DIÁLOGO COM UMA ÁGUIA
Fui jantar ontem ao palácio.
Estava lindo! Felizmente ninguém. Tudo deserto. Quando eu desci do restaurante,
a acender um Laferme com preguiça, caía a tarde de outono em vitrais ricos para
além das ramarias a despir-se. Passeei algum tempo na avenida, e sem saber
porquê, indo ao acaso, fui estacar nesse recanto triste onde mora engaiolada
uma águia velha. Há que tempos conheço este mostrengo, num abandono de asilo,
de ar pedinte, com asas que diríeis paralíticas, de um tom coçado e neutro de
miséria!... Uma águia isto, este espantalho! A decadência reles de estas asas
que tanta vez olhei com indiferença, nem eu sei bem porquê, impressionou-me. Um
animal de fábula, de mito, um ser que bebeu sol de olhos abertos, curvava as
garras frouxas num poleiro, e depois de carnagens e aventuras, encolhido,
misérrimo, com fome, acabava a aspirar a um meio-bife, como um vadio à porta de
um café. Coitada! Teve uma forma assim aquela águia que saboreou Prometeu numa
montanha!
A gaiola está sórdida, está
imunda. Antes estivesse empalhada num museu, ou no quarto de trabalho de um
zoólogo, sócio da Academia, homem de estudo, que ao voltar da rua ou da glória,
lhe pendurasse do bico o chapéu alto. Coitada! Coitada! E notei com um
calafrio, que pronunciara alto este «coitada», com uma voz que a mim mesmo
surpreendeu pela inflexão perturbante de quinto ato. Olhei a águia. Vi-a
encolher-se toda, contrair-se, enclavinhar as garras no poleiro, como a uma dor
aguda que a varasse. Encarou-me por fim, olhou-me todo, fazendo-me corar dos
pés ao coco, e com uma voz que não era a voz da fábula, sem nada de lendário,
sem estranho, com uma voz normal de velha beata, arrastada e roufenha, quase
gaga, cacarejou num tom de dor e mofa:
—Ao que eu cheguei! Ao que eu
cheguei! Já tem pena de mim isso aí fora... Antes estar morta e podre, antes
estar podre...
Estarreci. Não era o impossível
realizado dessa carcaça de águia a falar alto, a falar como eu, que me
empedrava: nem sequer o estranhei naquele instante; mas o dolorosíssimo desprezo
com que ela me chamou isso aí fora, com que ela ouviu que um isso a lamentava.
Deitei fora o cigarro bruscamente, compus um momo frio de desdém escondendo a
irritação que me excitava, e premindo a bengala contra o queixo, retorqui-lhe
benévolo e grosseiro:
—Não percebo o seu desprezo, não
me atinge. Eu não disse «coitada» pr ofender. É sempre triste ver uma águia
presa, mas numa gaiola, assim, é lamentável. Pra mais, conforme vejo no
letreiro, foi um comendador que a ofereceu... E a gaiola...
—Que tem? Falta de estilo?
—Está cheia de excrementos. Está
indecente.
—Já não diria isso se os visse
cair de alto, no deserto, sobre o granito cariado duma esfinge... Cenários,
digo-lho eu, literatura...
Eu então requintei de pedantismo,
e perguntei-lhe a rir de que alta estirpe, de que águias reais, de que família,
ela veio a cair neste poleiro onde agora a ouvia perorar num claro entardecer
de intimidade, com idílios de guardas e criadas, raros bebês jogando às
escondidas e um homem a varrer as folhas secas. Coçava-se a hesitar, com o bico
baixo. Sacudiu as longas asas poeirentas e com uma voz de sono, começou:
—De alta estirpe, sim, de uma
família de águias antiquíssima. Uma das minhas ancestrais, como agora se diz, fez
viagens épicas na Judéia, e num crepúsculo de assombros, abrindo com as garras
uma cordilheira de nuvens, viu pregado na cruz o Hebreu Doce, e logo desceu ao
morro numa gula tão doida, que ensanguentou no ar de seda as asas bravas...
Rasgou o peito magro do Homem-Deus, e ficou doida para sempre, doida, doida, na
alucinação desse manjar patético, de martírio divino e desespero. Porque ela
ouviu a confidência do Herói meigo... Mas não posso contar-lha, nem mais pio! É
um segredo de família, é o meu segredo.
Amuei, retorqui num tom mimalho:
—Mas então, se não podia contar,
pra que me falou nisso? Eu sou de uma curiosidade feminina. Já não saio daqui
sem que mo diga.
—Mau! O senhor é uma criança. Que
tolice! Dezenas e dezenas de avós meus, gerações e gerações de águias marinhas,
levaram o segredo herdado e não traído, que nem ao sol, que é o deus das
águias, revelaram. E quere agora o senhor com um papelzinho que lhe custou uns
cobres (se o pagou) violar o murmúrio que tem séculos, e é a última vibração
daquele espírito que vestiu de nebulosas toda a Vida... Sabe que mais? Estou já
arrependida de falar.
—Não se zangue. Juro-lhe,
juro-lhe que não digo nada a ninguém. Se soubesse o que eu sei!... Segredos de
família, dramas... dramas...
Esperei um instante ansiosamente.
A águia inteiriçou-se, sem me olhar, bicando longes de memória, de saudade:
—Não sei que tenho hoje. Velhice,
morte próxima talvez, pressentimentos... Quando essa avó longínqua cravou as
garras no peito desse Réu, e lhe bicou o coração e bebeu sangue, sentiu que
enlouquecia, que era outra... Como se ferisse uma irmã, teve remorsos; fixou os
olhos bêbedos de sol nos olhos d'Ele, refrescou-lhe com as asas a cabeça,
empastada em suor, de um verde lívido...
A cruz que estremecia, ficou
hirta. E foi então, foi então que Ele lho disse...
—Mas o quê? O quê? Diga depressa.
—O segredo, senhor, o meu segredo.
—Mas qual é afinal? Quere
torturar-me...
—Renegou-se a Si mesmo.
Retratou-se! Disse o remorso de não ter vivido, a tristeza infinita, o
desespero e o mal sem remédio de ser virgem, de morrer no corpo morto de uma
árvore, único corpo que sentiu, o de um cadáver... As estrelas que nasciam no
céu dúbio eram pro Moço Hebreu pólen doirado, e a sua alma moribunda abria toda
como os hortos ideais da Galileia... O peito arqueou-lhe mais, contracturado...
Queria largar a cruz pra poder dar-se, à terra desse cerro, a alguma forma, a
um corpo de mulher, a alguém, a alguém...
A voz da multidão pela ravina era
um marulho de ressaca mui confuso, e Ele sentiu entre pragas e risadas, entre
os lamentos e os insultos que silvavam, sentia vozes de mulher... ouviu,
ouviu-as... Só elas Ele ouviu, ouvia sempre... Queria falar ainda, quis
falar-lhes e pedir-lhes perdão do que lhes disse, com parábolas mentirosas de
doçura e com olhos de lago sem desejo... Esvaía-se em sangue, ia azulando. Foi
então que a minha avó num vôo lento, lhe emoldurou nas asas côncavas a Face...
e que ela ouviu, senhor, e que ela ouviu...
Calou-se um instante imóvel no
poleiro. Reparei. Era o guarda que passava.
—Já não sei onde ia. Estou com
febre. Ah! No que ouviu a minha avó naquele instante... Quando eu penso nisso,
quando penso... Imagine, se pode, ora imagine... Ele que era um Adivinho, Ele o
Vidente, num desses instantes de gênio que abrem séculos, previu, previu bem
claramente, como se mentiria à Vida em nome d'Ele, a morte da Beleza e da
Alegria, a Tristeza e a Doença em nome d'Ele, séculos e séculos de vida
envenenados por o sangue de amor que Ele vertera, e iria embebedar os homens
muito tempo, para sempre talvez, talvez pra sempre. Sentiu então que a querer
salvá-los, os perdera... Certo, esse instante de dor sempre ignorado foi o
maior de dor que alguém viveu. E como Ele a diria, como...
—Em que língua falou? Foi em
hebraico?
—Foi na língua das asas que Ele o
disse. Não lha posso ensinar, já me não lembro. Quando me engaiolaram,
esqueci-a. Mas que impressão lhe faz o meu segredo? Se os homens o soubessem,
seria Ele na verdade o Redentor...
—Sim, sim. É bem justo o que me
grasna. Shelley tê-lo-ia amado como irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...
—Bem sei. Esse afirmou com pompa
lá pro Norte, que Ele decerto se teria retratado se tão cedo o não
crucificassem. Foi minha mãe que o disse a Zaratustra. Zaratustra ouviu mal,
não disse tudo. A verdade é assim, como eu lha conto. Parece que os homens
riram do filósofo, acharam tudo isso uma tolice...
—Acharam...
—E afinal esse Hebreu
crucificado, no instante supremo de tortura, quando para além das nuvens o
esqueciam, chamava só por Pan, o grande Pan! Se os homens soubessem isto e o
entendessem, teria o grande Pan ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.
—Brancas? Porquê?
—Durante séculos tivemos asas
brancas, todas nós, águias da minha estirpe. Foi só depois que Pan morreu, que
elas ficaram pretas, como luto. Quem se lembra de Pan por estes tempos?...
—Os que sabem amar, os que ainda
amam.
—Os que sabem amar!... Esse
Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da cruz. Viveu como um fantasma
transparente, com sonho nas artérias e nos olhos... Só escoado em sangue, no
madeiro, viu nos olhos da minha avó sanguissedenta, dois espelhos do Amor,
irmão do sangue...
—Conhecem lá o amor aves de
presa!
A águia crispou as garras no
poleiro e casquinou um riso muito seco, que soava sem timbre, como tosse.
Depois mudou de aspecto. Começou a tremer, toda friorenta, as asas como
andrajos mais pendidas, e nos olhos de febre, muito fitos, uma grande saudade
que varava.
—O amor das águias... o amor das
águias...
—Que tem? Está comovida. Conte-me
o seu amor. Sou todos ouvidos.
—O meu amor... o meu amor... Já
me não lembro. Já não posso dizer-lho. Vai tão longe!... Sou uma velha tonta,
sem memória, um farrapo de penas para escárnio. Nem olho o sol em face há muito
tempo. O meu amor... o meu amor... Já me não lembro. Coisas sem forma...
nuvens... nostalgias...
Fez uma pausa. Parecia mais
adunca, mais mirrada.
—No convés de um navio
abandonado, amei no mar do Norte, aos vagalhões, noites e noites, bêbeda de
espuma... Havia a bordo um marinheiro morto. Lembro-me bem. Que noites! Que mar
alto!...
Tive um ninho e filhos
pequeninos, num jardim vago, ao sol da meia-noite... Que silêncio! Sentia-o a
passar por entre as garras...
Ensandeci de gozo no deserto...
Ouvi a Esfinge falar, ouvi a Esfinge, quando o sol lhe fendeu todo o granito,
pôs ranhuras de dor nos olhos átonos, e escancarou a boca em rictos duros... O
que eu ouvi à pobre?
Soluçava!... Eis o enigma afinal,
o grande enigma, à hora das miragens, do delírio, quando o sol enraivece, é só
desejo, e o deserto urra no silêncio, e as areias escaldam e o ar zune...
Amei... amei... amei na terra toda... Desfraldei o desejo, cravei garras. Olhei
o mar saciada e compreendi-o.
—Tem saudades do mar, aí na
gaiola?
—Como um marinheiro preso...
doidamente... O que eu viajei, o que eu viajei por sobre a espuma!... Sei as
lendas do mar como ninguém. Contou-mas numa rocha um corvo antigo. Como sabe,
os corvos vivem séculos... Sabia-as todas esse velho amigo... naufrágios e
terrores... dramas da névoa... O mar! O mar! O que eu amei no mar! Mas o senhor
não compreende, o senhor não sabe. Que sabem do Amor os homens todos?... Foi esse
Hebreu, sem querer, que os desgraçou. Fizeram ao Desejo o que fazem às águias
quando podem... Está como eu o Desejo: engaiolaram-no! Fizeram do Amor isto...
um dever! Um dever... um dever... um dever triste! Empalaram-no em leis,
codificaram-no. Até fizeram isso... o casamento! E vivem em gaiolas, os seus
lares! Raça de escravos! Se esse Hebreu os visse...
—A senhora é uma águia, não
percebe... Eu não posso explicar-lhe a Sociedade...
A águia olhou-me com um desprezo
frio.
—O quê? Não sei? Sei mais do que
Balzac. Eu li-o todo em casa de um burguês. Vivi lá dez anos de amarguras.
Estive presa primeiro no quintal. Depois cortaram-me as asas e soltaram-me.
Soltaram-me mutilada pelas salas... Canalha! O que eu odeio os homens... As
crianças, veja o senhor os anjos!... arrancavam-me as penas, espetavam-me o
corpo com agulhas, e um dia um criado, na cozinha, tentou picar-me os olhos às
risadas, a rir, a rir... como só riem homens. Sofri dez anos entre essa
canalha. Era uma gente séria, muito séria. Vi a Família, a Tradição, vi tudo.
Não queira argumentar, não diga nada. Sou uma águia, mas conheço os homens.
—De acordo. Eu não duvido. Não
quero discutir, não argumento. Mas falamos do Amor, e apenas digo que há ainda
quem ame sobre a terra... gente da minha espécie... homens... homens... O amor,
há de a senhora concordar, não é um monopólio de asas nômades... Um bípede
implume também ama. É raro, eu sei, amor genuíno, é raro. Mas existe ainda,
afirmo-lho eu, existe ainda...
—Que novidade! Pois não lhe disse
já que li Balzac? E viajei, e vivi mais do que pensa.
Parou um instante, o olhar cismático,
sem foco:
—... Uma vez, num céu da
Andaluzia, vi num jardim mourisco dois amantes. Senti o cio encrespar-me as
asas largas e desci pros ver de perto na luz de ouro... Era na paz de uma
cidade morta. Pousei num dos ciprestes do jardim. Tinha uma taça de alabastro
esverdinhada, e uma água glauca que cheirava a febre. Era junto da taça que se
amavam, sob a garra do sol, loucos de raiva. Fiquei queda a aspirá-los muitas
horas. Que corpos fortes! Eu achava-os lindos. Dormi na torre da igreja, numa
gárgula, e de manhã voltei pros ver ainda. E assim dias e dias... Uma vez
demorei-me, vim mais tarde, e encontrei-os imóveis e enlaçados. Tanto tempo os
vi assim e tão imóveis, que pensei: estão talvez mais que adormecidos... Desci.
Bati-lhes com as azas nos cabelos. Cravei as garras devagar nos seios dela...
Estavam mortos! Julguei então enlouquecer de gula. Devorei, devorei, até à
noite... Lembro-me que sorvi os olhos dela. Estavam secos de amor. Eram
cinzentos...
—Que horror! O que a senhora fez!...
A águia ergueu as asas num
espanto e tornou a fechá-las lentamente. Depois, com grande enfado, foi
dizendo:
—Que absurdos macacos são os
homens! São os animais mais torpes que eu conheço. Como tudo que vive, como
todos, só pensam em gozar, gozar a vida... e com esta obsessão a estorcegá-los,
prendem-se os braços, castram os desejos, adoentam-se, torcem-se... progridem.
Querem morder, morder bem fundo... e beijam-se; sentem calor e andam ao sol
vestidos; amordaçam o instinto, os imbecis!... Encerram o desejo nas alcovas,
onde não entre sol, sombra de lua... Tem estatutos, cláusulas, parágrafo. Não
fecundam a amar, são fabricados: são produtos de indústria os homens de hoje!
Chamam a isto Civilização. Não vivem por viver: tem deveres a cumprir,
obrigações... E tudo isto em códigos, sistemas, em religiões, teorias, em
morais!... Para os que tentem ser homens a valer, há prisões, há leis, ha toda
a Ordem! Existem já na terra há muitos séculos, e ainda não começaram a
viver... ou, se viveram, foi na Pré-História ou na Pré-Lenda! Que macacos
absurdos! Que macacos!
—Mas pare um instantinho, ouça,
ouça...
—Não me mace, senhor, não me
interrompa... O que mais os consome e os faz grotescos, e os enche de vaidade,
é a Consciência, o Espelho, o Guia, o grande Guia, que os levou a isso que são
hoje...
Atalhei, como quem aponta um cúmplice:
—A culpa foi desse Hebreu de quem
falamos. Talvez se o seu segredo se soubesse...
—Não foi só d'Ele, foi de muitos
outros... Antes d'Ele e depois..., de muitos outros.
Tremeu-lhe o corpo todo.
Arrepanhavam-se-lhe as penas. Estava outra. Via-a transfigurar-se com espanto.
—O senhor é bem um homem. Não se
pode nutrir sem ilusão. Quando há pouco lhe disse o meu segredo, dei-lhe a
entender que se ele se soubesse, havia na verdade um Redentor, os homens
viveriam sobre a terra. Tive pena de si que é um desgraçado. Sempre lho digo
agora: era inútil! Conheço bem os homens por meu mal. O segredo do Hebreu que
lhe contei, não é um caso único: é de sempre. Á hora de morrer—a uma águia, aos
lençóis ou ao travesseiro, todos os homens tem como esse Hebreu, um segredo
supremo a revelar. É apenas isto: a confissão de que morrem sem viver.
Continuou depois com o bico alto:
—Os homens são uma espécie
condenada. São bastardos de planta e de fantasma. Quem disse isto? Não sei...
estou sem memória. Raça de escravos vis, raça de escravos! E pra fugir à Vida o
que inventaram! Como trabalham, suam e tressuam!... Dissecam tudo, árvores e
pedras, fecham-se em quartos a estudar micróbios... E cada dia são mais
desgraçados, mais fracos, mais inquietos e mais tristes!... Cada dia se
embrulham mais em roupas, põem mais vidros nos olhos, tem mais medo... E cada
dia fogem mais à vida! Que imbecis! Que imbecis! Que espécie torpe!
Sentia-me exaltado, nervosíssimo.
A voz saiu-me estrangulada, rouca, em sobressaltos, brusca, sem fluência:
—A senhora diz coisas que me
espantam, que por vezes são justas e terríveis, mas há outras também que não
entende, que não pode entender, sim, que não pode. É natural. A senhora é de
outra espécie. Tem vivido com os homens mas é águia... e águia ficará até
morrer.
Parei. Sentia-me vazio, em suores
álgidos, quase incapaz de articular palavras. Ela então, com a plumagem toda
crespa, transfigurada agora, agora outra, já com metal na voz, interrogou-me:
—O quê? O quê? O que é que eu não
entendo?
Sem recursos, nulo, desvairado,
atirei-lhe este lugar comum, como se estivesse a falar com um jornalista:
—Por exemplo: o Sentimento, a
Beleza moral que há no Universo!
Vi-a saltar do poleiro, esvoaçar,
bater asas de fúria nos arames, e recair depois na mesma pose, a arquejar, asmática
de raiva. Ficou assim sem fala ainda algum tempo. Apeteceu-me fugir. Tive
vergonha. A voz dela por fim veio em arestas, ferindo o meu orgulho já
ulcerado:
—A Beleza moral!... O Sentimento!
Que fizeram com isso?... Que fizeram? A Harmonia social, esse concerto que é de
rasgar os olhos e os ouvidos. A fome, a revolta, o desespero... A raiva de
saber, de analisar, de fechar em teorias toda a Vida... A Dúvida, a loucura
metafísica, e o culto da dor, esse onanismo!... A impotência em tudo, a
impotência... E por paródia à luta de viver, uma luta sem garras, enluvada, um
ódio triste e covarde, corrosivo; a intriga e a cilada pela força; a caridade
que é o egoísmo doente, e o culto dos ídolos, os cultos, a escravidão aos
deuses e às idéias... A Harmonia social... essa gaiola onde vivem a uivar os
homens todos!
Dava gritos estrídulos,
sarcásticos: as penas eriçavam-se de fúria.
—Oh! O ódio dos homens, que
grotesco! E há classes opressoras e oprimidas, com fórmulas, com cláusulas, com
leis!
Não é o ódio celular, contraturante;
não é o ódio animal todo de instinto; não é o ódio de todos quantos vivem! O
ódio dos homens foi canalizado, por seitas, por classes, por partidos, em
dogmas, preconceitos, covardias. Nos outros animais o ódio é orgânico! Todo o
combate é sempre pela Vida. O dos homens é anêmico, misérrimo, e defende o
dever, o preconceito, as taras de domínio e servidão, e até mesmo na revolta é
miserável, pautando a Vida, sistematizando.
É o ódio da paródia de viver, do fantasma de Vida que eles vivem!...
Parou. Eu estava como tonto,
desvairado. Tinha decerto endoidecido essa águia velha, delirava, dizia só
loucuras; mas eu não achei nada para opor-lhe, pra aniquilar nesse silêncio de
fadiga. De súbito lembrei-me: a Arte, a Arte, toda a minha quimera de mãos
postas!
Sentindo-me desta vez
irredutível, gritei-lhe pra gaiola:
—E a Arte? A Arte? Consolação
suprema de viver...
Teve farpões de escárnio ao
responder-me:
—A Arte!... A Arte é a expressão
da Vida. São os homens que o dizem, não é assim? Ora se eles não vivem, se não
vivem, se parodiam a Vida a cada instante, se fogem mais e mais da grande Vida,
a Arte é uma paródia de paródia, um espectro de espectro... miserável! Querem
com tintas imitar o céu, e transcrevê-lo em lonas, em madeiras!... O céu
bebe-se aos haustos, com os olhos; olha-se por olhar, sem intenção; recebe-se
nas pupilas extasiadas, que se alargam mais com sede dele... É o que faz um
sapo a olhar os astros! É o que os homens não compreendem nunca! Toda a terra é
feliz se o sol a doura; tudo germina, as pedras e as sementes... Só os homens
que se cobrem pra evitá-lo; que nas cidades gastam horas a vestir-se; que tem
por céu só um paninho côncavo a que chamam guarda-chuva ou guarda-sol; que o
filtram nas igrejas por vitrais, que usam lunetas, que o receiam sempre; que
tem medo da morte às suas garras, deslumbramento e orgulho de águias soltas; só
os homens, absurdíssimos macacos, querem copiá-lo em lonas, em madeiras, com
tintas, com carvões, com paus de cor!...
Que macacos absurdos, que
macacos!
Bem quis interrompê-la, não
podia. Vibrava de loucura negadora, hierática, estranha, convulsiva.
—E nem poupam o mar nem as
searas, as penedias trágicas, as rosas! Metem o mar nuns centímetros de lona, e
com medo que as marés vão sufocá-los (a águia ria, ria como louca) mandam
emoldurá-lo, encaixilhá-lo!...
Prendem-no assim nas salas, nas
alcovas. Oh! A Arte dos homens! Coisa imensa! A paródia da Vida... paralítica!
Mas vá alguém dizer-lho! Vão dizer-lho! Ainda os antigos cegavam as estátuas...
Estes abrem-lhes olhos, bem abertos, a refletir... o quê? A vida deles, a
paródia de vida que eles vivem e que andam a imitar ainda por cima!...
A noite começava a entrar nas
coisas. Um grito de pavão varou o parque, assustou os jardins que adormeciam, e
um instante no ar, teve saudades... Uma angústia sem nome andava esparsa, caía
das árvores grisalhas, que pareciam à escuta, com terror. Em frente o chorão
vergava mais, quase rasava a terra com doçura, em curvas de um encanto
nazareno. Uma sereia aguda de vapor, já a sair a barra certamente, mugiu como
um agouro de naufrágio. A treva ia afogar toda a gaiola. Não via bem a águia,
mal a via. Só os olhos e as asas muito vagas... Era um fantasma de águia àquela
hora, mas crescia em mim desmesurada, como um ser de fábula e tragédia, oráculo
sarcástico e sinistro, lendo o horóscopo num poleiro reles, como se rasgasse a
esperança com as garras. Afinal era eu a sua presa, e ouvia-a passivo a
torturar-me.
—A Arte dos homens! Que mentira
triste! Em vez de serem belos como estátuas, derrancam mais os corpos para
erguê-las! Até modelam sonhos e quimeras!...
Nunca olharam as nuvens, nunca as
viram, esses mármores ao vento, flutuando... E o vento! O vento! Sabem lá
ouvi-lo! Tanto não sabem que quando ele prega, durante o inverno em que ele é
todo gênio, metem-se em casas grandes, bem fechadas, pra ouvir sons, sons,
imensos sons... Chamam a isso Música. Conheço-a. Desde que vivo com os homens,
perseguiu-me. Nem aqui na gaiola eu lhe escapei. Toca aos domingos horas, no coreto.
Enche-me mais de raiva e de miséria. A música das águias como é outra!... Quem
a ouviu como eu quando era águia, antes de ser esta carcaça reles! Nas
montanhas, no mar, na névoa móvel!... Sobretudo no mar, no grande mar... O que
eu viajei nos temporais a ouvi-la! Ás vezes partíamos no vento em turbilhões,
asas e asas, nômades, pairantes... Regougos de ondas, nuvens a rasgar-se, e os
nossos gritos, bêbedas de espuma!... E mil vozes de formas nunca ouvidas, a voz
de tudo, tudo, a voz de Pan! E o silêncio, o silêncio... Certos instantes
únicos, supremos, em que ele se ouve, o temporal hesita, e um pânico arrepanha
as asas todas... Como é agudo, agudo, esse silêncio!... Nas meias-noites de
estio... o que eu gostava de despertar no éter melodias, ferindo-lhe o teclado
luminoso, numa alma de vôo, sereníssima... Punha medo com o rumor das minhas
asas às nuvens que dormiam extasiadas, e auscultava a noite pelo céu, até ouvir
a manhã vibrando toda, quando o ar é uma orquestra miriadaria e os homens dormem
nas alcovas mornas...
Estendeu por minutos seculares o
seu monólogo patético de velha, essa arenga evocativa de fantasma, lapidando o
meu ser com ironias, em que memórias épicas passavam, como o granizo aos pobres
em dezembro. Todo o meu senso crítico se foi na rajada feroz dos seus
desprezos: era uma fúria aguda de vingança, de esfrangalhar essa carcaça
oráculo, varar-lhe os olhos com a ponteira da bengala, acabá-la de vez,
estrangulá-la. Retorqui-lhe então com a voz dura, pondo raivas de morte nas
palavras:
—Sim, sim... Diga ainda mais... o
que quiser. Cante à sua vontade, minha amiga! Insulte os homens, ria,
desgraçada. Nem me dou ao trabalho de a esmagar. Só lhe pergunto isto, apenas
isto: quem a tem aí bem presa na gaiola? A si e a esse mocho seu vizinho? Ao
leopardo, ao lobo, a essas feras? Quem lhe dá por esmola bifes podres, e faz de
si o riso das crianças, e a há de empalhar depois de morta?... Você é uma águia
tonta, dementada, que a escravidão ensandeceu de vez. Melhor, melhor! Assim
faz-nos rir mais. Grasne por aí; rebente a divertir-nos!...
Parei pra tomar fôlego, cansado;
mas o relevo imóvel dessa ave, a sua forma heráldica de bronze, alheavam-na
tanto desta cólera, do desespero besta em que eu tremia, que me pareceu inútil
continuar e me senti um títere grotesco. Era o mais infernal dos casuístas,
essa águia impossível de ferir, feita de sombra, emoldurada em sombra, presa
nessa gaiola e mais distante que se esgarçasse as asas nas estrelas. Enquanto
assim pensava, ei-la que fala:
—Bem certo, sim, bem certo o que
me diz! O Homem alastra pela terra como um cancro, pervertendo a vida,
corroendo. Reduziu-me a mim, asas e garras, a um animal grotesco de capoeira,
meio tonto de dor e de miséria. E as feras!... Exibem-nas nas feiras e nos
circos, em gaiolas de ferro, à luz elétrica, ante o pasmo alvar das multidões,
rindo da força mutilada e doente. Cortam as jubas aos leões, abrem-lhes risca,
dão-lhes chicote e bifes, civilizam-nos! E quando os tem nas jaulas,
sonolentos, sem força e sem instinto, entorpecidos, com as pupilas de ouro
marasmadas, com as garras inúteis já sem preza, acham-se heróicos porque os
chicoteiam, mesmo quando eles tremem de sezões, mesmo quando eles morrem de
saudade!... Não há amor de asas num rochedo à névoa, que o terror dos homens
não errice!... Antes disto, porém, já os adoraram. No Egito, em tardes de
colheita, o vôo das íbis riscava no ar do Nilo curvas em que eles viam
profecias... E outros como Isis, como Anúbis, sucumbiram no tédio de ser
deuses, e depois das pompas rituais, de oferendas, de orações, de sacrifícios,
são os servos misérrimos do homem, domesticados já, civilizados!
Mutilam as árvores, deformam-nas;
exilam certas plantas nas estufas, com saudades do húmus e do sol, e trazem na
lapela rosas mártires, que abriam de desejo como noivas, à espera do pólen
bem-amado! Não entendem o sangue nem a seiva: vão pervertendo tudo, corroendo!
Até que um dia, não mais florestas, catedrais a Pan! A terra será calva como um
sábio, e cordilheiras, montes e ravinas serão assassinadas, cavacadas, pra que
os homens mobíliem os palácios, pra que tenham poleiros nas gaiolas... Os
areais, as deserteiras ruivas onde o mar espadana e se extasia, terão motores,
instalações fabris pra utilizar a raiva das marés, em quê, deus-sol?... a enriquecer
indústrias... Todo o azul será viúvo de asas, e os filhos das águias e das
feras nascerão em gaiolas e em jaulas! Ah! Mas também nada haverá mais triste
do que os filhos dos homens, as crianças... A inocência, essa graça animal, de flor
e de ave, que eles chamam divina... os imbecis! não mais existirá nos filhos
deles, refletindo nos olhos já doentes, a farsa de viver, como nos velhos...
Será assim um dia, será assim. Onde irão depois refugiar-se? Nos braços do
amor, do amor deles, em que um olhar de mulher lembra um naufrágio, e faz que,
cada trança, por mais loira, venha a ser sempre a força de um destino! A terra
será a catedral do sofrimento, fim da farsa sinistra que eles vivem, a inventar
anestésicos e dores!
Certo, o farrapo de penas que
hoje sou, é bem obra dos homens. Certo, certo... Mas aqui mesmo, num poleiro
reles, garras em cotos, quase paralítica, consola-me pensar que nenhum deles
será nunca o que eu fui, asas e garras, vivendo pro Desejo pelo instinto, e em
nomaderias de vertigem, amando tudo, tudo, a terra toda, na luxúria suprema e
inconsciente, de viver, de viver só por viver!
Fez uma pausa. Tive a visão
daquela vida fulgurante, evocada em gritos de delírio, por essa pitonisa de
asas longas que cortava com o bico o meu destino.
Foi então que eu ouvi estas
palavras, que eram mais que um soluço, que um crocito, uma espécie de guincho
em que houve lágrimas.
—Iriam cair nas mãos dos homens
os meus filhos!...
Lambeu-me um calafrio de
vertigem.
Era demais, meu Deus, era de
mais! Não era já o meu orgulho em chaga, enovelado como um trapo nessas garras:
o que eu agora queria, o que era urgente, era mostrar a essa águia, a essa mãe,
que o seu dolorosíssimo terror era uma apreensão de louca, uma injustiça: o que
eu agora queria de alma toda, era mostrar-lhe o coração dos homens pra que ela
o visse bem e tão patente, como se lhe pendesse a sangrar do bico curvo. Pr convencer daria tudo, tudo. Procurava um meio, sem achar. Sentia a inanidade
das palavras. Com uma idéia súbita falei-lhe:
—Vou abrir-lhe a gaiola. Vai ser
livre.
Era decerto o pasmo que a gelava,
porque não saiu da treva uma palavra. Eu continuei numa emoção crescente em que
vibrava a ânsia de a soltar:
—Vai ser livre, livre como
outrora. Acorde as suas asas esquecidas. Diga adeus a essa gaiola imunda. Olhe
mesmo daí: que encanto de hora! A noite arqueia ao peso das estrelas... Uma
palavra sua e abro-lhe a porta. Não duvide. Sou forte. É num instante...
O seu recorte altivo de águia em
bronze amezendou: fosse fadiga ou tédio. E num bocejo vago, interrogou-me:
—Vai abrir-me a gaiola... mas pra
quê?...
—Pra quê?! Pra que antes de
morrer domine o espaço... pra sentir a vertigem do infinito...
—Eu?!... repetiu numa fleuma
desdenhosa. Eu?!... Sair deste poleiro, da gaiola? Não sou doida varrida por enquanto.
Sair da minha casa, do conforto pra incerteza da noite, pro mistério?... Sou
uma águia mas vivi entre homens. Já estou civilizada, meu senhor... E se o
vento me arranca as asas velhas? E se chover, e se chover? Já pensou nisso? Nem
com as garras enluvadas eu me atrevo... Nem que me cubra as asas de
impermeáveis...
Nem com um water-proof, nem assim...
A águia ria, ria doidamente.
Crispei as mãos nos arames, exasperado, e com uma voz enrouquecida fui dizendo,
num tom de confissão, quase febril:
—Imagina talvez que a não
entendo, que sou um homem como os outros, imagina...
É natural... é natural. Não me
conhece... Mas eu quero dizer-lhe: ouça! ouça!
Há em mim um não sei quê de águia
marinha. A sua sorte comove-me, acredite. Quero também dizer-lhe o meu segredo,
quero desabafar, contar-lhe tudo...
Bateu as asas com um ruído seco,
e num timbre fatídico de corvo, com uma voz de sibila, crocitante, atirou-me
estas palavras derradeiras:
—É cedo, é cedo ainda. Imite os
outros. Diga isso ao morrer ao travesseiro.
Esse sarcasmo último transiu-me;
e como quem se agarra ainda á esperança, pus-me a gritar pra gaiola,
tontamente:
—É o convívio dos homens que nos
perde. O seu destino é irmão do meu, escute... Queria ser forte e belo, queria...
Falei, falei, falei... Não sei
que disse.
Sandices e quimeras e desejos,
larvas de idéias, raivas, desesperos. Parei por fim.
Já nem lhe via os olhos. Decerto
cerrara as pálpebras com tédio. Só o vulto de sombra sobre a sombra se alongara
mais, estava maior. Ouvi então uma sineta banalíssima, a pôr-me fora secamente:
era já tarde. Olhei ainda a gaiola, despedi-me, atirei-lhe pra lá um «adeus»
surdo. Ao passar na jaula do leopardo, senti um cheiro mau a carne podre.
Vi-lhe o vulto enigmático de esfinge, a cabeça nas patas dianteiras, os olhos
de ouro fulvo, fuzilando. Se aquele me falasse, o que diria!... Atravessei o
parque silencioso, como numa balada, com terror. Vi nas acácias os pavões
adormecidos, olhei o céu filtrado por folhagens onde um langor de outono se
esfolhava, e à saída já, pra me acalmar, molhei as mãos febris numa das taças e
passei-as nas fontes consolado.
Achei-me enfim na rua, longe
dela.
Um rapaz namorava mesmo em
frente, a patrulha descia compassada, disse-me adeus um coco conhecido: dobrava
a esquina um elétrico apinhado. Tinha ainda no ouvido a voz da águia, quando
saiu de uma janela aberta uma ária roufenha de fonógrafo.
Comuniquei feliz com a vida
reles. Depois disto, é evidente, não posso mais falar-lhe. Ainda bem! Levava-me
ao suicídio essa águia velha.
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Nota:
Antônio Patrício: "Serão Inquieto" (1910)
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Advertência:
Alguns
termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o
resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu
o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas
dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail:
iba@ibamendes.com
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