sábado, 7 de setembro de 2013

Júlio Dinis: "O Canto da Sereia"

O CANTO DA SEREIA

— Metade mulher e metade peixe! Isso pode lá ser! Está a brincar com a gente ó ti' Cabaça. Ora!

— A brincar! Na minha idade não se brinca, rapazes. É verdade o que lhes digo. Assim me Deus salve, como muita vez o ouvi contar ao meu pai. Senhor o chame lá! Dizia ele que do seu avô o sabia. Já se vê que isto vem dos antigos.

O diálogo, cujas últimas palavras acabamos de escrever, travara-se entre um grupo de pescadores da costa do Furadouro que, deitados uns, outros sentados e em variadas posições na areia da praia, procuravam, fumando e conversando, aproveitar as horas de forçada ociosidade a que o estado do mar os constrangera naquele dia.

Era por uma tarde dos fins de Maio.

A abóbada celeste tingira-se dessa sinistra cor plúmbea, prenúncio de tempestades iminentes e, por um conhecido efeito de ótica, parecia abater-se cada vez mais sobre aquela extensa planície arenosa, limitada ao ocidente pelo mar e ao oriente pela longa cintura de pinheirais que protege, contra a invasão de assoladores turbilhões de areia, a populosa vila de Ovar.

As vagas inquietas e irritadas sob a influência do poderoso agente elétrico que se condensava nos ares, e refletindo à sua superfície encrespada a cor escura e quase metálica do céu, aumentavam o aspeto sombrio e carregado da perspectiva.

Respirava-se a custo uma atmosfera abraseada e sufocadora e, de vez em quando, levantava-se do sul um vento leve, mas quente e árido, como se viera de atravessar uma vasta região devorada pelas chamas de incêndio destruidor.

O escuro dos palheiros, ainda inabitados naquela época do ano, e o das pequenas recoletas, onde vivem miseravelmente as mais pobres famílias de pescadores, longe de imprimirem aparências de vida e animação à feição severa e melancólica do quadro, antes parecia concorrerem para lha exagerar, talvez recordando épocas de maior movimento na praia e fazendo, pelo contraste, sentir o seu atual abandono.

As companhias não trabalhavam naquela tarde. Os arrais, estudando com os olhos experimentados a cor do céu, o rumo do vento, a forma das nuvens e a ondulação particular das vagas, prudentemente mandaram recolher as lanchas à praia. Esta não apresentava, portanto, aquele laborioso tumulto e confusa agitação que acompanha sempre o trabalho das pescarias.

Apenas algumas crianças de pernas nuas, crestadas pelo sol e pelas brisas marítimas, lutavam umas com as outras na areia ou brincavam com as ondas, ora correndo para elas, ora fugindo-lhes, mas nem sempre com a presteza necessária para no movimento do fluxo não serem alcançadas, acontecimento que era sempre saudado com estrepitosas gargalhadas e apupos. Dos pescadores, uns tinham ido saborear à vila o tempo de tréguas que lhes concedera o mar, outros refocilavam-se na taberna da tia Salgada, a mais afamada da costa do Furadouro, com longas e preciosas libações do vinho da Bairrada que desafiava competências com os mais acreditados que se vendiam na vila; finalmente alguns mais sóbrios, dispersos em grupos na praia, conversavam tranquilamente, quando não dormiam ao som monótono das ondas e na convidativa cama de areia solta, que tão confortavelmente se lhes amoldava às formas do corpo.

O grupo, donde tinham partido as poucas palavras que pudemos ainda escutar, era um daqueles em que mais intensamente pareciam absorvidas as atenções pelo assunto que se discutia. Na posição e no gesto de quase todos os que o formavam, revelava-se uma ávida curiosidade, e o velho Cabaça, que tinha a palavra naquela ocasião, assumira certo ar de gravidade que não concorria pouco para o efeito produzido.

Era o tio Cabaça uma bela figura de velho, alentado e musculoso e de uma robustez de organização que reagia ainda, vitoriosamente, contra o peso dos anos.

Era tido em grande conta na companhia, não só pelo muito que entendia de coisas do mar, como pelo bem que sabia contar histórias curiosas, crônicas dos tempos passados, recebidas por tradição dos seus pais e que de boa vontade transmitia aos jovens, que o escutavam sempre atentos, embebidos naquelas recordações, quase todas gloriosas para a gente do mar.

Desta vez, porém, o objeto da narração parecia ter encontrado incrédulos entre o auditório, cujo ceticismo chegara a manifestar-se por aquela exclamação de dúvida, com que abrimos o primeiro capítulo desta singela e despretensiosa história.

O velho protestara, como vimos, pela veracidade do fato; mas ainda assim, encontrou uma voz de incrédulo que redarguiu:

— Essa lá me custa a crer, ti’ Cabaça. Eu sei que há muitas estranhas e esquisitas castas de peixes lá por esses mares de Cristo. Velho não sou eu nesta vida de pescador e, contudo, posso já dizer, sem me gabar, que tenho visto alguma coisa e que não ando nisto de todo às cegas. Vi já alguns peixes levantarem voo como os pássaros, outros eriçados de espinhos, que nem ouriços; já experimentei o abalo que causam as tremelgas vivas quando se lhes toca com o pé, e até um dia me mostraram de longe o chafariz de água que fazem as baleias ao respirar, mas agora as tais sereias... na verdade... peixes que falam e que cantam como a gente!...

— Que falam e que cantam, sim, senhor, que falam e que cantam. E então  que falar e que cantar! Não é lá qualquer coisa! Eu só queria que vocês  ouvissem o meu pai, que Deus haja, contar o caso.

— Mas então diga-nos mais por miúdo como isso foi — exclamou do lado  um jovem pescador, que se mostrava excessivamente interessado com a  história e mais disposto do que o seu companheiro a acreditar na existência do  fabuloso animal de que falara o velho.

O tio Cabaça sacudiu fleumaticamente a cinza do seu volumoso cachimbo,  soprou ao tubo para o desimpedir, fez nova provisão de tabaco e acendeu-o  — tudo isto com movimentos pausados — e, depois de expelir a primeira  baforada, começou, revestindo-se da devida gravidade, a narração que se lhe  pedira.

— O caso que lhes vou contar sucedeu, pelos modos, no tempo em que o  meu avô era ainda rapaz. Vai por isso... Eu sei lá!?... há mais de um cento de  anos bem contados.

Tinham ido certa tarde as companhias para o mar. Nos lanços da manhã a  safra havia sido pequena, apesar de ter esperado que a sardinha, fugindo à  trovoada que toda a semana andara pelo mar alto, viesse em abundância à  costa. Mas, como tal não sucedera, tiveram de se fazer de tarde os barcos mais  ao largo. Estava um tempo assim como hoje: os ares soturnos, o vento sul e o  mar picado. Largaram-se as redes e seria aí pelo fim da tarde quando de novo  remaram para a praia. Chega não chega, desembarca não desembarca, era já  lusco-fusco. O mar começou então a levantar-se mais, sem que tivesse havido  mudança de vento ou coisa que fosse motivo para isso. Os homens mais  entendidos das companhias não podiam dizer o que adivinhava o mar, que  assim tão do pé para a mão se fizera ruim. Este dizia uma coisa, aquele dizia  outra, tantas cabeças, tantas sentenças, e ninguém se entendia.

«No entretanto puxavam-se as redes para terra; a canalha fazia, cantando, a  algazarra do costume, os homens berravam como... vocês berram ainda agora,  rapazes... eis senão quando...

Um movimento de curiosidade se manifestou na assembleia quando o velho  Cabaça chegou a este tópico da sua descrição, que ele, como profundo  conhecedor da arte de impressionar os auditórios, soube fazer valer por uma  pausa conveniente e uma particular e expressiva inflexão de voz.

Depois correu a vista por todos aqueles rostos, eloquentes de curiosidade e,  satisfeito consigo pelos dotes oratórios de que se percebia possuidor,
continuou:

— Eis senão quando, começou-se a ouvir uma música, a modo de música  de igreja.

— De instrumental, ti' Cabaça?

— Não, homem, daquela música que se toca nas igrejas do Porto.

— Já sei, é a dos realejos.
  
— Não é dos realejos, não; é dos orgos, orgos — emendou um outro,  melhor informado sobre a matéria.

— Pois é verdade! — continuou o orador. — Começou-se a ouvir aquela  música e logo todos se calaram a escutar. Pareceu-lhes depois mais uma voz  de mulher que chorava e que rompia em altas queixas. Olharam em redor para  ver donde partia aquilo e quanto mais olhavam mais se lhes afigurava virem  do mar os tais choros e gemidos. Contudo, por mais que reparassem para as  ondas, nada podiam enxergar. Continuavam puxando as redes e continuavam  a ouvir as vozes, que cada vez aumentavam mais. Havia já quem pensasse ser  feitiçaria aquilo.

— Feitiçaria, sim. Bem me fio eu nisso — disse, não desmentindo o seu  provado ceticismo, o mesmo pescador que pusera em dúvida a existência das  sereias.

O velho Cabaça julgou do seu dever corrigir a incredulidade deste  companheiro, a qual lhe ia parecendo demasiada.

— Homem, sabes que mais? Pede a Deus para que não venhas à tua custa  a fiar-te em bruxedos e feitiços. Tu fazes-te muito valente, meu rapazote, mas  acautela-te, porque um dia... — E operando uma rápida diversão no curso das  suas ideias, o velho prosseguiu:

— Mas no meio deste «que será que não será» estavam as redes chegando à  praia; o choro ouvia-se ainda mais claro, até que enfim... viram os pescadores  a coisa mais maravilhosa, que ainda apareceu na costa.

— Era a sereia? — perguntaram, a um tempo, com ansiosa curiosidade  alguns impacientes, cujo ânimo lhes não deixara sofrer as delongas da  narração.

O tio Cabaça continuou imperturbável.

— Viram um animal que da cinta para baixo era um peixe completo.

— Um peixe?!

— Sem tirar nem pôr, escamas, cauda, barbatanas, finalmente, tudo.

— Ah! Barbatanas também?

— Também barbatanas.

— E da cinta para cima?

— Da cinta para cima era a mulher mais bonita que se tem visto no  mundo.

— Ah!

— Ora essa!

— Isso era arte do diabo!

 — E então tinha cabelo e dentes e...

— Era uma mulher perfeita; não lhes estou eu a dizer?

— Vou-me por esse mundo!

— Olhem os meus pecados!

— E então falava, ti' Cabaça?

— Pois dela é que vinha a tal carpideira e os tais choros que te disse.

— Ah! Estou para morrer.

— Eu se visse tal estarrecia.

— E que dizia ela, ti’ Cabaça?

— Chorava e carpia-se que metia mesmo dó. Toda a sua pena era tirarem- na do mar. O que ela pedia é que a soltassem da rede e que a deixassem voltar  para a água, pois só lá é que podia viver.

— E ela falava assim como a gente, ti' Cabaça?

— Pois então? E com uma voz e de uma maneira que fazia mesmo enternecer os mais empedernidos. — E o narrador, forçando a voz a um  desafinado falsete, para lhe dar a mais feminil modulação de que ela era  suscetível, tentou, pouco modestamente, reproduzir o timbre fascinador da  sereia, dizendo, conforme a tradição que fielmente conservara:

«— Ai, soltai-me, soltai-me — dizia ela — deixai-me voltar para o mar, que,  se me levais para terra, eu morrerei logo.

— Pobre rapariga!

— Pobre peixe! — emendou outro.

— E porque há de ser peixe e não rapariga?

— O quê? O quê? Aquilo tem lá alma?

— Eu sei lá se ela tem alma?

— Que dizes tu, homem, nem que fosse gente cristã!

— Mas ela que falava...

— Isso é por artes do mafarrico.

O velho Cabaça prosseguiu, depois de terminada esta acidental discussão  psicológica:

— Houve ainda assim quem quisesse tirá-la para seco, mas tais foram os  seus queixumes, que o arrais, comovido, mandou soltá-la da rede.

— E era muito grande, ti’ Cabaça?

— Assim como uma corvina... taluda.

— Está feito!

— Logo que se viu livre — continuou o orador — fugiu nadando, como  um peixe que era, mas a cantar e com tanta aquela que nem música de anjos  do céu pode ser tão linda. Era um cantar de tal casta, que toda a companhia se  deixou ficar a escutá-lo, sem se lhe importar com a sardinha que já estava na  areia. As cachopas da vila, que tinham vindo aos caminhos para o Carregal,  não queriam saber de outra coisa que não fosse ouvir aquela voz. E assim  ficaram todos postos enquanto ela se pôde ouvir e só depois se deitaram ao  trabalho, ainda que com bem pouca alma.

Foi então que um pescador velho disse ser aquilo uma sereia e que bem mal  tiniam feito na deixar fugir, pois de nada sabia tão perigoso para os  marinheiros como encontrá-las no mar largo ou escutá-las muito tempo.

— Então o que fazem elas, ti’ Cabaça? — perguntou um dos pescadores  mais jovens e que de todos parecia também o mais interessado pela narração.

— Com aqueles cantos — respondeu o interpelado — pelos modos  atordoam a gente, que fica assim como com uma bebedeira. Não se faz mais  coisa com coisa, não se atina com o governo do leme, nem com o das velas ou  dos remos. Nestes comenos elas levantam o mar e um homem vai para os  peixinhos que é mesmo uma consolação.

— E nunca mais voltou à costa essa... esse peixe? — perguntou ainda o  mesmo pescador.

— Nunca mais até hoje. Ele anda sempre muito ao largo e só quando  alguma trovoada forte o escorraça é que foge para as costas.

Seguiram-se vários comentários sobre a plausibilidade do caso. O tio Cabaça  contara-o com tal acento de convicção, e era tão pouco dado a gracejos o  velho pescador, que todo o auditório se sentiu inclinado a admitir o caráter  verídico do fato extraordinário que lhe acabara de ser narrado.

Depois de muito conversar, dispersou-se finalmente o grupo, aí pelo cerrar da  noite, e a taberna da tia Salgada viu aumentar o número dos hóspedes e o das  bocas que faziam justiça, por palavras e obras, às excelências do seu Bairrada.  

Na praia apenas ficaram dois homens.

Um era o tio Cabaça, que, sentado, com as mãos entrelaçadas por diante dos  joelhos e o cachimbo pendente dos lábios crestados, olhava para as ondas que  se sucediam na areia e parecia absorvido em profunda meditação.

Este hábito de cismar gera-o a continuada contemplação das cenas marítimas.

O homem que vive e envelhece a escutar aquela música das ondas, que do  alvorecer ao crepúsculo é embalado por elas, o que alternadamente as  conheceu afáveis e irritadas, que delas recebeu carícias e ameaças e as viu ora  suavemente iluminadas pelo luar, ora refletindo a luz sinistra dos relâmpagos,  surpreende-se muitas vezes nestas silenciosas e inexprimíveis divagações do  espírito, tão frequentes nos poetas.

Em todos os portos de mar se encontram, ao fim da tarde, desses velhos  cismadores que, aparentemente atentos nas formas em que se condensa no ar  o fumo do seu cachimbo, trazem por bem longe o pensamento, talvez que a  colher saudades nas recordações daquele viver incerto de marinheiro, para  cujas laboriosas peripécias os anos os invalidaram já.

O velho Cabaça começava a pensar nessa época próxima, na qual lhe havia de  fraquejar o braço que ainda movia vigorosamente o remo; nesses longos dias,  em que, preso à terra, se veria obrigado a ocupar-se num trabalho de  mulheres, reparando as redes da companhia.

Aquele futuro tranquilo, reservado à sua velhice, entristecia-o, como, nos  tempos de brios cavalheirosos, desanimava o guerreiro a ideia de uma morte  que não fosse no meio da refrega e disputada até ao último suspiro com feitos  de arrojada bravura.

Por isso o tio Cabaça tinha frequentes momentos de melancolia.

O outro homem era o jovem pescador, a quem tanto interessara a história da  sereia, contada pelo primeiro, havia pouco, e que, desde que a ouvira, parecia  haver ficado sob o domínio de uma profunda impressão.

A alta estatura deste jovem pescador, as suas formas bem desenvolvidas e a  fisionomia expressiva de inteligência e vivacidade, davam-lhe um certo ar de nobreza e resolução que fazia lembrar aquele célebre herói napolitano, o  ousado e patriótico Mazaniello.

As amplas e pitorescas vestes de pescador deixavam sobressair todas as  vantagens da sua vigorosa e excelente corporatura.

Era uma organização cheia de vida e de robustez, a daquele rapaz, em cujo  rosto trigueiro e imberbe se desenhavam neste momento os sinais evidentes,  ainda que desvanecidos, de uma certa preocupação de espírito.

Por baixo do clássico gorro de lã escarlate saíam-lhe profusos os cabelos, que  lhe vinham quase poisar nos ombros. Com os braços cruzados e a cara  pendida, este homem passeava silencioso no extremo da praia, tão próximo  das ondas, que estas, nos maiores fluxos, chegavam a alcançá-lo sem que  mesmo assim conseguissem distraí-lo daquela abstração em que parecia  concentrado.

Este pescador que com o velho Cabaça ficou na praia, o Pedro do Ramires,  andava, de há tempo, apreensivo e taciturno. Possuía instintos de poeta, o  malfadado.

Foram esses instintos que o impeliam para aquela irresistível tendência à  solidão, os que lhe faziam perceber, no som plangente das vagas, modulações,  para as quais os seus companheiros não tinham sentidos organizados, que por  muito tempo o conservavam imóvel, a seguir com a vista aquelas ondas  espumosas que se desfaziam na areia, as formas extravagantes das nuvens, os  contrastes surpreendentes da luz que as atravessa ou se reflete nelas,  colorindo-as com inimitável paleta, a curva descrita na amplidão pela ave  aquática de voo rápido, e até o estalar do trovão e o fuzilar dos relâmpagos em  noites de tempestade.

Pedro sentia, e por infelicidade sua, sentia com excesso. Este mundo,  evidentemente, não foi feito para quem sente assim! Aceitava, porém, as  impressões que recebia sem se lembrar de as discutir; aceitava-as como um  quase fatalismo, que nem lhe deixava pensar na possibilidade de se subtrair a  elas.

Via que por toda a parte o acompanhava uma como atmosfera de inebriantes  aspirações e recebia a influência balsâmica desse ambiente sem se interrogar  sobre a natureza dele.

Sentia, sem a conhecer, a poesia da natureza, a que se revela em cores, em  sons e em perfumes e que desperta a poesia do sentimento em almas  organizadas para esses sublimes acordes. Era um poeta sem ter a consciência  de o ser, sem ter sequer a consciência da poesia.

Quando esta espécie de encarnação de um segundo verbo, mistério original  dos entes privilegiados que se dizem poetas, se opera em espíritos que a  educação não vem cultivar depois, surgem caracteres, como o de Pedro, nos  quais se passam os mais estranhos e admiráveis fenômenos que pode oferecer  ao estudo a natureza humana.

É uma luta contínua, um antagonismo inútil, um combater desesperado de  aspirações que se estorcem impotentes sob a cadeia que lhes sopeia os  esforços. Algemados Prometeus que têm por principal suplício os irrealizáveis  anelos do seu próprio gênio! Tântalos, sequiosos de um ignoto licor, que  adivinham, sem o conhecer, como o alívio único à ansiedade que os martiriza!

— Mas em que andavas tu a cismar agora que nem sequer me vias, de tão  perto que estavas?

— Diga-me, ti' Cabaça, sempre será verdade que existem sereias?

O interrogado, recebendo à queima-roupa a interpelação, vacilou um bocado;  assumiu, porém, em breve, todo o seu sangue-frio e respondeu:

— Conquanto eu as não visse, nem ouvisse nunca — e nem disso me resta  pena — creio que as há, pelo que já disse do que muita vez ouvi contar ao  meu pai — o Senhor o chame a si.

— E é certo que esses peixes ou essas mulheres, que não sei ao certo  como lhes chame, cantam às maravilhas?

— Assim o dizem. Pelos modos é com esses cantares que elas perdem os  navegantes no alto mar. Poucos são os que têm força para as não seguir, só  para escutar-lhes aquela música de anjos.

Pedro ficou novamente silencioso e pensativo. O velho pescador respeitou  por algum tempo aquele silêncio, mas enfim dirigiu ao seu companheiro uma  súbita interrogação.

— Mas para que diabo queres tu saber isso, rapaz?

— É porque... — Pedro ia a responder, mas outra vez hesitou.

— Porque é? Fala!

— Olhe, ti’ Cabaça. Vou dizer-lhe uma coisa; mas não se ponha a rir de  mim, que juro-lhe, pela minha mãe, ser verdade tudo quanto me ouvir.

— Fala lã, rapaz — respondeu o tio Cabaça, que tomou logo um ar sisudo e grave, ao ouvir a invocação a que recorrera Pedro e já deveras interessado  pela comunicação que ia receber — Fala, que eu te escuto.

— É que eu... ouvi já cantar uma sereia, ti’ Cabaça — disse Pedro em tom  misterioso e interrogando ao mesmo tempo a fisionomia do velho, a ver o  gênero de impressão que esta nova produzira nele.

— Ouviste cantar uma sereia! — disse João Cabaça deveras surpreendido.

— Quando?

— Há algumas noite a fio que a escuto.

— Onde?

— Aqui, da praia. É uma música de anjos que vem das ondas. Uma música  como ainda a não ouvi em parte alguma. Não é alegre e divertida, como a das  festas e arraiais; nem séria e de devoção, como a que cantam as mulheres na  vila à missa-do-dia, ao consagrar da hóstia e do cálix; mas é uma música triste,  saudosa, uma música que me faz chorar. A voz que canta parece de mulher,  mas, ao ouvi-la, até chego a esquecer-me do lugar em que estou. Sabe? A   praia, o mar, as estrelas, o céu, tudo desaparece diante de mim. Parece-me que  então só sei viver para ouvir aquela voz no meio do barulho das ondas, que  não consegue abafá-la. Procuro, apesar da escuridão da noite, descobrir a  mulher, se é mulher, eu sei? a fada, talvez o anjo, que canta assim, mas nada  pude ainda ver. Sinto em mim uma coisa que não sei bem dizer o que é.  Queria seguir aquela voz. Tenho sentido desejos de me deitar às ondas para  ouvir de mais perto aquele cantar divino. É quase uma tentação tão forte que  lhe tenho resistido a custo e não sei se alguma vez...

O velho pescador segurou com ímpeto no braço de Pedro, como se naquele  momento o visse já próximo a seguir a voz que perfidamente o atraía.

— Que te livre Deus de tal, rapaz! — exclamou João Cabaça. — Não te  disse eu que corre à sua perdição quem se deixar levar por esse canto que  parece de anjos, mas que é antes de demônios?

Pedro prosseguiu:

— Eu perguntava há muito a mim mesmo que mistério seria aquele. Ao  princípio julguei que fosse um engano dos meus ouvidos. Os ventos da noite  e o barulho das ondas soam às vezes de maneira que semelham uma música a  distância, mas era diferente o que eu ouvia: os pássaros do mar, gemendo às  noites pelas praias, imitam também queixumes e gemidos, mas eu que nasci e  tenho vivido a escutá-los bem lhes sei distinguir o canto; se o tempo é  sossegado e o vento favorável, o cantar dos marinheiros de algumas  embarcações que pairam ao largo chega-nos aos ouvidos confuso e quase  sumido; mas a música que eu escutava não era para se confundir com aquela.  Era de mulher a voz, mas o estilo do cantar não era o da nossa terra. Nunca  até então o tinha eu escutado, não sei até se nalguma parte do mundo se canta  assim. Quando há pouco lhe ouvi a história da sereia, foi como se uma luz me  iluminasse na escuridão em que estava. É aquele, deve ser aquele o canto de  que falavam os antigos pescadores. Nem eu sei que outro possa haver mais  para nos confundir e perder. Bem vejo que pode ser perigosa para os  marinheiros, porque, digo-lhe uma coisa, se aquela voz cantasse do fundo de  um abismo, parece-me que poucos se venceriam para, levados por ela, se não  precipitarem.

A praia estava, enfim, completamente deserta.

O vento tinha virado a oeste. Nuvens cada vez mais negras e grandes como  montanhas, levantavam-se do ocidente, semelhantes a informes monstros  marinhos, surgindo do seio das águas. Bandos de aves aquáticas ora baixavam  o voo ligeiro até roçarem com as asas pela superfície das ondas, ora se  erguiam a perderem-se de vista no espaço nebuloso, onde por algum tempo  volteavam em curvas complicadas; depois soltando gritos agudos e lastimosos,  desciam de novo em parábolas de extensa curvatura, para colherem do oceano  a presa que com o olhar penetrante tinham descoberto da altura em que se  libravam.

Por toda aquela imensa amplidão de água nem uma vela, nem um pequeno  barco sequer; na longa planície de areia que forma esta povoação da costa,  eram os palheiros escuros e fechados, as lanchas em seco ou alguma  embarcação, ainda de menor lote, a única diversão que encontrava a vista  cansada da monotonia da perspectiva.

Tinham chegado as horas talhadas para o descanso e os pescadores, que  tinham com o sono antigas dívidas a solver, encerravam-se nas acanhadas  recole tas, onde quase miraculosamente se albergam numerosas famílias desta  pobre gente e, dentro em pouco, estavam experimentando quanto é fácil a um  espírito tranquilo e a um corpo fatigado encontrarem as restauradoras delícias  do sono, ainda que em camas bem pouco de apetecer.

A Pedro do Ramires, porém, sobrava-lhe imaginação para o não deixar, tão  facilmente como os seus companheiros, saborear este prazer. As horas da  noite eram as suas prediletas, eram as suas horas de vida. Então podia ele, sem  despertar estranhezas, ficar imóvel a olhar para as ondas, essas suas  companheiras inseparáveis, com as quais brincara tantas vezes em criança e  que pareciam conservar ainda para ele uma linguagem misteriosa,  corresponder-lhe, saudá-lo como a um antigo conhecimento.

Aquele caráter, essencialmente contemplativo, sentia-se livre e desafogado  então. Não havia ninguém a espiar-lhe no rosto o refluxo dos encontrados  pensamentos que de contínuo o assaltavam; ninguém a perguntar-lhe a causa,  por ele mesmo talvez ignorada, de um sorriso instantâneo, de uma melancolia  mais duradoura, e às vezes até de uma lágrima, em que a sua tristeza habitual  parecia de vez em quando condensar-se, raras crises que por momentos lhe  desanuviavam o espírito visionário.

Por isso caminhava longas horas pensativo pelo ermo da costa.

Parecia procurar acalmar, por esta forma, a vaga inquietação que sentia em si.  Como se aquela ânsia que o devorava fora a necessidade de movimento!

Pobre alma! Iludia-se na sua ignorância. A atividade a que tendiam as suas  aspirações não era aquela; não se realiza assim. O movimento dos afetos, as  lutas da inteligência, o estímulo da glória, os gozos da vida do espírito, tudo  isso ela procurava, mas, cega, andava tateando um caminho bem longe do que  a devia conduzir ali. Como não teria de sucumbir no empenho! Como não  cairia exausta de forças, e abatida pelo desalento? Que vale ao febricitante a  incoerente convulsão em que se revolve no leito? Mitigam-lhe, acaso, esses  movimentos o angustioso escaldar do fogo que lhe circula nas veias? No  mesmo caso estava Pedro ao procurar satisfazer os seus indecifráveis anelos,  correndo pela beira-mar, às vezes possuído de uma verdadeira alucinação.

Esta noite, em que tivera lugar o diálogo entre ele e o velho João Cabaça, foi  uma daquelas em que Pedro do Ramires prolongou até horas adiantadas o seu  passeio habitual, seguindo para o sul da costa.

Absorvido nos seus pensamentos, caminhou insensivelmente a passos rápidos  e desiguais, até deixar a uma grande distância os palheiros da povoação do  Furadouro.

Por este tempo já a escuridade da noite era completa, antecipada, como fora,  pelos cúmulos de nuvens que, partindo do ocidente, se tinham, em pouco,  espalhado por toda a abóbada celeste.

O jovem pescador parou enfim; parou e pôs-se a olhar vagamente para o mar,  como se, de mistura com o clamor das ondas, esperasse receber alguma voz  que lhe fosse destinada.

Depois quase se deixou cair na areia da praia e, pousando a cabeça nas mãos  encruzadas, deitou-se e fitou os olhos nas nuvens, como se nas formas  irregulares que elas desenhavam no espaço estivesse lendo uma página  misteriosa escrita em caracteres desconhecidos.

E assim se conservou durante horas, não o inquietando a violência do vento  úmido que lhe açoutava as faces, os gritos roucos e angustiados de alguma  ave que fugia à borrasca iminente, nem o rumor surdo que já se escutava de  vez em quando, eco ameaçador de tempestades longínquas.

Mas, de súbito, estremeceu, levantou sobressaltado a  cabeça e, recostando-se ao braço, trêmulo de inquietação, dirigiu a vista para  aquele espaço tenebroso que se estendia diante dele, como pretendendo  devassar na obscuridade da noite o que quer que fosse que tão repentinamente  o arrancara da imóvel contemplação em que se conservava havia tanto.

A noite foi, porém, discreta; não ergueu uma só ponta do seu manto para  revelar o mistério. Pedro continuava na mesma posição tão expressiva de  ávida curiosidade que de repente tomara.

Pouco a pouco as notas maviosas de um cantar distante chegaram, como um  eco ainda mal apreciável, aos ouvidos atentos do pescador.

Escutando-o, ele erguia-se fremente e agitado sobre os joelhos e, de mãos  postas e a cabeça inclinada na direção donde lhe chegava esta voz,  conservava-se imóvel e em profundo recolhimento, como um eleito do  Senhor recebendo em êxtase a inspiração divina. Aquele som contrastava, na  sua melodia e suavidade, com o bramir discorde das vagas, que batiam  violentas na praia.

Dir-se-ia o canto de algumas dessas fadas que, segundo as crenças populares,  atravessam extensas regiões marítimas em fantástica viagem e sob um fatal  encantamento.

Pedro escutava embevecido aquela música cuja toada lhe era estranha e de um  estilo inteiramente diverso do das canções populares, únicas que até então ele  tinha conhecido.


Falava-lhe por isso poderosamente à imaginação esse canto, cujas palavras a  distância lhe não permitia ainda perceber.

A invisível cantora parecia aproximar-se; percebiam-se agora melhor as  modulações sonorosíssimas daquela voz potente e argentina que conseguia  dominar o ruído das vagas e que se estendia ao longe pela praia, como à  procura de um eco que a repercutisse.

Agora já a letra da canção podia ser percebida. Mas, se o estilo pouco vulgar  daquela música causara já estranheza e influíra poderosamente no ânimo agora  excitado do jovem pescador, a linguagem desconhecida de que era  acompanhada não lhe produzia menor impressão. Ignorava o que dizia, mas  achava-lhe qualidades musicais que o enlevavam ao escutá-la. Era uma  linguagem cujas palavras pareciam ter um sentido universalmente apreciado,  em tão perfeita e inexplicável concordância pareciam estar com as ideias e  sentimentos que exprimiam.

De repente pareceu-lhe distinguir um ruído, como o do bater de remos na  água e, com a vista excitada de pescador, julgou reconhecer, não obstante o  tenebroso da noite, uma forma negra movendo-se no cimo das ondas,  erguendo-se, abaixando-se, desaparecendo para tornar a surgir e a elevar-se e como demandando a praia com esforços porfiados!  

Pedro fitou aquele objeto com ansiedade. Nas formas mal distintas, nos  movimentos, no som particular que produzia ao caminhar, dividindo as águas,  parecia-lhe um destes pequenos barcos que os pescadores chamam  chinchorro, frágeis esquifes em que esta intrépida gente do mar tantas vezes  arrosta, a esforços de poucos braços, com a violência das ondas.

Impelido pela força do vento e pelo esforço dos remos, este barco cada vez se  aproximava mais da praia. Pedro não sabia ainda se era dele que partira o  canto que havia seis noites o trazia enlevado pela solidão da costa marítima e  que, depois da história narrada pelo tio João Cabaça, muito seriamente  atribuía já à soberba e artificiosa filha das ondas, de que se julgava vítima.

À medida, porém, que ele se avizinhava, pôde perceber o som de várias vozes  de timbre diverso empenhadas num diálogo animado; e, cedo, a pouca  distância a que já vogava da costa tornou distintas as seguintes palavras:

— Eu bem disse à Madama que era perigoso o passeio numa noite destas.  O mar não é o rio, e...

Isto dizia uma voz rouca e áspera, à qual outra de timbre melodioso e  vibrante, e que evidentemente pertencia à pessoa a quem fora dirigida a  insinuação, respondeu:

— Acaso me competirá a mim dar ânimo a homens que, desde criança,  vivem no mar? Que vergonha! — E riu-se. Estas palavras foram ditas com  uma certa inflexão, que denunciava a origem estrangeira da que as  pronunciara.

Pedro reconheceu nesta voz a da cantora desconhecida e o coração  sobressaltava-se-lhe a escutá-la.

A voz rouca respondeu à arguição que a outra lhe fizera:

— Não, Madama, não somos nós que temos medo do mar e tanto que não  pusemos pecha na trazermos aqui. Mas por um divertimento, brincar assim  com as ondas; escolher uma noite escura, fria e ventosa para vir cantar desta  forma ao ar livre, quando estão aí ã porta tantas de luar claro, como o dia! A  falar a verdade...

Uma risada jovial respondeu à observação e a mesma voz feminina replicou:

— Parece-lhes tudo isto uma loucura, não é assim? Pobres homens! E  talvez tenham razão. Mas eu quero satisfazer as minhas loucuras todas. Sinto  nisto um prazer!... Mas não se inquietem. Eu conheço alguma coisa o mar e  sei ler na direção do vento e no aspeto das nuvens as mudanças prováveis do  tempo. Estudei as tempestades da minha terra. Nasci como vós à beira-mar.  Os meus pais eram pescadores também. O berço que me embalou nos meus  primeiros sonos foi o barco em que toda a minha família se transportava; a  rede a coberta única em que muita vez me envolveram para dormir. Aprendi  assim, de pequena, esta música das ondas, de pequena me costumei a cantar  com elas. Depois que a sorte me impeliu nesta vida artística, errante e  aventureira que tenho seguido, não esqueci nunca as predileções dos meus  primeiros anos. Sou como as aves aquáticas; ando sempre junto às costas  marítimas. A escola em que aprendi foi a escola do mar; não me quero longe  deste mestre inspirado que me ensinou a arte sublime da música. Parece-me  que lhe sei já compreender os segredos todos; cada praia revela-me um novo  mistério de arte. As ondas do Adriático, o mar da minha terra, não cantam  como as outras. O mar é como o povo. Em cada país tem a música popular  um génio próprio, uma índole especial. Assim também o mar. Tenho escutado  as ondas de quase todas as praias da Europa. O mar Negro, o Mediterrâneo, o  Báltico, a Mancha, o Atlântico, todos têm uma modulação sua e que me  parece já saber distinguir. Nuns é mais majestosa e terrível a música das  tempestades; outros têm mais suaves harmonias nas noites sossegadas de  calma. Já veem que eu e o mar somos antigos companheiros. Ele entende-me  e eu também o compreendo. Sosseguem, pois; eu não me iludo com a sua  agitação desta noite. Bem cedo o veremos tranquilo.

Os pescadores não responderam. Estranhas lhe deviam parecer estas palavras,  incompreensíveis até. A mulher que as pronunciara num tom de voz em que  se revelava toda a exaltação de um caráter entusiasta e ardente, falava mais a  si própria do que às rudes inteligências dos seus companheiros, nesta  extraordinária excursão marítima.

Pedro escutava, porém, aquelas palavras, com um entusiasmo de artista  apaixonado e como que se lhe comunicava o fogo oculto da imaginação que  as ditava. Sobressaltavam-no, como se lhe oferecessem a inesperada solução  de um enigma em que, muito havia, lidava a sua inteligência. É que o mar  também lhe falava. Ele pressentia-lhe uma linguagem que procurava adivinhar.  Longas horas passava nas praias a escutar aquele rumor melancólico e solene e  perguntava às vezes a si próprio o que o retinha ali. As palavras da cantora  pareciam ter sido a resposta aguardada, há muito, àquela tácita interrogação da  sua consciência.

Havia, pois, mais alguém que, como ele, escutava as ondas e se deliciava com  a sua harmonia?

Passado algum tempo, a noite, como se quisesse confirmar o prognóstico da  desconhecida, começou a serenar um pouco mais, abrandou a violência da  ventania e as ondas vinham já quebrar-se com menos força nas areias da praia.

— Vejamos — disse a cantora —, que lhes dizia eu, homens sem  confiança no mar? Aí temos o vento sul par nos ajudar na volta. A que  distância estamos de Espinho?

— A légua e meia, Madama; ali mais adiante estão os palheiros do  Furadouro.

— Voltemos. Não lhes disse eu que era desnecessário aproximarmo-nos  tanto da costa? Ao largo! Ao largo!

Os pescadores obedeceram-lhe, o barco sulcou as ondas afastando-se da praia,  o rumor das vozes tornou-se cada vez menos distinto, mais confusa a forma  escura do barco, até que enfim tudo se confundiu na escuridão da noite e no  rumor monótono das vagas, já menos impetuosas.

Pedro ainda por muito tempo interrogou aquelas trevas e aquele ruído  confuso do mar ...

Era uma formosíssima noite de luar, aquela!

A alvacenta nebrina que se condensara na atmosfera aumentava o aspeto  teatral da cena, difundindo em toda ela um certo colorido vaporoso de  surpreendente efeito artístico.

As vagas onde a luz se quebrava em multiplicados e cintilantes reflexos  estendiam-se languidamente pela praia, com um brando murmúrio. Das  pequenas cataratas que, ao dobrarem-se sobre si, produziam as ondas  levantava-se um orvalho denso que retratava a luz num íris desvanecido.  Alvejavam ao longo da costa flocos de espuma que, num lento refluxo,  desciam de novo às águas, até que outra vaga os impelia mais longe.

Tudo era solidão! No mar, na praia e no céu! O mar sem um barco, a praia  sem uma habitação, o céu sem uma estrela! E a Lua, como uma lâmpada  mortiça pendente da vasta abóbada de um templo deserto, iluminava esta  majestosa e imponente solidão!

Pedro caminhava rápido por este vasto areal da praia e nem sentia o seu  isolamento, que povoada levava a fantasia por mil imagens e pensamentos   encontrados.

Era noite avançada quando chegou à vista dos palheiros de Espinho.

Palpitava-lhe de ansiedade o coração ao aproximar-se daquele lugar.

Aquelas sombras escuras em que se destacavam no horizonte, tingido de um  azul-pálido pelos reflexos do luar, os palheiros desta parte do litoral envolviam  uma mulher que, sem o suspeitar, se transformara em objeto de um culto  fervoroso para um mancebo em cujo coração virgem pela primeira vez se  ateara a chama ardente de uma paixão definida.

Pela primeira vez Pedro afrouxou a velocidade dos seus passos e parou  levando a mão ao coração como para lhe sentir as palpitações agitadas e  irregulares.

Dominando esta comoção momentânea, prosseguiu, porém, na sua marcha e  penetrou no centro da povoação. Estava quase deserta àquela hora. Pedro  correu, como em delírio, todas aquelas estreitas e tortuosas ruas de areia, que  seguiam por entre os palheiros, e parou em toda a parte onde imaginava  encontrar aquela que tão ansiosamente procurava.

Em cada sombra que se destacava no vão esclarecido de uma janela, supunha  ver o perfil da mulher a quem consagrara todos os afetos do coração, todos os  seus pensamentos e aspirações.

Cansou-o esta inútil pesquisa, desalentou-o este baldado procurar, e quase se  deixou cair, extenuado de forças e de esperanças, junto à porta de um  pequeno palheiro situado no extremo oposto da povoação. Assim  permaneceu alguns minutos sem consciência do que se passava em torno de  si, pensando no destino da sua paixão insensata e absorvido por amargas  ideias de que tantas vezes se lhe alimentava a imaginação.

Pouco a pouco começou a despertar-lhe a atenção, até ali poderosamente  distraída, um rumor de vozes que vinham do interior do palheiro à porta do  qual se encostara. Uma das que falava não lhe era desconhecida e esta  circunstância operou uma salutar diversão naquele preocupado pensamento,  afugentando-lhe por instantes o tropel de ideias negras que o assombravam.

Aplicando o ouvido à porta detrás da qual lhe chegava aquele sussurro, Pedro  pôs-se a escutai', com mal reprimida curiosidade, o que se dizia lá dentro.

— Sabes que a Madama nos tomou outra vez o barco para todo o resto da  semana? — dizia uma das vozes.

— Outra vez?! Julguei que desde aquela noite de ventania lhe passara o  gosto por estes passeios.  

— Em quanto a mim aquilo é mania. Pois não vês tu como ela não  aproveitou as belas noites que têm estado e agora diz que quer o barco, quer  chova, quer vente?...

— Estas estrangeiras têm destas coisas. Ela, pelos modos, é alguma  princesa; paga que nem uma rainha.

— O sor Morgado que aqui esteve a banhos o ano passado disse no outro  dia que a conhece do Porto. É uma fidalga estrangeira que anda a viajar.

— Há gente que vem a este mundo só para passar vida de rosas.

— E aborrecem-se dele. É ver como ela acha gosto naquilo que nos dá  pena a nós outros. Deu-lhe para cantar no mar!

— E olha que lá isso!... Sempre canta que é um gosto ouvi-la.

— Mas para que lhe havia de dar! Cantar no mar! A falar a verdade...  Aquilo nem sei o que parece!

— Deixa lá, homem. Para nós tem sido uma providência; às más pescas  que tem havido, de muito nos têm valido os tais passeios da Madama.

— Mas também caro pagamos esses lucros, que quando ela empreende  demorar-se por lá, nem que a levássemos a Lisboa a satisfaríamos.

— E então não há mar que a intimide. Uma mulher tão animosa ainda  estou para ver.

— Sempre é estrangeira! Será ela cristã?

— Ih! Não vês como fala tanto na Virgem? E as esmolas que dá! Não,  isso, boa senhora é ela. Verdade, verdade.

— Isso é. Tirante lá aquela veneta!...

— Quem tem dinheiro nem sabe em que o há de gastar.

— Quanto tempo se conservará ela ainda aqui na praia?

— Disse-me que até ao fim da semana. Depois vai para o Porto.

— Nem eu sei como se tem demorado tanto, agora que não é tempo de  banhos, e tudo isto está deserto.

Pedro escutava, com indescritível avidez, este diálogo dos pescadores;  esforçava-se por não perder uma só das particularidades referidas nele,  relativas à desconhecida viajante.

Nas disposições de espírito em que o apaixonado jovem estava naquele  momento, o nome só da pessoa que assim nos traz, como os dele, avassalados  os pensamentos, não é escutado sem uma extrema e agradável comoção.

Recolhia, como revelações preciosas, tudo quanto diziam os pescadores e  ardia em desejos de lhes dirigir milhares de interrogações a respeito da mulher  que eles tinham a ventura de transportar no seu barco às horas solenes da  noite e pela majestosa solidão do mar. Porque preço não pagaria ele esse  invejado prazer!

Desta quase extática contemplação foi finalmente arrebatado pelas vozes de  um piano que partiam do palheiro próximo. Pedro estremeceu, escutando os  prelúdios que uma mão exercitada extraía das teclas sonoras.

Poucas vezes, se algumas, Pedro tinha ouvido um piano. Aqueles sons  encantavam-no, estimulavam-lhe os vivíssimos instintos musicais que possuía,  ignorando-os, essa alma nobre de artista, criada para grandes concessões, que o  destino impossibilitava de realizar, condenando-a totalmente a sucumbir de  contínuo nos esforços a que, por instinto, obedecia desconhecendo sempre o  alvo em que eles se convergiam.

Depois teve um pressentimento de que a mão que despertava do silêncio da  noite aquela suave harmonia era a da mulher que ele procurara.

Que febril agitação então a sua! Era uma quase vertigem o que ele  experimentava!

— Ela aí começou a cantar. E então é como os rouxinóis... Canta só de  noite — disse um dos pescadores cujo diálogo Pedro estivera escutando.

Então a mesma voz, que tantas vezes o apaixonado rapaz escutara na praia, e  que por muito tempo julgara um mistério do mar, começou cantando,  acompanhada, desta vez, pelos acordes sonorosos do piano, que mais a fazia  sobressair.

Agora o estilo da música era suave e melancólico; era a canção da rosa, a ária  formosíssima da qual Flotow fez o motivo de toda a sua ópera, a Marta, e que  raros têm o poder de escutar sem que se sintam possuídos de uma profunda  comoção e com disposições para lágrimas.

A artista cantava-a na letra italiana da ópera, cuja tradução é,  aproximadamente, a seguinte:

Aqui, só, virgínea rosa
Como podes florescer!
Ainda em botão desditosa,
E já próxima a morrer!
Em vez do orvalho da vida
Cresta-te a neve e o tufão,
E já sobre a haste pendida
Inclinas a cara ao chão!

 Escutando aquela música elegíaca e sentida, Pedro experimentou uma  comoção ainda mais profunda que das outras vezes; não compreendendo a  letra italiana do canto, tal era a expressão da cantora e a eloquência da música  que ele ouvia-a com intenso recolhimento, como se escutasse a voz do seu  próprio coração. Esquecia-se de tudo, como nos esquecemos, levados pela  corrente dos nossos pensamentos, a escutar a nossa própria consciência.

Quando as últimas notas deste canto magoado se desvaneceram,  confundindo-se com o murmúrio do mar, Pedro, voltando a si do êxtase em  que esta música o arrebatara, sentiu que as lágrimas lhe banhavam as faces.

— Que é isto, meu Deus? — exclamou o pobre adolescente com um  acento de desespero. — Porque me faz chorar esta música? Porque me sinto  entristecer sempre que a ouço cantar, a esta mulher que não conheço, que  nem sequer ainda a vi? Que homem sou eu, tão singular! Jesus, Jesus! Será isto  uma loucura?

Tudo na praia recaíra em profundo silêncio. Pedro, com os olhos postos na  janela obscura, conservava-se imóvel, como se temesse desvanecer uma visão  deliciosa ou quisesse recolher as últimas e imperceptíveis vibrações sonoras que  um sentido superiormente organizado lhe permitia ainda apreciar.

Principiava a tingir-se o horizonte dos rubores da madrugada e Pedro em vão se esforçava por se arrancar dali. Prendia-o uma esperança; a de entrever, por  instantes que fosse, a mulher por quem concebera tão violenta paixão; instava  com ele, para partir, aquela espécie de pudor do coração, com que de todas as  vistas procuramos esconder os menores vestígios de um primeiro amor, tanto  mais ardentemente quanto maior é a sua candura e quanto mais digno ele é da  nobreza de sentimentos próprios da juventude.

Era já manhã alta quando Pedro voltou ao Furadouro.

Notaram a sua falta na companhia, que à hora do costume se fizera ao mar e,  segundo a lei, foi multado na parte do quinhão que lhe tocava.

Na noite desse dia reproduziu-se para Pedro a aparição do mar.

Foi pela altura dos palheiros, então ainda desertos, de Maceda e Cortegaça,  que ele a veio encontrar.

A noite estava tranquila, o mar sereno. A claridade da Lua, apenas velada por  um transparente cendal de tenuíssima nebrina, permitiu distinguir o vulto da  cantora que, recostada à proa, entoava uma música cheia de entusiasmo e  energia, uma espécie de hino patriótico, a cujas palavras ela sabia comunicar  todo o fervor do seu ânimo exaltado. Ainda desta vez foi contagioso para o  impressionável rapaz o sentimento que em todo aquele canto se refletia.

Assim como na véspera a melancolia do canto lhe tinha feito assomar aos  olhos lágrimas incompreensíveis, agora a energia, o ardor com que as palavras  pátria e liberdade eram pronunciadas pela cantora, comunicaram-se ao  enlevado mancebo, que experimentava um desses voluptuosos  estremecimentos e sensações indefiníveis que ressentimos nos movimentos de  entusiasmo, e nos transformam, e nos sublimam, elevando-nos acima de nós  mesmos e fazendo-nos capazes de superiores concessões e empenhos.

Ele caminhava na praia como atraído por aquela harmonia sedutora. Ela fugia-lhe já. O barco movia-se em direção ao norte. Pedro seguia-o, seguia-o com  uma velocidade que só lhe podia vir da alucinação que o dominava. Já mal se  percebia o canto, já quase se tornara indistinto o barco donde aquela música  partia, e Pedro, com o olhar fixo naquele ponto e com os ouvidos atentos à  desvanecida harmonia, caminhava ainda, e caminhou sempre, até que um  súbito obstáculo lhe tolheu os passos.

Estava em frente da Barrinha.

Quem viajasse há anos por esta parte da Província da Beira deve conhecer,  por tradição, senão por experiência, o ponto do litoral que recebeu este onde  tantos episódios, uns cômicos e outros trágicos, se sucederam, antes que se  construísse a ponte que hoje o viajante, ao percorrer a linha férrea, próximo à  estação de Esmoriz, descobre desenhando os seus quatro arcos sobre o fundo  esverdeado das águas do oceano.

A Barrinha é uma estreita abertura cavada pelo mar na costa de areia,  interrompida neste ponto, e por a qual ele se precipita, vaga a vaga, num  pequeno golfo que se estende para o norte e para o sul, separando dois  extensos cabos de areia carairos um ao outro. Nas marés brandas, e quando o  mar é pouco agitado, esta abertura é vadeável e os viandantes, aproveitando o  refluxo, quase a pé enxuto a atravessam, tão incólumes como Moisés  atravessou as ondas do mar Vermelho; mas uma hesitação, uma demora pode  ser-lhe fatal; se a vaga volta com um pouco mais de violência, envolve o  incauto e não poucas vezes o arrasta consigo.

Nas marés vivas, porém, e quando as correntes marítimas são mais fortes, a  passagem torna-se impossível, a não ser nos barcos que estacionam no  pequeno golfo, e cujas águas nem sempre são plácidas, recebendo a agitação  que o oceano, em completa comunicação com elas, lhes transmite.

Ora nesta noite era a Barrinha intransitável; ainda então não existia a ponte  que hoje permite fácil passagem em toda a ocasião, e o mar era abundante.

E, contudo, Pedro hesitou ainda, como se tentasse lutar com a natureza no  obstáculo que ela lhe oferecia. Mas o canto cessara de todo, a vista já não  distinguia no mar o menor vestígio do barco; o alento que animara até ali o  pobre vagabundo abandonou-o todo à languidez da sua definhada saúde.

Em algumas das noites sucessivas, tranquilas como esta, voltaram de novo o  barco e a cantora. Pedro procurou-os com o mesmo fervor, escutou-a com o  mesmo recolhimento, viu-a afastar-se com a mesma ou mais intensa saudade.

E o pobre pescador abatia-se a olhos vistos.

João Cabaça vivia taciturno e oprimido, preso às suas crenças e preconceitos,  sentindo o estado de Pedro, a quem de cada vez mais se sentia afeiçoado.

Na opinião do velho, opinião que ele não revelava para não excitar terrores ou  causar maiores desgraças, era evidente ser tudo aquilo malefícios da sereia. Ao  que já soubera pela comunicação que lhe tinha feito Pedro, acresceu uma nova  circunstância, que muito influiu para corroborar esta crença no ânimo do  velho pescador.

É que ele também a ouvira, também num a das últimas noites lhe escutara o  canto e não lhe ficou dúvida que era de sereia, pois nunca tinha ouvido  mulher cantar assim e muito mais no mar e por tais horas da noite.

O velho tinha sido obrigado a ir a Espinho e, ao voltar, aí próximo da capela  da Senhora Aparecida, começou a ouvir aquele canto que o sobressaltou;  aplicou o ouvido e percebeu-o mais distante. O velho ficou aterrado! Quanto  mais involuntariamente o deleitava aquela música, tanto maior vulto tomavam  as suas apreensões. Considerava-se já perdido, mas teve uma inspiração  salvadora: correu para a pequena ermida, que lhe estava próxima, e,  ajoelhando-se na entrada, pôs o pensamento na Virgem e serviu-se do  expediente que, segundo a fábula, tinha utilizado um companheiro de Ulisses  num a situação idêntica. A prática surtiu efeito. Quando o velho destapou os  ouvidos, já não se percebia o canto; tinha, pois, esconjurado o malefício.

Prosseguiu no seu caminho, mas sempre inquieto.

Nessa noite não pôde conciliar o sono. Volvia-se e revolvia-se no leito,  fechava os olhos e escondia a cabeça no travesseiro... Debalde... Era sempre  aquela ideia a afugentar-lhe o sono; afigurava-se-lhe ainda ouvir aquela voz e o  pobre velho começava a imaginar-se enfeitiçado.

Fez o sinal da cruz, encomendou-se à Virgem e ao Pedro-Santo que, antes de  ser papa, fora pescador; mas parece que desta vez tinha de ser ineficaz tão  valiosa intercessão. Depois lembrava-se de Pedro, o bom do velho, e  compreendia como ele devia andar perdido, quando a si próprio nem a  reflexão nem o peso dos anos lhe foram preservativo contra a influência  daquela endemoninhada tentadora.

Se, próximo à manhã, João Cabaça conseguiu dormir, foi de um sono tão  agitado, tão cheio de sonhos febris e assustadores que, longe de o restaurar, o  fatigou...

Quando apareceu diante dos da companhia, perguntaram-lhe de todos os lados  se estava doente.

Esta pergunta desagradou ao velho.

— Doente! E que me acham vocês para o pensarem?

— Está amarelo, o ti' Cabaça, que nem uma cidra e tem cara de quem  lidou com bruxas.

— Malditas, malditas! Só de as ouvir uma vez, já assim me puseram! —  exclamou o velho, não podendo reprimir uma indignação.

— Quem! Quem? — perguntaram várias vozes com grande curiosidade.

João Cabaça, apenas respondeu:

— Ninguém, ninguém. Eu cá me entendo.

Vejam como deveria ter adquirido firmeza a crença de João Cabaça, quando juntara à experiência de estranhos a sua própria experiência.

Procurou Pedro e, desta vez, foi eloquente na prédica em que lhe pintou com  as mais vivas cores os artifícios das sereias, e pediu-lhe que resistisse àquela  tentação que lhe viria a ser funesta. Que ele próprio, por a ter ouvido uma  noite, se sentira incomodado e que, portanto, tomasse tento, que mais sujeita  ao perigo andava a juventude do que a idade em que alvejam os cabelos e a  cara enruga e verga sob a pressão dos anos.

Estas e outras muitas coisas dizia o bom velho, mas o seu companheiro  escutava-as distraído e provavelmente sem ter sequer consciência do que elas  significavam'. A abstração de Pedro aumentara de ponto a fazer julgar a todos  que ele transpusera as raias da loucura.

Tudo fazia maquinalmente; se respondia às perguntas que lhe dirigiam era  como se as não houvesse compreendido.

Esta distração continuada, que o alheava ao trato usual dos seus  companheiros, acabou por o isolar completamente, pois todos pareciam  experimentar um certo afastamento por aquele caráter excessivamente  concentrado e tão sujeito a aberrações que se assemelhavam a uma verdadeira  loucura.

Apesar das recomendações de João Cabaça, já a noite veio encontrar a Pedro  no seu posto de vigia.

A tarde estivera magnífica.

No firmamento límpido não se formara uma só dessas pequenas nuvens que  são o primeiro assomo da cólera dos elementos. Reinava uma calmaria  completa ainda no princípio da noite.

A atmosfera tépida e asfixiante não era agitada pela menor viração; as ondas,  como que dominadas pela geral languidez da natureza, estendiam-se  lentamente na praia com suave murmúrio.

E, contudo, no meio desta tranquilidade, Pedro sentia-se inquieto, como se  alguma coisa pressentisse ameaçando-o de um perigo latente. As organizações  impressionáveis são formadas por estas misteriosas percepções, que se não  explicam.

Por um instinto, semelhante ao das aves que volteiam sobre as praias ainda  quando a tempestade está longe, mas que elas pressentem já, não as iludem as  aparências de bonança que o céu às vezes oferece; o que quer que seja de  invisível lhes prognostica as tormentas.

Aonde se engana a experiência dos anos, realiza-a a voz profética destes  inexplicáveis instintos.

Nesta noite Pedro sentia-se triste, e experimentava um secreto medo que a si  próprio admirava.

Não sei o que descobria no cintilar das estrelas, que o assustava; a voz das  vagas, na sua aparente suavidade, parecia-lhe murmurar ameaças surdas; o  sorriso da natureza dir-se-ia um sorriso traiçoeiro; não lhe infundia confiança.

Passeava na praia, com os olhos fitos naquela imensa superfície líquida donde  lhe tinham vindo os únicos momentos de felicidade que entrevira na vida. Mas  comprimia-se-lhe desta vez o coração respirando a inflamada atmosfera  daquela noite de sinistra influência.

Esta vez os temores que ressentia, na aparência mal fundados, pouco a pouco  os começou a justificar o novo aspeto que foram tomando o mar e o  firmamento.

Levantou-se do sul uma viração, ao princípio branda, mas que adquiriu  gradualmente mais intensidade, turbando a limpidez do céu com um sem-número de pequenas nuvens que coalhavam a imensa abóbada que se  descobria dali. A forma, a disposição destas nuvens era de um agoiro pouco  seguro para os olhos amestrados. Pedro surpreendeu toda a significação destes  sintomas do céu e via confirmados por eles os seus vagos terrores de há  pouco.

Temia já que o barco, cujo aparecimento ele tão ardentemente esperava, não  viesse aquela noite, e só com esta lembrança sentia-se desfalecer.

Era como se aquela esperança, se aquele gozo de momentos fosse o único  laço que já agora o prendia à vida.

Pensar que lhe poderia faltar era para ele a origem de uma tristeza tão íntima, de uma tão absoluta desesperança, que na morte antevia o único alívio a  esperar, depois de tão dolorosa desilusão.

Mas, no meio destas apreensões, puderam seus olhos descobrir, apesar da  cerração cada vez mais densa que começava a ocultar-lhe o mar, uma forma  que lhe pareceu a do barco que aguardava com tanto fervor.

Trémulo de ansiedade indizível, se aproximou da beira-mar, fazendo  excessivos esforços, para devassar o fundo impenetrável daquela escuridão.

O coração dizia-lhe que era aquela a aparição pela qual esperava, no seu  palpitar ansiado, e na misteriosa sensação que ressentia.

De repente, como respondendo à tácita interrogação daquela alma  apaixonada, e impelindo-a a extremos de júbilo indefinível, a conhecida voz  feminina começou  cantando uma evocação à tempestade, que se poderia traduzir assim:

«Vinde! Soprai furiosos,
Ventos de tempestade!
Ergue-te, majestade!
Ergue-te, ó vasto mar!
Passai, legiões de nuvens!
Velai o céu de estrelas!
Ó gênio das procelas!
Vem, quero-te saudar!

 «A luz fatal do mio
Guie o meu barco apenas!
E rujam como hienas
As vagas ao redor...
Pairem, nos ares fatídicos
As aves de carnagem.
E cave-se a voragem
Com súbito fragor!

 «Surjam do fundo abismo
Os pavorosos vultos
Dos náufragos sepultos
Dos mares na amplidão!
Responda à voz das águas
Frementes, agitadas,
O silvo das rajadas,
Os brados do trovão!

 «Do arcanjo de extermínio
O gládio chamejante
Ostente-se radiante
De ameaçadora luz!
Da tempestade às fúrias
Assistirei sorrindo,
E bradarei: "Bem-vindo!"
Ao gênio que a conduz!

 «Bem-vindo, sim, que eu sinto
No seio, mais violenta,
Uma cruel tormenta,

A luta das paixões!
Procuro o mar furioso
Como um seguro asilo!
Arrosto-o, e não vacilo
Das ondas aos baldões!

 Como se efetivamente a tempestade obedecesse a esta evocação singular, um  violento tufão do sul veio encapelar as ondas já inquietas, encobrindo com a  sua voz poderosa as últimas notas da canção.

O barco jogava nas ondas agitadas de uma maneira assustadora. Os remadores  faziam esforços poderosos para resistirem à violência das ondas e, pelos seus  movimentos, denotavam a pouca tranquilidade de espírito que possuíam já.

Nos intervalos das rajadas, algumas palavras destacadas da tumultuosa  discussão e ordens encontradas da manobra que se trocavam entre eles,  vinham até aos ouvidos de Pedro, que começava a inquietar-se pela sorte  daquela a quem votara todos os seus pensamentos, a quem consagrara inteiros  os tesouros dos seus ardentes afetos.

— Temo-la conosco! — dizia um dos remadores. — E esta é de respeito!

— Quem o havia de dizer, com a noite que estava!

— Já me não agrada muito, a falar a verdade...

Neste ponto, nova rajada impediu que chegasse à praia o resto do diálogo.

Quando, pela sua vez, serenou, era a voz da cantora a que se ouvia dizer:

— Hei de ser eu ainda desta vez que lhes dê ânimo? Homens há tanto no  mar e que ainda não têm confiança neste seu companheiro da juventude!  Sosseguem, eu lhes asseguro que...

O fuzilar de um relâmpago, que iluminou com o clarão sinistro toda a extensa  amplidão do mar, interrompeu estas palavras; e, instintivamente, a cantora  levou as mãos aos olhos, exclamando:

— Jesus!

O ruído ensurdecedor de um altíssono trovão acabou de desorientar os  pescadores, em cujo manobrar inconsequente se reconhecia toda a turbação  de ânimo que sentiam.

Pedro examinava com indescritível ansiedade o resultado daquela luta de  súbito travada entre os elementos enfurecidos e a força humana. Palpitava-lhe  violentamente o coração com a lembrança do perigo que aquele barco corria  e, por vezes, uma força instintiva o aproximava das ondas, como para voar em  socorro daquela existência, à qual tão indissoluvelmente deixara ligar a sua.  

— Não é possível vencer este mar! Faz-te à terra, Lourenço, que eu já mal  posso segurar o remo!

— É melhor, é melhor. A terra!

— Vira! — bradaram os outros.

Quando, seguindo esta nova ordem de manobra, o barco se voltou para  demandar a praia, um forte tufão de vento soprou tão de súbito e com tal  violência que, apanhando de lado o barco, por pouco o virava. Um dos  homens, que se achava desprevenido, não pôde resistir ao impulso e caiu ao  mar.

— Santa Virgem! — bradou com voz angustiada a jovem italiana. —  Acudam.

A este grito sucederam as exclamações dos remadores, que se esforçaram para  salvar o seu companheiro. Este pôde voltar ao cimo da água a tempo de se  encontrar ainda a pouca distância do barco e, firmando-se sobre a borda,  saltou para dentro. A escuridão da noite era completa.

Pedro ouviu da praia o grito angustiado da cantora, o qual lhe penetrou até ao  coração.

Ouviu as vozes confusas dos remadores e uma ideia terrível lhe passou pelo  espírito. Pensou que aquela mulher desconhecida havia caído às ondas e lutava  nesse momento com a violência do mar.

Pedro era um dos melhores nadadores do Furadouro. De pequeno fazia  admirar os mais hábeis pela maneira como se confiava ao seio das ondas  quando mais inquietas, e como que brincava com elas.

Não hesitou muito tempo; correu como um louco ao longo da praia e deitou-se ao mar, nadando na direção do barco.

Guiava-o o som das vozes dos remadores no meio daquelas trevas que o  rodeavam.

Mas, passados os primeiros momentos, Pedro sentiu que o abandonavam as  forças em que, por hábito, confiara. Mal fundada esperança fora esta sua!

O pobre rapaz já não era aquele pescador robusto e vigoroso para quem um  remo era um brinco de criança, e que fazia inveja aos mais alentados, por  aquela força muscular que subjugava a violência das vagas; tinham-no  alquebrado as vigílias contínuas e os extremos da paixão que lhe absorveram  todas as faculdades daquela alma até então virgem de afetos tão poderosos.  Agora sentia-se desfalecer. A meio caminho da praia ao barco que procurava,  já os movimentos lhe eram dificultosos e um certo atordoamento de cabeça  lhe impedia regularizá-los.

Já o animava apenas aquela força instintiva que nos estimula em situações  desesperadas.

De vez em quando deixava-se tomar de um desalento tão completo que a  custo sufocava a tentação de se deixar vencer pela força da corrente e baixar,  sem esforços de resistência, ao túmulo que se lhe cavava aos pés. Depois a  voz do instinto reanimava a energia de lutar, quando ele já deixava pender  exausto os músculos e se sentia sucumbir.

Renovava-se então aquele combate singular, terrível e solene, cujos resultados  não podiam ser duvidosos.

O mar parecia deleitar-se em atormentar a sua vítima antes de a devorar. Uma  vaga impetuosa anulava num momento os esforços de muitos; depois  abrandava-se, como deixando-se vencer, para cedo redobrar de violência e  subjugá-lo.

A situação do infeliz era desesperada.

No seu espírito começavam a suceder-se, em confuso tropel, cujo rápido  voltear lhe fazia sentir uma verdadeira vertigem, mil imagens variadas, origem  de quantas ideias nos últimos tempos lhe tinham preocupado o pensamento,  

Por momentos esquecia-se já do fim a que tendiam todos os esforços  extenuantes que estava empregando, perdia a consciência da sua situação  precária, duvidava da iminência do perigo, parecia-lhe um sonho tudo o que  estava passando por ele e como se esforçava por acordar. Mas cedo aparecia-lhe a realidade mais amarga ainda, torturava-lhe o coração um paroxismo de  desespero.

Vinham-lhe as saudades de um passado que havia esquecido, surgiam-lhe os  terrores de um futuro que ia devassar.

Dúvidas, superstições, preconceitos, tudo lhe assaltava a consciência e o fazia  delirar. Depois a lembrança daquela a cuja salvação sacrificara a sua existência  surgia-lhe de repente como um clarão nas trevas que o cercavam e por  instantes lhe comunicava uma energia improfícua. Era um lidar inútil, aquele.  Já sem consciência dos rumores, não vendo, não ouvindo nada que lhe  indicasse a direção na qual devia fazer convergir os seus esforços, lutava por  instinto; mas o espirito alucinado já não presidia à luta. Os membros  enregelados, entorpecidos, exaustos, não lhe permitiam uma muito longa  resistência.

Subitamente um relâmpago prolongado iluminou o vasto teatro desta cena  terrível. Aos olhos de Pedro, já meio velados pela angústia, mostrou-se bem  claro e próximo o barco que tão energicamente demandava e sentada nele a  mulher por quem votava em sacrifícios a própria vida, depois de lhe ter  tributado todos os tesouros da sua alma.

Um novo relâmpago refletiu a sua luz fulgurante nas feições simpaticamente  belas daquela mulher extraordinária.

Este resultado reanimou por instantes as forças já abatidas do náufrago. Pela  primeira vez lhe era dado contemplar o rosto daquela por quem concebeu  uma tão singular paixão. Essa vista fascinou-o!

Com uma energia quase sobre-humana, segurou-se à borda do barco, quando  este se abaixava obedecendo à ondulação das vagas, e, com os olhos  espantados, fitou aquela mulher, cuja voz o enfeitiçava e, como a da sereia,  parecia arrastá-lo a uma inevitável perdição.

Ela também o viu.

Batia-lhe em cheio no rosto, desfigurado singularmente pelos afetos que então  se combatiam tumultuosos e contrários naquele peito, um novo clarão de  relâmpago.

A cantora deu um grito ao descobrir aquela inesperada aparição. Por um  instinto de compaixão estendeu as mãos ao náufrago.

O barco, neste mesmo instante, executou um movimento: as forças de Pedro  abandonaram-no; quebrara-lhas de todo a violência da última comoção que  recebeu. Soltou as mãos do bordo do barco, o qual lhe passou por cima do  corpo.

— Esperem! Esperem! — bradou angustiava a cantora. — Um homem no  mar!

Os pescadores pararam e olharam uns para os outros, como contando-se.

— Estamos todos — responderam depois. — A Madama enganou-se.

— Vi-o! Não foi ilusão! Segurou-se à borda do barco, agora mesmo!  Valham-lhe! Tenham piedade dele!

Os pescadores estenderam as vistas por toda a extensão do mar, que os  relâmpagos iluminavam por intervalos, mas não descobriram vestígios do  náufrago. Demais eles tinham pressa de se pôr a salvo e não depositavam  demasiada confiança no sossego de espírito da cantora para supor que não  fosse possível uma ilusão da sua parte.

Passado tempo, o maior furor da tempestade abrandara, os pescadores  puderam vencer a resistência do mar e, algumas horas depois, desembarcavam  na praia de Espinho, jurando nunca mais tornarem a meter-se ao mar numa  noite como aquela por dinheiro nenhum deste mundo.

O ânimo da cantora não era desta vez contrário a iguais disposições de  espírito.

Impressionara-a demasiado aquela figura do náufrago que entrevira e que ela  não acreditava haver sido alucinação dos sentidos; impressionara-a, sobretudo,  a estranha expressão daquela fisionomia descomposta, onde parecia refletir-se,  entre os tormentos da agonia, um certo reflexo de inexplicável  voluptuosidade.

Era já dia claro quando as companhias se reuniram na praia, preparando-se  para se fazerem ao mar.

O tempo melhorara. E do aspeto do céu tiravam os entendidos prognósticos  favoráveis.

Um grupo de pescadores no qual se contava o nosso conhecido João Cabaça,  caminhava, conversando, em direção à beira-mar. A trovoada da véspera era o  assunto discutido.

— E então que te parece a trovoada desta noite? — perguntava um dos   mais idosos.

— S. Jerônimo! Alguns trovões estalaram mesmo em cima dos palheiros. Julguei que não ficaria um só de pé!

— Vinha puxada do sul com uma força!


— Mas deixa lá! Era precisa para limpar os ares. Olha que manhã está hoje!  Não há de ser pequena a safra.

— É precisa, é precisa. Olha, o pior é dos que ela apanhou no mar — disse  João Cabaça, abanando a cabeça.

— Lá isso é verdade! Mas que remédio!

— Andem mais depressa, rapazes! Olhai que os barcos estão prontos. Não  veem?

— Mas que diabo fazem aqueles ali, ao pé do mar?

— Para que será que eles olham assim?

A curiosidade apressou o passo aos pescadores, que correram em direção ao ponto da costa onde muitos dos da companhia já estavam reunidos.

— Que é? Que é? — perguntavam uns aos outros, amontoando-se, comprimindo-se, empurrando-se, sem obterem a explicação que desejavam.

— Aquilo é afogado decerto... — dizia um pescador novo, depois de  aplicar a vista por algum tempo a um objeto que boiava nas águas.

Estas palavras excitaram a curiosidade de João Cabaça, que se aproximou do  que as dissera, com não disfarçada curiosidade.

— Mostra-me o que tu dizes que é um afogado, Luís do Moleiro...


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Nota:
Júlio Dinis: "Serões da Província" (1870) 

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