domingo, 15 de setembro de 2013

João Marques de Carvalho: "No Baile do Comendador"

NO BAILE DO COMENDADOR
(Poemetos em prosa)
Ao sr. Ulderico Souza

Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!

E a bela Arcelina tapou os rubros lábios, entreabertos em zombeteiro sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarelo-canário, de varetas de madreperola.

—E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a cadeira da interlocutora, a setear-lhe os seios semi-vísiveis com um ardente olhar vibrado através o cristal do monóculo petulante.

—Porque—?, respondeu ela, com uma curta gargalhada de chasco, a fitá-lo bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do ombro esquerdo, polvilhado de recendente velutina; porque.... a vida é uma boa mestra, doutor, e eu tenho recebido dela bem duros, bem cruéis exemplos!

—Apesar de ser tão nova assim?

—A vida não escolhe discípulos entre aqueles que apresentam a cabeça encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes, preferência, como compensando-os de não terem o discernimento preciso para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.

—Mas—é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos lábios com a musica angelical da sua voz, minha adorável senhora! Se já não sentisse por sua pessoa—e pelo seu espírito —este indomável afeto de que falei-lhe há pouco, penso que deveria experimentá-lo agora—e bem profundamente!—depois de ouvir-lhe tão razoáveis e inesperados conceitos.

—Deveras?

—Por certo.

—Oh! é muito amável....

—Digo a verdade.

—E, todavia, continuo a descrer...

—Faz muito mal!

—Porquê?

—Ah! já faz perguntas?—Porque quem confessa descrença em semelhante assunto, deseja crer, ou, pelo menos, não quer descrer...

—O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra geral, doutor. Dificilmente se engana a mulheres como eu, convença-se. O mundo tem sido para mim uma grande escola, sr. dr. Machado. Lições bem ríspidas tenho recebido nele, para agora, sem discrepância das suas opiniões, fazer que o sr. acredite nas suas próprias ilusões fantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jamais poderei tomar ao sério as banalidades da confissão que me cantou há instantes o seu lirismo? Estará o sr., efetivamente, tão enamorado de si mesmo, que se julgue irresistível, fatal? Vaidade sem razão, doutor!

—Como é cruel, minha senhora!

—Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque simpatizei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para extorquir-lhe do espírito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o sentimento.—Permite-me a liberdade duma franqueza?

—Ora essa! Porque não?...

—Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu ilimitado.... pedantismo.

—Como diz?

—Ouça bem: o—seu—ilimitado—pedantismo.

—E.... mas....

—Olhe, sente-se aqui, a meu lado—Assim. Conversaremos com tranquilidade, enquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as atenções da sala. Escute-me.

***

Eu era menina, dez anos apenas, uma simples criança insignificante. Seriam nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecera; uma triste chuva hibernal, que dava arrepios intercadentes, sob a luz oscilante do gás. Estávamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez pessoas: eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha, muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos sertões africanos para transplantar no Brasil.

Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs brincávamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da qual trabalhavam as escravas.

De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no ar a mão que empunhava a agulha, ou descansavam cautelosas os bilros sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.

A velha Eufrásia anunciara que ia contar uma historia da cabanagem, o que era o suficiente para lhe hipotecarmos a mais absoluta tranquilidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrásia era autoridade na matéria! A sua narração tinha alguma coisa de lúgubre, de compungente, de parceria com certo tom verídico e muito expressivo na concatenação dos fatos e na flagrância da nota, ou épica ou bucólica, de que pretendia ocupar a atenção dos ouvintes.

Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, iluminados duma fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos belicosos tempos de que ela ia tratar.

Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possível obter-se com o ruído da chuva a desabar nas telhas,—a boa preta começou a referir a pequena historia que passarei a expor á sua atenta bondade, sucintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas.

***

Da outra banda do rio, á margem esquerda deste mesmo Guajará que rola suas turbidas águas aos pés de Belém, uma roça havia, naquele tempo,—em 1835,—que era o abrigo duma simples família de modestos caboclos agricultores: pai, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno vigor duns 20 anos sadios e bem desenvolvidos.

Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua simplicidade medíocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam negócios tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente na cidade.

O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Tomazia, uma rapariga da margem oposta do rio, moradora num sitio quase fronteiro á roça. Pelo São João deveriam vir á capital da província, efetivar perante um padre a mais persistente aspiração que em peitos amazônicos jamais palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade olímpica de soberanas venturas transcendentes.

Uma vez por semana, aos sábados, a pequena montaria do jovem caboclo rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado á pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves transparências do olhar e ouvir-lhe a incomparável meiguice das longas falas singelas e apaixonadas.

Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao lado da rapariga, a tecer com ela o gracioso dibuxo da sua risonha existência por vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras do fundo, compraziam-se em acastelar ilusões, numas inflorescências de amplas fantasiais admiráveis.

Semelhante existência, parecia abençoa-la o céu, na sua clemente bondade rejubilada pelo edificante espetáculo de tão acrisolada paixão.

Mas houve um dia em que a sorte,—sempre inclemente e cínica, doutor!—pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito daquela invejável bonança de duas vidas felicíssimas.

A cabanagem assolava esta parte da província. As aguerridas guerrilhas dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e fazendo vítimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais ousada barbaridade.

Em tais condições, a casa dos pais de Tomazia não poderia escapar á visita dos desalmados. Esta foi sujeitada á mais torpe violência que se pode intentar contra uma donzela, e os pais da rapariga, por haverem querido dissuadi-los da infâmia,—após assistirem á perpetração selvática do atentado sem nome, sofreram inermes a pena ultima, dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumaumeira!

Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus pais, que embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua casa haviam presenciado o que passava-se na roça fronteira e nem um só momento o rapaz, aquele mesmo namorado férvido da véspera, sentiu um assomo de correr a vingar o ultraje a que tinham-lhe submetido a noiva! Admire que sinceridade a daquela paixão, doutor, dias antes apresentada em labiosas florituras de fantásticos arremessos idílicos! Que grande coração, o daquele homem!

Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe a indignidade, propelisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado a sua noiva,—sem ir arrebentar os miolos de um dos abjetos infames, ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa dos sicários!

Anos depois, quando estabelecera-se a pacificação na província, a Eufrásia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cínico, a viver na companhia de torpe mulata animalizada por uma vida de largas materializações soezes e gordurosas.

Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do cavaquinho!

Lá defronte, porém, a roça, tão florescente dantes, convertera-se em matagal e a infeliz Tomazia,—apatetada e envelhecida, coberta de andrajos e chorosa,—tinha simplesmente, como testemunha da sua desgraça, uma criança inconsciente, um filho que dentro dela semeara a hedionda selvageria dos revoltosos.

***

Calou-se a bela Arcelina, ofegante e ruborizada. Vibrando toda de emoção, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarelo-canário, agitando-o vagaroso, com uma certa majestade de soberana vencedora, perguntou sorrindo irônica:

—E crê, depois disto, que eu acredite na existência dum só homem sincero e verdadeiramente amante, capaz de efetuar todas essas palavrosas mentiras que o sr. cantarolou por aí?


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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)

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