UMA FLOR ENTRE O GELO
CAPÍTULO I
No tempo em que comecei a ir ao
teatro estavam muito em moda os dramas em cinco atos com o complemento de uma
farsa.
As plateias, os camarotes, as
galerias e até a fleumática orquestra, depois de carpirem, com não fingida
sensibilidade, as infaustas e tenebrosas aventuras do herói ou da heroína do
primeiro dos espetáculos exibidos, acalmavam o sobressalto nervoso, que de tão
continuados sustos lhes ficara, rindo, a bandeiras despregadas, à custa do
velho iludido, tipo predileto da veia cômica de então.
O amor extemporâneo de um velho,
os seus ciúmes insofridos, os seus acessos de cólera quase epiléticos e a
intriga combinada contra ele entre a ingênua, vítima principal dessa paixão
incômoda; o amante preferido e o criado astuto que dirigia o enredo, tentado
pela bolsa recheada do galã e pela mão nívea da lacaia, propícia aos amores da
ama: — tal era de fato o eterno e inesgotável tema glosado, com mais ou menos
variantes, pelos Plautos e Terêncios da época.
A moda viera não sei se da Itália
se da Espanha, mas generalizava-se rápida e extraordinariamente.
Beaumarchais foi um dos que a
seguiram em França e com extrema felicidade; outros modelaram por os dele esses
tipos genéricos, sem os quais quase não se concebia comédia, e, por mais
desgraciosos que lhes saíssem os arremedos, tinham a certeza de os verem bem
acolhidos.
O nosso António Xavier não se
pode dizer dos mais infelizes na tentativa; o seu Manuel Mendes, de
popularíssima memória, bem mereceu os aplausos que o público tão generoso lhe
prodigalizou.
Por muito tempo as plateias
saboreavam estes acepipes teatrais, sem que da repetição se enfastiassem.
Eram já tão seus conhecidos os
personagens que custou deveras a desabituá-las deles; como que se não entendiam
com outros.
Queriam-se com o seu Pantalião ou
Lançarote, tutor decrépito, desastradamente apaixonado por uma ingênua pupila,
que só tinha a malícia indispensável para o enganar a cada momento; reviam-se
na figura elegante dos Leandros e Florindos, cujos conceituosos requebros e
pieguices amorosas escutavam com ouvidos complacentes; as jovialidades e
astúcias do criado, os seus diálogos equívocos com a lacaia, as suas
arlequinadas e tramoias a bem da causa comum, tudo saudavam com a mais decidida
e clamorosa simpatia.
A ação seguia entre aplausos
contínuos o curso regular.
Cada esforço que o velho fazia
para o bom êxito dos seus projetos amorosos pervertia-lho a fatalidade em
desserviço deles, e na cena final, quase sempre a das escrituras, quando se
preparava para dar a batalha decisiva que devia coroar-lhe a constância, não
desmentida entre desenganos e reveses, todos, até o próprio tabelião, se
conspiravam contra ele, o malfadado via, no meio de risadas gerais, passar a
pupila para os braços do amante, que, nesse momento solene, deixava cair o
nariz de papelão, valioso auxiliar da última façanha.
Entrava-se em explicações,
patenteava-se à vítima a trama minuciosa da intriga e ela acabava por perdoar
e, o que mais é, tomava à sua conta o moralizar o fato.
Redobravam os aplausos; o
casamento final justificava os meios, nem sempre demasiado lícitos, empregados
para o fazer vingar; os espectadores retiravam-se satisfeitos, e tendo por essa
forma afugentado as disposições para pesadelos e sonhos angustiosos que o drama
lhes produzira, ceavam bem e dormiam melhor.
Ora sucedia já então um caso
extraordinário comigo; era que, ao contrário da maioria, senão da unanimidade
dos espectadores, não excetuando até os incursos no mesmo ridículo que se
pretendia corrigir assim, dava-me para ter pena do velho em vez de me rir das
suas tribulações.
A plateia conseguia suavizar as
impressões penosas do drama com as jocosas peripécias de uma paixão...
macróbia; a mim ficava-me uma melancolia interior, mais duradoura e
sentidamente formada; a alucinação do veterano, à voz do que a proveniente da
catástrofe do quinto ato.
Não obstante os acessórios
caricatos de que autores e atores sobrecarregavam esses tipos, para os quais de
tão inexorável severidade era a Tália da época, eu achava-lhes não sei que de
interessante e, direi até, poético, que ofuscava tudo o mais, e não me deixava
rir.
Rir, porquê? Não era antes para
magoar e comover o drama psicológico que, através de episódios risíveis, se
desenvolvia ali? A história de uma paixão sem futuro, funesta ao coração que a
alimenta, não é mais digna de lágrimas que de escárnio?
Debaixo das vestes de
polichinelo, que o público iludido saudava de gargalhadas e apupos, eu não via
mais do que um desgraçado; através da máscara truanesca do comediante
parecia-me a cada passo divisar um olhar de tristeza que me vinha direito ao
coração.
Que querem? Mau é que se façam
dessas abstrações; o efeito é depois inevitável.
Experimentai por vós; não vos
lembreis da casaca esguia, do calção engelhado, do sapato de monstruosa fivela,
do impertinente rabicho da cabeleira, da colossal caixa do tabaco, todas as
noites tirados do guarda-roupa do teatro para adornarem esses tipos, e
auxiliarem o efeito cômico da produção — muita vez mais devido a tais
acessórios do que ao sal que a temperava — não atenteis nas rugas profusa e
burlescamente distribuídas pela mão exercitada do caracterizador; ou, melhor
ainda, concebei, se podeis, aquela alma independente de todos os desfavoráveis
acidentes corpóreos, e ao vê-la lutando com uma dessas paixões violentas,
devoradoras, que são a sua máxima manifestação de vigor e de vida; e humilhada,
ridicularizada, escarnecida, porque o corpo, que a subjuga, envelheceu primeiro
do que ela; porque regelou o sangue enquanto o espírito se inflamava em
impetuosas lavaredas; porque se enrugou a cara, quando o coração se expandia
com maior força de afetos; dizei depois, em consciência, se tendes ânimo para
vos rirdes desse espetáculo!
E a prova de que o ridículo está
todo nos acessórios, de que é mais para comover e impressionar dolorosamente do
que para alegrar o fenômeno moral que em tese absoluta condenavam às risadas da
plateia, é que, pouco tempo depois, via-se no teatro um amor de velho, com
todas as exaltações, com todas as esperanças, com todos os receios e desesperos
de um amor de rapaz, e, apesar das barbas brancas do amante ancião, ninguém se
sentiu disposto a sorrir.
Para salvar do ridículo a Rui
Gomes da Silva do drama de Vítor Hugo, bastaram as vestes negras e severas do
fidalgo espanhol da corte de Carlos V, as armaduras de cavaleiro pendentes da
sala de armas, a galeria de retratos de uma longa série de heróis seus
antepassados; o amor não conseguiu apequenar esse vulto, que a velhice, o
orgulho e a firmeza de caráter faziam terrivelmente grande. E contudo não
passava de um velho apaixonado o altivo rival de Hernâni.
Na sua presença, porém, os
espectadores estremeciam em vez de sorrir; fácil lhes seria prever que essa
mesma paixão, olhada ainda por outro aspeto, os poderia fazer chorar.
Por que não? Pois comove-nos o
desespero impotente do cego, rodeado das magnificências da natureza, que
pressente sem as poder gozar e para compreender as quais tinha alma superior do
clarim arrebatado em ardor marcial, e que se ergue impetuoso para correr ao
chamamento da pátria, esquecendo por instantes que o braço mutilado já não pode
suster a espada, que tantas vezes gloriosamente brandiu; o desalento do poeta,
cujos sublimados anelos o alheiam da vida real, que no seu positivismo o
sacrifica, que morre como Chaterton, consumido pelo fogo do próprio gênio,
impossível de existir num a sociedade ainda não organizada para o conter em si;
interessam-nos todas estas lutas, todos estes antagonismos, todos estes
conflitos em que se desvanecem ilusões; assistimos atentos a todo o embate
solene de afetos encontrados, simpatizamos com todas as aspirações reprimidas e
instintos naturais subjugados por alheias resistências, e só havemos de ser
inflexíveis e só havemos de rir ao vermos aquele outro triste e doloroso
combater da alma com o corpo; só nos não há de comover a mágoa, o desespero
dessa jovem cativa, olhando através das grades de uma velha risão o céu azul, os prados verdes e as flores
perfumadas que a enamoram?
Insultá-la-emos quando, como o
rouxinol aprisionado, se despedaçar em delírio
de encontro aos ferros que a retêm?
É uma grave injustiça. O
espetáculo é mais dramático do que geralmente o têm querido fazer.
Há nos variados episódios da
mitologia pagã situações comoventes que estas me fazem recordar. A cada passo, ali, o
amante, no auge de uma paixão violenta,
perseguindo como louco pelos desvios e recessos das florestas a ninfa fugitiva, no momento em que julga
possuí-la, em que já estende os braços
para lhe enlaçar a cintura e aproxima os lábios ardentes para oscular-lhe as
faces, afogueadas de cansaço e de pejo, sente um estranho torpor adormentar-lhe os membros, um frio glacial
circular-lhe nas veias e súbito o coração,
ainda em alvoroços de amor, é comprimido pela rigidez do lenho que o invade; os braços, que agita aflito,
alongam-se-lhe em ramos; os cabelos, que o horror levanta, transformam-se-lhe em
folhagem e vigorosas raízes, prendendo-o
ao solo, tornam permanente a imobilidade que o susto começou. Mas os instintos de amor que o perdem não se
apagam após a transformação; a nova
árvore, conservando latente o fogo que lhe deu a origem, experimenta um doloroso estremecimento todas as vezes que
a ninfa — outrora esquiva — vem agora
recostar-se lânguida à sua sombra e, cheia de uma confiança mais para desesperar do que todos os passados
terrores e apreensões, se entrega aí descuidada
a gratos sonhos de amor.
Pobre alma namorada! A forma que
reveste é agora a sua eterna condenação, nem de esperanças se pode nutrir, já, a
triste! escravizada pela matéria, concentra
o seu padecer, pois nem manifestá-lo lhe é dado.
O que deviam sentir esses malfadados
heróis do variadíssimo poema mitológico,
os mesmos desesperos, os mesmos desalentos, as mesmas angústias, sentem na realidade aqueles em quem
a caducidade do corpo precedeu a do espírito, que, rico de aspirações juvenis,
é vítima delas, porque até o revelá-las lhes é defeso.
E se o vaso já gasto estala então
sob a pressão do forte impulso a que pretende resistir, nem ao menos
comiseração há de inspirar o que sucumbe assim? Dolorosos infortúnios estes!
As poucas cenas que se seguem
esboçam ligeiramente a história de um desses malfadados de que o mundo se ri
por hábito, como de outras tantas coisas sérias, que deviam merecer-lhe a
compaixão e o respeito até.
Se a conseguir narrar, sem que um
sorriso, obedecendo a esse hábito, apareça nos lábios do leitor, terei
realizado o meu principal intento.
CAPÍTULO II
Não sei o nome da localidade onde
o fato se passou. Lembra-me só que era no Outono, nessa quadra de melancolia,
em que desmaia o azul nos céus, em que o verde das selvas empalidece e os ventos
arrebatam em turbilhões rápidos, ao longo das avenidas, onde já rareiam as
sombras, a folhagem seca, que crepita sob os pés do caminhante.
Corriam impetuosas nas levadas as
águas que fertilizam os vales. A hora do crepúsculo fazia mais que nunca pensar.
Com as primeiras nuvens do Sul, numerosos bandos de andorinhas intimidadas
atravessavam os ares, procurando climas onde lhes sorrisse ainda a Primavera.
O sítio era ameno, próprio para
se gozar dali esse belo espetáculo da natureza. Uma colina elevando-se graciosa
do meio de uma amplíssima e vicejante bacia. No vale, que a cerca, tudo em
mosaicos de verdura; prados extensos, veigas, devesas, choupais a banharem-se
na água, arroios serpeando por entre a relva, espraiando-se além em pequenos
lagos, despenhando-se ruidosos dos açudes, e ora a esconderem-se por detrás de
umbrosos cômoros, ora, patentes na planície, a retratarem as rosas, as últimas
borboletas errantes, as nuvens e o rosto alegre das lavadeiras.
Pela encosta entrelaçavam os
ramos vigorosos carvalhos seculares, cujo tronco rugoso e carcomido revestiam
as heras e os musgos; de espaço a espaço, cortava o caminho um desses gigantes
derrubados, nutrindo dos restos já sem vida a vegetação nascente que lhe rompia
do seio; os olhares da corrente, ocultos por um denso tecido de fetos, de
giestas e de tojos, denunciavam-se apenas pelo ruído da água, descendo no leito
pedregoso; ouvia-se o rastejar do réptil, fugindo ao rumor das passadas, mas
difícil seria
igualmente percebê-lo entre as
folhas soltas e crestadas que alastravam o chão.
Em cima, na planura onde
conduziam os tortuosos caminhos que ladeavam a colina, erguia-se, de entre a
espessura dos álamos sussurrantes, uma pequena capela, que, sustentando a cruz
sobranceira às franças das mais elevadas árvores, parecia estender a todas as
várzeas e povoados que domina dali a influência salutar e benéfica desse
símbolo da redenção.
Quando, ao declinar da tarde,
soavam do alto da torre lateral os toques da ave-maria, em todas as aldeias
abrigadas junto à base da colina, nas mais pobres choupanas como nas mais
fartas herdades do vale, nenhuma cabeça ficava por descobrir, nenhuns lábios
deixavam de murmurar reverentes a saudação angelical; e se os ventos levavam o
som harmonioso e plangente do pequeno sino até às longínquas cordilheiras de
serras que, como indistintas massas azuladas, limitavam circularmente aquele
horizonte vastíssimo, os serra-nos, dispersos com os rebanhos pelos pascigos,
ou encerrados nas choças colmadas das montanhas, volviam saudosos as vistas
para o ponto branco donde lhes chegavam aos ouvidos aqueles sons quase a
esvaecerem-se e recordavam-se suspirando da devota romaria que todos os anos os
levava ali, junto do altar da milagrosa Senhora da Saúde, sob cuja invocação
fora levantada a capela.
As romarias! as romarias! gratas
recordações, únicas talvez, daquela pobre gente da serra! As horas rápidas de
gozo, que um só desses dias de festa lhes dá, compensam-lhes de sobra as
continuadas fadigas da vida tão trabalhada e penosa. Em tomo à pequena ermida,
onde cada ano afluem de tão longe essas piedosas peregrinações de devotos,
parece esvoaçar de contínuo uma turba de espíritos alados que nos segredam
histórias de tantos amores, nascidos ali e ali santificados, junto ao altar
onde as dádivas votivas dos menos esperançados se amontoam, a velar pelo seu
destino e propiciar-lhes o céu.
De quantas incertezas, de quantas
esperanças, de quantas alegrias e apreensões não sois vós sabedoras, despidas
paredes desses templos singelos, onde faltam os ornamentos da arte e as suntuosidades
do culto, mas que as crenças populares engrandecem e as lendas tradicionais,
que de velhos a crianças se transmitem, perfumam de poesia! Que de orações
fervorosas, rude mas eloquente linguagem daquelas almas de crenças robustas,
têm sussurrado no estreito recinto desses muros! que olhares de místico enlevo
erguidos até à imagem do altar, à qual o grosseiro da escultura parece aumentar
ainda o prestígio!
E não vos hão de fitar saudosas
as vistas dos romeiros, rústicas ermidas, depositárias dos mais ardentes votos
da sua alma? árvores que as rodeais, poderiam desconhecer-vos no horizonte ou
confundir-vos com outras os olhos do pastor errante ou do lavrador curvado,
quando o coração lhes diz que sois vós, vós que de longe lhes acenais, com as
ramas agitadas, como para os alentar no trabalho com a esperança de um outro
dia de gozo?
A fantasia voa-lhes como as aves
a ocultar-se na espessura desses bosques, onde com elas volteia namorada pelas
mais solitárias moutas e pelas arborizadas margens dos ribeiros.
Destes lugares celebrados assim
pela devoção e simpatia popular, poucos tão ricos de tradições piedosas como a
colina em cujo cimo estava, como dissemos, erigida a capela da nossa Senhora da
Saúde.
Cada família dos arredores tinha
a sua lenda de milagres a referir-lhe. Uma romagem à Senhora no dia consagrado
passava por a suprema medicina. Não havia mal que aquela intercessão não
remediasse, ou fosse doença verdadeira ou, o que é pior, desses males de coração
que ainda são mais pertinazes, que ainda fazem mais padecer. Diziam-no as
inúmeras histórias que aos serões as velhas contavam às crianças para lhes
robustecer a fé e algumas das quais tão singulares e miraculosas eram, que até
do púlpito as repetiam os pregadores.
A fama estendera-se e tanto que
de ano para ano aumentava a afluência dos ansiosos do benefício; muitos dos
quais, convencendo-se de que não menos capaz do milagre devia ser aquela
atmosfera salutarmente vivificada por uma abundante vegetação, por ali se
deixavam ficar, associando assim a higiene com as devoções.
Por isso, o viandante, que agora
seguia as pitorescas veredas, pelas quais o monte era em diversos sentidos
irregularmente cortado, via, em toda a extensão da encosta, a aparecerem-lhe e
desaparecerem-lhe sucessivamente por entre a verdura casas de risonha
aparência, dispersas ou reunidas em graciosos grupos, com as paredes
alvíssimas, as portas verdes e os telhados vermelhos e cercados de bonitos
jardins, tão recendentes de perfumes na Primavera, que aromatizavam em redor
todos os caminhos.
A maior parte destas casas era
habitada por uma população flutuante de valetudinários ou convalescentes que
procuravam vigorar forças, respirando a pleno seio o ar purificado e livre das
montanhas e dos bosques.
Pela manhã, quando as névoas
começavam a dissipar-se e, por entre a folhagem das árvores, o Sol penetrava
mais fomentador de vida e ia evaporar o orvalho que ainda rociava as ervas dos
caminhos, viam-se subir a colina, a passos vagarosos e com frequentes pausas,
esses pálidos doentes, que pareciam renascer só ao receberem aquelas auras
embalsamadas pelos perfumes das flores, e suavizadas pelos primeiros calores da
manhã.
Era o velho quebrantado e trêmulo,
parando a meio caminho da ladeira que subia, a fitar o céu, como se de antemão
procurasse decifrar o problema que em breve teria de resolver; o mancebo,
inquieto e pensativo, de aspirações ardentes e subidas e em tão alto grau que
no empenho de as realizar lhe faleceram as forças e no forte da luta sentia-se
sucumbir; a virgem, meiga e melancólica, como uma das mais ideais criações oceânicas,
errante por entre as árvores seculares ou pendida à borda das correntes,
escondendo uma lágrima ou simulando um sorriso, manifestações diversas na aparência
e ambas denunciadoras tantas vezes de uma grande tristeza interior; a mãe,
jovem e doente, em tomo à qual brincava um bando de crianças alegres e cheias
de vida, ignorando, as inocentes, que todo o seu destino, que as suas alegrias
ou as suas dores no futuro dependiam agora daquelas árvores, onde se
balanceavam risonhas, daquelas virações que lhes açoutavam os cabelos soltos e
anelados.
Assim pois o lutar da vida e da
morte era o que por toda a parte se via. Contrastes de esperança e de desalento,
antíteses de sorrisos e de lágrimas formavam a feição mais característica do
quadro.
O cair das folhas, o desenflorar
da relva, os gemidos das aves, e as sombras errantes que as nuvens projetavam
pelos campos, tudo parecia harmonizar-se tristemente com o pensar interrogativo
do velho, com o suspirar do mancebo, com as lágrimas da donzela e com o braço
convulso da mãe, cingindo ao seio, num frenético movimento, as cabeças louras
das crianças que lhe somam.
Era a vida a declinar; a
consciência de um fim próximo a reprimir aspirações a um longo futuro de mais
prazeres e gozos.
Vacilantes entre um passado
risonho e um porvir tenebroso e incerto, entre a saudade do que foi e o medo do
que há de ser, esses pobres desconfortados sorriam ainda, animavam-se, davam
uns aos outros esperanças que não sentiam em si.
Às vezes desaparecia de entre
eles um rosto conhecido, fechava-se uma casa.
Resolvera-se para esse o
problema, terminara a incerteza. Ou o arrebatara a morte aos seus mistérios ou
o restituíra a saúde às suas alegrias. E, conforme uma ou outra dessas
soluções, assim o desalento ou a esperança se divisavam por dias no rosto dos
companheiros que ficavam.
Letras gravadas nos troncos das
árvores atestavam as recordações saudosas dos que tinham passado ali. Os
sovereiros e as faias eram os confidentes silenciosos de muita paixão secreta,
de muita ilusão desvanecida, de muito coração despedaçado. Quantas lágrimas
eles teriam sentido correr, ao receberem aquelas enigmáticas memórias de um ser
ausente que chorava também ou, amarga ideia e quase sempre mais verdadeira, que
se esquecia e por isso mesmo mais amado era ainda! Mistérios do coração!
Estas letras, destinadas a durar
talvez mais do que a mão que as gravava, documentavam muita história triste, dramas
ignorados, cujo último ato se representara nesses sítios, que assim conservavam
dele os derradeiros vestígios.
Nas paredes caiadas da capela do
monte o lápis reproduzira memórias iguais às que se viam gravadas nos troncos e
outras menos concisas, que mais facilmente traíam o pensamento que as ditara.
Inscrições inumeráveis,
irregulares, amontoadas, por vezes ilegíveis, cobriam-nas até à altura a que
podia atingir o braço.
Frases cortadas, exprimindo
muito, mas deixando ainda mais a adivinhar; confrontações de nomes, que
denunciavam uma história inteira; dúvidas formuladas, indício de violentos e
terríveis estados da alma; apóstrofes ímpias, ditadas pelo desespero; cânticos
reverentes, inspirados pela resignação e pela fé... — de tudo se via ali. A
elegia junto à ode; a saudade e logo após a esperança; o ceticismo que fazia
estremecer e a crença consoladora, expressos por todas as formas, concebidos
dos modos mais variados, narravam eloquentemente a história do coração humano
nos mais solenes momentos da
sua vida tumultuosa e apaixonada.
Era mais do que curiosa a leitura
daquele álbum singular; era instrutiva e altamente filosófica.
Se se pudessem reunir todos esses
fragmentos dispersos, completar as frases interrompidas, preencher as lacunas,
adivinhar o nexo misterioso de certas ideias, aparentemente sem relação lógica
que as fizesse dependentes, ter-se-ia instituído um profundo estudo psicológico
e a mais perfeita análise dos afetos que dominam a existência do homem.
Por mais de um motivo se tomava
pois curioso o lugar onde as exigências da narração me obrigaram a transportar
imaginariamente o leitor.
CAPÍTULO III
Rompera alegre a madrugada de um
dos mais belos dias do Outono. O orvalho gotejava ainda das folhas das árvores
sacudidas pela brisa matinal, e as gotas límpidas e oscilantes pareciam
metamorfosear-se em rubis, safiras e esmeraldas ao refratar os raios da luz
solar.
Era encantador o aspeto da colina
naquela manhã; semelhava a donzela que, brincando, desenfiou o seu colar de brilhantes
e os soltou em desordem pelos cabelos, pelo seio e pelo regaço, donde, ao menor
movimento, lhe rolam até caírem no chão.
Os primeiros calores do dia
erguiam já dos vales o cendal de névoas que os envolvera, e, dissipando-as na
atmosfera, temperavam de tintas mais suaves o azul-escuro do céu.
Sobrepostas às serranias que
limitavam o horizonte, divisavam-se grandes massas de nuvens, cujos reflexos à
luz oriental lhes davam a aparência dos altos gelos que coroam as cristas das
montanhas.
Iludidas por estes simulacros de
Primavera, as próprias plantas pareciam renascer. A seiva afluía-lhes de novo
aos ramos despidos e, desenvolvendo-lhes os gomos, revestia-as de folhas,
desabrochando-lhes os botões enfeitava-as de flores, e os insetos, surgindo uma
vez ainda do letargo incipiente, adejavam em torno à corola umedecida que lhes
patenteava os nectários.
Sorria a natureza ainda, mas
havia o que quer que era meigo e melancólico naquele sorrir. Eram como as
alegrias plácidas do enfermo, vítima de uma doença fatal, a quem a mais efêmera
remissão faz conceber os prazeres da convalescença, mas sem que o possa iludir.
Ameaças permanentes no meio desta
tranquilidade geral eram, no horizonte, as nuvens, como aguardando só por um
sinal para invadirem o espaço, e um rumor longínquo e monótono que de vez em
quando os ventos traziam aos ouvidos, como o grito de fera aprisionada — a voz
profética do mar pregoando tormentas durante a bonança que momentaneamente
reinava.
A vida do campo manifestava-se
toda nas eiras e nos celeiros, onde se entesouravam as riquezas do lavrador.
Risos, cantares, vozerias
confusas, com que por toda a parte na planície se acompanhavam os diferentes
trabalhos das colheitas, chegavam, como mal distinto burburinho, ao alto da
colina, onde em compensação reinava o silêncio solene e imponente, silêncio não
absoluto, porque falam os bosques e as torrentes, porque falam as aves e os
insetos; mas em que se não ouve a voz humana — o silêncio da solidão.
De fato a colina podia dizer-se
deserta.
O doutor Jacob Granada
recomendava-lhes que evitassem os nevoeiros da manhã, e poucos ousariam
infringir as ordenações do velho médico, que no tocante a execução dos seus
preceitos dava provas de uma intolerância despótica.
Jacob Granada era um destes
homens singulares que desde a primeira entrevista nos deixam uma impressão
profunda e indelével, e cujo trato continuado, a não se lhe opor
convenientemente uma vontade inflexível e uma grande força de caráter, tende a
deixar-lhes um predomínio tal sobre os ânimos, que difícil é mais tarde
subtrair-se qualquer, que por algum tempo se lhe sujeitou, a tão poderosa
influência.
Se o poder magnético, tal como o
concebem os mais crédulos e ardentes apologistas da fantástica arte de Mesmer,
fosse uma realidade e não uma simples criação de visionários, decerto possuiria
Jacob Granada essa faculdade superior no grau mais elevado.
A inegável influência moral de
caracteres como estes sobre os menos rijamente temperados explica, e até de
alguma sorte justifica, a origem dessa singular doutrina, que a aura popular,
favorável a todas as ideias novas e extravagantes, tão extraordinariamente
propagou.
Em Jacob Granada auxiliava ainda
a influência dessas qualidades morais um conjunto de caracteres fisiognomônicos
que não podia deixar de ferir a imaginação menos sujeita a impressões desta
ordem.
Os lineamentos predominantes da
raça israelita, da qual a família dele originariamente procedia,
desenhavam-se-lhe acentuados nas feições angulosas e expressivas,
imprimindo-lhe um cunho de nacionalidade cuja interpretação não podia enganar.
Sobre a cara, estreita mas
elevada, alvejavam-lhe em raras e desornadas madeixas as mais formosas cãs que
ainda adornaram uma cabeça de ancião. Os lábios, delgados e deprimidos nos
ângulos por contração habitual, denunciavam longos hábitos de reflexão e de
reserva, que efetivamente lhe estavam na índole. No nariz havia completa e
absoluta conformidade com o do tipo judaico, e os olhos pequenos, mas de uma
vivacidade de fogo, exprimiam a inteligência e subtileza de espírito que um
conhecimento ulterior não desmentia nele.
Era excessivamente magro e um
tanto curvado pelas fadigas do estudo e pelo peso de sessenta anos de vida
trabalhada por incessantes esforços físicos e intelectuais; não obstante, nunca
deixara de observar os mesmos hábitos laboriosos, que eram já para ele
imperiosa necessidade.
Ao romper do dia o jornaleiro
encontrava-o nos caminhos com o vestido negro e singelo, no qual conseguia
combinar certa severidade com um não estudado desalinho, e correspondendo
sempre às saudações por uma frase invariável ou um simples e distraído
movimento de cabeça.
Os cuidados de que Jacob Granada
rodeava os seus doentes, ainda que salutares, pesavam como um jugo,
impertinente até para os de ânimo mais dócil e submisso. Quem se confiasse à
ciência do velho facultativo tinha de depositar previamente nas mãos dele toda
a liberdade de ação e de pensamento durante o tempo porque se prolongasse a
moléstia.
Exigia que o doente pensasse pela
cabeça do médico, que não formasse uma só resolução sem expressamente lhe ser
autorizada pelas prescrições regulamentares que para cada qual instituía.
A completa resignação da vontade
própria na sua, a inteira abstenção de tudo quanto fossem perguntas ou objeções
sobre o tratamento seguido, a cega observância dos preceitos, aparentemente
mais insignificantes, que tivessem sido aconselhados por ele, eram as condições
fora das quais se não encarregava de tratamento algum; e, à menor infração,
declinava de si a incumbência, para nunca mais a assumir.
Este despotismo médico valia ao
doutor Jacob uma clientela numerosíssima e inspirava uma confiança ilimitada na
sua medicina.
Escutavam-no e obedeciam-lhe como
a um oráculo e os mais ousados tremiam de contrariá-lo ou de lhe fazer sequer
uma dessas observações, às vezes tão absurdas, que todo o doente se julga
autorizado para dirigir ao seu assistente.
As formas ásperas e sarcásticas
com que Jacob Granada respondia às mais tímidas interpelações, nas quais via
sempre uma tentativa de revolta, tiravam a vontade de as reproduzir.
Ora, para os homens que têm de
viver com as multidões, este procedimento é sempre fecundo em resultados.
Apresentar-nos perante elas como
dominadores, como espíritos fortes não dispostos à menor concessão, é de alguma
sorte revelar-lhes a consciência da nossa superioridade e desarmá-las para a
resistência; pelo contrário, encará-las tímidos, aceitar-lhes observações,
respeitar-lhes repugnâncias, afagar-lhes tendências e simpatias, é fazer
confissão de fraqueza, estender a cabeça ao jugo dos caprichos delas, o
suficiente para nos desprestigiar e quebrar-nos as forças para o momento da
ação.
Ou por índole ou por cálculo,
havia Jacob Granada evitado o desprestígio e exercia sobre a sociedade que o
rodeava um império absoluto.
Era por isso que os doentes
daquela pequena colônia médica confiada à sua direção não tinham ainda ousado
aventurar os primeiros passos sobre a relva úmida dos caminhos, não obstante o
aspeto convidativo da manhã, e contentavam-se, limpando o vapor condensado pelo
frio nos vidros das janelas, em olhar através deles, com os rostos descorados,
para aquelas árvores que de fora os seduziam.
Desta escrupulosa observância de
um dos seus preceitos higiênicos se podia convencer por os próprios olhos o
inflexível doutor, que, ao contrário dos doentes e em oposição com as
prescrições que instituía, havia muito passeava nas ruas irregulares e relvosas
da alameda que circundava a capela.
Não obstante a satisfação que
desta fiel obediência parecia dever resultar-lhe, não eram desanuviadas naquele
momento as feições do velho médico.
Uma profunda preocupação de
espírito revelava-se-lhe nas rugas mais acentuadas que lhe sulcavam
longitudinalmente a cara, na maior contração dos lábios e na rapidez e
irregularidade do andar, interrompido por pausas súbitas e movimentos
impacientes.
Às vezes soltavam-se-lhe do
peito, que se elevava em agitação febril, suspiros mal reprimidos; e os punhos
cerravam-se-lhe em contrações nervosas; outras, um profundo desalento
abatia-lhe a cara e os braços descaíam-lhe como desfalecidos ao lado do tronco.
De vez em quando parava,
parecendo absorvido na contemplação de um objeto qualquer, como se nele
descobrisse alguma coisa de misterioso e estranho que o confundia; abaixava-se
rapidamente para apanhar uma flor cortada e esquecida no chão e logo depois
arrojava-a de si com enfado visível; corria com ansiedade para a árvore, em
cujo tronco divisava uma inicial aberta de véspera e cedo afastava-se dela,
como se a observação o contrariasse. Qualquer pequeno ruído o fazia voltar em
sobressalto; parava perturbado, depois, sacudindo a cabeça por um movimento
cheio de frenesim, recaía mais profundamente ainda na turbação anterior.
Palavras sem nexo, impercetíveis, incapazes de lhe trair o pensamento,
saíam-lhe dos lábios e faziam-no estremecer, como se outro as pronunciasse.
Ora, para quem conhecesse ou
julgasse conhecer o doutor Jacob, era muito para estranhar o seu estado
extraordinariamente febril naquela manhã.
A impassibilidade profissional
que a opinião comum se apraz em atribuir a todos os médicos, reunia de fato
Jacob Granada um temperamento naturalmente apático, um sangue-frio nunca
desmentido nos lances mais patéticos e comoventes.
Gozava entre os colegas de uma
reputação de alma empedernida, que ele se não dava ao trabalho de desvanecer.
Viam-no sorrir no momento em que,
sob os golpes vagarosos e intrépidos do seu escalpelo, os operados se estorciam
em convulsões desesperadas; observavam-lhe as feições inalteráveis quando, à
cabeceira do amigo agonizante, percebia no sucessivo decair do pulso e na
decomposição do rosto o termo iminente de uma vida que se lhe supunha cara.
Tinha sempre a mesma dureza de maneiras, a mesma franqueza, às vezes cruel,
para com todos, qualquer que fosse a idade, o sexo e a condição. Não sabia de
carícias para as crianças, de delicadezas para as mulheres, de afabilidades
para os pobres, de contemplações para com os tímidos, de respeitos para a
velhice. Todos eram doentes para ele e ele para todos médico e nada mais; mas o
médico que diagnostica, que receita, que opera, e não afaga, não lisonjeia, não
consola os doentes; que, sabendo-se necessário, não ambiciona tomar-se
desejado; que não recua no emprego de um meio salutar pela lembrança do
padecimento que suscita; que vela pela saúde dos seus enfermos, mas zomba da
sensibilidade deles.
Costumara-se a fazer o bem como o
cumprimento de um dever de que a razão o convencera, mas supunham-no incapaz de
experimentar aquela suave satisfação que de tal prática resulta às almas mais
delicadas.
Vivia só, não conhecia um único
parente, evitava relações íntimas, afugentava-se pela maneira glacial com que
recebia as tentativas dos poucos que as procuravam.
Tinha sempre um sorriso de
zombaria para os padecimentos morais, em cuja existência não acreditava.
Para ele tudo eram lesões, tudo
órgãos alterados, tudo perturbações materiais. À medicina psicológica dos
médicos espiritualistas devia os seus melhores epigramas. Não havia doença de
poeta ou de amante platônico para a qual não formulasse.
Era um desapiedado adversário
desse vaporoso fantasma que persegue atualmente as mais delicadas organizações
femininas — o nervoso; ou o recebia com um sorriso de cético, ou instituía
contra ele uma ordem de meios curativos capaz de aterrar inimigos muito mais
reais e palpáveis.
Inteiramente indiferente ao
conceito público, não observava as modas em coisa alguma, não se justificava de
arguições, nem recebia conselhos.
Finalmente, tinha a reputação de
grande médico, mas de homem insociável e de verdadeira alma de mármore.
Era pois excepcional aquela
profunda inquietação.
Fundira-se o gelo daquele ânimo
impassível?
Houvera enfim um estímulo que
despertara essa sensibilidade, entorpecida até então?
Assim parecia.
Quem o visse agora pela primeira
vez hesitaria em receber como verdadeiro o conceito que geralmente se fazia do
seu caráter e que acabamos de esboçar aqui.
Não é dos temperamentos frios e
impassíveis essa excitação febril, esse movimento sem causa, sem norma, sem
pensamento regulador que o agitava; antes se revelava em tudo isso uma poderosa
sensibilidade, ou nova nele ou pelo menos ignorada.
Por muito tempo durou ainda o
estado de inquietação e sobressalto, que tão excepcionalmente revelava naquela
manhã o fleumático doutor Jacob.
Corriam os momentos consagrados
por ele de ordinário às tarefas clínicas, e, como se uma força irresistível o
retivesse ali, prosseguia naquela marcha rápida e desordenada, só interrompida
de vez em quando por gestos e movimentos mais desordenados ainda.
Mudando, porém, quase sem
consciência do que fazia, a direção ao passeio, e encaminhando-se para um dos
lados da capela que até então lhe ficara oculto, estremeceu e instintivamente
recuou alguns passos, como se uma súbita e terrível aparição lhe surgira dali.
Depois, com os olhos fitos, os
lábios entreabertos e o corpo inclinado, permaneceu em suspensão quase
extática, e que formava notável contraste com a turbação anterior.
Quem assim lhe absorvera tão
profundamente a atenção era uma mulher jovem, de estatura esbeltamente elevada
e de formas airosas, realçadas por as amplas dobras de um vestuário elegante, a
qual naquele momento parecia atentamente ocupada em acrescentar, na parede da
capela, mais uma inscrição, às tantas que existiam já.
A descoberta impressionaria Jacob
Granada por ver nela uma flagrante infração de preceitos médicos, cometida por
uma das mais rebeldes doentes da colônia?
Com dificuldade se convenceria
que fosse essa a causa de tão extraordinária surpresa quem nesse momento lhe
estudasse a fisionomia com alguma atenção.
De fato era notável a mudança.
O ar de sombria severidade que
lhe era habitual desvaneceu-se como por encanto e um sorriso, fenômeno raro
naquele rosto carregado, suavizando-lhe a dureza típica dos contornos, pela
primeira vez o mostrou capaz de uma expressão de afabilidade e de brandura que
ninguém conhecia nele.
No olhar havia chamas que
contradiziam a frieza de que fazia ostentação, nos lábios uns visos de bondade
a protestarem contra a velha reputação da rispidez que adquirira.
Era uma metamorfose completa.
A mulher que, sem o saber, se
tornara o objeto deste silencioso exame e a causa talvez de uma profunda
revolução naquele espírito que se julgava morto para as impressões violentas,
continuava, no entretanto, escrevendo com uma rapidez que parecia querer
acompanhar a dos pensamentos que lhe acudiam.
Afirmar-lhe, a beleza, mas
desistir da tenção de a caracterizar, é o mais que pode fazer quem não possuir
o segredo de certas fisionomias que nos impressionam, que nos entusiasmam por
não sei que fatal influxo que parece irradiar-se delas. Está o mistério na
palidez diáfana do rosto? No quebrar voluptuoso de uma vista cheia de
languidez? No ondeado elegante de tranças negras e macias? Na inexprimível
melodia de certas inflexões de voz? num arfar de seio prometedor de delícias?
Quem o pode dizer? A influência sente-se; não explica.
O belo que a arte, em qualquer
das suas manifestações, consegue realizar ainda se estuda, ainda de alguma
maneira responde às interrogações analíticas do artista filósofo.
O pintor consegue pelo estudo
entrever o mistério que faz grandes as obras dos mestres; o músico, o segredo
de harmonia das mais sublimes composições da sua arte.
Mas o belo da natureza é mais
independente dessas leis que a meditação sobre os grandes modelos pode
descobrir e que há muito a arte formulou. Vemos aí a cada passo dissonâncias
que agradam e arrebatam; combinações de cores em que a vista, mau grado as leis
do colorido artístico, se repousa deliciada; fisionomias que seduzem, a
despeito dos reverenciados moldes gregos, que a arte admira como a suprema
manifestação da beleza humana e que a natureza infinitas vezes com felicidade
despreza.
Descrever fielmente uma dessas
belezas misteriosas, analisá-la feição por feição, é tentativa infrutífera.
Do todo é que procede o encanto,
uma vista única o concebe, um estudo minucioso desconhece-o.
Pintam-se as flores, mas os
perfumes subtraem-se ao pincel; ora a beleza feminina tem como as flores o
aroma que inebria; a mais exata descrição não o pode reproduzir.
E a beleza de Valentina mais que
todas, tão dependente como era da vida que a animava, seria palidamente
concebida pela cópia mais fiel.
O que nela mais fascinava era de fato
a quase cintilação daquele olhar eloquente, as caprichosas contrações dos
lábios, os movimentos graciosos da cabeça, que ora inclinava lânguida, ora
erguia com vivacidade nervosa, o rubor intenso e a profunda palidez que
alternadamente à menor causa lhe invadiam as faces, todos estes efeitos de um
caráter por natureza móvel, de uma sensibilidade extrema que a primeira observação
revela, mas que páginas inteiras não bastariam para descrever.
Dir-se-ia a personificação de um
capricho, mas de um desses caprichos que, se com exigências nos revoltam, com
atrativos nos desarmam. Na volubilidade das feições, no arrojo do penteado, nas
graças do vestir negligente, na leviandade com que tratava as coisas sérias e
sisudez que lhe mereciam outras insignificantes e pueris, denunciava-se a todo
o momento aquela índole essencialmente feminina.
Confiando-se aos cuidados médicos
do doutor Jacob, era pois de prever que, por impulsos desse gênio indomável, se
revoltasse contra a vontade despótica que ele pretendia exercer sobre todos os
seus doentes.
Efetivamente ninguém lhe tinha
ainda mostrado uma tal insubordinação, mas também ninguém encontrara ainda da
parte do médico israelita tão absoluta tolerância.
Só Valentina se atrevia a
discutir com ele o valor de algumas prescrições, só ela abusava dos epigramas
sobre médicos e medicina, que Jacob Granada de ninguém escutava impassível, como
fervoroso crente que era na realidade da sua ciência.
O fanatismo médico que
anatematizava Rabelais, Molière, Bocage e a turba menos famosa dos que todos os
dias insulsamente lhes parodiam e parafraseiam os epigramas, despojava-se da
sua severidade para acolher com um sorriso as alusões satíricas de Valentina,
que fazia do seu ceticismo gala.
Esta condescendência excepcional
no doutor fora já detidamente comentada nos círculos onde se discutiam os
sucessos mais notáveis daquele monótono, mas salutífero viver de aldeia.
Os espíritos mais malignos
aventuravam insinuações, tanto mais jovialmente recebidas quanto menor era a
plausibilidade delas.
Riam-se do engraçado da suposição
como de um disparate irrealizável; mas a fama de inflexibilidade e dureza de
Jacob Granada nem de leve se sentia abalada pelo roçar destes gracejos que lhe
voejavam em tomo.
Abriu-se uma exceção a respeito
de Valentina. A natureza humana havia de revelar a sua fraqueza originária
alguma vez.
Todas as invulnerabilidades são
como as de Aquiles; há sempre um calcanhar que as atraiçoa.
Mas uma simples condescendência,
um assomo de delicadeza para com uma mulher jovem e elegante, não contradiz uma
reputação que mil provas solidamente firmaram.
As imunidades de que Valentina gozava
acabaram por ser olhadas com o indiferentismo com que recebemos todos os fatos
consumados. Ninguém contudo se sentia com forças para repetir a experiência.
Um dos motivos de revolta mais
frequentes em Valentina eram as ideias um pouco materialistas do seu
facultativo.
Com grande espanto e quase terror
dos que a escutavam, a cada passo se arvorava em defesa dos padecimentos
morais, em cuja existência Jacob Granada parecia não acreditar.
— Desafio-o, meu caro doutor —
disse-lhe ela uma vez, armando-se de um dos seus sorrisos mais provocadores —
desafio-o a que me aponte com o dedo a lesão física que me trouxe aqui ou me
diga ao ouvido a droga medicinal que me deve curar. Rio-me interiormente sempre
que o vejo tomar-me o pulso, inspecionar-me a língua, auscultar-me o palpitar
do coração e sentar-se para formular. Eu sei mais da minha doença do que lhe
podem ensinar todos esses livros de grande formato que folheia até altas horas.
Creia-me, doutor, se quiser ser
médico eminente, estude menos anatomia do coração ou espiritualize-a. Olhe que
nem todos os padecimentos dele são aneurismas ou lesões semelhantes...
Estas palavras, que noutra boca
teriam provocado uma explosão no gênio irascível e intolerante do clínico,
foram desta vez acolhidas com um sorriso singular, como até ali ninguém tinha
ainda observado nos lábios do doutor, e seguido de um silêncio reflexivo, muito
parecido a completa abstração.
Desde o momento em que pela
primeira vez colheu este animador resultado, Valentina declarou-se emancipada
da salutar mas pesada tutela do velho médico.
É assim que a vimos infringindo
com todo o sangue-frio uma das prescrições do doutor, e ainda desta vez a
tolerância excepcional do ríspido facultativo para com ela não fora desmentida.
Não era com mudas estupefações e
arroubamentos quase extáticos que Jacob Granada costumava receber os delitos
desta natureza.
O fato, com outro qualquer,
obrigá-lo-ia a romper num acesso de indignação, que mais se lhe coadunava com a
índole do que aquele transportado enlevo em que ficara absorvido.
Um movimento inesperado de
Valentina fê-lo enfim instintivamente recuar; a não ser isso, alheio a tudo o
mais que o rodeava, o que o poderia chamar a si?
CAPÍTULO IV
Procurou então o abrigo das
árvores, para dali, sem ser reconhecido, poder continuar a observá-la.
Valentina, ignorando-se
espionada, entregava-se em plena liberdade ao trabalho de composição literária,
no qual parecia empenhar todas as suas faculdades.
Ora escrevia com velocidade, como
se a ideia, logo ao despontar, se modelasse imediatamente na forma desejada;
outras vezes, interrompia-se e inclinava a cabeça, como se lutando
interiormente com uma dificuldade imprevista; mas a impaciência natural daquele
espírito não lhe permitia longa hesitação; afastava-se então da capela com
gesto de enfado, para voltar de novo, forçando a vontade, que por instinto se
revoltava contra toda a espécie de sujeição.
Jacob Granada não perdia um só
desses movimentos: seguia-os com avidez.
Uma poderosa fascinação parecia
ter-se apoderado dele.
Dir-se-ia arrebatado em êxtase do
fervoroso culto.
Não seriam pois infundadas as
inocentes alusões que a tolerância sem exemplo do velho doutor para com
Valentina havia suscitado?
Rebentariam enfim os afetos
daquele terreno árido? Agora, que as neves da velhice lhe branquejavam na cara,
é que se derreteria o gelo que tanto tempo lhe pesara no coração?
Talvez ele próprio se
interrogasse sobre a estranha comoção que o dominava, nova para os seus
sessenta anos de vida isolada, e hesitasse em determinar-lhe a causa.
Recuava talvez naquele momento
diante da explicação que a consciência lhe murmurava e queria iludir-se sobre a
fatal influência a que cedia.
Grandes deviam ser os combates
interiores que se travavam naquela alma forte de toda a vida acumulada durante
uma juventude vazia de afetos.
O rosto recebia o reflexo dessa
luta, assumindo alternadamente as mais diversas expressões; ora iluminavam-no
os raios da esperança, outras vezes assombrava-o uma nuvem de desalento.
Preparava-se talvez mais uma
vítima para o longo martirológio moral, menos que o outro celebrado em
panegíricos, menos recompensado pela compaixão mundana; porque, quando a vista
do sangue, o flagelar das carnes e o estalar dos ossos não fala aos sentidos da
multidão, não há sentimentos para compreender provações, lágrimas para chorar
infortúnios, às vezes não menos dolorosos.
Os mártires obscuros das paixões
morrem contendo em si mesmo os instrumentos da sua tortura. É o próprio coração
que cingem do cilício angustiante; é interior a lavareda que os consome; lá
dentro se lhes prepara a cicuta que os há de abrasar. Por isso só almas
delicadamente perspicazes lhes assistem ao suplício, só delas, e bem poucas
são, podem esperar os lamentos e as simpatias; das outras, em vez de lágrimas,
recebem muitas vezes os risos; em vez de alentos, motejos.
A multidão piedosa chora à vista
das chagas sangrentas do Cristo, mas não compreende as intensas amarguras
morais daquele espírito divino que via a negação das suas sublimes ideias de
paz e de amor no suplício a que sucumbia; aflige-a a coroa da irrisão pelo
pungir dos espinhos que a formavam; mas não suspeita que outra angústia, mais
acerba ainda, despertava no Mártir em quem a cingiram.
Almas martirizadas, padecei
sofrendo, sucumbi sem um queixume; rir-se-iam de vós se vos lamentásseis.
Vossos infortúnios não são
compreendidos; mais vale ocultá-los, como se tivésseis de envergonhar-vos
deles.
Jacob Granada devia saber que tal
seria o futuro daquela paixão — e era paixão o que sentia em si? — se um dia
aquelas revelações, tímidas ainda, do coração comovido chegassem a pronunciar o
segredo que ele mesmo tremia de suspeitar. O amor valer-lhe-ia uma condenação.
Ceder-lhe — era perder-se; resistir — seria possível?
Jacob Granada lutava como um
desesperado, porque tinha consciência do perigo. Mas a atração era poderosa, a
fascinação enlevava-o, arrebatava-o.
A força com que resistia devia
tomar mais impetuosa a queda, se afinal chegasse a fraquear.
Absorvido por estes pensamentos,
agitando no espírito a tremenda questão que o preocupava, permaneceu imóvel a
contemplar Valentina, até que a viu caminhar, afastar-se, sumir-se por entre as
árvores da alameda. Então, como se acordando sobressaltado de um profundo letargo,
olhou em roda de si e correu, com uma ansiedade de alucinado, para o lugar onde
observara essa encantadora visão.
Foi sob o domínio de um estranho
desassossego que pôde ler as seguintes quadras, que aí encontrou escritas:
Fugi, andorinhas; em mais longes plagas
Buscai outras praias, florestas e céu.
Que é triste o bramido que soltam as vagas,
E um vento pressago nos bosques gemeu.
Fugi, namoradas das flores e estrelas,
Olhai: estes campos sem flores estão,
E cedo os espaços, à voz das procelas,
Sinistros, cerrados, sem luz ficarão.
Fugi, apressai-vos, alados viajantes,
Em bandos ligeiros os mares cruzai.
Por Outros países, por selvas distantes,
Mais flores e aromas, mais luz procurai.
Deixai estes montes de neve coroados,
As selvas despidas, e as folhas sem cor,
As grossas torrentes e os troncos quebrados
E os vales cobertos de denso vapor.
E quando, mais tarde, na verde campina
As rosas voltarem com viço a florir,
E as serras, despidas da intensa neblina,
Virentes, formosas se virem surgir;
E quando deslizem na praia arenosa
Mais lentas, mais brandas, as vagas do mar,
E das laranjeiras de copa frondosa
Caírem as flores no chão do pomar;
E quando fugirem, informes,
pesadas,
As nuvens sombrias que se erguem do sul,
Correndo dispersas e em flocos rasgadas
Nos plainos imensos de um límpido azul:
Voltai; nova quadra de amores
vos chama,
Dos climas distantes para estes parti;
Então tudo é vida, já tudo se inflama,
Há luz, há perfumes, faltais vós aqui!
Voltai, que de novo serão florescentes
As selvas, os prados, o monte, os vergéis;
Quietas as brisas, as águas dormentes
Nos lagos tranquilos de novo vereis.
Só eu, que vos sigo com vistas saudosas
Ao vosso desterro, dos mares além,
Já quando no prado brotarem as rosas,
Talvez não reviva com as rosas também.
Ai, não, não revivo, que o vento do Outono,
Gemendo angustiado nas brenhas do vaie,
Convida-me ao leito do plácido sono
E as nênias entoa do meu funeral.
Eu morro! Na chama do sol que declina
Bem Sinto o presságio de um próximo fim.
Se um dia voltardes à nossa colina,
Õ doces amigas! lembrai-vos de mim;
Daquela que, triste, vagando no olmedo
O adeus da partida vos veio dizer.
Quem sabe das campas o oculto segredo?
Talvez vossos cantos eu possa entender.
Talvez que, ao ouvir-vos a queixa sentida
Quebrando das noites a triste mudez;
À sombra dos cedros da escura avenida
Acorde, a escutar-vos ainda uma vez.
O doutor Jacob acabou de ler
estas quadras, aparentemente ditadas por uma intensa melancolia e por o
desalento quebrantador daquele espírito juvenil, e, como se quisesse obedecer a
um pensamento fugitivo antes que a reflexão lho fizesse abandonar escreveu
imediatamente por baixo do último verso desta poesia, que não pudera ler com
indiferença, as seguintes linhas:
«Voltarão as andorinhas e as
flores e os sorrisos e as esperanças voltarão com elas. O desalento aos vinte
anos! o desalento quando se é jovem e bela! Efêmera ficção.
Enquanto se pode alimentar uma
esperança, enquanto não é irrisório todo o fantasiar futuros, a desventura é
uma nuvem passageira e através dela radia sempre a aurora de uma existência
melhor. Lamentar infortúnios imaginários e ter os olhos fechados para os
infortúnios irremediáveis que com uma palavra se fez nascer! Não. É preciso ao
menos que o saiba. Mitigue-lhe o mal que a ilude o saber que há males maiores.
Escute. Há um homem que a ama, que lhe votou o mais verdadeiro culto que ainda
sentiu no coração. E este sentimento, de que se ufana por ser o mais puro, o
mais sagrado de quantos tem alimentado, esta paixão, que devia ser a sua
glória, causa o seu maior tormento. Desde que a confessasse, em vez de o
respeitarem por a ter concebido tão elevada, tão nobre, tão ideal,
condená-lo-iam ao desprezo e ao escárnio. Gloriando-se interiormente dela, o
desgraçado não ousaria proclamá-la. A fatalidade persegue-o. Sufocar essa
paixão que o devora e sucumbir sem a esperança de que um dia o poderão
lamentar!
A morrer por ela e o mundo a
rir-lhe na sepultura, se suspeitasse a causa que o arrastou ali!
Ele não olha com saudade para as
andorinhas que panem, para as flores que murcham, para o sol que declina; não
as desejaria tornar a ver, nem que o viessem evocar da campa, quando gozasse já
do único sono tranquilo que lhe resta agora dormir.
Este, sim, que é verdadeiro
infortúnio! Peça à imaginação que lhe faça conceber essa tortura e, se tem um
coração generoso, chore por ela; mas não procure conhecê-la, seria obrigada a
rir e, rindo, a cometer uma impiedade.»
Acabando de escrever estas
palavras, Jacob Granada abandonou aqueles sítios com a precipitação de um
criminoso que se afasta do lugar do delito.
CAPÍTULO V
Dias depois escrevia Valentina a
uma das suas amigas a seguinte carta:
«Minha querida:
Deves supor-me mona. Um silêncio
de meses depois de partir para a aldeia autoriza um necrológio. Pois
enganas-te; vivo, vivo como nunca vivi, como nunca supus que se vivia no mundo.
Eu bem suspeitava que havia de existir algures uma outra vida melhor para mim
do que a que passávamos aí; o contrário disto era dotar o autor da criação de
um poder imaginativo inferior ao dos nossos romancistas, cujos planos de vida
me agradavam mais; confesso-o. De fato existia. Tive a felicidade de
encontrá-la. Estou salva!
Os ares livres, o cheiro
balsâmico dos pinheiros, a pureza das águas, a sadia simplicidade da cozinha
campestre, os hábitos regulares, vigílias moderadas, sonos convenientes, dirás
tu, quase disposta a fazer as pazes com a higiene, essa impertinente que nos
amargurava a existência, clamando contra os nossos mais queridos passatempos e
formulando absurdas regras de bem viver.
Não te iludas porém. Olha que
nada disso me salvou.
Sentia-me definhar no meio dessa
feliz combinação de circunstâncias salutíferas e não obstante o uso moderado
que fazia das drogas medicinais.
Se eu bem sabia que a minha
doença não estava no pulmão, não estava nos nervos, não estava no sangue, como
eles dizem!
O doutor Jacob, esse talmud
encarnado, que me fitou logo à primeira vez um olhar que parecia não dever
encontrar obstáculo até o mais íntimo da alma, como se enganava também!
Queria reconstituir-me o sangue,
dizia ele; esta agitação febril que me atormentava acalmaria depois; mas
dizia-me isto tão distraído, que parecia não acreditar muito na opinião que
formulava.
Sabes que mais? A respeito dos
médicos, como de outras muitas coisas, os romancistas e dramaturgos tornaram-me
o gosto muito difícil de contentar.
Onde está esse ideal do médico
que sabe curar com uma palavra, com um gesto, sem ser por intermédio de um
récipe, de umas pílulas ou de um xarope? O médico que aprendeu a calcular o
valor de uma comoção de espírito, que faz uso conveniente das qualidades morais
dos seus doentes? Em parte nenhuma. E eu que tinha a simplicidade de acreditar
na verossimilhança dos lances curativos, deixa-me assim chamar-lhes, que
observava nos teatros! Foi uma outra ilusão que perdi. Paciência.
Jacob Granada não forma exceção à
regra.
É um homem abominável no seu
positivismo este doutor! Para ele tudo são congestões, hipertrofias,
inflamações, que sei eu?...
Seria capaz de sangrar um poeta
no ardor de composição literária, a título de uma congestão cerebral.
Ora eu é que não podia aceitar
para mim semelhante ideia de lesão. Repugnava-me.
Porque me interroga só o pulso?
dizia-lhe; porque me não interroga o pensamento, a imaginação? Não sabe que
tenho vinte anos? Não sabe que penso, que sonho, que concebo e que a diferença
entre as minhas concessões e a realidade me pode fazer padecer? Não vê que é
toda afetiva a minha doença? Quer curar-me com ópio, com ferro, com tônicos e
calmantes? Olhe o que faz. Não se lhe importe com o meu sangue, importe-se com
o meu espírito, com as minhas fantasias, com as minhas crenças.
Complete a sua ciência. Os seus
livros de medicina não lhe falam de uma doença que consiste apenas em anelos
não realizados? Dê a isso um nome grego e terá feito então uma descoberta.
O velho médico ouvia-me calado.
Ou não me entendia, ou pensava ainda na lesão orgânica de que à força me queria
fazer presente, e nem atenção me dera.
Mas eu dizia-lhe a verdade; e a
prova... Ouve:
Lembras-te daquelas heroínas dos
contos de fadas que tanto nos entretinham em crianças? Eram umas princesas
muito bonitas, muito ricas, muito sábias, mas vítimas de uma doença
desconhecida. Vinham os médicos de todas as panes do mundo, visitavam-nas os
sábios mais afamados, os cofres de el-rei, seu pai, traziam dos mais longínquos
países as drogas medicinais que a ciência aconselhara; e ninguém lhe atinava
com a moléstia, e nada lhe realizava a cura. A menina definhava-se a olhos
vistos, já nem sabia sorrir. Era uma cerração de tristeza aquela que nenhum
raio de sol atravessava.
Um dia porém... Recordas-te do
que acontecia? Era o ponto culminante do interesse. Chegava um pastor, um Adonis
em beleza, desculpa-me a referência mitológica, de rosto imberbe, de cabelos
louros, de sorrir angélico, e com um pomo silvestre, um ramo de flores do
campo, ou com os sons rudes da sua flauta pastoril, fazia o milagre. Trazia o
sorriso aos lábios da menina, o colorido às faces desmaiadas, a vida ao coração
desfalecido... ai, ao coração sobretudo. Já ela erguia a cabeça, que até ali
pendera em morbidez, já não procurava a solidão, já não aborrecia o mundo, os
enfeites, as riquezas. Mas fora o pomo, o ramo de flores, os sons da flauta que
produziram o fenômeno? Qual! Fora o mesmo portador, o pastor desconhecido que
um oculto pressentimento trouxera ali. Amava, está explicada a cura. Restava
inclinar-se do alto do seu trono para estender a mão agradecida ao simpático
salvador, ajudá-lo a subir os degraus, e sentá-lo ao seu lado, trêmulo de
sobressalto e de amor, e... era uma vez um príncipe.
Eis a minha história também,
feitas as devidas alterações no que diz respeito à beleza, à sabedoria e
jerarquia da heroína. Pelo menos, se não é ainda a minha história inteira, pane
dela se realizou já.
Imagina que parti daí perdida.
Parecia-me que tudo estava a findar para mim. Era um mal interior que me
ralava, que me inquietava, que me impedia repousar. Impacientavam-me as
distrações, sufocava-me a atmosfera das salas de baile e dos teatros,
aborrecia-me a sociedade, sorria-me a ideia da solidão de um claustro. Tenho a
alma morta, dizia eu comigo, como lhe há de sobreviver o resto? Olha que
acreditava sinceramente que me tinha morrido a alma.
Suscitei apreensões nas minhas
amigas. Lembra-me que me impuseste a medicina com desusada severidade. A
medicina! Eu bem sabia o que ela viria fazer, mas obedeci. Ares! Ares! —
exclamou ela — julgo que para se ver livre de mim, como de quem suspeitava
poucas probabilidades de vitória. Ares! ares ! — repetiste tu e o coro das
pessoas que se interessavam por mim. Foi-me forçoso condescender.
Dias depois rendia preito e homenagem
à pouco tratável ciência do doutor Jacob Granada, atual superintendente da
minha saúde.
Respirei a plenos pulmões o ar
que me aconselhavam; rompi com os meus hábitos de indolência para saudar as
madrugadas, realmente bonitas, que se gozam daqui; soltei os cabelos às brisas
salutares, embalsamadas pelos aromas dos campos, mas a vida da natureza, cujo
contágio procurava, não se me comunicou. Era o mesmo desfalecimento, a mesma
impaciência, a mesma inexplicável mobilidade.
Forçava-me a sorrir, a gracejar,
divertia-me a educar convenientemente o caráter inflexível do meu facultativo;
mas cá dentro tinha o mal que me pungia.
Uma manhã... atende agora, que
chegou o momento solene; uma manhã impressionaram-me tão dolorosamente os
sinais de decadência, que, não obstante a amenidão do dia, eu por toda a parte
reconhecia o campo que, precisando de dar expansão àquela melancolia para que
me não matasse, fiz versos.
Para outra vez tos enviarei;
deixei-os escritos na parede de uma capela, único sistema de publicidade que
está em voga por aqui. Despedia-me das andorinhas que eu via partir, e
despedia-me para sempre porque um pressentimento me dizia que o Outono me seria
fatal.
Quem me observava, enquanto eu
escrevia? Não sei. Mas, dias depois, voltando ao sítio onde me acometeu este
acesso literário de desesperação, vi que alguém mo havia comentado. Li.
Suspeitas o que era?
Uma declaração de amor. Sou
amada, ouves? Compreendes? Amada e por um homem que não conheço. Há na sua
existência um mistério; seu amor, que ele diz nobre, puro, com o qual se
engrandece, de que se orgulha, não o pode revelar porque o mundo o condenara à
irrisão. Tanto maior é a pureza dele, tanto maior seria o escárnio que atraíra
sobre si se o revelasse. Aí tens um enigma; sabes decifrá-lo? Tenho pensado
muito nisto e, olha, julgo que adivinhei.
É a história da princesa.
É algum pobre rapaz, entusiasta
como um poeta, tímido como uma criança, mas de origem obscura e a quem aterra o
meu apelido aristocrático.
Julga-me tão alta, tão elevada
nos meus pergaminhos, que me riria do seu amor como de uma irreverência
censurável.
Concebes uma loucura assim? Os
soberbos são eles que, nobilitados pela inteligência, nem por causa do amor a
sujeitam ao que julgam uma humilhação!
O meu interessante incógnito! Se
soubesse com que vontade eu rasparia os meus pergaminhos nobiliários para
escrever neles aquela declaração de amor!
«Alma de sensitiva, cujos
delicados instintos têm vigorado na solidão destas devesas: imaginação exaltada
pelo contemplar das estrelas, que parece cintilarem aqui mais animadas, e
dotadas de não sei que inteligência para nos compreender; ele, a ingênua
criança, treme do mundo que não conhece, receia manchar a alvura das suas penas
de cisne na lama em que patinham esses gansos que lha invejam!
Como se o amor não fosse a
corrente límpida que lhe havia de restituir a nitidez! Incrédulo! Ama-me e
desconfia de mim! Ele que me salva... porque estou salva, disse-to, e por ele,
por ele só! — ele, que me salva, julga que me envergonharia do seu amor!
Oferece-me um culto reverente, sincero, apaixonado, ideal, e teme que eu desvie
a cabeça do incenso que me inebria! O mundo! o mundo! pois repara-se lá no
mundo quando se ama? Se as harmonias do coração nos arrebatam, pode lá ouvir-se
o sussurrar da multidão!
Vais julgar-me louca se te disser
que o amo.
É verdade; não o conheço, não
suspeito sequer quem seja; mas imagino-o. Deve ser belo; porque a alma pura tem
reflexos de que depende o que há na beleza de mais ideal.
Triste de quem os não percebe,
fere-os uma cegueira que os pode encaminhar ao precipício; deve ser belo,
assegura-mo a candura daqueles sentimentos, o ideal daquele amor.
Sei que o amo, adivinho que o hei
de amar. Por isso estou salva; por isso te disse que vivia como nunca, como nem
sabia que se vivesse.
Estava cansada de galanteios,
precisava de amor.
As flores artificiais das salas
de baile iludem-nos por momentos, mas a ausência de perfume atraiçoa-as e logo
se patenteia a arte que as teceu; mas as flores, como a violeta, em vão se
ocultam na relva das campinas, denuncia-as o aroma que exalam e são essas as
que nos seduzem.
Sabe-lo também como eu, tu, a
quem não iludem as adulações dos bailes.
Estes elegantes de casaca, de
cabelos frisados, de luva branca, que se meneiam, que se torcem, que envergam,
e adejam, como importunos mosquitos, em volta das nossas cadeiras,
sibilando-nos insulsas galantarias; que nos falam no tempo ao ouvido, para se
darem aparências de intimidade; que nos fazem o favor de uma risada da moda a
cada sensaboria que pronunciamos; esses leões terríveis que, carregando o
sobrolho, imaginam ter fascinado uma mulher...; ninguém lhes pode querer mal,
coitados, mas também quem os poderá tomar a sério?
Aí está explicada a minha isenção
até o dia em que recebi esta prova de um misterioso amor.
Compreendes como se pode amar por
inspiração, não é verdade? Não te rirás desse sentimento que a leitura daquelas
linhas me inspirou, pois não?
Então digo-te mais; digo-te que o
animei. Ontem mesmo, em seguida às suas palavras escrevi estas que formulam um
convite, o qual espero me não será rejeitado. Submeto-as à tua censura.
— Quem possui sentimentos que na
sua consciência o nobilitam não pode envergonhar-se deles. Se eu fiz nascer o
mal, tenho o direito a conhecê-lo. E não possui a liberdade de recusar-se à
confissão inteira quem não hesitou ao exprimir as primeiras queixas. Preciso um
nome. Não sei de distâncias que prevaleçam quando a correspondência de afetos
trabalha por anulá-la: rio-me dos preconceitos que o mundo respeita; e quando
um sentimento é verdadeiramente nobre, tenho faculdades para lhe apreciar a
nobreza e sensibilidade bastante para lhe
não poder ser indiferente.
Fiz mal escrevendo isto? Pode
ser, mas não me arrependo. Quero alentar essa alma tímida que me votou um culto
desinteressado, mostrar-me aos seus olhos tal qual sou e... — porque não direi
tudo, a ti que és a minha melhor confidente? — quero amá-lo. Se o meu amor lhe
pode dar a ventura, hei de torná-lo venturoso.
Espero que em breve te
comunicarei o resultado da minha entrevista. Julgo-a inevitável.
Diz-me se tens os mesmos
pressentimentos da tua
Valentina.»
CAPÍTULO VI
A noite estava tépida e tranquila, como se
fora uma noite de Estio. Os raios de luar esplêndido, internando-se pela
espessura das árvores, desenhavam no chão das alamedas ornatos irregulares, que
apenas um ligeiro tremor agitava.
Os últimos clarões do crepúsculo
apavonavam ainda o ocidente, onde acabara de esconder-se a estrela da tarde.
Muitos dos doentes do doutor
Jacob, aproveitando-se da excepcional temperatura daquela noite de Outono,
passeavam a conversar por entre as árvores, ou contemplavam silenciosos os
variados efeitos da luz nos acidentes do terreno.
Valentina, afastando-se de toda a
companhia, fora sentar-se nos degraus da capela, junto da qual a vimos pela
primeira vez. Na fisionomia, na atitude, na distração com que parecia fitar o
disco luminoso da lua, por entre as folhas dos álamos, denunciava-se-lhe uma
profunda inquietação. A mesma influência sob cujo domínio escrevera a carta que
no capítulo antecedente reproduzimos ainda se não tinha desvanecido.
A mão oculta que lhe havia
dirigido aquela veemente confissão de um amor sem esperança era-lhe
desconhecida.
Ao primeiro convite não
respondera o misterioso escritor.
O caráter de Valentina não lhe
permitia porém desistir facilmente de uma resolução formada. Recuar depois dos
primeiros passos era um sacrifício para que se não sentia de ânimo.
Depois, a fantasia criara-lhe um
romance, um desses devaneios dos vinte anos, em que todo o nosso imaginar se
concentra; paraíso de luz e de flores, fora do qual tudo se nos mostra árido e
obscuro. Já não podia aceitar a realidade, depois de alguns momentos passados
em livre devanear.
Insistiu e a novo emprazamento
obteve uma resposta formada apenas por estas palavras:
«Veja que me pede um sacrifício
imenso. Não sabe o que promete. Assim, ainda posso iludir-me; depois... a
confirmação das minhas suspeitas ser-me-ia fatal.»
Esta resposta não era de natureza
a modificar a tenção da caprichosa convalescente, antes lhe exacerbou a
impaciência natural, sob cuja inspiração escreveu as seguintes palavras no
mesmo lugar onde toda esta singular correspondência havia sido arquivada:
«Um culto sem fé! Como posso
acreditá-lo? Duvidar dos meus sentimentos e querer que não duvide da
sinceridade dos seus! Hoje saberei o que devo julgar. Aqui hei de estar uma vez
mais ainda — a última, se esperar em vão. Procurarei esquecer-me depois.»
Quando de tarde Valentina voltou
a este lugar, uma só palavra resumia a resposta que esperava:
«Virei.»
E era por isso que, à medida que
iam correndo os momentos e aproximando-se a entrevista que ela havia exigido,
uma vaga preocupação se lhe apoderava do espírito, como se só agora ponderasse
na importância do passo que com tanta leviandade havia dado.
Encontrar-se a sós com um homem
desconhecido, que procurava ocultar-se e temia o mundo, como se estigma
indelével estivesse chamando sobre ele o desprezo ou quem sabe se o castigo,
fora uma grande imprudência!
E tal vulto tomavam às vezes
estas apreensões no ânimo de Valentina, que, ferida de terror, erguia-se como
para fugir destes lugares, donde julgava ver já levantarem-se espectros
assustadores.
Em breve porém lhe somam de novo
as impressões que afagara.
Nada devia recear.
Acaso a tinha perseguido esse
homem, quem quer que ele fosse? Não a havia antes evitado? Não fora ela que o
constrangera a vir?
Que podia suspeitar daquela
timidez de criança? Daquele pobre coração que esmorecia à lembrança de que
podiam escarnecer-lhe o culto de que se ufanava. Esta ideia tranquilizava-a e
então voltava a fantasia a pintar-lhe com as mais risonhas cores o futuro da
sua paixão nascente.
Já a faziam sorrir os primeiros
terrores, já se lhe despojava de sombras pavorosas a alameda e de novo esperava
com ansiedade o momento da entrevista.
Nestas continuadas alternativas
que gera a incerteza, entre a confiança e o susto, entre sorrisos e terrores,
correram para Valentina alguns minutos mais, até soarem nove horas na torre da
pequena capela.
Aproximava-se o momento. Mais uma
vez o coração lhe bateu em sobressalto, reproduziram-se-lhe os receios e as
apreensões; mas pouco tempo durou esta íntima impressão. Era a última
incerteza.
O estalar de folhas secas sob os
pés de alguém que caminhava fê-la voltar a cabeça.
Uma figura elevada, que se
destacava em escuro sobre o fundo iluminado pelo luar, estava diante dela e
como que hesitando em aproximar-se mais.
Valentina guardou algum tempo
silêncio. A face do recém-chegado, oposta como ficava aos raios da luz, não
pôde ser por ela reconhecida.
Aquela aparição repentina e
silenciosa, como a de um espectro sinistro, suscitou em Valentina uma espécie
de pavor supersticioso, que lhe não permitiu interrogá-la.
— Eis-me aqui — disse por fim
aquele vulto, com uma voz que apesar de sumida, Valentina julgou conhecer. E,
sem lhe dar tempo de recorrer à memória, voltou, por um movimento súbito, o
rosto aos ralos da lua, que iluminaram as feições bem características de Jacob
Granada.
Valentina levantou-se
surpreendida sem saber ainda o que pensasse do que estava vendo.
— O doutor Jacob aqui!
O recém-chegado guardou silêncio.
— Ah! já sei — disse Valentina,
como se lhe ocorrera afinal um pensamento que a satisfazia. — Já sei. Vem
lembrar-me que os nevoeiros da noite me podem ser prejudiciais. Ora! Doutor,
esses cuidados são-lhe mais necessários a si do que a nós outras, organizações
jovens, onde, se o mal não nasceu cá dentro, há vida de sobra para neutralizar
todos os elementos conjurados. Repare, não me tem sentido renascer as forças?
Iluminar-se-me o olhar? Renovar-se-me o sangue? Não vê que estou curada? De
hoje em diante declaro-me livre da sua tutela. Entrego-lhe as suas credenciais.
Deixe-me em paz gozar das belezas de uma noite assim. Isto é também uma
necessidade. O doutor não compreende como isto pode ser uma necessidade? Nem eu
lho sei explicar. Creia ou recorde-se; se teve um passado que lhe dê dessas
recordações. Vá, vá, deixe-me só, doutor. Tome para si os conselhos higiênicos
que dá aos outros. Então? E fica! e não responde!... Que veio fazer aqui?
— Pois não exigiu que viesse? —
redarguiu ele com uma voz cujo ligeiro tremor revelava a imensa ansiedade que lhe
angustiava o coração.
Valentina fitou-o por algum tempo
com um olhar de estupefação.
— Deus meu! Pois era... — E uma
gargalhada estridente, nervosa, prolongada, terminou a frase que começara a
formular.
A palidez de que naquele instante
se cobriram as faces do velho médico, foi tão intensa, ao ouvi-la rir assim,
que nem a meia obscuridade do lugar a pôde encobrir. Era a palidez de um
cadáver.
Com uma voz sufocada,
dilacerante, como só a têm os desesperados, apenas soluçou, deixando pender os
braços com desalento:
— Estou condenado!
— Mas enfim que significa esta
cena? — perguntou Valentina com certo desabrimento, porque, ela também, sentia
desvanecer-se-lhe uma ilusão.
Jacob Granada ergueu a cabeça com
um gesto impetuoso e, fitando Valentina com o olhar chamejante e desvairado,
disse-lhe, numa vivacidade que semelhava ao delírio:
— Significa que a amo! Estremece?
Surpreende-a esta palavra na minha boca? Bem conheço o sentido desse olhar que
levantou para os meus cabelos brancos; não sei como não se riu outra vez!
Embora. Há de ouvir-me, já que exigiu que viesse. Ah! compreende enfim porque
eu devia sufocar este amor, compreende porque devia ocultar este segredo até de
si? Era para que uma gargalhada não me viesse despedaçar o coração, como essa
acaba de o fazer. Está tudo terminado para mim! Um pressentimento me dizia que
isto havia de acontecer. Iludi-me; vim. O meu Deus, como me pude eu iludir!
Saberá tudo agora, Valentina; ria-se depois, mas conheça inteiro o infortúnio
de que se ri. Sim; é verdade, sou velho; há muitos anos, há muitos, que me
alvejam as cãs na cabeça e a cara se me inclina desfalecida; mas se me sinto
jovem na alma! se neste corpo cansado e gasto há um espírito de maior alento
que do que o dessa juventude que a seduz! A descrença, o egoísmo, o interesse,
a ausência de nobres aspirações, de sentimentos generosos, de concessões
elevadas, eis o viver das almas decrépitas, e eu, Valentina, desde que a vi,
perdi o sentido dessas paixões mesquinhas, ídolos a que sacrificam os homens da
sua época, cujo amor aceitaria sem uma gargalhada. Responda, diga se pelos
instintos não sou mais jovem do que eles. Nenhum a poderia amar como eu a amo,
saiba; nenhum faria desse amor uma religião como eu; nenhum se perderia por
ele, como eu decerto me perco. Bem vê que me não é possível a salvação!
E os soluços interromperam-lhe a
voz ao dizer isto.
Por alguns momentos conservou a
cabeça escondida nas mãos; ao levantá-la corriam-lhe as lágrimas pelas faces
descoradas.
Valentina não rompeu este
silêncio de momentos.
Jacob Granada continuou em tom
mais abatido:
— Perseguiu-me a fatalidade toda
a minha vida! Não conheci carinhos de mãe na infância; não conheci extremos de
amante na juventude. Na idade das aspirações, não as tive; quando devia viver
para o sentimento, era a razão que dominava em mim; os anos do amor
consagrei-os sem uma saudade ao estudo; enquanto os meus companheiros corriam
com alegre irreflexão para os prazeres, eu procurava o trabalho com corajosa
tenacidade. Veja, conceba os risos desta juventude. Acabaram por me abandonar
todas as afeições, essas poucas afeições superficiais que me restavam.
Respeitaram-me, não me estimaram. Como era um homem útil, tinha quem me
lisonjeasse, quem me obedecesse, mas ninguém, repare, Valentina, para o
desconforto desta existência, ninguém que me desse afetos! A solidão que se fez
em volta de mim exacerbou o que havia no meu caráter de sombrio; estava quase a
odiar os homens... Um dia, porém, senti que acordava no meu coração um
sentimento adormecido, e acordava com toda a exaltação, com todas as tendências
da juventude. Concebi o amor com a pureza, com o ideal que pode verter na concessão
um coração ainda virgem; concebi-o como um culto, como o augusto mistério de uma
religião que pela primeira vez se me revelava.
A minha alma passou por uma
completa transfiguração; novos instintos, novas faculdades parecia nascerem
para ela. Mas... as rugas que me sulcavam a cara impunham-me a obrigação de
sufocar a explosão iminente das paixões que se insurgiam tumultuosas. Que
importava a pureza delas? — apontar-me-iam para os meus cabelos brancos e
mandar-me-iam que os respeitasse. Calei-me; foi então que verti em silêncio as
mais amargas lágrimas da minha vida.
Pela segunda vez a comoção
dominava Jacob Granada a ponto de lhe interromper a corrente de palavras que
uma veemente paixão lhe estava ditando; depois continuou:
— A velhice descrente, invejosa,
avara, egoísta, cínica, pode ainda encontrar indulgência; desculpam-na e
respeitam-na muitas vezes; mas a velhice amorosa, fascinada por uma dessas
visões encantadoras, votada a um desses cultos ferventes que nobilitam as
almas, essa não tem misericórdia a esperar; condenam-na ao escárnio, à irrisão,
e tanto mais puras e elevadas são as aspirações desse amor, tanto mais amarga,
desapiedada, é a humilhante perseguição que lhe declaram; é então que o
assalteiam de chascos e de apupos. Sabia-o! e por isso me ocultava, por isso
lutei para que ninguém descobrisse em mim o que me ia no coração. Porque eu
amava-a loucamente, Valentina, e amo-a!... Oh! deixe-me ainda dizer-lho. Nada
mais lhe peço. É já agora a única consolação a que aspiro. Ouça-me e ria
depois, se a comiseração lhe não gelar nos lábios o sorriso. É a última vez que
lhe falo. Amo-a perdidamente. Os afetos que os outros repartem com a mãe, com
os irmãos, com os filhos, entesourei-os eu, anos e anos, para lhos tributar
agora! Despreze-os, mas conheça primeiro de que grandeza são. Este amor tem o
respeito do amor filial, a dedicação do amor fraterno; havia de rodeá-la das
carícias que os filhos recebem da mãe que os estremece, e, ao mesmo tempo, ele
adivinharia os extremos, a exaltação de uma paixão de amante. Sacrificar-lhe-ia
tudo, a minha vida, a minha vontade, os respeitos do mundo. Porque me despreza?
Oh! não repare nestes cabelos brancos; far-lhos-ei esquecer à força de
dedicação e de afetos. Não me disse que viesse? Pois não me assegurou que
possuía faculdades superiores às do vulgo? Que direito tinha para fazer nascer
ilusões, como as que eu, louco, cheguei a alimentar, se não confiava que
poderia corresponder a esse amor verdadeiro, que animou assim? Se havia de
acolher-me com a gargalhada motejadora e cruel, para que me arrastou aqui?
Diga, fale. Não vê que enlouqueço? Uma palavra ao menos que me tire dos ouvidos
o som daquela gargalhada. Valentina! comove-a a partida das andorinhas, o
definhamento da flor, e não tem coração para sentir este tormento? Vê? choro,
choro, e parece que se me exaure a vida nestas lágrimas. Não aliviam,
abrasam-me! Ó Valentina! Valentina! Tenha piedade desta razão que se perde.
E pronunciando entre soluços
estas palavras que lhe saíam dos lábios como uma impetuosa torrente, caiu de
joelhos aos pés de Valentina, que olhava com gesto de comiseração.
— Creia que aprecio a nobreza dos
seus sentimentos — disse-lhe ela em tom grave e triste. — Tenho orgulho de os
haver inspirado, mas penaliza-me ao mesmo tempo. Que quer? É uma fatalidade,
disse-o ainda há pouco. A alma que eu ambicionaria encontrar era decerto uma
alma assim, mas... — acrescentou com uma expressão de rosto onde não pôde
totalmente dissimular um reflexo de sorriso — cheguei... tarde, bem vê. — E
fitou os olhos na cabeça encanecida do apaixonado velho.
O sentido destas palavras não
podia ficar um enigma para Jacob Granada.
— Tarde! — repetiu ele,
levantando-se e com uma entonação de amargura que contristava ao ouvir. —
Tarde! — E mal soube disfarçar um sorriso ao pronunciar essa palavra cruel! —
Se não sente compaixão, para que a simula? Acabe de consumar a obra. Não basta
repudiar este amor; tenha coragem, é preciso escarnecê-lo. Vá, aí anda essa
turba de ociosos, procure-a. Conte-lhe a minha loucura, fale-lhe na minha
ridícula credulidade, diga-lhe que um velho ousou falar-lhe de amor, que não
hesitou em rojar-lhe aos pés a dignidade da sua velhice. Pois vacila? O velho
que ama! o velho que ama! É a eterna fábula da juventude, que nem coração tem
para amar. Patenteei-lhe a minha alma; agora que a conhece, ria-se dela. Não
será a única a rir; mas é a única a martirizá-la, creia. Que importa a mim que
os outros a acompanhem? Os outros! a multidão! o mundo! Nem já entendo as
palavras. O mundo para mim está aqui dentro; e atormenta-me, rala-me, mata-me.
Já vê que se enganou, mentiu-me. Os meus sentimentos são nobres, disse-o ainda
agora, não é verdade? mas, recorda-se do que escreveu? Se tem faculdades, para
lhe apreciar a nobreza, falta-lhe o que é mais, a sensibilidade para lhe não
ser indiferente. Adeus! e repare que não é um simples adeus o que lhe digo assim.
Adeus!... E já não choro! Pior! Tinha precisão de chorar. Sinto em mim um fogo
que me abrasa. Adeus! Procure um coração para o qual não chegasse... tarde: mas
juro-lhe, Valentina, que outro como este que desprezava... Adeus; adeus!
E, apoderando-se subitamente das
mãos de Valentina, beijou-as com um tal ardor que a fez estremecer e fugiu
desorientado do lugar onde esta cena se passara.
Aquela noite foi para Valentina
uma noite de agitação e insônia; parecia-lhe a cada momento escutar as palavras
apaixonadas desse desgraçado que vira aos seus pés e cuja figura, pálida e
abatida, se lhe representava na imaginação e quase lhe fazia sentir remorsos.
CONCLUSÃO
No dia seguinte havia grande
alvoroço em todas as habitações da colina. Um fato extraordinário, misterioso,
comentado mais ou menos extravagantemente, reunia os grupos, animava as
conversas, e quebrava a costumada monotonia daquele plácido viver. O sucedido
não era para menores efeitos; o doutor Jacob Granada havia desaparecido.
Formavam-se conjeturas,
procuravam-se vestígios, recordavam-se circunstâncias insignificantes,
aventavam-se explicações, mas a obscuridade do fato era completa.
Só Valentina, ainda que não
pudesse julgar do destino do doutor Jacob, imaginava a causa provável do sucesso
e, pela exaltação de espírito que ultimamente conhecera no velho médico, sentia
a esse respeito não infundadas apreensões.
Alguns dias reinou a incerteza. A
confusão era completa. Alteraram-se os hábitos mais regulares. Não se falava,
não se pensava em outra coisa. Os próprios doentes esqueciam os seus
padecimentos, o que a muitos bastou para os curar.
Era uma anarquia inocente.
Finalmente, uma manhã, o correio de Lisboa pôs fim a todas as conjeturas. Os
periódicos e as cartas particulares anunciavam que o doutor Jacob havia sido
encontrado nas ruas da capital, mas em tal estado de espírito, que fora
recolhido ao hospício dos alienados.
Foi geral a consternação ao
receber-se a notícia. Muitas lágrimas sinceras se verteram naquele momento,
porque o doutor Jacob era verdadeiramente estimado.
Nesse mesmo dia Valentina
abandonou a aldeia, que, depois do sucedido, se lhe tornara insuportável pelas
amargas recordações que lhe trazia.
Aos leitores que desejarem saber
particularidades sobre a loucura do doutor Jacob ofereço o seguinte extrato de
uma carta do facultativo que o observou:
«A mania predominante do enfermo
é a descoberta da pedra filosofal. A elaboração de um elixir de longa vida
preocupa-lhe o espírito e conserva-o num contínuo e fatigador trabalho mental.
Ouvimo-lo falar em Paracelso, em
Cagliostro, em Basílio Valentim e Arnaud de Villeneuve e não sei quantos mais
nomes de ilustres alquimistas.
Com a primeira pessoa que se lhe
aproxime, pratica sobre os arcanos daquela seita afamada, exaltando-lhe a
ideia, e expondo-lhe as teorias, com um fogo e uma vivacidade que no meio das
aberrações de um espírito perturbado revelam ainda verdadeiros clarões de uma
grande inteligência.
Há dias encontrei-o repetindo
estas palavras, que depois me disse serem da Taboa Smaragdina de Hermes:
— Apartarás com cuidado e engenho
a terra do fogo, o subtil do denso; o fogo sobe da terra aos céus, desce outra
vez sobre a terra e tira a sua força tanto do superior como do inferior. Assim
possuirás a glória do mundo inteiro, fugirão de ti as trevas. E a virtude fonte
de toda a virtude...
Interrompe a cada passo estes
solilóquios para exclamar que fará ele enfim o grande achado, a grande obra,
que há de ser jovem então, que remoçará. E esta ideia lança-o num acesso de
hilaridade característica. Exaspera-se quando lhe negam o que exige para as
suas fantásticas elaborações.
É aos velhos que com
especialidade se dirige.
Promete-lhes juventude, alegria,
consideração, e amores.
A extravagância destas promessas,
o ardor das suas palavras então, moveriam o riso se a alma não se sentisse
comovida perante as desordens daquela inteligência, onde parece descobrirem-se
os vestígios de uma poderosa e malograda paixão.
— O absoluto — exclama ele nesses
momentos — vos restituirá as seduções da juventude, desgraçados velhos! Nunca
mais, nunca mais vos repetirão, como a mim, aquelas palavras: Vim tarde!
Estas duas palavras são as que
efetivamente mais vezes o ouvem pronunciar, acrescentando:
— Não haverá mais tarde nem cedo,
perante o eterno, o absoluto.
Então animam-se-lhe as feições e
um sorriso singular.
Esta exaltação incomoda a quem a
vê. Eu, habituado como estou a estes espetáculos, confesso que o não posso
olhar sem estremecer, e conservo disso por muito tempo uma impressão penosa. As
vezes encontram-no com o rosto oculto entre as mãos e chorando como uma
criança; sai desses acessos para perguntar se as andorinhas já voltaram. É
singular a comoção que experimenta à vista destas pequenas aves.
Deste estado recai no de um
desespero tão violento que é necessário vigiá-lo muito de perto para que não
cause mal. Em tudo isto reconheço os efeitos de alguma paixão íntima de que
este desgraçado foi vítima. A sorte dele parece-me desesperada, e, no
definhamento em que vai, é de presumir que, a recuperar a razão, seja só para
reconhecer o instante final.»
E Valentina?
Conservou por algum tempo a
memória do doutor Jacob; mas enfim tinha vinte anos, imaginação e futuro.
Em tais circunstâncias as
impressões são tão efêmeras!
Na última carta em que falava
dele à sua amiga, terminava assim o período respectivo:
«Finalmente, era uma bela alma.
Não há dúvida.
Para o ter amado, bastar-me-ia...
ter sido contemporânea da minha avó.»
A observação parece um tanto
cruel; mas qual das leitoras jovens seria mais benigna?
Depois que soube os incidentes
desta pequena história, cada vez mais se confirmou a minha convicção de que é
antes para comover do que para rir o espetáculo de um velho apaixonado. E o que
eu julgo que nós todos devemos pedir a Deus é que não dê longa vida ao coração,
se isto de paixões tem alguma coisa com ele, para que não seja o último a
morrer.
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Nota:
Júlio Dinis: "Serões da Província" (1870)
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