domingo, 15 de setembro de 2013

João Marques de Carvalho: "Remember"

REMEMBER
(Poemetos em prosa)
A Paulino de Brito

I

Não tens então no peito a mínima raiva contra mim?—perguntei-lhe admirado, fitando-a todo comovido pelo prazer das recentes pazes.

—Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os loucos anéis dos seus cabelos tremulavam faceiros, numa opulência, numa prodigalidade de adoráveis eflúvios fascinadores. E toda a sua pequenina pessoa, delicada e meiga, parecia desabrochar as florescências gentis das suas graças, dos seus divinos dotes triunfantes em meio á pujança da invejável mocidade!

—Pois bendita sejas tu, cândida e pura, amada e amante virgem, que tanta bondade tens na alma, quantas são as seduções capitosas do teu belo rostinho, coroado desses loiros cabelos, cujos anéis, loucos e faceiros, tremulam opulentos, em adorável prodigalidade de fascinadores eflúvios!—retorqui arrebatado em grande entusiasmo, atraindo-a castamente para mim, num impulso de gratidão, ainda todo comovido pelo prazer das recentes pazes.

E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que manifestara-se no roubo dum beijo,— dum pequenino beijo fugitivo,—aquela bendita virgem, cândida e pura, cujo delicado corpo como que desabrochava as divinas graças triunfais em gentis florescências de invejável juventude pujante!

As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse entusiasmo da minha amante virilidade em face das seduções capitosas de tão belo rostinho!..

II

Mas anoitecera de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos jasmineiros rescendentes maior escuridão comunicava á parte do jardim onde havíamos feito pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido nos rubros lábios mádidos da minha pequenina amante fascinadora.

Um silencio embaraçador enleava-nos em tíbia indecisão. A loira cabecinha dela descansava indolente no meu ombro, com os lindos anéis undiflavando-se-lhe tranquilos, concentrados, ao longo das corretíssimas espáduas.

E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com seus recendentes jasmineiros floridos, entre o silencio enleando-nos embaraçadoramente em tíbia indecisão.

Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descansar-me no ombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,—um fugitivo beijo pequenino e casto,—nos úmidos lábios da minha gentil e tentadora amante.

Ela, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rápida e precavida. Uma das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu o pesinho, numa expansão de enfado incipiente....

—Se reincidir, não perdôo mais!—exclamou, avisando-me, com a voz ainda repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos estendidas nervosamente, mais rápida que esses doces momentos de gozo que me concedeu, enquanto descansava a fronte no meu ombro, com os formosos anéis da adorável cabecinha louca undiflavando-se-lhe tranquilos pelas corretíssimas espáduas.

Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo de um beijo,—do primeiro beijo, pequenino e casto,—aos ardentes lábios mádidos da minha bendita virgem.

E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisíveis quase, num recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em face do capricho daquela pequenina cabeça loira, de triunfantes graças capitosas, que só admitira e perdoara o meu primeiro atrevimento... ainda tão inocente e retraído!...

---
Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)

Nenhum comentário:

Postar um comentário