SOLFIERI
...Yet one kiss on your
pale clay
And those lips once so
warm — my heart! My heart.
Byron, Cain..
Sabeis-lo. Roma é a cidade do fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia; no leito da
vendida se pendura o crucifixo lívido. É um requintar de gozo blasfemo que
mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à embriaguez da
crença.
Era em
Roma. Uma noite, a lua ia bela como vai ela no verão por aquele céu morno. O
fresco das águas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela.
Eu passeava a sós pela ponte. As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as
ruas se faziam ermas e a lua de sonolenta, se escondia no leito das nuvens. Uma
sombra de mulher apareceu numa janela solitária e escura. Era uma forma branca.
— A face daquela mulher era como de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela,
como gotas de uma taça caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me
encostei à aresta de um palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... E
daí um canto se derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar
um como choro de frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à noite nos
cemitérios cantando a nênia das flores murchas
da morte.
Depois, o
canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém
nas ruas. Não viu ninguém: saiu. Eu segui-a. A noite ia cada vez mais alta: a
lua sumira-se no céu e a chuva caía às gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces caírem
grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.
Andamos
longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim, ela parou; estávamos num campo.
Aqui,
ali, além, eram cruzes que se erguiam entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as
aves da noite.
Não sei
se adormeci: sei, apenas, que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério.
Contudo, a criatura pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo-santo
estavam quebradas junto a uma cruz.
O frio da
noite, aquele sono dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio
passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num
canto suavíssimo...
Um ano
depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela visão...
Uma noite
e após uma orgia, eu deixara dormida no leito a bela condessa Barbora. Dei um
último olhar àquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos, gemendo ainda
nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a noite era
límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças
tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera até à
última gota do vinho do deleite...
Quando
dei acordo de mim, estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um
templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto. Abri-o. Era o de uma
moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas
da morte na fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos
mal-apertados... Era uma defunta! E aqueles traços todos me lembraram uma idéia perdida... Era o anjo do cemitério!
Cerrei as portas da igreja que, ignoro porque, eu achara abertas. Tomei o
cadáver nos meus braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...
Sabeis a
história de Maria Stuart degolada e do algoz, "do cadáver sem cabeça e do
homem sem coração", como a conta Brantôme? — Foi uma idéia singular, a que
eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela
assim. Rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela, como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão
branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra
os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei-lhe em perdição aquela
vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito,
à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia
reanimar-se. Súbito, abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de
uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços
azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia,
contudo, alguma coisa de horrível. O leito de lajes, onde eu passara uma hora
de embriaguez, me resfriava. Pude, a custo, soltar-me naquele aperto do peito dela...
Nesse instante, ela acordou...
Nunca
ouvistes falar de catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho
gelado em que sentem-se os membros
tolhidos e as faces banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!
A moça
revivia a pouco e pouco. Ao acordar, desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu
sudário, como uma criança. Ao aproximar-me da porta, topei num corpo.
Abaixei-me e olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja, que aí dormira de ébrio,
esquecido de fechar a porta...
Saí. Ao
passar a praça encontrei uma patrulha.
— Que
levas aí?
A noite
era muito alta: talvez me cressem um ladrão.
— É minha
mulher, que vai desmaiada...
— Uma
mulher? Mas, essa roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?
Um guarda
aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria.
— É uma
defunta
Cheguei
meus lábios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida, ainda.
— Vede —
disse eu.
O guarda
chegou-lhe os lábios: os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo... O punhal
já estava nu em minhas mãos frias...
—
Boa-noite, moço. Podes seguir — disse ele.
Caminhei.
— Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo e eu sentia que a moça ia
despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço...
Quando eu
passei a porta, ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...
Mal eu
fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos, meus companheiros,
que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse.
Fechei a
moça no meu quarto e abri.
Meia hora
depois eu os deixava na sala, bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que
não notassem a minha ausência.
Quando
entrei no quarto da moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso, como a insânia,
e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la.
Dois dias
e duas noites levou ela de febre, assim.
Não houve
sanar-lhe aquele delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e
dois dias de delírio.
À noite,
saí. Fui ter com um estatuário que trabalhava perfeitamente em cera e
paguei-lhe uma estátua dessa virgem.
Quando o
escultor saiu, levantei os tijolos de mármore do meu quarto e, com as mãos, cavei aí um túmulo. Tomei-a, então,
pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda e fria, beijei-a e
cobri-a, adormecida no sono eterno, com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu
túmulo e estendi meu leito sobre ele,
Um ano, —
noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam... Um dia, o estatuário me
trouxe a sua obra aguei-lhe e paguei o segredo...
— Não te
lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu
cortinado? Não te lembras que eu te disse que era uma virgem que dormia?
— E quem
era essa mulher, Solfieri?
— Quem
era? Seu nome?
— Quem se
importa com uma palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios?Quem
pergunta o nome da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos,
quando nem há dele mister por escrever-lhe na lousa?
Solfieri
encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um dos convivas tomou-o pelo braço.
—
Solfieri, não é um conto, isso tudo?
— Pelo
inferno, que não! Por meu pai, que era conde e bandido! Por minha mãe que era a
bela Messalina das ruas! Pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei
aquela mulher com meus pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! — guardei-lhe
como amuleto a capela de defunta. Ei-la!
Abriu a
camisa e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas.
—
Vedes-la? Murcha e seca, como o crânio dela.
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Nota:
Álvares de Azevedo: "Noite na Taverna" (1855)
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Nota:
Álvares de Azevedo: "Noite na Taverna" (1855)
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