domingo, 15 de setembro de 2013

João Marques de Carvalho: "Rio Abaixo"

RIO ABAIXO
Ao dr. Gaspar Costa

A canoa seguia mansamente, per si só, impelida pela correnteza.

Sentado á proa, fumando num cachimbo de longo taquari, o caboclo fitava com o olhar indolente os altos e esguios açaizeiros e as longas folhas das bananeiras dum verde-claro alegre, beijados pelos últimos raios do sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.

Na popa, debaixo duma tolda de palha d'ubim, estava o senhor moço, abanando-se com uma ventarola de penas vermelhas, ao lado da senhora moça, que espreitava para fora, por um dos pequenos postigos laterais. A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de língua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visíveis.

O cheiro acre da maresia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos matagais da ilha próxima; cantos sonoros de pássaros chegavam até á embarcação, numa suavidade docemente melancólica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois viajantes.

—Que bonita paisagem, Antonio!

—É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias imenso da viagem.

—Quando chegamos ao sitio?

—Ás 9 horas, isto é, daqui a três ou quatro.

—É pena chegarmos tão cedo!

—Dizes bem: vamos tão contentes....

E beijaram-se num ímpeto de prazer extraordinário.

O caboclo, que, por acaso estava a olhar para eles desde alguns momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada fumaça, para tranquilizar-se.

Os outros, os dois recém-casados,—porque Antonio e Luiza eram noivos: tinham-se matrimoniado quinze dias antes,—experimentavam, debaixo da tolda, uma sensação de inefável bem-estar ao verem-se naquele majestoso sossego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente,—com o olhar cheio de caricias,—por haverem podido esquivar-se á vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banais, nulas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,—como iriam viver felizes durante aquela quinzena de fuga, em a tranquilidade bucólica da roça, sozinhos, passeando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na água azulada e murmurosa dos igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas matas do sitio?!....

Sugeridas pelo sopro de sossego que parecia rodeá-los no meio do rio, estas idéias levaram-nos a conversar animadamente, risonhamente, sem atenderem a que o sol não mais vibrava os látegos luminosos no dorso da corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canoa, afim de gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava num movimento descompassado as velas mal colhidas ao mastro.

Sempre assentado á proa, fumando sempre no cachimbo de longo taquari, o caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixara um rastro avermelhado no céu, onde agrupavam-se em desordem nuvenzinhas cor de nácar, violetas, azuladas, plúmbeas, cor de perola. Do lado oposto, levantava-se a noite, num andar manso, matemático, extinguindo a pouco e pouco o crepúsculo bruxuleante.

O gorjeio dos pássaros cessara na ilha das Onças, que já tinha ficado atrás, a longa distancia; só chegavam á canaã os compassos em andante do canto de um carachué que saudava a noite duma pequena ilha, rente á qual passou a embarcação.

—Vê aí no meu relógio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.

—Seis e trinta e oito, senhor.

—Oh! então saiamos daqui, filha, vamos tomar fresco.

Vieram para fora.

Luiza soltou uma exclamaçãozinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, engraçada como uma sátira de Julio Cezar, com a sua voz dum timbre argentino como um filete de água morna caindo numa banheira de ouro lavrado:

—Ah!—fez ela.

E deixou-se ficar de pé, encostada ao ombro do marido, extasiada, em frente ao pitoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.

Largo em aquele sitio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas rasas, cobertas duma vegetação opulenta, que esbatia-se nuns tons escuros, quase indecisos, no limite do horizonte. Um sossego de tabernáculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do céu, onde as estrelas começavam a cintilar como as pedras preciosas dum manto de rainha antiga. Nem uma nuvem ocupava nesse instante um espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra firme, tremulava uma pequena luz. A água do rio, no fim da vazante, esgueirava-se pelo costado da canoa num murmúrio dolente. A súbitas, na solenidade do silencio, ressoou um grito de ave noturna.

—Acende a lanterna, José,—disse Antonio ao caboclo, que obedeceu logo, voltando depois á sua posição habitual na proa, fumando.

Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros com roseiras floridas.

Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi á popa buscar um chalé, cobriu-lhe com ele os ombros, conchegando-lho muito ao pescoço, amoravelmente.

Depois sentou-se ao lado dela. Era profunda a escuridão. Do lugar em que achavam-se, apenas viam na proa um ponto vermelho como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornara invisível na densidade das trevas.

Antonio e Luiza sentiram-se bem naquela solidão: entraram a conversar baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de tão agradáveis recordações. Era para ambos uma inarrável felicidade poderem pairar, assim a sós, das peripécias do curto namoro, dos longos anos que ele passou a amá-la silenciosamente, das emoções e impaciências do dia do casamento, quando aproximava-se a hora em que o pároco de Sant'Ana teria de uni-os.

Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, numa excitação dos sentidos. Um movimento instintivo,—inconsciente, talvez; cheio de afeto e volúpia, com certeza,—uniu-lhes os lábios num prolongado beijo de paixão, vibrante como um coro juvenil.

Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.

Pôs-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvática e cheia de grandiosidade das florestas amazônicas...

E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu aquele beijo nascido de duas bocas amantes no silencio de tão linda noite paraense.

Entretanto, a canoa seguia mansamente, rio abaixo, impelida pela correnteza.


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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)

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