RIO ABAIXO
Ao dr. Gaspar Costa
A canoa seguia mansamente, per si
só, impelida pela correnteza.
Sentado á proa, fumando num
cachimbo de longo taquari, o caboclo fitava com o olhar indolente os altos e
esguios açaizeiros e as longas folhas das bananeiras dum verde-claro alegre,
beijados pelos últimos raios do sol, que escondia-se por traz da ilha das
Onças.
Na popa, debaixo duma tolda de
palha d'ubim, estava o senhor moço, abanando-se com uma ventarola de penas
vermelhas, ao lado da senhora moça, que espreitava para fora, por um dos
pequenos postigos laterais. A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço
de língua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visíveis.
O cheiro acre da maresia saturava
a tolda. Periquitos gritavam nos matagais da ilha próxima; cantos sonoros de pássaros
chegavam até á embarcação, numa suavidade docemente melancólica, que fazia
sorrir de alegre ternura os dois viajantes.
—Que bonita paisagem, Antonio!
—É certo! Razão tinha eu
dizendo-te que gostarias imenso da viagem.
—Quando chegamos ao sitio?
—Ás 9 horas, isto é, daqui a três
ou quatro.
—É pena chegarmos tão cedo!
—Dizes bem: vamos tão
contentes....
E beijaram-se num ímpeto de
prazer extraordinário.
O caboclo, que, por acaso estava
a olhar para eles desde alguns momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo
queimar-lhe as tostadas faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou
do cachimbo demorada fumaça, para tranquilizar-se.
Os outros, os dois recém-casados,—porque
Antonio e Luiza eram noivos: tinham-se matrimoniado quinze dias
antes,—experimentavam, debaixo da tolda, uma sensação de inefável bem-estar ao
verem-se naquele majestoso sossego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação.
Felicitavam-se mutuamente,—com o olhar cheio de caricias,—por haverem podido
esquivar-se á vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados de visitas,
cujas conversações banais, nulas, pouco interesse lhes davam. Mas agora,—como
iriam viver felizes durante aquela quinzena de fuga, em a tranquilidade bucólica
da roça, sozinhos, passeando sem companheiros importunos, ao longo do rio,
tirando caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na água azulada e
murmurosa dos igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo
peixinhos pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio
nas matas do sitio?!....
Sugeridas pelo sopro de sossego
que parecia rodeá-los no meio do rio, estas idéias levaram-nos a conversar
animadamente, risonhamente, sem atenderem a que o sol não mais vibrava os látegos
luminosos no dorso da corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da
canoa, afim de gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava num movimento
descompassado as velas mal colhidas ao mastro.
Sempre assentado á proa, fumando
sempre no cachimbo de longo taquari, o caboclo olhava agora para o poente, como
confidenciando mentalmente com o sol, que deixara um rastro avermelhado no céu,
onde agrupavam-se em desordem nuvenzinhas cor de nácar, violetas, azuladas, plúmbeas,
cor de perola. Do lado oposto, levantava-se a noite, num andar manso, matemático,
extinguindo a pouco e pouco o crepúsculo bruxuleante.
O gorjeio dos pássaros cessara na
ilha das Onças, que já tinha ficado atrás, a longa distancia; só chegavam á canaã
os compassos em andante do canto de um carachué que saudava a noite duma
pequena ilha, rente á qual passou a embarcação.
—Vê aí no meu relógio que horas
são, José, ordenou Antonio ao caboclo.
—Seis e trinta e oito, senhor.
—Oh! então saiamos daqui, filha,
vamos tomar fresco.
Vieram para fora.
Luiza soltou uma exclamaçãozinha,
sonora como um soneto de Paulino de Brito, engraçada como uma sátira de Julio
Cezar, com a sua voz dum timbre argentino como um filete de água morna caindo numa
banheira de ouro lavrado:
—Ah!—fez ela.
E deixou-se ficar de pé,
encostada ao ombro do marido, extasiada, em frente ao pitoresco panorama que
apresentava-se-lhe aos olhos.
Largo em aquele sitio, achamalotado
pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas rasas, cobertas duma vegetação
opulenta, que esbatia-se nuns tons escuros, quase indecisos, no limite do horizonte.
Um sossego de tabernáculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do céu,
onde as estrelas começavam a cintilar como as pedras preciosas dum manto de
rainha antiga. Nem uma nuvem ocupava nesse instante um espaço do firmamento. Ao
longe, á direita da terra firme, tremulava uma pequena luz. A água do rio, no
fim da vazante, esgueirava-se pelo costado da canoa num murmúrio dolente. A
súbitas, na solenidade do silencio, ressoou um grito de ave noturna.
—Acende a lanterna, José,—disse
Antonio ao caboclo, que obedeceu logo, voltando depois á sua posição habitual
na proa, fumando.
Antonio e Luiza tinham-se
assentado sobre a mala que havia no centro da embarcação, entre dois paneiros
de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros com roseiras floridas.
Como tivesse refrescado o vento,
Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi á popa buscar um chalé, cobriu-lhe
com ele os ombros, conchegando-lho muito ao pescoço, amoravelmente.
Depois sentou-se ao lado dela.
Era profunda a escuridão. Do lugar em que achavam-se, apenas viam na proa um
ponto vermelho como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo.
Este se tornara invisível na densidade das trevas.
Antonio e Luiza sentiram-se bem naquela
solidão: entraram a conversar baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes
compunham o passado de tão agradáveis recordações. Era para ambos uma inarrável
felicidade poderem pairar, assim a sós, das peripécias do curto namoro, dos
longos anos que ele passou a amá-la silenciosamente, das emoções e impaciências
do dia do casamento, quando aproximava-se a hora em que o pároco de Sant'Ana
teria de uni-os.
Soltavam risadinhas indiscretas,
acariciavam-se com amor, com delicias, numa excitação dos sentidos. Um
movimento instintivo,—inconsciente, talvez; cheio de afeto e volúpia, com
certeza,—uniu-lhes os lábios num prolongado beijo de paixão, vibrante como um coro
juvenil.
Ouvindo-o, o velho caboclo
estremeceu, mudou de posição.
Pôs-se a pensar nas passadas e
saudosas épocas da sua felicidade, fruída com a finada mulata, a quem tanto queria,
no meio da vegetação selvática e cheia de grandiosidade das florestas amazônicas...
E um suspiro profundo, traduzindo
uma saudade dolorosíssima, respondeu aquele beijo nascido de duas bocas amantes
no silencio de tão linda noite paraense.
Entretanto, a canoa seguia
mansamente, rio abaixo, impelida pela correnteza.
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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)
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