação. Acreditamos-te. Nada de  lógica em assuntos destes. Que os céticos cantem de crentes e os crentes  encham as estrofes de ceticismo. Ninguém lhes deve pedir contas. Outro  cantor!

— Eu por mim, estou pronto a cantar, — disse um alferes de Caçadores,  — mas não a mulher nem o amor; inspira-me mais um charuto, um cachimbo  e até um cigarro, sendo o tabaco forte e mortalha boa.

— Pois canta o cigarro. Admite-se o culto. Vai entoando a antífona,  enquanto nós acendemos os fachos do rito sagrado — respondeu Filipe,  distribuindo cigarros por todos os da cavalgada.

E dentro em pouco o bardo novamente indigitado, começava cantando:

No centro de círculos
E nuvens de fumo,
Um deus me presumo,
Um deus sobre o altar!
Nem doutros turíbulos
Me apraz tanto o incenso,
Como o deste imenso
Cachimbo exemplar!

 Em divãs magníficos
De seda e veludo
Repousa sisudo
O ardente Sultão.
Fumando, inebria-se
E esquece odaliscas.
E os beijos, faíscas
De amor, e o Alcorão.

 Longe, oh! longe o ópio,
Que os sonhos deleita
Da mísera seita
Dos Teriaquis,
Horror ao narcótico,
Que vem das papoulas

E ao que arde em caçoulas
No harém dos Alis!

Que a África tórrida
De areias candentes
Consuma as sementes
Do arábio café.
Bebido nas chávenas
De Índia e porcelana
A negra tisana
Veneno me é.

E a folha asiática,
Delícias da China,
Por nossa má sina
Trazida para cá?
Sorvida em família,
Em momo hidro-infuso!
Anátema ao uso
Das folhas de chá!

 Nem tu, ó alcoólico
Licor dos lagares,
Terás meus cantares,
Meus hinos terás.
Embora das ânforas
Vazado nas taças,
Aos outros tu faças
A boca loquaz.

Meu canto é da América,
Pais do tabaco,
Melhor do que Baco,
Que o ópio melhor.
Que a Europa, Ásia e África
E a terra hoje toda
Já fuma por moda
O heroico vapor.
  
Até na Lacônia,
Da gente pequena,
Se fuma, e no Sena,
No Tibre e no Pó,
No Volga e Danúbio,
No Tejo e no Douro...
Que grande tesouro
Se deve a Nicot!
  
Nem venha da cânfora
Contar maravilhas
O das cigarrilhas
Famoso inventor.
Raspail é cismático,
E eu sou ortodoxo;
O seu paradoxo
Não me há de ele impor.

E os áridos lábios
Mais fumo ainda aspirem.
Que os néscios suspirem
Por beijos febris.
Não quero outros ósculos,
Não quero outra amante,
Qual mais doudejante
Que os fumo subtis?

Tomadas Vesúvios,
As bocas fumegam,
De nuvens que cegam,
Vomitam legiões.
Fumar! Oh, delícias!
Prazer de Nababo!
E leve o diabo
Do mundo as paixões!

É indescritível o entusiasmo que se manifestou em seguida às últimas palavras  da canção ou hino do tabaco. Foi tal a gritaria que os ecos das montanhas  vizinhas despertaram estremunhados, e, como dizia Fernão Mendes Pinto, as  carnes tremiam de medo.

Todas as bocas pediram bis, e de novo se guardou um silêncio solene para  escutar as estâncias de tão popular produção, algumas das quais muitos já  repetiam em coro.

— E tu, Filipe? — disse o cantor favorecido da aura de popularidade —  não cantas também?

— Depois do teu triunfo, julgo prudente prescindir dos meus direitos.  Desisto da palavra.

— Não admito. Não é facultativo, é obrigatório o cantar.

— Isso é crueldade. Queres imolar-me nas aras da tua musa rodeadas de  fumo de tabaco?

— Isso é modéstia mal cabida. Ou temes ferir a delicadeza da tua musa  sentimental com as baforadas do meu cachimbo?
  
— Apelo para a decisão do conclave — disse o estudante que cantara  primeiro.

— A votos! A votos! — bradaram algumas vozes.

No momento em que isto se passava havia a cavalgada chegado a um ponto  da estrada erma de habitações e perfeitamente deserta de viajantes. Era um  extenso lanço que seguia em linha reta por meio de lezírias sem cultura, e  tapadas de tojo e pinheirais ainda novos. A vista alcançava de extremo a  extremo deste lanço tanto mais facilmente, porque a atmosfera densa de  vapores apresentava, sob uma ótica favorável, os planos mais distantes.

Isto permitiu que os cavaleiros avistassem ao longe sentada, a fiar, sobre as  pedras de um dos muros que flanqueavam a estrada, uma mulher, que na  aparência mostrava já ser de avançada idade, a qual, ao ver aproximarem-se os  viajantes, se levantou açodada e colocou-se no meio da estrada como se lhes  desejara falar.

— Aí tens quem te vai inspirar, Filipe. Uma princesa desconhecida que  desce a escutar as namoradas endeixas do trovador — exclamou um dos que  primeiro a avistara.

— Vem à fala. Respeito, senhores; quem sabe se estaremos na presença da  rainha das fadas? Esta nossa peregrinação, digna de um segundo Ariosto para  a cantar, precisava de uns jardins de Armida, eis aqui quem no-los vai abrir...

— Restos do terremoto, eu vos saúdo — disse um outro, tirando o chapéu  e vergando a cabeça.

— Coitada! Alguma pobre mendiga — disse Filipe, procurando já nas  algibeiras com que satisfizesse a que ele julgava indigente pela atitude que a  vira tomar aguardando-os...

— Em todo o caso, vejamos o que ela nos quer. Portemo-nos sérios para  lhe inspirarmos confiança. Está-me a parecer que se pode tirar partido disto.  

E, seguindo este parecer, todos guardaram silêncio e marcharam na maior  compostura.

Estavam finalmente na presença da velha. Era de fato de aspeto centenar;  engelhada, curvada e trêmula, mas ainda assim com certo ar de resolução.  

Logo que os viu chegar, dirigiu-lhes a palavra:

— Ora, Nosso Senhor venha na sua companhia!

— Amém! santinha, e que também esteja consigo.

— Ele está em toda a parte onde o procurem. Boa é a sua assistência, e a  da Virgem Nossa Senhora, e a do milagroso Padre Santo António, que nos  livre dos perigos e de trabalhos, de testemunhos falsos e de ferros de el-rei e  de maus vizinhos de ao pé da porta. Ora para bem os fade a sua sorte. Amém.
  
— Então veio fiar para o descampado? É melhor, são os ares mais livres  — disse Filipe, para desviar a atenção da velha do riso mal disfarçado dos seus  companheiros.

— Nada, não senhor, eu digo-lhe. O menino...

Desta vez os risos rebentaram.

— Olhem! Estão-se a rir por eu lhe chamar menino. E eles que são todos  para mim, que para um cento só me faltam quatro anos! Vejam os grandes  homens.

— Não faça caso, não faça caso. Deixe-os lá. Diga o que ia a dizer.

— Ah! perguntava eu se os... vá lá, senhores, se os senhores eram... criados  da sua majestade? Sim, porque ser criados dos reis não é baixeza nenhuma.  Um morgado da minha terra, fidalgo dos quatro costados e homem de teres e  haveres, pois senhores, deu um bom par de centos de mil réis para ser jovem  do paço, e pelos modos suas obrigações são as da mesma gente, mas aquele  ainda assim quer que lhe paguem para as fazer, por isso é que eu pergunto.

— Não se enganou, minha tia, — disse Rialva, fazendo um sinal aos  companheiros — eu sou estribeiro-mor da casa real, aquele monteiro-mor,  este copeiro-mor, camareiro-mor o outro, esmoler-mor...
  
— Vejam que graça! Pelo que estou ouvindo todos os empregos mores são  para os fidalgos, menos o de tambor-mor, que nesse tenho eu um neto, que é  um rapagão como uma casa.

De novo a seriedade dos ouvintes esteve para os abandonar.

— Visto que são o que eu suspeitava, sabem dizer-me se a rainha se  demorará ainda muito?

— Então queria vê-la?

— Vê-la? Não era só vê-la, é que lhe queria também falar.

— Falar-lhe?! Aqui?

— Aqui mesmo, sim senhor, e porque não?

— Então tem a pedir-lhe alguma coisa?

— E verdade que tenho. Tenho a pedir-lhe justiça.

— Justiça! — disseram admiradas algumas vozes do grupo. — E contra  quem?

— Isso basta que ela o saiba.

— Mas na estrada, boa mulher, a falar verdade, não é das melhores  ocasiões, — disse o major Samora, que tendo-se agora reunido ao rancho, de  que se separara, acabava de ouvir as últimas palavras do diálogo.

A velha voltou-lhe uns olhos desconfiados, e respondeu com certa aspereza:

— Para fazer justiça é sempre ocasião.

— Bravo! — disse o estudante da canção.

A velha, estimulada pelo sinal de aprovação, prosseguiu:

— Não é ocasião! tem graça. Nem que a gente não tenha mais que fazer  do que largar barcos e redes para ir ao palácio procurar sua majestade. E então  para quê? Para vir o senhor porteiro-mor, o senhor escudeiro-mor, o senhor  lacaio-mor, e nos mandar pôr fora sem que a rainha o saiba. Temos outro  com as justiças dos tribunais. Andar uma criatura num a barafunda de  escrivães e procuradores e letrados e testemunhas e jurados, e a gastar  dinheiro, e tanto mais ganha quem mais gasta, e tanto mais gasta quem mais  tem. Nada, não serve para mim. Aqui, no meio da estrada. Se me não  deixarem chegar à carruagem, ponho-me a gritar: Aqui-d'el-rei! aqui-d'el-rei e  veremos então o que vai. Forte coisa! Olha agora a grande dúvida!

— E assim, é assim, minha tia — diziam do lado alguns oficiais.

— Vamos cá a saber, tardará muito a rainha?

— Rialva, trocando um olhar com os circunstantes, apressou-se a  responder, fazendo por dissimular um certo ar de malícia, que olhos mais  exercitados que os da velha, poderiam reconhecer:

— Duas horas o mais tardar. Conhece-a?
  
— Nunca a vi, mas isso logo se tira, pouco mais ou menos. Sempre há de  vir vestida de modo que...

— Não, não — disse Rialva. — A rainha traja como qualquer outra  senhora; para além do mais como vem incógnita, nem acompanhamento traz.  Não vê que nos mandou adiante?

— Sim, sim. Mas então como há de ser?

— Olhe, daqui por duas ou três horas pouco mais ou menos, vendo  chegar duas carruagens com criados de casaco azul, botões de prata e colete  vermelho, e dentro da primeira uma senhora de meia idade vestida de verde  com xale e um chapéu branco...

— E ela?

— É ela. Acompanham-na talvez algumas mais novas, são damas do Paço.  Na segunda carruagem vêm os criados.

— E o rei e os príncipes?

— Esses vêm mais tarde, a cavalo, e com os generais. Não lhe disse já que  a sua majestade quis vir incógnita?

— Bem, bem.

 — E olhe lá. É provável que por isso mesmo ela se ponha a rir se  vossemecê lhe chamar rainha e o negue; mas teime e diga-lhe que vai pedir  justiça, que ela há de escutá-la.

— Isso fica ao meu cuidado. Então diz que daqui por duas horas?

— Duas ou três.

— Isto vai nas nove, — disse a velha, falando consigo e fitando as nuvens — com mais três, nove, dez, onze, doze. Meio-dia. Chega não chega, uma  hora; janta não janta são duas, às seis é noite. Não tem dúvida; uma vez não  são vezes. E isto como assim há de fazer-se. Ora então, muito obrigada, vão  com a nossa Senhora.

— Adeus, minha tia — disseram todos com a possível gravidade. — Deus  permita que se saia bem da empresa.

— Amém! amém!

E o alegre bando, despedindo-se da velha, que voltou a tomar a sua primeira posição, partiu a galope em direção a Braga.

Quando a considerável distância do sítio, onde esta cena se passara,  afrouxaram o passo às carruagens para pedirem a Filipe explicações sobre o  que ultimamente dissera à velha.

— Pois não compreenderam? É uma surpresa que preparei a minha mãe.  A minha mãe devia partir de Barcelos duas ou três horas depois de mim com   as meninas do Coural, minhas primas não sei em que grau, em casa de quem  tenciona ficar esta noite para depois de amanhã assistir em Braga à entrada da  rainha. Portanto, dentro de duas horas estará ela ouvindo uma reclamação em  forma dirigida por esta pobre velha, o que não pouco a há de divertir e às  priminhas.

— Mas que necessidade tinha você de enganar esta mulher? — disse o  major com um certo ar de amigável censura.

— Deixe lá, major, — disse um dos oficiais — o episódio deve ser  interessante, e aquelas senhoras devem agradecer-no-lo.

— Quem sabe o que esta pobre criatura teria a pedir à rainha?

— Se for esmola, não ficará sem ela, pedindo-a a minha mãe.

— Sim; mas se for justiça?

— E julga que irá mal encaminhada, se a minhamãe a guiar para obtê-la?

— Assim a julgue merecedora dela.

— Pois então, deixe correr, major. Pena tenho de não poder presenciar a
cena.


CAPÍTULO V

A HEROÍNA DESTE ROMANCE NA CASA DE CAMPO DE JOSÉ URBANO
  
A meia légua de Braga, Filipe de Rialva, o major Samora e os seus jovens  companheiros tiveram a surpresa de um feliz encontro.

Ao dobrarem um ângulo de estrada, que nuns sítios aqui e ali era povoada de  pequenas casas e vendas, como denunciando a vizinhança de uma grande  povoação, acharam-se frente a frente com uma personagem muito nossa  conhecida, José Urbano.

À ruidosa exclamação com que José Urbano saudou a cavalgada, rompeu  desta um coro unânime de brados, que nuns desafiava o conhecimento que  tinham do jovial negociante, e em outros o estranho costume de jornada de  que ele vinha revestido.

José Urbano montava uma égua corpulenta, mas não de raça apurada. Um  chapéu de palha de amplíssimas abas, preso por uma fita por baixo da barba,  um barrete preto subjacente que lhe defendia as orelhas de um leste em  perspectiva, que a sua ciência meteorológica prognosticava iminente; óculos  verdes, baluarte contra a invasão da poeira; guarda-sol minhoto, com honras  de barraca, mas o único que tem razão de ser; um capote de camelão, verdadeiro epigrama ao sol da Primavera; galochas capazes de arrostar com o  dilúvio ao lado da arca; alforges repletos, uma cabaça ao tiracolo, diante de si  uma trouxa e na garupa uma pequena mala; tal o conjunto de acessórios que  concorriam para o efeito prodigiosamente cômico do recém-chegado.

— Aleluia! — exclamou José Urbano, elevando para a testa os enormes  óculos verdes, que o incomodavam quase tanto como a poeira. — Aleluia!  Encontro enfim Aníbal. Juraria que me andavam a fugir, meus companheiros  de Vila Nova. Receiam-se da desforra que me devem ao voltarete. Inútil  trabalho. Ela é inevitável como os fados. Persegui-los-ei até os confins do  mundo. Mas de fato! Apresso os meus negócios em Barcelos para os  encontrar em Braga. Chego. Qual! Tinham-se evaporado. Acordaram uma  manhã com a febre de passear, e partiram para Barcelos! que eu acabava de  deixar justamente em companhia do correio que trouxe a Braga a notícia da  terminação do incêndio. Com os diabos! disse eu comigo. Os meus amigos  teriam praça assente nalguma companhia de bombeiros? Voltam agora a  Braga, quando eu estava em caminho da minha casa de campo.

— Eu iria jurar, meu caro José Urbano, — disse o major Samora — que  partia para a Sibéria. — O aspeto respeitável do seu equipamento...

— Permita-me que lhe diga, major, que essa observação desacredita um  pouco a reputação de homem experiente e cauteloso que merecia. Fie-se em  calores de Maio! Bom, bom. Olhe-me para aqueles riscos brancos do céu,  aquilo é leste, o impertinente, o endemoninhado leste. Eu nunca ouvi o sibilar  dos pelouros, meu caro Cipião, mas afianço-lhe que me não pode ser mais  desagradável que o do vento leste. Não o há assim.

— Nem o dos mosquitos? — perguntou um estudante.

— Nem esse. Os mosquitos matam-se, o leste... mata-nos. Bem vejo que o  capote lhes está causando sensação. O capote, meus amigos, é o mais útil  artigo de vestuário que desde a folha de figueira tem inventado o engenho do  homem. Conserva-me o calor no Inverno e a frescura no Verão. Os óculos  livram-me os olhos da poeira e conservam-me a vista. O guarda-sol, que os  espanta pela enormidade, abriga a minha pessoa e a bagagem dos ardores do  sol e das torrentes da chuva. A cabaça, meus amigos, contém o líquido que me  sacia a sede, ou me dá o calor para arrostar com o frio...

— Basta, basta, amigo José Urbano — interrompeu Samora. — Vejo agora  que sou imprevidente. Desse modo, tanto pode viajar pela Cítia fria como pela  Líbia ardente.

Esta observação do major foi festejada com uma estrondosa gargalhada, na  qual tomou parte José Urbano.

— Seja, — disse este, quando serenou a hilaridade — mas o fato é que os  meus amigos vão para Braga e eu para a minha casa de campo. Não importa.  Amanhã cedo cá estou de volta, e fiquem certos que me não tornam a fugir.  Cobardes! São militares, e fogem de um paisano desarmado!

E José Urbano, despedindo-se de Rialva e Samora, saudou a cavalgada, que  lhe correspondeu com estrepitosos hurras.

Daí a pouco entrava a cavalgada em Braga, e aquele grupo alegre e ruidoso  dispersava-se, levando todos gratas recordações da viagem de Barcelos à  capital do Minho.

Na manhã seguinte, véspera da entrada da rainha em Braga, passeava o major  Samora com alguns oficiais militares no campo de Santana, quando um  indivíduo bem-trajado, de idade avançada, mas de aspeto vigoroso, lhe foi ao  encontro com os braços estendidos, dizendo-lhe com o sorriso nos lábios:

— O Sr. major Samora já tão cedo por aqui?!

— Tão cedo? — disse Samora — pois o amigo José Urbano não sabe que  os militares se levantam ao toque de alvorada?

— E verdade, é verdade; mas quando se não está em serviço ativo...  Naturalmente não quis que o inimigo o surpreendesse na cama! Muito bem;  como o prometido é devido, aqui estou em cumprimento da minha palavra.  Mas diga-me, major, onde está hospedado?

— No quartel.

— Tem necessidade de estar hoje em Braga?

— Nenhuma. Os meus deveres estão cumpridos e só amanhã...

— Nesse caso quer-me fazer um obséquio?

— Quantos quiser, meu caro senhor.

— Há de vir jantar comigo.

— O pior é que o meu antigo camarada, o capitão Melo, já me havia  obrigado a prometer-lhe jantar com ele.

— O capitão pode esperar, não é verdade? — disse José Urbano,  voltando-se para o capitão, entre quem e ele existia a maior familiaridade. —  Pode até vir conosco também.

— Isso é que não, — disse o capitão interpelado — mas não quero  também privar o Samora do agradável passeio que lhe proporcionará o amigo  Urbano. Aconselho-te que vás, e amanhã será o meu dia.

— E não levas a mal?

— Essa é boa!

— As suas ordens, Sr. José Urbano. É longe?

— Um quarto de légua afastado de Braga. É um caminho excelente.

— Conta meia légua, Samora; o nosso amigo tomou os costumes da aldeia;  para ele não há longes.

— Isso também é com o meu cavalo.

— Então vamos! — continuou José Urbano — mas, major, não julgue que  pretendo com isto pagar-lhe os obséquios que me fez em Famalicão. Não,  senhor.

— Basta de agradecimentos por tão pouco; não falemos mais nisso.

E os dois dirigiram-se para o quartel, onde o major Samora residia; este  montou a cavalo; José Urbano tomou na alquilaria próxima uma possante  égua que ali dera a guardar, e partiram em direção à morada do negociante  bracarense, vivenda retirada da cidade na proximidade da estrada do Porto,  mas afastada dela mais de um quarto de légua.

— Então reside na quinta permanentemente?

— Não, senhor. Eu vivo em Braga, porque a isso me obriga o meu  negócio. Mas tenho há tempos a minha família fora da cidade, longe da qual,  por gosto, eu viveria também.

— É numerosa a sua família?

— Uma sobrinha apenas. Pobre rapariga. Eu sei que não é esta a vida a  que naquela idade se dirigem seus suspiros...

E os dois prosseguiram no seu caminho conversando acerca da agricultura, do  comércio, da indústria, de política, até avistarem a casa onde José Urbano   vinha descansar a miúdo das suas lidas comerciais.

Era uma agradável vivenda, circundada por um viçoso quintal todo orlado de  limoeiros, e onde florejavam as mais formosas japoneiras e magnólias de  algumas léguas em redor. Penduravam-se pelos muros festões virentes de  jasmins e balsaminas, em volta dos quais zumbia incessante um buliçoso  enxame de abelhas, atraídas pelos aromas suaves que se exalavam em torno.  Na extensão destes muros abriam-se sobre o caminho duas janelas de grades,  através das quais se descobria a abundante verdura daquele perfumado  recinto, e de fora se escutava já o murmúrio contínuo e monótono de uma  cascata, que derramava a frescura e a vida por toda aquela vegetação interior.  Respirava-se ali uma tranquilidade que deliciava o coração. O horizonte, que  rodeava esta pitoresca residência, era extremamente aprazível. Para qualquer  lado que as vistas se dirigissem repousavam sempre agradavelmente sobre um  ameno fundo de folhagem e verdores, onde se demoravam irresistivelmente,  seduzidas pela alegria e festa que se refletia por toda a parte. No meio do  repouso e silêncio que reinava em torno dessa habitação campestre, como que  se adivinhava a vida latente da natureza que desperta no raiar da Primavera, e  o azulado e tenuíssimo véu de nuvens da manhã, que o sol não dissipara ainda  de todo, era como a garça transparente que longe de disfarçar, realça a  formosura de certos rostos e o fulgor de certos olhos. Através daquele cendal  vaporoso pressentia-se sorrir a natureza, mais fascinadora ainda nos seus  trajos simples da manhã, que nas ostentosas galas do meio-dia. As ervas dos  silvados, ainda úmidas do orvalho, dispersavam em cambiante íris os raios de   luz, fulgindo como brilhantes nas suas mudanças contínuas, ou imitando o  fulgor do rubi, a amenidade da safira, e limpidez da esmeralda e do topázio; só  a Primavera tem destes encantos.

Digam o que quiserem das outras estações, nenhuma é tão agradável como  esta. A natureza é sempre admirável, é sempre artística, é sempre poética, mas  o caráter da sua poesia é variado. No Inverno é sublime e lúgubre como o  Manfredo, o Corsário, o Giaour e muitos outros poemas: Byron admira-se,  surpreende-nos, aterra-nos, faz-nos estremecer e mistura certo terror secreto  ao seu entusiasmo: é entre o ritmo das rajadas, as estrofes do mar agitado o  que caracteriza os seus hinos. No Estio é imaginosa, apaixonada, esplêndida,  lasciva, como um frêmito de Musset, como uma oriental, como um episódio  de D. João. No Outono transparece nos seus cânticos o que quer que seja de  utilitário, são os frutos sazonados pendentes das árvores, e das searas  maduras, que chamam o pensamento para os sérios problemas da vida, como  este gênero de poesia filosófica que entre as galas do estilo desenvolve um  pensamento moral e humanitário. Mas na Primavera a poesia da natureza é  destas composições fugitivas, em que tudo é harmonia e lirismo; abundam as  flores, multiplicam-se as imagens, nos lagos e ribeiros onde se reflete o céu,  nos ares onde os vapores se condensam fantasmagoricamente em pequenas  nuvens de formas tão variadas como as concessões de fantasia de poeta,  combinam-se surpreendentemente a luz e o orvalho como as lágrimas e os  sorrisos num a balada germânica.

O concerto das selvas compõe-se de gemidos e cantos, harmonizados em misteriosa consonância. A natureza é então como a donzela que só cura de  atavios e  enfeites, e se entrega descuidada à alegria do viver; refletem-se-lhe  desanuviados os sorrisos nos lábios inquietos, exalam-se-lhe do seio  irreprimíveis os suspiros de envolta com os cânticos, pulsa-lhe o coração  ansioso como se fosse excesso de vida. Mais tarde a maternidade tem também  sua beleza, mas há alguma coisa de melancólico nas alegrias de então; o  futuro, que à donzela fulgurava de esperanças, à mãe anuvia-se-lhe de  preocupações; o coração sobressalta-se-lhe de contínuo repartido por tantos  afetos. A natureza do Outono tem também o caráter grave da maternidade,  mas na Primavera só há a despreocupação da virgem.

Não sei se estes mesmos, se análogos pensamentos, suscitava ao major  Samora o belo espetáculo campestre que se gozava dali; é certo que parecia  não se saciar de correr com os olhos por aquele horizonte vasto e pitoresco, e  não participar da impaciência que manifestava José Urbano pela demora que  havia em lhe abrirem o podão, ao qual estava batendo havia cinco minutos.

Respondiam-lhe do interior os latidos formidáveis de dois cães, mas não se  observava o menor vestígio de uma existência.

— Onde estará metida esta gente? — exclamou José Urbano com  azedume notável.

O major nem deu fé da demora que assim exasperava o seu anfitrião.

Finalmente ouviu-se o estalar da areia do jardim: o ruído de uns passos ligeiros  e uma voz feminina, cujo timbre agradável e sonoro veio despertar o major da  sua contemplação extática, fez-se ouvir de uma das janelas do muro.

— Ah! é o padrinho! estava bem longe de o esperar aqui a esta hora —  disse aquela voz ao reconhecer José Urbano; e o major elevando a cabeça na  direção donde lhe tinham vindo aquelas palavras, pôde perceber, ainda que de  passagem, a forma elegante de uma rapariga que se retirava com agilidade.

— Abre, Micas, abre — disse José Urbano, cujo mau humor se  desvaneceu ao ouvir aquela voz. — Ainda não sei o que fez a Roberta a esta   ente toda! — E voltando-se para o major, acrescentou: — e a minha  sobrinha. Uma boa rapariguinha; coitada. — E suspirou.

Ouviu-se o correr de um ferrolho no portão do quintal, que girou sobre os  gonzos e se abriu aos recém-chegados, que se apearam rapidamente, e  recolheram os cavalos.

O major, com a amabilidade de um militar sensível aos encantos da beleza,  cumprimentou a gentil porteira, que meio enleada pelo inesperado da visita, se   ia sorrindo ao corresponder ao cumprimento.

— O meu padrinho é só o responsável da má recessão que o senhor tem.  Se me tivesse prevenido quando partiu de madrugada...

— Minha senhora — disse o major em tom jovial. — Va Exa há de  permitir que,  fazendo eu próprio a minha apresentação, lhe diga que tem na  sua presença um velho soldado, que dormiu muita vez no terreno e no  agradável leito das tarimbas, comeu o caldo pouco apetitoso do rancho, e  saciou muita vez a sede na água dos rios. Quando bato a uma porta a  demandar quartel, só peço o pão, sal e água, de que costumam rezar os  boletos.

— Nesse caso ganho ânimo, porque espero satisfarei a tão pouco exigente  peregrino; mas está-me parecendo que o padrinho não se satisfaz com tão  pouco.

— Não, Micas, pelo menos não te perdoo aquele pudding de batatas que  sabes cozinhar tão bem; o mais fica por conta de Roberta.

— De Roberta, sim! Quando a teremos nós cá!

— Como?

— Disse-me, depois do padrinho ter partido, que tinha que fazer na  cidade. Uma compra de linho ou estopa, ao que julgo. Ou é natural que  aproveite a ocasião para ver a rainha...

— A rainha? hoje!

— Pois não entra hoje em Braga?

— Amanhã.
  
— Disse-nos aqui a leiteira que entrou já ontem, e à Roberta afirmaram-lhe  que era hoje de tarde...

— Deixa afirmar. Mas então quem ficou em casa?

— Eu. Os criados foram para a lavoura.

— Só! — exclamou José Urbano com certo ar de censura e desagrado.

— Com estes — respondeu, voltando-se para ele sorrindo, a gentil  rapariga, ao passo que afagava a cabeça de dois enormes cães acorrentados  que, como se desejassem justificar a confiança que depositava neles, a  afagavam com humildade.

O major não disse palavra. Não se cansava de admirar a singeleza e graça da  interlocutora.

Para justificar esta contemplação admirativa do major, precisamos nós   também de esboçarmos aqui o perfil desta nova personagem da nossa história,  minudência cuja falta nenhuma leitora me perdoaria por certo.

E contudo a tarefa é de desanimar.

A HEROÍNA DO ROMANCE — A AÇORDA DO MAJOR

Não sei de maior dificuldade que a de descrever a heroína de um romance.  Tão pouca coisa basta para a desconceituarmos aos olhos da leitora!... Eu,  porém, sacrificarei à verdade algumas simpatias que poderia angariar a maior,  se a menosprezasse. Descrevo-a tal qual ela era. Em primeiro lugar começarei  por dizer que o modo porque ela trajava, realçava-lhe tudo que eram dotes  naturais.

Maria Clementina, sobrinha de José Urbano, era de uma configuração  elegante, na qual se observavam as regulares proporções que a arte não teria  decerto a corrigir. De um porte desafetadamente majestoso, inexplicavelmente  combinado a uma expressão de bondade insinuante e atrativa, havia no andar,  nas feições, na maneira de olhar, um ar de dignidade e de nobreza, que  intimidava os mais ousados. Um singelo vestido de riscado escocês adornado  apenas por um colarinho liso, e por uns punhos apertados por duas coralinas,  deixava-lhe sobressair todo o correto contorno daquelas gentis formas  femininas, de uma flexibilidade admirável. No rosto não havia aquela  combinação de rosas e neve, que para muita gente constitui o supremo grau  de beleza, e contudo não era trigueira, nem de uma alvura desmaiada dos tipos  alemães que tão frequentemente se combinam com cabelos ruivos, antipática  combinação; mas para lhes dar uma ideia daquele colorido encontro-me  gravemente embaraçado; a natureza concedeu àquelas tintas uma singular  influência sobre a fantasia do coração, empregou-as apenas em alguns rostos  de mulher, que exercem então um poder verdadeiramente magnetizador. Um  romancista português, e outros franceses, comparou uma dessas cores à da  pérola; e tem um pouco disto efetivamente, mas excede-a em beleza. Quanto  a mim considero-as as mais perigosas. Imaginem um rosto assim, animado  pelo cintilar de uns olhos negros, orlado por uma moldura de cabelos também  pretos, cujas ondulações naturais semelhavam elegantes ornatos; concebam a  mais bem modelada boca, cujos lábios, convenientemente grossos, agitava  incessante um mal percetível tremor, sinal evidente de uma exaltada  sensibilidade; suponham agora toda esta simpática cabeça, graciosamente  coberta por um largo chapéu de palha, que a assombrava de uma penumbra  de feitos óticos e fascinadores, e terão explicada a razão pela qual o major não  se fartava de fixar esta rapariga com os mais inequívocos sinais de uma sincera  admiração e decidida simpatia.

Caminharam todos os três por entre ruas orladas de arbustos que se  entrelaçavam, formando um toldo de folhagem, e cobertas de areia que fazia  sobressair a verdura matizada dos tabuleiros em que estava repartido o jardim.

José Urbano fazia notar ao major o desenvolvimento de algumas árvores  fruteiras, à afilhada a raridade de certas flores. E assim chegaram à entrada de  casa, que não desdizia do aspeto festival de toda a vivenda. José Urbano subiu  mais apressado os quatro degraus de pedra que davam entrada por a porta  envidraçada, e abrindo-a de par em par, disse, voltando-se para o major:

— Tenho a honra de o receber na minha casa, senhor major.

— E agora hão de me dar licença, o senhor major e o padrinho — disse a  elegante sobrinha do proprietário — que me retire para tratar do seu jantar.

— A falar verdade, minha senhora, eu preferia o pão do boleto, a privar-me do prazer da  sua companhia.

— Mas o padrinho é mais exigente. Não tem esses hábitos militares.

— Mas se nós esperássemos por a Roberta...?

— Não pode ser.

— Porém, Micas, a falar verdade tu só...

— Meu caro Sr. José Urbano, — disse o major em tom meio jovial —  estou tentado a fazer-lhe uma proposta...

— Qual é major?

— Receio que não ma admitam; mas desde já lhes declaro que mau é que  a  chegue a formular, porque sou teimoso.

— Vamos, major, diga. A Micas já está cheia de curiosidade. Repare...

— A falar verdade... Ainda quando não seja senão para ver como o Sr.  major é teimoso — observou esta sorrindo.

— Proponho que nós todos colaboremos no jantar.

— Essa agora! — disse José Urbano admirado.

— Pois o Sr. major também cozinha?
  
— Oh! minha senhora. Um militar precisa de saber de tudo um bocado;  pois deve afazer-se a contar consigo apenas. Tenho tido ocasião de cozinhar  para mim mesmo, de compor a minha própria roupa, e até de me  medicamentar.

— Confesso-lhe, Sr. major, que estava com a minha vontade de  experimentar o seu talento culinário.

— Pois com permissão aqui do seu padrinho, minha senhora, parece-me  que chegou a ocasião.

— Não, senhor, a minha permissão não pode...

— Meu caro José Urbano, você, que viajou também, deve saber alguma  coisa de cozinha. Eu pela minha parte prometo uma saborosa açorda, na  confeção da qual granjeei certa fama entre os meus antigos camaradas, que  também me diziam inimitável em manejar o espeto; e, se houver ocasião,  folgarei de lhes demonstrar que não sou indigno de crédito. E você que sabe  fazer, ó José Urbano? diga lá, ande, e vamos a isto.

— Confesso que nunca tive disposição para a cozinha.

— Nem se atreverá a fritar uns ovos com umas rodelas de salpicão? pois  eu creio que o fumeiro deve estar bem provido, hem?

— Não é por falta de materiais...

— E verdade que isto de fritar uns ovos ainda requer seu engenho e tato  culinário; no grau devido, é um prato delicioso, um pouco acima é detestável.  Mas eu vigiarei, vamos.

— Ora, o Sr. major está a gracejar.

— Basta-me saber — disse a sobrinha de José Urbano — que posso  contar com o seu auxílio em caso de maior urgência.

— Minha senhora, eu não lhe disse que era teimoso? É fama que tenho no  exército, e já agora não a hei de desmentir.

— Mas...

— Para outra vez...

— Não recuo, faço disto questão ministerial... O meu amor-próprio exige  que eu lhes faça apreciar as qualidades da minha açorda.

E o major, gracejando e rindo, de tal maneira insistiu, que os três acabaram  por passar todos para a cozinha às risadas e já sem o menor constrangimento.

O major era destas pessoas, cujo bom humor se comunica, e que põe à  vontade e nas mais joviais disposições as pessoas com quem se acha. Logo às  primeiras palavras que se tivesse com ele cessava todo o constrangimento, e  estabelecia-se uma familiaridade e sem-cerimônia, como um amigo de longos  anos.

O próprio José Urbano participava daquela alegria e arregaçava as mangas do  casaco, preparando-se para a tarefa culinária às ordens do seu comensal.

Maria Clementina assistia rindo com vontade a toda aquela azáfama dos dois.

O major era admirável de atividade. Tomara posse do terreno e não se  mostrava constrangido.

— Minha senhora — dizia ele, voltando-se para a afilhada de José Urbano  — porá Va Exa à minha disposição um fornecimento de água, pão, sal, azeite,  vinagre, pimenta, alho, cravo, cebola, salsa, salpicão e toucinho.

— Misericórdia, major... Tenha misericórdia dos nossos estômagos... Os  desgraçados não resistem a essa metralha.

— José Urbano, você não sabe o que diz. Não há tônico mais eficaz do  que a açorda preparada assim! Verá, verá.

— Pode satisfazer a minha requisição, minha senhora?

— Prontamente.

— Bem; agora, José Urbano, vai você empunhando essa sertã para logo, e  partindo os ovos já...

— Confesso-lhe que é uma tarefa melindrosa. Partir ovos!

— Que pusilânime! Homem, é assim! — E com a maior presteza, o major  prelecionava praticamente o seu hospedeiro, que ria a bandeiras despregadas.


— A Va Exa declaro-a emancipada da minha tutela e livre em todos os  seus movimentos.

— Ainda bem — disse José Urbano — quando não, recearia pelo destino  do nosso jantar.

— Homem, não faça injustiça à experiência da vida de campanha.  Prometo-lhe que se há de lembrar com saudade da minha açorda.

Na cozinha ia uma desusada animação. Parecia que se preparava um banquete,  esplêndido. O major, de per si só, fazia mais ruído que meia dúzia de  cozinheiros. E com uma gravidade, que Maria Clementina não podia ver sem  se perder de riso, mexia e remexia a açorda, que exalava um cheiro apetitoso, e  de vez em quando ia vigiar o trabalho de José Urbano, que ele empregara a  bater uns ovos, aos quais associara uma quantidade de ingredientes. José  Urbano executava fielmente as ordens do major, e havia um quarto de hora  que estava batendo os ovos com um escrúpulo e regularidade admiráveis.

Ao meio-dia, graças aos esforços combinados dos três, o jantar foi declarado  completo, e José Urbano, que observava os costumes patriarcais folgou ao  antever que não seria alterada a sua hora do costume.

Enquanto o major dava a última demão à sua decantada açorda, Maria  Clementina pôs a mesa, à qual deu um ar festivo, graças às flores com que a  adornou: e José Urbano, descendo à garrafeira, foi procurar o mais precioso  vinho de que ela constava. No entretanto o major apareceu na sala de jantar,  junto de Maria Clementina.

— Pois já está posta a mesa! — exclamou ele ao entrar na sala.

— E eu que vinha para a ajudar!

— Mil vezes agradecida; mas o coronel...

— Assim me despacha já, se os ministros lhe quiserem honrar a palavra.

— O Sr. major, queria dizer, foi apenas justo para o serviço da cozinha.

— Há de fazer-me a honra de provar a minha açorda, não é verdade?

— Decerto. E parece-me poder já assegurar que há de estar deliciosa.

— Não me queira mal pela minha impertinência; mas é gênio meu...

— Querer-lhe mal! Se eu lhe assegurar que há tempo que não rio como  hoje... O Sr. major conseguiu fazer-me esquecer por algumas horas as  mortificações da minha vida.

— Pois também tem mortificações? — perguntou-lhe o major com um  carinho que a maior parte das pessoas que o conhecessem lhe estranhariam,  ouvindo-o.

— E pergunta-mo?

— E duvido-o. Chama mortificações a quê? Desgostos por o padrinho  não viver aqui, saudades de alguma amiga mais íntima, zangas pela rabugice da  sua criada, a doença de algumas das suas pombas mais bonitas... pretextos  para mostrar mais uma maneira de serem belos esses bonitos olhos que tem.

Maria Clementina sorriu a este galanteio do velho militar; mas através deste  sorriso descobriam-se uns longes de tristeza.

— Se o major soubesse o motivo porque eu vivo triste, talvez, longe de me  estranhar a tristeza, se admiraria ainda de me ver sorrir... as vezes.

— Ora adeus. Não é difícil penetrar no seu segredo. Perdoe dizer-lho.  Afinal é o segredo dos... vinte anos... não é essa a sua idade?

— E — disse Maria Clementina, corando e desviando os olhos do major.  — Mas ainda não adivinhou tudo.

Nisto ouviram-se passos no corredor, e a conversa, com aprazimento de  Maria Clementina, foi interrompida por José Urbano, que voltava da sua  excursão à garrafeira, exclamando ao entrar na sala:

— Major! Eu cá sou nacional. Porto e Madeira.

— Apoiado, Sr. Urbano. Eu secundo o seu patriotismo.

E sentaram-se todos os três à mesa. José Urbano, contente e jovial; o major  fazendo as despesas da conversa com anedotas que faziam rir até às lágrimas o  negociante, e assomar um sorriso aos lábios de Maria Clementina, que, da  curta conversa que tivera com o major, conservava uns vislumbres de   melancolia.

A açorda preparada pelo major teve um efeito monumental. José Urbano  declarou-a a mais deliciosa comida que na sua vida tinha provado. E não  obstante ao princípio não poder eximir-se em fazer uma careta, abrindo a  boca para minorar o excesso dos condimentos, depois de costumar o paladar,  reclamava repetições com uma insistência, que lisonjeava um pouco o orgulho  do major.

— Bravo, major! Já vejo que o cheiro da pólvora apura e aperfeiçoa o  paladar. É deliciosa!

— Mais outra vez, Sr. José Urbano.

— Vá mais outra.

— Tenha cautela, meu padrinho, que lhe não vá fazer mal. E tão forte!

— Deixe, minha senhora, isto dá tom ao estômago. E com um cálice de  Madeira por cima... Va Exa é que não lhe é afeiçoada.

— Estava excelente, Sr. major. Bem viu que comi.

Aqui para nós, a sensação que a açorda deixara em Maria Clementina não era  das mais favoráveis ao talento culinário do major.

Reinou em todo o resto do jantar a mesma jovial animação com que começara  a manhã. O major fez um brinde a Maria Clementina, José Urbano outro ao  major; este outro a José Urbano, ambos um a sua majestade; o comerciante ao  exército, o militar outro ao comércio; e estavam no seu undécimo brinde,  quando se ouviu bater à portaria duas grandes argoladas.


CAPÍTULO VI

A VISITA INESPERADA 

O som estridente das argoladas no portão da casa determinou, por alguns  momentos, completo silêncio na sala, e os três convivas, olhando-se  interrogativamente, como que se perguntavam — quem será?

— Já sei. É a Roberta — disse Maria Clementina, respondendo à  interrogação tácita dos dois. — Ninguém senão ela podia entrar no quintal.

E levantando-se chegou à janela, cuja vidraça correu para ver quem batia.

— É você, Roberta?

— Sou eu, menina, sou eu — respondeu uma voz de mulher, na qual se  notava um evidente cansaço. — Ai que venho mais morta que viva! Depressa,  faz favor de atirar cá abaixo a chave da portaria, e abrir a sala das visitas...

Pois quem vem lá?

— Uma senhora de carroça, para visitar a menina.

José Urbano levantou-se sobressaltado.

— Uma senhora!

— Mas quem é? — perguntou Maria Clementina, igualmente admirada.

 — Depressa, menina, depressa, que está à espera.

— Mas que senhora é? — insistiu Clementina.

— Eu não conheço — respondeu Roberta, já impaciente — mas ande  depressa, pelo amor de Deus.

Clementina voltou para dentro a procurar a chave da portaria.

— Diz que é uma senhora que me procura.

— Mas quem pode ser? — perguntou José Urbano, admirado.

— Ignoro-o.

E deitando a correr com uma graciosa agilidade, foi buscar a chave que  Roberta lhe pedia.

José Urbano chegou à janela, e dirigindo-se a Roberta:

— Ó Roberta, quem é que vem lá?

A criada ouvindo a voz do seu amo, estremeceu e mostrou-se profundamente embaraçada.

— Pois o Sr. José Urbano... Boa te vai! Então o senhor... olhem os meus  pecados!... Pois na verdade... Em nome do Padre... Então que quer isto  dizer!... Temo-la travada!

E continuava resmungando como se a presença do amo a contrariasse.

— Responde: quem é que vem lá?

— Aí tem a chave — disse Maria Clementina, atirando-lha pela janela e  voltando para ordenar a sala das visitas.

A velha não esperava por mais nada; sem atender ao seu amo, fugiu com uma  ligeireza de que ninguém julgaria capazes as suas pernas estropiadas.

— Roberta, ó Roberta! demônio de mulher.

O major, que nesse tempo se aproximara da janela, fez um movimento de  surpresa ao observar a mulher que corria em direção ao portão.

— Ah! é aquela a sua criada?

— E, uma velha já meio tonta e teimosa, mas, coitada, conheceu-me  pequeno. Veja, major, a idade que ela terá.

O major calou-se. O motivo da sua surpresa fora o ter reconhecido na criada  de José Urbano a velha que ele e o seu jovem companheiro Rialva tinham  encontrado no dia antecedente na estrada, e que lhes perguntou pela chegada  da rainha.

— Mas quem poderá ser? — perguntou a si próprio José Urbano. — Uma  senhora que procura a minha sobrinha!

Durante este tempo passeava Maria Clementina na sala de receção, igualmente  preocupada em saber quem seria a pessoa que a procurava.


Desde que Maria Clementina vivia no campo, raras tinham sido as visitas que  recebera; por isso a surpreenderam as palavras de Roberta, e mais ainda a  expressão da sua fisionomia, na qual se lia um certo espanto inexplicável.  Absorvida por estes pensamentos, a sobrinha de José Urbano desceu ao  jardim a receber a sua desconhecida visita.

Não esperou muito tempo. Roberta assomou pouco depois à entrada de uma  das ruas que conduziam ali, e após ela uma senhora de meia-idade  magnificamente vestida e com certo ar de nobreza e dignidade, que revelavam  distinção.

Maria Clementina foi ao seu encontro.

Roberta, colocando-se por detrás da recém-chegada, a quem tributava  extremas atenções, fazia sinais telegráficos a Maria Clementina, que esta não  podia entender, o que cada vez mais a embaraçava, pois nada lhe recordava as  feições da senhora que pretendia visitá-la.  

— Não sei a quem nem ao que devo a honra desta inesperada visita, mas   em todo o caso é-me sumamente agradável receber uma tão lisonjeira  distinção — disse Clementina, aproximando-se da senhora, cuja fisionomia  denotava um ar de bondade simpática e atraente, que dispôs o ânimo de Maria  Clementina no seu favor.


— Minha senhora — disse a recém-chegada, fixando em Maria Clementina  um olhar penetrante — ainda que lhe pareça estranha a minha visita, peço-lhe  que me dispense de a explicar enquanto não estivermos mais à vontade.

— Essa é boa — disse Clementina, sorrindo. — Se Va Exa até não quiser  dar-me explicações algumas, não serei eu por certo que me atreva a pedir-lhas.  Quer ter a bondade de entrar?

— Se o ordena? Mas para falar verdade, se lhe não fosse incómodo, aquela  rua de romãzeiras tem uma sombra convidativa...

— Como Va Exa quiser.

E as duas desviaram-se na direção da rua de romãzeiras.

Maria Clementina, cada vez mais admirada da estranheza da visita; a senhora  idosa envolvendo-a nos seus olhares vivos e penetrantes.

Roberta, ao afastar-se delas, pôde obter oportunidade de dizer a sua ama em  tom enigmático:

— Cautela! trate-a com muito respeito! Eu depois lhe direi...

Maria Clementina estava vendida, como vulgarmente se diz. Estranhava os  modos da criada pelo menos tanto quanto o inesperado da visita.

— Quer dar-me o seu braço? — disse a Clementina à senhora, cuja visita  tanto a preocupava.

— Com todo o gosto.

E as duas mulheres penetraram, assim juntas e silenciosas, durante algum  tempo, pela copada rua do jardim. Chegaram à extremidade oposta à rua,  onde, junto de uma pequena fonte, havia um convidativo banco de cortiça  assombrado por um toldo de trepadeiras.

— Quer-me fazer o favor de se sentar aqui comigo?

— Com muito prazer.

A desconhecida, tomando então as mãos de Maria Clementina, disse-lhe com  um tom meigo e afetuoso:

— Sabe que me está inspirando muita simpatia?

— Oh! minha senhora...

— Quero enfim dizer-lhe o que me trouxe aqui. Eu sou de Lisboa.

— Ah! de tão longe!? — exclamou Maria Clementina, para dizer alguma  coisa.

— E verdade. E havia muito que desejava conhecê-la.

— A mim!? em Lisboa...

— Admira-se?

— Não sei como Va Exa me pudesse conhecer num a terra, onde ninguém  me conhece.

— Ninguém?

— Decerto. A minha única família resume-se no meu tio, que vive comigo.

— Mas algumas amigas...

— Amigas! Engana-se Va Exa; eu não tenho amigas.

— Diz-me isso com um ar de descrença, que é de estranhar num a menina  tão nova.

— Há pessoas para quem a experiência é prematura.

— Santo Deus! que desconsoladora dúvida! Ora vamos, quer-me parecer  que é menos justa nesse seu ceticismo.

— Não chame a isto ceticismo, minha senhora; graças a Deus, eu tenho a  amizade do padrinho.

— Só?!

— Tem razão; era injusta. E a da minha criada Roberta.

— E a de mais ninguém? Parece-me que ainda mais uma vez terá de  reconhecer a sua injustiça. Em Lisboa alguém existe que a estima.


— A mim? — perguntou Maria Clementina, corando enleada sob os  olhares da sua interlocutora.

— E é dessa pessoa que eu lhe queria falar.

— Va Exa?

— Eu, sim. Quer ser franca comigo?

— Eu? Mas...

— Ouça-me. Uma das minhas amigas tem um filho oficial no exército.

Maria Clementina sobressaltou-se a estas palavras.

— No ano passado — continuou a senhora — este rapaz, que é meu  afilhado, e por quem eu me interesso muito, passou algum tempo em Braga  em serviço. Quando voltou a Lisboa, por diligências da mãe, ia preocupado e  triste. Estranhavam-no todos que o tinham conhecido o mais alegre, e direi  mesmo, estouvado rapaz da capital. A mãe dele, sobressaltada no seu coração  materno, escreveu para alguém do seu conhecimento, residente aqui próximo, e a carta que obteve... Quer-me fazer o favor de a ler? — continuou a senhora  idosa, oferecendo uma carta a Maria Clementina. — E neste ponto...

— Mas para que hei de eu... — dizia Clementina, tremendo e estendendo  quase involuntariamente as mãos para aquela carta: apesar da sua turbação  lançou-lhe os olhos, e pôde ler as seguintes linhas:

«Quanto ao que me perguntas a respeito do teu filho, colocas-me em sérios  embaraços; pois não sei se o mau pensamento lisonjeará demasiado a tua  vaidade maternal. Em todo o caso, eu com a franqueza que sempre me  conheceste, dir-te-ei que, a meu ver, o teu filho Filipe é digno de censura...»

As mãos de Maria Clementina tremiam cada vez mais ao ler estas palavras;  vencendo a sua comoção prosseguiu:

«Há tempos que a sua assiduidade junto de uma menina destes lugares havia  sido notada; no dia da sua partida uma imprudência dele sacrificou a  reputação daquela que inocentemente confiara nele e...»

Maria Clementina devolveu a carta que estava lendo.

— Entendo, minha senhora — exclamou ela com a voz alterada e com as  faces tingidas de um vivo rubor. — Va Exa sabe que eu sou a pessoa assim  caluniada, não é verdade?

— Sei.

— E então com que fim me procurou? — prosseguiu Maria Clementina  com certo tom de amargura.

— Para lhe assegurar que a mãe de Filipe de Rialva, ao receber esta carta,  comoveu-se, e que, por secreto pressentimento, acreditou na pureza da  mulher que uma imprudência do seu filho assim sacrificara; que ela me pediu que se pudesse encontrá-la, lhe assegurasse isto mesmo, e que lhe transmitisse  um beijo, que eu espero me não recusará.

— Oh! minha senhora! — exclamou Clementina, verdadeiramente  comovida.

E as duas mulheres por muito tempo confundiram seus beijos e as suas  lágrimas.

— Ora agora — continuou afinal a senhora de Lisboa — faça-se justiça a  todos. Filipe ainda não é tão culpado, como nesta carta se diz. Ele, quer-me  parecer, ainda se não esqueceu da menina.

Maria Clementina abanou a cabeça em ar de dúvida.

— Oh! não faça esse movimento que se não quadra com esses olhares tão  cheios de confiança, com uma expressão de lábios, que, mesmo contra sua  vontade, se conformam num sorriso. Não seja desconfiada. Sobretudo não me  fique odiando Filipe... não?

Desta vez o sorriso de Maria Clementina tinha outra significação.

— Odiá-lo! — dizia-lhe, baixinho, o coração. — E julgam necessário  recomendar-me que o não odeie!

Ora, apesar do coração falar tão baixo, não sei que admirável acústica era a  senhora lisbonense que o percebeu, e aproximando-se de Maria Clementina  disse-lhe com voz afetuosa:

— Ainda o ama, não é verdade? Diga-me que sim.

Maria Clementina corou e calou-se.

— Bem, bem, este rubor é também uma resposta. Adeus. Permite-me que  volte a visitá-la?...

— Quando Va Exa quiser.

— Agora retiro-me.

— E nem ao menos há de descansar na nossa casa?

— Se me dispensa...

— O meu padrinho há de sentir.

— Quê! pois não está só? Tinham-me dito...

— O meu padrinho chegou, sem ser esperado, com um amigo que jantou  conosco. Eles lá vêm ao nosso encontro.

A senhora de Lisboa seguiu com os olhos a direção em que apontou Maria  Clementina, e não pôde disfarçar um movimento de espanto ao reconhecer o  major.

— O Sr. Clemente Samora aqui?

O major pela sua parte parecia tê-la também reconhecido, e não mostrava  menor estupefação.

— Longe estava eu de esperar encontrar Va Exa neste lugar, Sra. D. Joana.

— Não menos alheia estava eu ao prazer do seu encontro, major.

José Urbano, depois de cumprimentar, segundo a etiqueta, a dama  desconhecida, voltou para sua afilhada e para o major olhares interrogadores.

— Para evitar-lhes o incômodo de uma apresentação, eu própria me  apresento — disse ela, olhando para o major de uma maneira particular, como  se lhe quisesse recomendar o silêncio.

— Va Sa é, segundo julgo, o tio desta menina, não é verdade? — disse D.  Joana, sorrindo-se amavelmente para José Urbano.

— As ordens de Va Exa aqui e em toda a parte. José Urbano, negociante  em Braga.

— Muito bem, Sr. José Urbano. Pois eu sou de Lisboa, e aproveitei a vinda  da rainha para visitar o Minho, que há muito tinha desejos de ver. Ao  despedir-me de algumas minhas amigas em Lisboa recebi de uma a  incumbência agradável de procurar esta menina para lhe assegurar da parte  dela que, apesar da ausência, sempre a teve presente no coração. O acaso fez  com que eu na estrada encontrasse a sua criada, de cuja conversa vim a saber  ser aqui a morada de quem eu procurava, e resolvi por isso cumprir  imediatamente a minha comissão. Agora retiro-me, mas já autorizada para  voltar a visitá-la pela minha própria conta, se o Sr. José Urbano se não opõe...

— Oh! minha senhora! Va Exa honra-nos muito com a sua visita.

— O major fica?

— Vinha também despedir-me desta menina, e se Va Exa quiser aceitar a  minha companhia...

— Porém, o major vai para Braga, e eu fico em casa do Visconde de P...

— Pessoa de bem — disse José Urbano ao ouvir este nome. — Mas o  major pode acompanhar Va Exa até perto da quinta do visconde, sem torcer  muito caminho.

E José Urbano, profundamente conhecedor da topografia do lugar, indicou ao  major Samora o itinerário que devia seguir.

— Então até breve... É verdade; quer-me fazer o obséquio de aceitar um  lugar na minha carruagem para vermos amanhã a entrada da rainha? —  perguntou D. Joana, voltando-se para Maria Clementina.

— Peço a Va Exa que me dispense de aceitar tão lisonjeiro favor; mas não  me agrada o tumulto.

— Basta; eu também prefiro falar-lhe mais com sossego. Adeus.

E aproximando-se de Maria Clementina beijou-a afetuosamente, dizendo-lhe  ao mesmo tempo: 

— É verdade, peço-lhe que não dissuada a sua criada das ideias que formar  ao meu respeito.

O major Samora, ao ajudar D. Joana a subir para a carruagem, estava  pensativo, e olhava para Maria Clementina de um modo particular.  

— Entre, major. O André que lhe conduza o cavalo até ao sítio onde teremos de nos separar.

E depois de fazer um último sinal de afetuosa despedida a Maria Clementina,  cortejar José Urbano, e ter enviado a Roberta, que se desfazia em mesuras, um  gesto particular, deu ordem de partir, e em pouco tempo a carruagem se  afastava do lugar.

— Parece uma excelente senhora — disse José Urbano, fechando a porta.  — Mas de quem te trouxe ela visitas, Micas?

— Ah!... — respondeu Maria Clementina, turbada — da filha do juiz de  Direito, que se retirou o ano passado.

Em todo o resto da tarde Maria Clementina mostrou-se preocupada.

José Urbano passeava no quintal, examinando minuciosamente o estado dos  enxertos, o adiantamento dos renovos, e limpando os alegretes com a  solicitude de um horticultor de vocação.

Maria Clementina permaneceu imóvel, encostada à varanda, seguindo com os  olhos o volutear das andorinhas no espaço, nessa posição cheia de languidez e  poesia de mulher de vinte anos que sonha. O sonhar nesta idade é uma das  variadas manifestações do amor e a mais ideal, a mais pura, e mais sublime.  Pensa-se antes que o coração tenha decifrado o enigma proposto, antes que o  amor tenha recebido uma solução real. E o estremecimento da alma,  precursor de uma vida nova. Após uma longa viagem, e depois de flutuar  suspenso entre o céu e o abismo no mar, o nauta, encostado um dia à  amurada do navio, estendendo os olhos pela amplidão das águas, sublimes de  mais para lhe bastarem por muito tempo ao coração, e procurando ao menos  nas nuvens um simulacro de montanhas, lagos fantásticos, campinas e  florestas, sente que o vento, que lhe agita os cabelos e que sibila pelas  enxárcias, o perfuma de fragrâncias suaves; que lhe recorda a terra porque  suspira, e que lhe anuncia prazeres que ainda não vê. Então aspira com  sofreguidão estas brisas, que roubaram às flores os seus perfumes, e deixa-se  cair num a contemplação extática, imaginando os bosques e os vergéis da terra  de que se sente próximo.

Na vida há uma situação idêntica, em que também a atmosfera nos vem  perfumar de misteriosa fragrância, e em que ao aspirá-la sonhamos venturas e  esquecemos os dissabores de viagens empreendidas. É a aurora do amor;  quadra de devaneios e fantasias, em que a vida do coração começa e exerce  sobre nós o seu mágico influxo.

Maria Clementina estava naquele momento num a dessas situações. O que lhe  estaria a fantasiar a imaginação? Imaginem as leitoras.
  
E tão absorvida estava naquele seu íntimo cismar, que nem dava pela presença  da sua criada Roberta, cujo entrar e sair, e ruído que de propósito fazia, tinha  o que quer que fosse de suspeito, e noutra ocasião teria já evidentemente sido  notado por ela.

Roberta acabou de se convencer que não conseguira tomar-se notada; por  isso, aproximando-se de Maria Clementina, dirigiu-lhe a palavra.

— Então diga-me cá, menina, que lhe pareceu a visita daquela senhora?

Maria Clementina olhou para a criada com certo sobressalto, como se aquelas  palavras a desviassem, mau grado seu, de um agradável meditar.

— Que me havia de parecer, Roberta? Uma delicadeza daquela senhora,  que assim quis ter um incômodo pela minha causa.

— Sabe quem ela é? — perguntou Roberta com certo ar de mistério.

— Uma senhora de Lisboa.

— Mas que senhora?

— Que senhora?! Não entendo a pergunta.

— Sim; pergunto eu se sabe quem é aquela senhora?

— Eu, não.

Roberta tomou-se cada vez mais misteriosa; foi à porta observar se alguém a  escutava; depois aproximou-se de Maria Clementina, e disse-lhe em voz baixa:

— Quer que lhe diga quem ela é?

— Diga lá.

— E promete segredo?

— Prometo — respondeu Maria Clementina, sorrindo ao lembrar-se da  recomendação  de D. Joana.

— Pois olhe; mas não se assuste, nem diga nada ao padrinho.

— Mas então quem é?

— É a rainha!

— A rainha? Ah! ah! ah! — disse Maria Clementina, não podendo reter  uma  gargalhada.

— Olhem! E a menina ri-se! É o que eu lhe digo.

— Então era a rainha?

— Era, sim, senhora, era. E sabe quem a trouxe aqui?

— Eu não.

— Fui eu.

— Ah! Então você tem esse poder sobre a rainha?

— Ora escute.

E Roberta, com toda a familiaridade, puxou uma cadeira para junto de Maria  Clementina e prosseguiu:

— Aquela história do alferes...

— Roberta! já lhe disse que não queria que me falasse mais nisto.

— E não tenho falado. Agora, o que eu não podia era deixar de pensar  também. Que quer a menina? Eu vi-a nascer, assim como vi nascer a  mãezinha, e já que não pude dar àquela as venturas que lhe desejei sempre,  disse cá de mim para mim: Esta não há de ter uma sorte infeliz, ao poder que  eu possa.

— Mas a que vem isso agora, Roberta?

— A que vem? Ora escute. Aquela doida da leiteira veio-nos aqui dizer que  a rainha chegava ontem. Quando ela me disse aquilo, eu pus-me cá a malucar.  
A rainha é rainha. Ela é quem manda e governa, os outros têm de lhe
obedecer. Se eu lhe contasse tudo...

— Se lhe contasse o quê, Roberta? — exclamou Maria Clementina com  certa inquietação.

— Tudo. A história do tal alferes.

— Roberta!

— Ora valha-me Deus, menina. Com esses escrúpulos não se faz nada de  jeito. Se eu tivesse estado com a menina em Braga, eu me acautelaria; assim ao  menos vamos a remediar o mal. A rainha dizem que é boa senhora. Se eu lhe  fizer constar que, por causa de um alferes, as más-línguas se atreveram a  murmurar da mais virtuosa menina que eu tenho conhecido, ela há de tomar  as suas medidas e remediar tudo.

— Você tem coisas, Roberta!

— Diga-lhe que sim. Eu o que não tenho são papas na língua. Sabe a  menina que para dizer a verdade, tanto a digo diante dos reis como dos da  minha igualha. Já uma vez fui jurar como testemunha de dizer o que sabia, e  até o juiz disse que eu era uma mulher desenganada. Eu cá sou assim. Pedi-lhe  ontem licença e fui-me pôr na estrada à espera da rainha. Bem podia esperar  até pela manhã. Passou este senhor general, que cá jantou hoje; quando me  lembro como a menina cá se arranjou sem mim, ainda me benzo; o que valeu  é que ele é um homem como se quer, e o padrinho estava hoje de boa maré. Ainda assim! Mas não tem dúvida, ainda que tivesse de cair a sé, por bem  empregado dava eu o meu tempo... Mas como ia dizendo, passou este senhor  e um rapazote novo, e foram eles que me disseram que a rainha só chegaria  daí a duas ou três horas, e até me deram os sinais certos para eu a conhecer.  Esperei, esperei e por fim sempre apareceu: conheci-a logo.

— Ah! então conheceu-a?

— Conheci logo. Vi a carruagem e disse com os meus botões: E aquela.  Vinham dois criados a cavalo atrás e outra carruagem com senhoras também.  Não trazia estadão, porque, como me disse o tal rapaz, ela viaja... viaja... ora  como disse ele?... Era assim uma coisa como em cólicas, mas que vinha a dizer  que viajava sem estrondo. Cheguei-me à carruagem, apesar do sinal do  boleeiro, e ela ao ver-me fez logo sinal para parar. Atenciosa é ela com os  pobres, Deus Nosso Senhor lho pague.

Maria Clementina ouvia com curiosidade a narração desta aventura da criada.

— Qual de V.^ Ex.^ é a rainha? — disse eu para as três senhoras que iam  dentro, apesar de logo ver que havia de ser a mais idosa. As mais novas  desataram a rir... como a menina ri também... não sei porquê. Lembrou-me  que seria por eu não dar o tratamento que devia e emendei a tempo: Qual das  vossas majestades é a rainha? As outras riam ainda... Eram uns galos  dourados, coitadinhas, nem por estarem diante de quem estavam!... Raparigas.  Mas a senhora então, tocando-lhes com o cotovelo, disse muito séria,  voltando-se para mim:

«— Sou eu; por quê?

— Ah! eu logo vi, ora primeiro que tudo seja vossa majestade muito bem- vinda a esta sua terra, onde tem muitos amigos. O meu amo fala muito no  paizinho da vossa majestade. Ora muito bem. Vossa majestade há de ter  pressa; mas é que eu sempre lhe queria pedir...

A rainha julgou que era esmola, pois já ia a meter a mão ao bolso...

— Em cortesia — disse eu, que a percebi — não é isso que eu peço, é  justiça.

— Justiça! — disse a rainha, tomando-se logo séria. — Fale, fale... quem  lhe fez mal?

— Eu lhe conto, não foi a mim verdadeiramente, mas... e o mesmo que se  fosse, se fui eu que a trouxe ao colo...

— A quem? — perguntou a rainha.

— À minha menina!

— Roberta — disse Maria Clementina, interrompendo-a — você não tem  juízo! Ir assim, diante dessa gente toda, falar em coisas das quais eu já lhe  tinha proibido de dizer uma palavra mais!

— Ora venha cá ensinar-me como as coisas se fazem! Cuida que me pus  mesmo agora a tagarelar para quem me quisesse ouvir. Era o que faltava. Eu  disse à... à rainha: se a vossa majestade quiser ter o incômodo de se chegar  aqui, eu conto-lhe tudo. Ela chegou à porta da carruagem, e eu disse-lhe tudo  ao ouvido.

— Tudo o quê?

— Contei-lhe que, estando eu na quinta e o padrinho no Porto, a menina  fora para o convento. Que foi por ocasião do Saldanha andar por cá e que  deixara ficar em Braga um tal alferes, que inquietou a menina; porquanto  enfim, como eu disse à rainha, quando a gente é nova o coração é o coração, o  sangue ferve...

— Jesus, meu Deus! que mulher esta! — exclamou Maria Clementina,  corando.

Roberta não atendeu à interrupção, e continuou:

— Que depois a viu em casa do Sr. Domingos Pedral, e que na noite em  que o tal alferes tinha de partir para Lisboa, foi falar com a menina ao jardim  do Sr. Pedral, onde a menina estava. Asneira, como eu disse à rainha, em que  se eu lá estivesse, a não deixaria cair. E logo então com tanta infelicidade, que  ao saltar o muro foi visto por um grupo de estudantes que dobrava uma  esquina, e o mesmo foi verem-no eles que vê-lo toda a cidade, a qual já falava  nestes amores há muito. No dia seguinte, a reputação da menina andava já por   essas bocas do mundo; as delambidas das freiras puseram-se a fazer biquinhos  à volta da menina para o convento. E eu e a quem contaram isto fomos  buscar a menina para a quinta, porque, graças a Deus, a sobrinha do Sr. José  Urbano não precisa dos favores de ninguém. Disse-lhe que o Sr. José Urbano  chegara aqui a Braga espavorido, mas que depois de falar com a menina ficara  manso como um cordeiro, e nunca falara mais nisto.

— Sabe, Roberta, que se o meu padrinho soubesse o que você fez havia de  ficar muito satisfeito! Não viu como ele lhe ordenou que nunca mais falasse  em tal?

— Pois sim; com esses escrúpulos ficávamos sempre nesta vida. A menina  sem voltar à cidade, sem visitar ninguém, aqui metida.

— Bem me importa a cidade. Que canseira lhe dá isso a você? Eu já lhe  disse que não me distraio aqui?

— Ora deixemo-nos disso. Os passarinhos cantam muito bem, as flores  são muito bonitas; mas, vindo o Inverno, nem passarinhos nem flores. Depois  sempre quero ver como a menina se diverte. E como o ano passado. Chorava,  chorava...

— O ano passado estava doida. Já sabe que me curei daquela loucura.

— Diga-o a quem quiser, menos a mim. Olhem para onde ela vem com os  seus esquecimentos!

— Mas que lucrou você em contar a essa senhora a minha história?

— À rainha...

— A rainha, seja lá rainha. Para quê?

— Pois quem lhe pode dar remédio, senão ela? Eu lá lhe disse:

Agora veja vossa majestade se isto deve ficar assim. Se os militares que a vossa  majestade para cá nos manda vêm para manter a paz, ou para meter a  desordem nas famílias e fazer a infelicidade de meninas bem-educadas...

Como se chamava esse oficial? — perguntou a rainha, e eu bem vi que ela já  estava interessada por a história.

— Olhe, eu só sei que ele era Filipe.

— E disse-lho! valha-me Deus!

— Disse, disse... Era o que faltava se eu me punha com biocos.

— Filipe de Rialva?! — perguntou a rainha assim com mostras de o  conhecer...

— Tanto não posso dizer a vossa majestade; eu só sei que ele é Filipe.

A rainha não perguntou mais nada dele.

— Mora daqui longe essa menina?

— É ali logo.

— Pode lá ir uma carruagem?

— Indo pela banda de cima, estou que pode.

— Ela estará amanhã só?

— De todo só. Porque não esperava que o padrinho viesse de Braga.
  
— Vou ficar hoje em casa do visconde de P., sabe onde é?

— Perfeitamente, majestade, é logo ali — e apontei para o sítio.

— Amanhã, a esta mesma hora, esteja lá para me guiar no caminho. Vá  com Deus.

Eu desviei-me da carruagem, que desapareceu num abrir e fechar de olhos.

Quando cheguei a casa e vi o Sr. José Urbano, fiquei atarantada de todo,  porque me lembrei que já não podia ir buscar a rainha. Passei a noite muito  triste, e nem dormi, mas rezei muito a Nossa Senhora.

Hoje de madrugada, vendo partir o padrinho para a cidade, fiquei tão  contente, que por pouco não me deu o sono. Boa te vai. Olha agora se eu  adormecia nesta ocasião, estava bem servida! E levantei-me logo, e quando  foram horas pedi à menina que me deixasse ir a Braga comprar linho, mas fui  ter com a rainha, que já estava à minha espera. Pelos modos parece que  também madruga, porque ainda não era meio-dia! Depois ela... a rainha... fez- me entrar na carruagem. Oh! Eu bem não queria, mas não houve de quê.  Hem? Que lhe parece? desta poucas se gabarão! Não é assim? Ora aqui tem  como a rainha aqui veio ter.

Mas julgue como eu ficaria quando vi o Sr. José Urbano à janela. Credo!  Fiquei sem pinga de sangue, e por pouco não caí redondamente no chão.  Decerto me valeu o meu padre Santo António. Também olhe que uma aquela  assim como esta poucas vezes acontece à gente. O que me admirou foi o  padrinho não a conhecer. Agora, quando a vir em Braga, é que há de ser  bonito. O major, esse logo vi que a conheceu; porém ela fez-lhe sinal, que eu  bem reparei. Mas como veio o major cá ter...? E como se arranjaram com o  jantar? É verdade, ó menina, quem fez aquela sopa, que... santo nome de  Deus! por pouco me não punha a boca em carne viva! Onde aprendeu a  menina a cozinhar aquilo?»

Maria Clementina sorriu-se a esta referência à açorda do major. Mas naquele  momento achava-se possuída de veemente desejo de estar só, e por isso,  voltando-se para Roberta, disse-lhe:

— É necessário ir tratar do chá do padrinho, que ele não tarda por aí. Vá;  depois conversaremos.

Roberta retirou-se murmurando:

— A rainha nesta casa e eu na carruagem da rainha! Quando me lembro!

Maria Clementina ficou outra vez só. Outra vez se deixou arrebatar pelos  devaneios da sua fantasia. Ficar só é a suprema felicidade em situações como a  sua. Escuta-se melhor o que murmura o coração agitado, percebem-se todas  as íntimas vibrações dos misteriosos sentidos donde procedem os afetos. Nas  trevas, em que a imaginação de Maria Clementina se confundia, via raiar enfim  um raio de luz. Não era pois ainda desesperada a sua situação. Seria possível  desanuviar-se-lhe ainda o céu, para o qual já não olhava com esperança? Não  seria ainda a resignação a única arma que lhe podia dar a paz do coração que  perdera?

Tudo isto lhe propunha o pensamento, e entre estas questões vacilava aquele  pobre coração, que julgava ter abafado todas as esperanças, e agora as via  surgir de súbito umas após outras, a povoarem-lhe de novo a fantasia, mais  inquieta que nunca, e a seduzirem-na com o esplendor do seu brilho, com o  vivo das suas cores.

Como é ilusória a placidez dos vinte anos! O fogo latente alimenta uma  iminente erupção. Ó transparente máscara de sisudez posta nestes lindos  rostos de mulher, como ocultas mal os risos inquietos que se agitam por  debaixo! pensai, pensai, sonhai, imaginações juvenis; pulsai, amai, corações  virginais; a vida na vossa quadra é isto. Não há gelo que apague o fogo que  vos escalda; e, se o sufocais com gelo, funde-se em lágrimas e a paixão rebenta  mais forte.

Deixemos Maria Clementina entregue aos seus pensamentos de amor, acompanhem-na as imaginações dos leitores, mais capazes de as seguirem aí, e vamos nós a outro ponto, onde o desfiamento desta narração nos chama.


CAPÍTULO VII

O ENCONTRO INESPERADO 

Ao separar-se do major, perto da quinta onde devia pernoitar a senhora de  Lisboa, a que este chamara D. Joana, disse-lhe ela, estendendo-lhe a mão:

— Então ficamos nisto, major?

— Pela minha parte prometo cumprir quanto Va Exa me ordene.

— Não diga ordene, por quem é. Eu peço só...

— Não é o mesmo que ordenar?

— Bem, major, não insistamos em galanteios. Combinamos então o major  em colher informações de família. Eu em sondar o coração de Filipe.

— Eu posso dar a Va Exa informação nesse ponto.

— Como?!

— Filipe falou-me nesta inclinação, e confessou conservar da pequena  uma ideia muito superior à de todos quantos amores tem experimentado. Mas  Va Exa está resolvida...

— A evitar que Filipe cometa uma deslealdade. Que quer, major? meteu-se-me na cabeça fazer do meu filho um perfeito cavalheiro...


— E não lhe será muito difícil o empenho na execução, minha senhora.  Mas adiante. Va Exa e Maria Clementina serão tudo, menos o fruto de alguma  antiga árvore genealógica.

— Olhe, major, eu não tenho o defeito de me esquecer que o meu pai era  um negociante da capital; e se o pai de Filipe não julgou desonrar-se aliando-se com a minha família, eu renegaria a minha procedência, se adotasse esses  preconceitos. Ora agora, para o mundo, que para desculpar uma ação boa  precisa de a explicar por uma ideia interesseira, ficarei absolvida dizendo-se  que os capitais de José Urbano sossegaram os escrúpulos aristocráticos, que,  como sabe, eu nunca tive.

— Bem, minha senhora. Agora, que recebi as suas instruções, retiro-me e  até à vista.

— Conto com a sua aliança?

— De vida e de morte.

E o major despediu-se de D. Joana Rialva com a galanteria de um perfeito  militar; e montando a cavalo partiu em direção a Braga.

Momentos depois estava D. Joana no salão do visconde de P.... onde a  aventura da estrada ainda era comentada com alegria. D. Joana contou ao seu  modo o que lhe sucedera na visita que acabava de fazer, inventando uma  história de uma família desgraçada, que a exoneração de um emprego público  reduziu à miséria, e agradeceu a Filipe o haver-lhe fornecido a ocasião de  reparar um mal.

— E Va Exa visitou essa família? — perguntou Filipe — se é que a mãe  não exige que a trate por majestade também.

Nova hilaridade das senhoras do salão.

— Visitei, e voltarei ainda a vê-la. Assim lho prometi. Já agora quero tomar  a sério o papel de rainha. Imaginei que devia levar a felicidade àquela família  que assim recorreu a mim. Parece que andou aqui a mão da Providência. E tu,  Filipe, terás também o teu papel em tudo isto. Preciso da tua coadjuvação para  secundar os meus projetos.

— De todo o coração, minha mãe, lha prometo.

— Reclamo já a tua companhia para a visita que tenciono fazer-lhe.

— Da melhor vontade... prometo.

— E nós todas vamos também — exclamaram algumas senhoras.

— Não vai nenhuma. Eu quero continuar a ser suposta rainha, e 2 o riso  das meninas não mo permitiria.

— Prometemos estar serias.

— Não creio na promessa. Desta vez irei eu só com Filipe...

E, combinando nisto, passou-se a conversar noutros assuntos, a discutir  toilettes, a planear projetos de passeios, voltando-se de vez em quando ao  objeto que evidentemente mais preocupava D. Joana.

O dia seguinte foi de grande alvoroço para Braga. Todos os nossos  conhecidos, à exceção de Maria Clementina e de Roberta, andavam  envolvidos naquele mare magnum de povo, e tomando parte no tumulto e  agitação, em que a chegada da sua majestade lançou a população de Braga.  

Deixemos porém passar este dia, pois que não nos compete tomar parte  naqueles regozijos, e juntemo-nos às personagens desta história no dia  seguinte a esse para seguirmos a série de acontecimentos que formam o  entrecho desta narração.

O carro, que já uma vez havia conduzido D. Joana à quinta de José Urbano,  corria agora com ela e Filipe de Rialva pela estrada de Braga na mesma  direção. O major encarregou-se de conservar na cidade o proprietário da  quinta, porque a visita evidentemente não se destinava a este.

Rialva fazia notar a sua mãe as belezas do caminho, e exaltava os encantos da  província do Minho com entusiasmo de artista.

— Deve Va Exa concordar que é uma aprazível província esta. Os campos  são jardins, os montes são cômoros de verdura, parece que se sente tudo  cantar e sorrir.


— E efetivamente esta gente do campo é essencialmente amante da  música. Ainda não cessámos de ouvir cantar.

Naquele mesmo momento uma fresca e suave voz aldeã cantava num campo:

Aquele que tanto amei
Esqueceu o meu pensamento,
Como o rio esquece as rosas
Que retratou um momento.

— É uma acusação de infidelidade — disse D. Joana, fitando no seu filho  um olhar  alicioso, que este não percebeu.

— Mas que bonita voz a da cantora! Parece-me que ainda em S. Carlos não  se ouviu tão sonoro timbre.

Mais adiante uma lavadeira cantava num ribeiro, vizinho à estrada:

O amor que me juraste
Bem cedo o vi acabar,
Foi fumo de lavareda
Que já se desfez no ar.

— Outro queixume. Parece-me que a cada passo se ergue uma voz a  acusar a inconstância do coração.

— É porque só os corações infelizes é que cantam; a alegria e a felicidade  são mudas.

Ao voltar um ângulo do caminho era outra rapariga que fiava à porta,  cantando:

O teu amor era falso,
Teve pouca duração,
Mas deixou mágoas eternas
No meu pobre coração.

 — É singular! — disse D. Joana com certa intenção. — Parece de  propósito; sempre a mesma poesia. Nem que nos perseguisse uma voz como a da consciência a acusar-nos de alguma culpa de inconstância. Ora dos dois, quem com mais alguma probabilidade poderá ser acusado disso, não serei eu decerto. Se fosses tu, Filipe?...

— Quem sabe, minha mãe? — respondeu Filipe com uma seriedade que não estava em harmonia com o tom jovial em que D. Joana lhe fizera a observação.

— Ah! quem sabe? Ninguém senão tu e a Providência, que talvez esteja falando pela boca desta pobre gente. Só me admira que fale no Minho para emendar o mal feito em Lisboa.

— E se fosse o mal feito no Minho?

— No Minho? mas... ah? sim, tu estiveste alguns meses aqui. Então, Filipe, por acaso inspirar-te-iam estas belas paisagens alguns capítulos do romance? porque mo não contaste? Sabes que tudo quanto escreves e contas me excita  sempre interesse; pois nem te lembras que até os teus trabalhos acadêmicos eu gostava de ler? Nem aos de matemática perdoava: não os decifrava, mas entendia-os. Não sei se me admites este paradoxo.

— Eu sei, minha mãe, avaliar o seu muito afeto, mas que quer? O conceito elevado que Va Exa na sua indulgência materna faz de mim, lisonjeia-me tanto, causa-me tal orgulho, que recuo perante a ideia das confissões que lhe podem lançar a mais leve sombra na imagem que a sua muita bondade formou de mim.

— Deve ser bem grave a culpa cometida, que assim te está causando remorsos.

— Ainda não pude avaliar toda a extensão e gravidade dela.

— Porquê?

— Porque não pude saber ainda as consequências que resultaram.

— E se eu exigir que ma confies?

— Basta que lhe diga, que essas cantigas populares que nos têm  acompanhado, podem considerar-se, como Va Exa disse há pouco, a voz da  minha consciência ou dos meus remorsos.

— Remorsos! Repara que são a consequência de um crime. Por acaso...

— Pelas convenções sociais não me pode ninguém chamar criminoso; mas  por um outro código, pelo código da consciência, eu sou acusado.

— De que crime?

— De ter feito nascer uma paixão, prevendo quase que ela teria de morrer  sufocada, prognosticando-lhe o seu nenhum futuro.

— E que motivos tens para julgar nela mais sincera essa paixão do que o  era em ti? Vaidoso! Imaginas que ninguém te poderia aceitar a corte sem  morrer de amores por ti?

— Por um lado tem razão no que diz; mas um pressentimento...

— Bem. A coisa não passa de um pressentimento? Pois nesse caso  oponho-lhe um outro pressentimento meu. Já nem sequer pensa em ti essa em  quem pensas ainda tanto. E o mais natural. Tranquiliza os teus escrúpulos;  mas parece-me que não te seria demasiado lisonjeiro o convencimento desta  verdade. Ora diz-me: tu ainda a amarás?

— Julgo que não, minha mãe. Eu sinto-me tão volúvel!

— Mas como tu dizes isso! que ar de remorso! Nunca te acusaste com  tanta contrição do teu rompimento com a Alberta dos Prazeres, com quem  estiveste quase esposado. Ó Filipe, dar-se-á que o teu coração entre deveras  nisso?

— Quero acreditar que não, minha mãe. Seria uma calamidade.

— Porquê?

— Va Exa permite-me que fale francamente?

— Ordeno-te.

— Pois bem. É porque se eu me sentisse deveras apaixonado, podia  estabelecer-se entre mim e Va Exa um conflito, do qual, fosse o resultado qual  fosse, eu sairia sempre com feridas que não sarariam nunca, ou acabaria por  lhe não obedecer; e se o amor fosse verdadeiro, sofrendo por ele, eu venceria  a paixão, e nunca me perdoaria a desobediência.

— E qual a razão porque julgavas inevitável um conflito? Essa mulher era  indigna de ti?

— A sociedade em que Va Exa vive é de umas exigências ridículas, mas a  que se costumam a obedecer os que a frequentam. Conveniências sociais. A  mulher a quem me refiro era filha de um negociante de Braga.

— Não te sabia desses preconceitos heráldicos tão arreigados!

— Em mim? Engana-se, minha mãe, se eu fosse só... Mas sabe que lhe não  quero dar desgosto...

— Se me não engano, achamo-nos em frente da casa da família que vamos  socorrer.

Efetivamente a carruagem parou diante do portão da quinta de José Urbano, e  o boleeiro, apeando-se, puxou o cordão da sineta, cujo ruído se fez ouvir ao  longe, despertando os latidos dos cães, fiéis guardadores daqueles jardins.

Passados tempos o portão abriu-se, e Roberta apareceu, depois de perguntar  de dentro quem era, com voz um pouco resolvida; ao dar com os olhos na  carruagem, deu um salto, como se a picasse uma víbora.

— Vossa... — ia exclamar a pobre velha atônita.

— Psiu! — disse D. Joana, pondo o dedo na boca e com um sorriso  benevolente.

Roberta calou-se, mas, ao ver saltar Rialva do carro, fez um novo movimento  de surpresa.

— Agora é o outro. Pelo que vejo eram grandes fidalgos ambos. Rialva,  que conheceu logo em Roberta a velha da estrada, procurou tomar-se ouvido  dela, dizendo à mãe, ao ajudá-la a descer:

— Se vossa majestade se quiser utilizar do meu braço...

D. Joana sorriu, e, saltando junto de Roberta, perguntou-lhe em voz baixa:

— Onde está a menina?

— Deve andar pela quinta. Eu vou chamá-la.

— De modo nenhum. Iremos ter com ela.

— Como vossa majestade quiser; nesse caso eu vou adiante.

— Também não. Se me quiser antes fazer o favor de me preparar um copo  de água chalada...

— Com todo o gosto. Mas se a vossa majestade se engana no caminho?...

— Melhor, mais tempo gozaremos da quinta.

E tomando o braço de Filipe, D. Joana desceu as escadas que conduziam à  quinta.

— Sabe, minha mãe, que para um empregado demitido é esta uma  magnífica vivenda?   disse Rialva, admirando o bom aspeto de quanto o  rodeava.


— Restos de um bem-estar passado — respondeu D. Joana, entranhando- se num a rua orlada de roseiras todas enfloradas.

— Que deliciosa habitação! — exclamava Rialva a cada passo.

— Sigamos na direção donde nos chega o sussurro do cair da água.

Rialva atrasara-se de D. Joana alguns passos de distância, tendo-se demorado a  colher um botão de rosa que se pendurava num a das ruas...

Preparava-se a apressar o passo para alcançar a sua mãe, quando viu esta  levantar pé ante pé, e com a mão nos lábios como a recomendar-lhe silêncio.

Filipe parou.

D. Joana chegou-se a ele e disse-lhe baixinho:

— Devagar, muito devagar. Dorme alguém ali adiante. Quero preparar-te  um belo espetáculo. Devagar!

E os dois caminharam tão de manso, que mal se escutava o estalar da areia da  rua e de uma só folha seca que o vento destacava das árvores.

— É agora — disse D. Joana, desviando-se para deixar patente ao seu filho  a vista do largo junto a uma pequena cascata, no qual penetraram.

Rialva olhou e estremeceu de surpresa.

Reconhecera Maria Clementina adormecida.

A mãe e o filho permaneceram silenciosos perante aquele espetáculo.

Quem o poderia conceber tão belo!

Languidamente recostada no banco rústico que existia ao lado da cascata,  conservara Maria Clementina uma posição naturalmente artística, na qual lhe  sobressaíam todas as formas elegantes e corretas daquele corpo flexível e  delicado.

O braço direito, dobrado sob a cabeça e um pouco descoberto, exagerava pela  flexão as curvas graciosas e suaves do seu regular contorno; o esquerdo,  pendente ao longo do corpo, permitia observar uma mão encantadora. Não  era destas pequeninas mãos, galantes como as de uma criança, e que se  abrangem num a só das nossas; reconhecendo a graça desses modelos,  confesso que me produzem mais sensação as mãos como as de Maria Clementina. Algum tanto compridas e estreitas, cobertas por uma pele  alvíssima e transparente, sob a qual se desenhava uma complicada rede de  veias azuladas, tinham estas mãos assim o que quer que seja de distinção e  encanto, que atrai as vistas, que as fixa, que as fascina.

Eu, a respeito de belezas femininas, não sou partidário ardente do galante, do  mignon, como os franceses dizem; prefiro-lhe o ar de dignidade e grandeza  que se lê em certos tipos, temperado pelo que possui de brandura todo o  rosto de mulher verdadeiramente bela. A cabeça de Maria Clementina, um  pouco inclinada para trás, descobria, em toda a sua vantajosa forma, o colo,

cuja transição para a face e para os seios se fazia por curvas tão disfarçadas e  brandas, que a vista insensivelmente deslizava por elas e perdia-se a divagar  naqueles lábios, que a respiração entreabria, pousava amorosamente nas suas  graciosas comissuras, que se elevavam num quase imperceptível sorriso, nas  pálpebras, que pareciam denunciar o fulgor dos olhos que mal encobriam; ou  baixava ardente como insinuando-se por entre o corpilho do vestido, que  subia até o pescoço, avaro das belezas que ocultava, e como fascinada por  aquele movimento cadenciado e um respirar tranquilo.

— É ela — disse afinal Filipe, olhando para a sua mãe e ainda comovido  por sentimentos encontrados que o dominavam.

— Eu sei! — respondeu D. Joana, continuando a sorrir.

— Sabe?!

— Bem vês que te trouxe aqui.

— Mas... como foi isto?

— Pediam justiça, enviaste a queixosa para mim. Eu prometi fazê-la. A  isso venho.

— A fazer justiça?

— Sim.

— E o ofendido é...

— E ela e o culpado és tu. Não to diziam há pouco os teus remorsos,  Filipe? Ao partires para Lisboa deixaste comprometida a reputação desta menina.

— Pois acaso...

— Viram-te descer o muro do jardim...

— Oh! meu Deus...

— Desde então a sociedade escrupulosa obrigou-a a procurar esta solidão.  Deves supor se lhe terão sorrido os dias passados aqui. E no entretanto tu
esquecia-la na capital...

— Oh! minha mãe... juro-lhe...

— Não jures, Filipe; ora que vais tu jurar? Confessa, é melhor; e  arrepende-te, que é mais nobre.

— Eu sou um miserável, minha mãe.

— Que nome tão feio! Agora cais-me num outro extremo. E preciso emendar o mal feito.

— E como?

— De uma maneira possível.

— Pois quer...
  
— Então que é? Hesitas em fazer justiça, quando não hesitaste em cometer  a culpa...

— E consente...

— Ordeno, se ainda podem ter para ti valor as minhas ordens.

— Mas essas são para mim uma bênção do Céu, creia-me! — exclamou  Filipe, apoderando-se da mão da sua mãe e beijando-lha com efusão.

Um movimento de Maria Clementina deu a conhecer que ela despertava,  enfim, do seu sono tranquilo ao rumor do diálogo, que se travara entre D.  Joana e o seu filho. Esta correu ao encontro de Maria Clementina, ocultando  por este movimento a presença de Filipe.

— Va Exa aqui! — disse Maria Clementina sobressaltada ao abraçar D.  Joana.

— Estava a gostar de a ver dormir...

E depois de a beijar afetuosamente, D. Joana afastou-se, descobrindo assim a  figura de Filipe, que se conservara imóvel a distância.

Maria Clementina, dando com os olhos nele, estremeceu, exclamando:

— Oh! meu Deus.

— E meu filho — disse D. Joana, beijando-a na cara com uma carinhosa  solicitude.

Maria Clementina vacilou, deixou-se cair no banco em que estivera sentada, e  pelas faces, que passavam de uma súbita palidez a um intenso rubor,  deslizaram as lágrimas que lhe inundavam os olhos...

Nisto assomava na extremidade de uma das ruas a velha Roberta com o copo  de água e chá, que D. Joana lhe pediu.

Esta correu a encontrá-la para lhe encobrir a turbação dos dois.

— Agradecida pelo incômodo que teve. Agora faz-me um favor? Ajuda- me a cortar um ramo de japoneiras? — E aproximando-se de Roberta,  acrescentou a meia voz:

— Deixemos sós os dois; este é o tal alferes...

— E este! — disse Roberta, olhando para Filipe com os olhos espantados  e com certa indignação. — E logo foi a ele que eu...

— Está bom, deixemo-los, que tudo se há de arranjar.

— Deveras?

— Comprometo a minha palavra.

— É a palavra real... — disse Roberta.

— Tem razão... não volta atrás — terminou, sorrindo, D. Joana de Rialva.

E D. Joana, conduzida pela velha, foi efetivamente cortar um ramo de  camélias, com grande orgulho de Roberta, que toda se desvanecia em estar  colhendo flores para sua majestade.

Filipe e Maria Clementina ficaram. Esta, vendo afastar-se D. Joana, levantou- se para segui-la; mas viu diante de si Filipe ainda imóvel e atencioso, e as  forças faltaram-lhe, deixando-se cair de novo.

— Ainda poderei esperar de si a minha absolvição, Maria? — disse Filipe  aproximando-se da donzela.

— Pois eu já o acusei? — respondeu timidamente Maria Clementina.

— Acusa-me a consciência.

— De que o acusa então? De me ter mentido?...

— Não, que lhe não mentia quando lhe disse que a amava...

— Então? De me ter esquecido?

— Também não. Podia eu esquecê-la?

— Não sei. Mas de que o acusa a consciência? Diga.

— De não ter sido eu próprio que há mais tempo tivesse vindo oferecer- lhe a reparação do mal que lhe fiz.

— Do mal? Pois sabe se me fez mal?
  
— Sei. Soube-o agora... da minha mãe.

— Entendo. E vem oferecer-me uma reparação?

— Era o meu dever, mesmo quando...

— É uma generosidade. Mas ouça-me — disse Maria Clementina,  levantando-se e caminhando para Filipe, com uma resolução que contrastava  com a sua timidez de há pouco. — Eu não posso aceitar um sacrifício.

— Um sacrifício...

— Olhe, Filipe, um ano de solidão faz-nos pensar com madureza. Há um  ano receberia com alvoroços de alegria as palavras que me disse. Hoje não.  Sou culpada para com o mundo. Que me importa! Sou inocente para com a  minha consciência. Mas quando mesmo esta me acusasse, acredite que não me  moveria a aceitar de si isso que 3 chama o cumprimento de um dever.  Deveres! Quem lhos impôs? A sociedade? Eu não lhe pedi que advogasse a  minha causa. Eu? Bem vê que não. Tranquilize os escrúpulos da sua  consciência; se é ela que o impele a esse passo, desista de obedecer-lhe; eu  absolvo-o de toda a responsabilidade. Obrigada, Filipe, mas bem vê que não  devo aceitar.

— E se a voz da consciência se harmonizar neste caso com a do coração?

— E quem mo há de assegurar? — disse Maria Clementina, voltando à sua  anterior confusão.

— Incrédula? Exigir provas é renegar a persuasão do amor. Sabe porque  há um ano me acreditava e hoje duvida?

— Porque se passou um ano! E que ano, Filipe! que experiência colhida  nestes doze meses passados a sós com o meu pensamento e com o desprezo  dos outros...

— Do desprezo, pois acaso...

— Oh! Não julgue que lhe falei nisto como uma arguição. Não era o que  mais me fazia sofrer esse desprezo; esquecia-me dele. Outra causa movia as  minhas lágrimas.

— E era?

Maria Clementina calou-se embaraçada.

Filipe aproximou-se dela, e tomando-lhe a mão insistiu:

— O que a fazia chorar então, Maria?

Maria Clementina levantou os olhos úmidos de lágrimas e com um sorriso  angélico respondeu suspirando:

— E pergunta-mo? Chorava, chorava de saudade.

— Pois lembrava-se de mim?...

— Duvida, e quer que acredite no seu amor!

— Se eu era indigno de tanto! E agora...

— Agora?

— Por que mudou de pensar?

— Por que mudei? Eu mudei! E julga que posso deixar de acreditar; julga  que me restam forças para resistir a uma tentação! Devia pedir-lhe  misericórdia, mas... Nem sei... Olhe, que exige de mim? que diga que o amo?...  Pois sim, amo-o, amo-o. Que mais quer? É a minha perdição talvez.

— E a sua salvação, minha filha — disse D. Joana, que se aproximou de  Maria Clementina e a apertou nos braços.

Nisto ouviu-se tocar a sineta do portão.


CAPÍTULO VIII

EXPLICAÇÕES — NÃO HÁ JUSTIÇA COMO A JUSTIÇA DE SUA MAJESTADE
  
Os sons vibrantes da sineta interromperam de chofre as carinhosas efusões de  D. Joana e Maria Clementina, que se olharam como se perguntassem uma à  outra — quem será?

Em seguida novos e mais rápidos sons se fizeram ouvir, ecoando pelo jardim,  indicando que quem tangia a sineta queria ser ouvido e tinha pressa de  transpor o portão.

— Quem será — disse Maria Clementina — que tão apressado se mostra?

— Deve ser — respondeu D. Joana — seu padrinho e o major, que ficou  de estar aqui com ele por estas horas. Filipe conservar-se-á por enquanto aqui  fora; a menina quer-me acompanhar ao encontro dos recém-chegados?

Maria Clementina cedeu o braço a D. Joana, que, apoiando-se nele, caminhou  na direção do portão.

— Vamos trabalhar no seu futuro; quero dispor tudo antes de partir.

— Pois quando parte?

— Depois de amanhã.

— Já? Tão cedo.

— Assim me é indispensável. Mas em breve a tomarei a ver em Lisboa.  Não é verdade?

— Em Lisboa?... — disse Maria Clementina, corando.

— Sim, e bem junto de nós. Sempre desejei ter uma filha. Dou graças por  me deparar uma tão boa.

— Oh! minha senhora — exclamou Maria Clementina, não podendo  conter o seu reconhecimento e apoderando-se-lhe da mão, que beijou  comovida.

— Vejo que me aceita por mãe... Obrigada.

— E é a senhora que me diz obrigada? A mim, que pela primeira vez  conheço a ventura que há em ser filha!

— Pobre menina. Mas vamos, não nos sensibilizemos, que estamos  próximos ao último ataque decisivo.

Esta observação foi sugerida a D. Joana pela vinda de José Urbano, que na  companhia do major se aproximava delas.

— Que agradável surpresa! Va Exa aqui?

— E verdade, Sr. José Urbano. Espero que me perdoará esta invasão da  sua propriedade.

— Oxalá que ela se reproduzisse.

— Mas veja que não me retiro sem paga! — acrescentou, mostrando-lhe o  ramo de camélias que colheu.

— E na verdade só agora que começo a conhecer o preço dessas flores...

— A benevolência do proprietário anima-me a confessar-lhe que as  minhas intenções vão mais longe. Premedito um roubo de mais valor.

— Va Exa?

— É verdade, e receio não lhe encontrar tão boas disposições de mo  perdoar como agora.

— Deveras! — respondeu José Urbano, sorrindo.

— Vou fazer-lhe a confissão dele, se me quiser ouvir.

— Com a melhor vontade. Quer Va Exa entrar?

— Aceito. Venha, major.

— Pois também entro na confidência?

— Não o dispenso.

Maria Clementina deixou-se ficar um pouco atrás, enleada e confusa, porque  previa do que se ia tratar.

D. Joana aproximou-se dela e disse-lhe a meia voz:
  
— Poupo-lhe o dissabor de assistir ao processo; dentro em pouco lhe  comunicarei a sentença.

Maria Clementina retirou-se.

José Urbano, D. Joana e o major entraram no salão.

José Urbano tinha um ar prazenteiro, o major puxava o bigode com certo  embaraço, D. Joana meditava um plano de campanha.

Sentaram-se todos.

— Sr. José Urbano, eu não sou partidária dos rodeios. Costumo ir direita  ao fim. O roubo que eu lhe premedito fazer é nada menos que o da sua sobrinha.

— De minha sobrinha! — repetiu José Urbano, entre sério e risonho,  como se esperasse a explicação destas palavras.

— E verdade. Queria pedir-lha para filha.

— Como?!...

— Imagine, Sr. José Urbano, que eu tenho um filho por quem sou doida,  perdidamente doida, e que concebi que era Maria Clementina a mulher que lhe podia dar a felicidade que eu ambiciono para ele.

José Urbano olhava estupefato para D. Joana, como se não tivesse compreendido.

— Então diz Va Exa que...

— Que lhe peço a mão da sua afilhada para...

— Mas um projeto tão pouco meditado...

— Talvez menos do que julga.

— Menos do que julgo.... — disse José Urbano com manifesta intenção. Seja assim; mas o que Va Exa me pede não pode realizar-se.

— Que diz, Sr. José Urbano?! Não posso acreditar que me negue a satisfação de obter o que lhe peço, porque já considero sua sobrinha como minha filha muito amada.

— Não duvido; mas Maria Clementina, que é um anjo, não pode casar com o filho de Va Exa, porque se opõem a isso... circunstâncias e melindres que é necessário respeitar.

E José Urbano carregou de tal maneira o rosto, que parecia indicar à sua interlocutora que não continuasse a falar-lhe naquele assunto.

D. Joana, porém, pareceu não atentar nisso, e, mostrando-se risonha,
continuou, dizendo:

— Parece-me compreender, Sr. José Urbano, que tem receio do meu filho não ser digno da sua sobrinha, nem capaz de a fazer feliz.

— Não é isso, minha senhora — interrompeu José Urbano, com vivacidade. — São motivos particulares, que dizem respeito a uma pessoa da minha família, que já não vive e a quem muito amei.

— Mas — disse D. Joana — se não há desonra para sua sobrinha no enlace dela com o meu filho, porque me recusa a sua mão? Dar-se-á que a destine para outro mais digno que o meu filho?

— Não destino, não. Enfim — disse José Urbano, um pouco enfadado — acabemos com isto. Para Va Exa conhecer a razão da minha negativa, era necessário contar-lhe a minha e a história da minha irmã, que não vive há muito e a quem amei extremosamente. Essa história cansará a paciência de Va Exa e do Sr. major, que desejo poupar...

— Conte, conte — disse D. Joana — que nos dará com isso muito prazer. Não é assim, major?

— Decerto — respondeu este — porque estou ansioso de a ouvir.

O rosto de José Urbano empalideceu e mostrou-se anuviado de tanta tristeza que causou profunda impressão em D. Joana e no major.

— Seja como querem — disse por fim José Urbano, depois de ter estado algum tempo silencioso, e como que invocando as recordações do passado. — E doloroso avivar feridas que desejo cicatrizadas, mas não tenho outro meio de acabar com isto. Ouçam:
  
«Quando a minha mãe morreu, tinha eu vinte anos. Foi em 1818. Até aí, vivera eu como rapaz.

De pequeno senhor da minha vontade, eu não sabia o que eram sujeições e constrangimentos. A minha mãe era uma santa mulher, que vivia absorvida entre as suas devoções e as suas economias. Os pequenos haveres em bens rurais, que o meu pai deixara ao morrer, eram por ela tão bem administrados, que nunca a menor sombra de privações nos veio amargurar a vida.

Quando morreu, achei-me eu à testa da família. A minha mãe tinha-me dito pouco antes: «Tenho-te deixado gozar a tua vida de rapaz, porque bem sabia que dentro em pouco terias de renunciar a ela. Vê se compreendes o teu dever. Deixo-te uma irmã de oito anos.»

Aterrou-me ao princípio esta responsabilidade, e o novo encargo fez-me pensar seriamente. Obedeci a minha mãe; desde o dia da sua morte, abandonei a companhia dos meus companheiros de prazer e votei-me de coração ao trabalho. Sentia-me recompensado com a alegria que experimentava quando podia dar um vestido novo a minha irmãzita.

Cedo as minhas ambições começaram a crescer. E sempre a mesma história. Já me não contentava com os modestos, mas continuados, proventos que tirava do meu negócio de cereais. Queria lucros mais visíveis.

O Brasil começou-me então a sorrir com as suas promessas de riquezas, com que a tantos atrai. Não descansei mais enquanto não realizei o meu intento.

Regulei com um negociante meu amigo uma mesada a minha irmã, e deixei-a em companhia da Roberta, que foi ama de nós ambos, e parti.

Seria curiosa e rica de experiência a história da minha vida no Rio de Janeiro, se o contá-la me não afastasse do fim que tenho em vista. Basta que diga que trabalhei! Trabalhei deveras. Não me fazia hesitar qualquer trabalho, por penoso que fosse. Recusava apenas as empresas menos honestas.

Tive que sofrer e muito. Estive no Brasil por ocasião da guerra da  independência. Basta que diga isto. Mas a minha perseverança valeu-me e não me deixou soçobrar. No fim de seis anos, aumentava consideravelmente a mesada a minha irmã. No fim de oito, podia-me dizer rico. Mais um ano no Brasil, e voltarei para Portugal, disse eu comigo.

Não havia dia em que não pensasse nisto com entusiasmo.

Por meados de 1833, andava eu tratando da liquidação, quando, ainda me lembro bem, recebi de Portugal uma carta tarjada de preto. Abri-a a tremer. Era do negociante meu amigo, participando-me que a minha irmã, que havia tempos se achava incomodada, morrera no dia 23 de Julho de 1833, apesar de todos os socorros da medicina.

Não posso dizer como fiquei quando li esta carta. Caí em tal abatimento, que os médicos agouraram mal da minha vida. Aconselharam-me ares pátrios. Mas eu já não tinha coração para voltar aqui; ao mesmo tempo, a minha vida no Rio de Janeiro era-me insuportável. Terminei a liquidação do meu negócio, e fui viajar.

Percorri a Europa; durante quatro anos, vivi vida errante e aventureira. No fim deste tempo, conheci que estava cicatrizada a chaga do meu coração, começaram a crescer em mim uns veementes desejos de voltar à minha terra. A mesma saudade me chamava. Não pude resistir-lhe. Entrei em Portugal em 1837. Quando avistei a casa onde eu nascera e onde vivi com a minha irmã, senti uma profunda comoção interior. Vir encontrá-la vazia, sem aquela linda menina, que eu deixara de dez anos a brincar, que viera à janela ver-me dobrar a esquina quando eu parti, para a não tomar a ver! E, pensando isto, eu parei em frente da casa a olhá-la e sem forças que me levassem mais adiante. Quando de repente — que ilusão aquela, meu Deus! — a mesma janela se abriu, e ela... a minha irmã, tão pequena como eu a deixara, se encostou ao peitoril, olhando-me exatamente como me olhava dantes.

Eu não pensei no impossível da visão. Acreditei nela. Corri, corri como um louco, e bati à porta, gritando:

— Abre, Roberta, abre... A minha irmã ainda está viva!... Eu logo vi que não podia ser.

Roberta veio-me abrir a porta a tremer. Não sei como ela me reconheceu nem o que me disse. Eu estava alucinado.

— Deixa-ma ver, deixa-ma ver! Para que me tinham dito que ela morrera?

Não posso dizer como corri e o que se passou; lembra-me que dentro em pouco tempo eu abraçava e beijava uma bonita criança de dez anos, julgando beijar minha irmã. E ela também me abraçava, sorrindo e a chorar... a pobre pequena. Porém, a ilusão passou; a razão voltou-me, reconheci que havia nisto tudo um engano. Mas a semelhança era tanta! Um ar de tristeza se apoderou de mim; e voltando-me para Roberta, que chorava a um canto, perguntei-lhe:

— Quem é esta menina, Roberta?

— E sua sobrinha, filha da sua irmã.

Dei um salto, como se aquelas palavras me atravessassem o coração. Um relâmpago terrível me iluminou o espírito; ia a passar das carícias talvez a alguma crueldade, quando aquele anjo, ouvindo as palavras de Roberta, exclamou:

— Ai, pois, é este o meu tio! e saltou-me ao pescoço, beijando-me com meiguice. Desarmou-me; desatei a chorar, e não pude deixar de a apertar ao coração.

Passados poucos instantes, Maria retirou-se para ir buscar flores, disse ela, e eu fiquei só com Roberta. Voltou-me o ar sinistro que aquela criança me havia conjurado, e disse a Roberta que me contasse a história da minha irmã. A história era curta.

— A infeliz foi enganada por um infame, que, abusando da sua inocência, fora a causa do seu infortúnio e da sua morte.

— E era assim que vigiavas pela irmã que eu te confiei, Roberta?

A pobre mulher respondia-me chorando.

Mas a voz da minha consciência acusava-me mais do que a ela. Eu é que não devia ter abandonado a irmã, para satisfazer ambições desmedidas. Agora, cumpre-me chorá-la e proteger-lhe a filha melhor do que a protegera a ela. Pobre criança! Quem podia deixar de querer-lhe? Ela reproduziu-me as venturas que eu julgava perdidas para sempre. Nela cri renascer minha irmã. E por isso a amei. Amei-a logo e cada vez mais! E veja como parece a sorte perseguir-me; durante meses que tive de passar no Porto, por pouco a não ia sacrificando, e lhe causei, sem querer, um mal irremediável! Está terminada a história de Maria Clementina.

A sorte infeliz da minha irmã era muito notória, para que eu pudesse viver feliz na minha terra. Vim por isso para Braga, deixando Barcelos, onde nascera, com vivas saudades.»

— Barcelos! — exclamou o major, que havia momentos não podia dissimular a sua agitação.

— Sim — respondeu José Urbano — julgava ter já dito que tinha sido em Barcelos que eu nasci. Agora, já vê Va Exa a razão porque eu há pouco lhe dizia que a proposta que se dignou fazer era impossível. Maria Clementina é filha ilegítima e eu não conheço o pai.

— Não conhece? — perguntou D. Joana com interesse.

— Nunca me puderam dar sinais dele. Em Roberta encontrei sempre uma reserva, nesse ponto, que me fez julgar ser recomendação da minha irmã. Sei apenas que era um militar, um dos muitos que por aqueles tempos (foi em 1832) cobriam o reino. Era vida de guerra a de então... algum aventureiro, que nunca mais se lembrou da vileza que cometera, nem talvez mesmo ao cair no campo atravessado por uma bala inimiga.

— Sua irmã chamava-se...? — perguntou o major com voz alterada.

— Maria Luísa — respondeu José Urbano.

O major não se pôde vencer. Olhando para Maria Clementina, que passeava então no terraço adjacente, exclamou, juntando as mãos:

— Justo Deus! pois eu tinha uma filha?

Esta exclamação do major fez estremecer José Urbano, que empalideceu. D. Joana ergueu-se também sobressaltada.

— Sr. José Urbano — disse o major, comovido — o militar, o aventureiro, o miserável que acusou, sou eu; não ficou atravessado por uma bala no campo de batalha, mas por muito tempo o conservou num leito de doença, e quando se ergueu foi seu primeiro pensamento a mulher que verdadeiramente amara; disseram-lhe que tinha morrido, mas nunca ele soube que lhe ficara uma filha. Ai, se o soubesse! Eu, que tantas vezes me atormentava na minha solidão vazia de afetos... Se eu suspeitasse que existia na terra aquele anjo! — E o major juntava as mãos, olhando para Clementina.

José Urbano conservava-se mudo e taciturno.

— Quando mesmo Maria Clementina não tivesse achado um pai — disse D. Joana — não julgue que eu desistiria do meu pedido, Sr. José Urbano. Mas agora parece-me que cessam da sua parte todos os escrúpulos.

José Urbano ergueu a cabeça e, fitando o major, disse:

— Ainda bem, major Samora, que só nos reconhecemos na idade em que se apagaram os fogos da juventude; ainda bem.

— Então, é a ambos que peço a mão de Maria Clementina para o meu filho... — disse D. Joana; seja esta união a que faça desvanecer a nuvem que parece meter-se entre os senhores. Deem as mãos como amigos. Vamos.

O major ficou quieto, e José Urbano caminhou para ele com as mãos estendidas.

— Acredito, major, que foi leviano, mas não foi vil. A minha irmã mandar-me-ia perdoar.

Os dois apertaram as mãos.
  
Dentro em pouco tempo, eram tudo abraços na sala de José Urbano.

A um sinal de Joana, Maria Clementina entrara em casa, com o coração alvoroçado e as faces tingidas de rubor.

Filipe, que entendeu também o sinal da sua mãe, seguia a pequena distância. Quando Maria Clementina entrou, D. Joana foi-lhe ao encontro, e tomando-a pela mão levou-a junto do major.

— É de justiça que seja para o major o primeiro abraço — disse D. Joana.

O major tremia ao abrir os braços a Maria Clementina, e a custo exclamou:

— Minha filha!

Maria Clementina olhava com estranheza.

José Urbano disse-lhe, comovido, apontando para o major:

— Podes abraçá-lo, Micas, é teu pai... Filipe entrou neste momento.

Maria Clementina achava-se nos braços do major, desfeita em lágrimas, mal compreendendo ainda o que se passava.

Samora, que não se fartava de a abraçar, disse, meio a rir meio a chorar, para Filipe, que o olhava estupefato:

— E o complemento daquela minha história; eu tinha uma filha... Era esta... este anjo.
  
E desprendendo-a dos braços, acrescentou:

— Como vamos ser felizes todos!

José Urbano aproximou-se de Filipe, e disse-lhe:

— E tem fé que a tomará feliz?

— Quanto a puder fazer um amor verdadeiro.

— Ora não desanimem então.

Imaginem as efusões mútuas que se seguiram.

Ao entrar Roberta na sala, o major foi-lhe ao encontro, exclamando:

— Roberta ! Lembra-se ainda do alferes Clemente Samora?

— Santo nome de Deus! Que nome foi dizer! — exclamou a velha, olhando para seu amo com ar de mistério e susto.

— Saiba que ele vive ainda, e que encontrou sua filha, a que abraço agora...

— Quê?... pois então... E verdade que tem avultações. Mas... santo nome!... Santo... então?

— Então, este dia é um dia de ventura. Achei minha filha, e exatamente na ocasião de encontrar também um filho no melhor rapaz do exército.

— Oh! major!

Os dois militares apertaram as mãos afetuosamente.

— Ah! pois já está tudo arranjado? — exclamou Roberta, exultando de contente.

— Tudo, graças ao seu expediente, Roberta. Pode ufanar-se de ter feito a felicidade dos seus amos.

— Como? — perguntou José Urbano.

— Ora como? — disse Roberta — indo a fonte limpa. Quem pode...

— Psiu ! ... — disse D. Joana, olhando-a com mistério.

— Ah! pois ele não sabe ainda? — murmurou Roberta, olhando para seu amo com ar de mistério. — Não importa; eu não posso deixar de bradar: Viva a sua majestade a rainha!

A saudação foi jovialmente acolhida.

Do mais que se seguiu, deixo-o à imaginação do leitor concebê-lo.

D. Joana partiu no dia seguinte para Lisboa.

O major Samora, Filipe, José Urbano e Maria Clementina seguiram-na passados oito dias.

O casamento fez-se na capital, onde os noivos ficaram residindo na companhia do major, que remoçava com o inesperado sucesso, e recebendo visitas amiudadas de José Urbano, que reside ainda em Braga. Roberta vive na firme persuasão que foi a rainha D. Maria II quem interveio no casamento dessa menina, e toda ufana repete muitas vezes, com grande prazer de José Urbano.

— Aqui está quem deslindou este negócio todo. Não fora eu, que ainda hoje estaríamos como dantes: eu nem sei o que seria. Não há justiça como a justiça da sua majestade. 


---
Nota:
Júlio Dinis: "Serões da Província" (1870)

Nenhum comentário:

Postar um comentário