AO SOPRAR Á VELA
(Poemetos em prosa)
Ao Sr. José Feijó de Albuquerque
I
Ás 8 horas da noite, quando
chegou o marido, veio a Cândida, a saltar alegremente, recebê-lo á porta da
varanda, arrastando a longa cauda rendada do penteador de cambraia branca.
Quanto se demorara ele! ....
Porque não voltou mais cedo? A sua Candinha já sentia tantas saudades!.... Ele
não imaginava o que era estar uma pobre mulher metida em casa, durante uma
tarde inteira, sem ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!...
E afagava-o amorosamente,
fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça, causando-lhe uns arrepios sensuais pelas
costas, eriçando-lhe os cabelos dos braços e pernas.
Que não pudera vir mais
depressa,—objetava o marido, sentando-se numa poltrona e cofiando o negro
bigode sedoso, com um olhar de concupiscência para a mulher.—Bem esforços
fizera, mas inutilmente. Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de
esperar no jardim por espaço de meia hora, brincando com as crianças, para
entreter-se. Os pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças
brancas com as mãos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr.
Martins e á mulher.
—E aceitaram?—interrogou a Cândida,
saltando para as pernas do marido, a rir muito, com os lábios abertos
lindamente, frisando-se graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o
jasmim.
—Qual! Responderam-me que não
cediam a escrava por dinheiro algum, máxime sabendo que nós a desejávamos para
a libertar. Aquela gente está cada vez mais negreira! Enfim, escolhe-se outra
qualquer, contanto que seja o dia de teus anos digna e liberalmente solenizado
por mim. Continuemos, porém. Estava eu disposto a sair, bem arrufado com o dr.
Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquele sujeito vermelhudo,
cuja cabeça está mais limpa de cabelos que os teus joelhos....
—Deixa-te de tolices...
—Agarraram-me para um solo
manhoso, que durou até agora, e isso mesmo porque levantei-me e saí á viva
força!.... Agora,—concluiu sorrindo,—aqui tem você o seu Roberto, cheio de amor
e paixão, disposto a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo
ruidoso, a querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!..
Sempre sentada sobre as pernas dele,
Cândida semi-cerrou os olhos numa vertigem lúbrica, e estendeu para a boca de
Roberto os seus lábios frescos e perfumados desse olor esquisito e bom,
peculiar ás mulheres que se tratam.
Mas ergueram-se de súbito, num
enleio: aparecera á porta que dava para o corredor o moleque Euzébio, com o
bule de chá...
II
Depois do chá, Roberto acendeu um
charuto, foi buscar um livro e, acomodando-se numa grande voltaire, pôs-se a ler.
Ficou a Cândida defronte dele, a mirá-lo.
Vinha do jardim uma brisa cheia
de perfumes, sacudindo as luzes dos dois bicos de gás encerrados em globos de cristal
finamente lavrado. Com os cotovelos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e
narinas aflantes descansando nas palmas das mãos, Cândida continuava a olhar para
o marido com uma expressão estranha, suave, repassada de ternuras dulcíssimas.
Parecia lançada á contemplação da
própria felicidade. Era justamente aquilo que, anos antes, fantasiara a sua
sonhadora imaginação de burguesinha estragada pelos mimos de seus pais
extremosos e pacóvios: viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom
coração; estar sempre junto dele, para o consolar em todos os desgostos, rir
com ele nas horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irrepreensível
e, sobretudo, contemplá-lo a todo instante, silenciosa, longamente, envolvê-lo
nas sentimentais suavidades do seu enlanguescido olhar de crioula amorável!
Nunca sentira-se tão feliz como depois de seu casamento com o Roberto, havia quase
dez meses. Nem uma só contrariedade tivera após aquela noite comovente, em que
recebeu o primeiro beijo do noivo no silencio de uma discreta alcova toda cheia
de flores, rendas, fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de
risonha infantilidade não ficou, na manhã imediata, quando leu no Diário de
Noticias as linhas seguintes, que decorou á força de as repetir
baixinho?—"Uniram-se ontem á noite em matrimonio, na igreja de Nazareth, o
Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado comerciante da nossa praça, e a Exma.
Sra. D. Cândida Anunciada Seixas, filha do nosso amigo sr. Pandolfo Seixas,
proprietario abastadíssimo. Foram padrinhos os srs. Silvino Cunha e Antero de
Mendonça e suas exmas. consortes. Aos jovens cônjuges desejamos o mais ridente
porvir enaltecido das felicidades a que têm jus por seus dotes distintíssimos."
Ficou a nadar em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornais, comovidíssima
pela lembrança de que, aquela hora, a cidade inteira estava sabedora da realização
de seus íntimos desejos de moça apaixonada!.... Daí em diante começaram a viver
como dois anjinhos, como ela queria. Roberto era sempre de uma delicadeza afetuosa
e séria para com a sua Candinha, que também, valha a verdade, contribuía,
segundo seu poder, para tornar-lhe suave e alegre a vida. Ela achava impossível
que duas pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas por dá
cá aquela palha... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Aí estava, mesmo no
Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más línguas, era uma jararaca para o
marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estefânia, era outro: passava a vida
pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao domicilio, esbordoava a
mulher que era mesmo uma dor de coração! Mas com ela assim não sucedia, graças
a Deus! O Roberto era pontual como um cobrador á hora de recolher ao lar: ás 5
da tarde mandava fechar o armazém, tomava o bonde e vinha logo para junto dela,
de onde não se arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente
para o trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ela
conhecia de mais o gênio do marido para recear qualquer mudança futura. Agora,
principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a importante noticia
que ela tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se necessário contar-lhe tudo...
Porém como? A vergonha apertava-lhe a garganta assim que ela abria a boca para
falar... Mas hoje diria, estava resolvida! Quando? agora?—Agora não; deixá-lo
com a leitura, que está tão entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar.
Oh! como ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para ele!... para ele, que
era tão lindo, tão bom, tão amado!....
Tudo isto pensava ela,
continuando a fitar o esposo num enlevo apaixonado.
III
De tempos a tempos, desviando a
vista do livro para sacudir a cinza do charuto, Roberto fitava a mulher,
sorrindo bondosamente. Surpreendida, a Cândida pendia para o peito a formosa
cabeça, disfarçava fingindo ler num livro que estava sobre a mesa. Em seguida,
quando calculava que o marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto
dele o seu ardente olhar, como se desejasse cobri-lo com toda a veemência da
paixão.
Ouvindo soarem no sino de Sant'Ana
as 10 horas, Roberto fechou o livro.
—Vamos dormir?—prepôs.
Cândida estremeceu e levantou-se.
O moleque veio fechar as portas e
janelas e apagar o gás.
No entanto, haviam os dois
penetrado na pequena alcova. Em cima do velador, uma vela cor de rosa ardia num
castiçalzinho de porcelana de Sévres com pinturas alegóricas de Amores alados e
Quimeras volitantes. No centro, uma causeuse de cetim azul estava cheia de
laços, corpinhos de renda, brochuras esparralhadas, num abandono adoravelmente
dessimétrico. Vidros de perfumarias com rolhas de cristal reluziam em cima do toucador
de jacarandá, lançavam cintilações cambiantes ao espelho inteiriço do grande
guarda-roupa que havia no meio de uma das paredes laterais.
Ao fundo erguia-se a
cama,—pudicamente oculta entre as rugas de um cortinado de labirinto finíssimo,
suspenso do teto por uma passadeira doirada.
Levantava-se daquela cama um quê
de evaporação de felicidade inenarrável, que penetrava no espírito dos dois
esposos pelos sentidos do olfato e da vista. Parecia-lhes acharem-se diante do
tabernáculo de seu amor, do altar de sua existência feliz e encantadora. Para Cândida,
sobretudo, ela tinha uma importância transcendental: evocava-lhe uma recordação
agridoce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove meses de
agradabilíssima co-habitação conjugal....
***
Quando iam deitar-se, Cândida
enlaçou a cabeça do marido com os braços descobertos,—mal vestida, apenas
velada por uma curta camisinha de cambraia enfeitada de rendas do Ceará.
Roberto beijou-lhe as carnes,
aspirando-lhes os mornos eflúvios,—essas queridas exalações de mulher amada,—
num enlanguescimento concupiscente.
—Olha, murmurou ela
conservando-se na mesma posição, beijando-o na testa.—Quero dar-te uma noticia
muito boa....
—Qual é?—perguntou Roberto
estreitando-a nos braços.
—Tenho tanta vergonha!....
Esta exclamação pronunciou-a Cândida
desprendendo-se do amplexo do marido e dando um pulo para o leito.
—Anda, fala, menina, que tolice é
essa?
—Então apaga a luz, primeiro; pode
ser que ás escuras eu me sinta mais animosa! ....
Roberto soprou a luz da vela e
disse deitando-se:
—Agora....
Cândida ficou por um momento
silenciosa, afagando a fronte do marido com as pontas dos frios dedos trêmulos.
Depois, a súbitas:
—É que,—murmurou com umas
brejeiras risadinhas reprimidas,—é que eu.... estou grávida!
Um beijo sonoro, prolongado,
ardente como o fogo dos grandes amores,—o beijo com que o esposo tenta revelar
a indizível alegria de ver convertido em realidade o seu mais persistente anelo,—respondeu
aquela confissão prazenteira, na propicia escuridade da alcova matrimonial...
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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)
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