NOITE DE FINADOS
A Manoel P. de Carvalho
O cemitério de Santa Isabel estava cheio de
visitantes, todos vestidos de preto, caminhando compassada e vagarosamente por
entre as sepulturas. Eram oito horas da noite sob um céu trevoso como a
tristeza daquelas pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos
parentes e amigos para sempre ocultos debaixo da terra, sobre a qual compridas
filas de velas acesas lançavam uma claridade intensa, que ia esbater-se ao
fundo, na escuridão do matagal.
O ar estava impregnado do perfume das flores
—piedosamente depostas em cima das sepulturas por mãos amigas,—e do cheiro
místico da cera queimada.
Ao longe, á direita da ermida, uma banda de
musica executava plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas
maviosidades lúgubres faziam suspirar as velhas beatas,—aspirando a uma outra
vida desconhecida, além daquele firmamento negro, no lugar onde a onipotência
incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a sua majestade.
Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de
povo invadiam o cemitério. Este, aquela hora, mal podia contê-las; por isso, as
pessoas que receavam um atropelo, saíam enfadadas, murmurando indecências.
Á porta, do lado exterior, cocheiros desbocados
conversavam livremente com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce
alumiadas pelas lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos
repelentes, de vestes sujas e mal cheirosas, plangiam súplicas, tentando
demover em seu favor a caridade dos visitantes piedosos.
Alguns vadios encostados a um rico mausoléu de
mármore asseteavam olhares torpemente libidinosos ás moças que entravam
seguidas de suas mamães, num andar assustadiço e saudando um ou outro conhecido
com um meneio de cabeça. Mais adiante, num canto escuro, uma roliça mulata, com
o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de fisionomia
horrenda empertigado num fato novo e com a cabeça coberta por um descomunal
chapéu alto. Como contraste, não muito longe, estava uma senhora pobremente
trajada, com os cotovelos pousados á grade ferrugenta duma sepultura mal
alumiada por duas velas em castiçais de vidro.
Dos olhos dela, que estavam fixos em uma coroa
de perpetuas roxas, corriam lágrimas, que das faces resvalavam-lhe para as
delgadas folhas do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos
desbotados....
Era sem duvida alguma viúva que pagava á memória
do finado marido alguns anos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...
Á esquerda, contemplando uma fitografia em
miniatura encerrada em negro caixilho e suspensa ao centro da cruz duma
sepultura pequenina e toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madres-silva,
via-se uma senhora de cabelos grisalhos, imóvel, calada—como evocando passadas
cenas de prazer—sem ouvir as plangências da orquestra, que prosseguia no
funeral tristonho....
O céu, no entanto, enchera-se duma luz suave e
esbranquiçada. Grandes nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do
firmamento, para as bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço
d'almas penadas fazia farfalhar a mata próxima, causando arrepios de mal-estar
ás supersticiosas moças que estavam no cemitério.... Agora calara-se a
orquestra.
Subira um pregador para um púlpito armado ao ar
livre, sob uma arvore de grande coma sombria, e recitava em voz cavernosa e com
largos gestos trágicos, uma homilia contristadora sobre a transitória
felicidade mundana e a perene bem-aventurança celestial.
As mulheres,—mães, filhas, esposas,—que o
ouviam, ficavam caladas, muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos
em seu rosto bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciência, levantavam
um brado de maldição aquela felicidade que lhes roubara a companhia dos entes
queridos e amoráveis.
Um homem de cabeça encanecida, que vagueava
levando pela mão uma criança de tenra idade,—um lindo e pálido
orfãozinho,—voltou-lhe costas nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um
pobre tumulo tranquilo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma só
frase:—Á minha esposa....
No céu, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como
alegrias fugitivas ou prazeres expulsos, erguiam-se nuns grandes rendilhados
fantásticos de miragens variadas.
A lua apareceu, como uma saudade enorme e
cruciante, numa serena majestade tumular, que impôs vago sofrimento ao coração
de todos. Os brandões e velas perderam o brilho, ficaram como pirilampos
lantejoulando os sepulcros sob o luar diáfano, a cuja claridade continuava o
pregador a recordar a onipotência de Deus.
Os bondes estacionados na praça encheram-se de
passageiros. Minutos depois seguiam pela estrada da Independência, repletos de
homens, de senhoras tristes, com fisionomias de sofrimento.
Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos
homens. O largo estava iluminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era
aquela noite a penúltima da festa anual.
Então, os mesmos homens que estavam rendendo há
poucos minutos uma saudade á memória de um amigo, dum irmão, dum pai, desciam
agora ao centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as
casas de jogo,—propelidos pela fascinação demoníaca e terrível da roleta!
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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)
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