QUE BOM MARIDO!
A Juvenal Tavares
“Não desejarás a mulher do teu próximo”.
MANDAMENTO DE DEUS.
Havia já três anos que estavam
casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranquilos, na sua casinha da
estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava
alegremente numas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao
passeante que para ela dirigisse escrutador olhar.
Ele era um velho quarentão,
amanuense de secretaria, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas
e grisalhas. A mocidade que tivera,—tempestuosa e poída nas
orgias,—encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quais desciam
para o rosto, onde cruzavam-se numerosas rugas sobre a pele cor de ginja.
Ela tinha dezoito primaveras,—para
me servir v velha expressão do romantismo;—ostentava uma carinha faceira,
risonha, de olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso
excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas
filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível
como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que
impressionavam bem profundamente a mais de meia-dúzia de gamenhos vadios,—
desses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
O seu regime de vida era,
invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco
almoço, o sr. Bonifácio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu
alto, dava um chocho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado
publico:—impassível e cadenciado.
Elvira acompanhava o esposo até á
porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, afim de dar
algumas ordens acerca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição,
ia sentar-se á máquina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as
despesas diárias. O ganho desses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifácio
formavam uma soma bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a
tempos o luxo dum camarote no teatro da Paz e um passeio a bonde em noites de
luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e
bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho
amanuense e forneciam á encantadora esposa dele ensejo de satisfazer a sua
natural vaidade de mulher bonita e nova.
Como acontece algumas vezes, a
virtuosa esposa do sr. Bonifácio tinha seus adoradores,—rapazes toleirões, aos
quais ela, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços,
quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacinto,—um leão conquistador
que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do
namoro atrevido. Este Jacinto apaixonara-se por Elvira poucos dias depois do
casamento dela, por ocasião dum passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre
namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifácio, quando
Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo com o
taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente a Elvira,
enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense
retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem
corresponder aquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacinto era pontual
á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não
deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifácio, o
taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante
senhora tinha um espírito ardente, pantasista, que não pode se contentar com os
sós afagos morosos e frios do velho Bonifácio. Não obstante, nenhum passo mau
desejava dar. Entregava-se aquilo a que chamava "uma distração", mais
para satisfazer uma vaga curiosidade do que para cometer um crime.
***
Jacinto não era um homem que
perdesse a paciência. Assistia tranquilo a esse desperdício de tempo, convicto
do axioma que reza: "Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura."
Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem,—aquele interessante
problema de amor.
Uma tarde,—era em meados de
junho, passou o Jacinto, deveras admirado por ver que a sua querida não estava
á janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguém. A estrada de
S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só
vivente se via.
Constrangido, dispôs-se a
continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifácio.
Correu a ela e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha
filha?
A mulatinha fitou-o espantada e,
curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o índex da mão direita,
conservando-se calada.
—Vamos, fala, toma um tostão....
Onde está a d. Elvira?—insistia o leão fazendo escorregar um níquel para o seio
da pequena.
Esta, ao sentir o contato da
moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse, ainda meio acanhada:
—Está lá dentro....
—E o sr. Bonifácio?
—Saiu.
—Dou-te outro níquel se fores
levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero...
Jacinto tirou do bolso uma carta
que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datara nem assinara.
Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão.
Depois seguiu pela estrada adiante.
Elvira não deu resposta aquela
carta, que lhe revelara o grande amor que por ela sentia o Lovelace paraense.
Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias,
após os quais voltou, seguindo pelo passeio, rente á janela. Sacudiu-lhe ao colo
nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde
resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receosa, na
qual confessava que o Jacinto não era-lhe indiferente, mas que devia abrir mãos
aquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia
tão gratas liberdades."
D'então em diante, apesar desses
receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacinto para o seio
d'Elvira e do seio desta para os bolsos daquele. É que houve uma tarde em que
Elvira entrou a confrontar o físico do sr. Bonifácio com o de Jacinto. Esse
confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa á correspondência
criminosa.
Havia já alguns meses que o amor
dos dois não tivera outras expansões além daquelas missivas platônicas. O
temperamento de Jacinto era mais exigente.
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifácio
descia do bonde em frente de casa, de volta duma visita que fora fazer a seu
chefe de seção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía
apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que atraiu-lhe
a atenção de velho curioso.
—Que levas aí?—perguntou.
—Não é nada....—respondeu a
rapariga nessa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei
quê!—bradou o sr. Bonifácio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.
Era um bilhete. Abriu-o,
assestou-lhe os óculos e leu:
"Meu amigo, depois de amanhã,
á meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant'Ana. Finjo-me
adoentada para ficar em casa, afim de conversar consigo e saber d'essa novidade
que prometeu contar-me. Venha á 1 hora. Acautele-se bem; que ninguém o veja.
ELVIRA.»
O Bonifácio subiu ao arame; ficou
da cor da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos
ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se dum
alvitre que lhe apareceu a súbitas no espírito com rubros lampejos de sanguinária
vingança.
—Toma, leva,—disse entregando a
carta á rapariga.
E entrou.
***
Batem as 12 horas da noite de 24
de dezembro. Grupos folgazões de moços d'ambos os sexos passam pelas ruas de
Belém em direção ás diferentes igrejas onde se deve rezar a missa do galo.
O sr. Bonifácio, que levantou-se
á ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada
"com muita dor de cabeça...."
Á 1 hora, um vulto apareceu na
esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar em frente ao domicilio do
amanuense Bonifácio. Era o Jacinto, que bateu pressuroso e baixinho em uma das
janelas. Respondeu-lhe do interior um leve arruído. Jacinto estremeceu de
contentamento, pré-gozando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira,
quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitável sr. Bonifácio,
que saindo de traz da mangueira onde ocultara-se, desancava a bom desancar o
peralvilho que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacinto saltou para o meio
da rua, recorreu o sr. Bonifácio á pouca agilidade que ainda possuía e
acompanhou-o, continuando a sová-lo fortemente, num a agitação febril....
O pobre rapaz gritava
dolorosamente. Ninguém acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa
do galo.
Quando cansou, quando os braços
negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para
todos os lados, disse ao Jacinto, que achava-se por terra, com os ossos quase
moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e
tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja
porta entreaberta estava Elvira, transida de medo.
---
Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)
Nenhum comentário:
Postar um comentário