terça-feira, 17 de setembro de 2013

Antônio Patrício: "Diálogo com uma Águia"

DIÁLOGO COM UMA ÁGUIA
  
Fui jantar ontem ao palácio. Estava lindo! Felizmente ninguém. Tudo deserto. Quando eu desci do restaurante, a acender um Laferme com preguiça, caía a tarde de outono em vitrais ricos para além das ramarias a despir-se. Passeei algum tempo na avenida, e sem saber porquê, indo ao acaso, fui estacar nesse recanto triste onde mora engaiolada uma águia velha. Há que tempos conheço este mostrengo, num abandono de asilo, de ar pedinte, com asas que diríeis paralíticas, de um tom coçado e neutro de miséria!... Uma águia isto, este espantalho! A decadência reles de estas asas que tanta vez olhei com indiferença, nem eu sei bem porquê, impressionou-me. Um animal de fábula, de mito, um ser que bebeu sol de olhos abertos, curvava as garras frouxas num poleiro, e depois de carnagens e aventuras, encolhido, misérrimo, com fome, acabava a aspirar a um meio-bife, como um vadio à porta de um café. Coitada! Teve uma forma assim aquela águia que saboreou Prometeu numa montanha!

A gaiola está sórdida, está imunda. Antes estivesse empalhada num museu, ou no quarto de trabalho de um zoólogo, sócio da Academia, homem de estudo, que ao voltar da rua ou da glória, lhe pendurasse do bico o chapéu alto. Coitada! Coitada! E notei com um calafrio, que pronunciara alto este «coitada», com uma voz que a mim mesmo surpreendeu pela inflexão perturbante de quinto ato. Olhei a águia. Vi-a encolher-se toda, contrair-se, enclavinhar as garras no poleiro, como a uma dor aguda que a varasse. Encarou-me por fim, olhou-me todo, fazendo-me corar dos pés ao coco, e com uma voz que não era a voz da fábula, sem nada de lendário, sem estranho, com uma voz normal de velha beata, arrastada e roufenha, quase gaga, cacarejou num tom de dor e mofa:

—Ao que eu cheguei! Ao que eu cheguei! Já tem pena de mim isso aí fora... Antes estar morta e podre, antes estar podre...

Estarreci. Não era o impossível realizado dessa carcaça de águia a falar alto, a falar como eu, que me empedrava: nem sequer o estranhei naquele instante; mas o dolorosíssimo desprezo com que ela me chamou isso aí fora, com que ela ouviu que um isso a lamentava. Deitei fora o cigarro bruscamente, compus um momo frio de desdém escondendo a irritação que me excitava, e premindo a bengala contra o queixo, retorqui-lhe benévolo e grosseiro:

—Não percebo o seu desprezo, não me atinge. Eu não disse «coitada» pr ofender. É sempre triste ver uma águia presa, mas numa gaiola, assim, é lamentável. Pra mais, conforme vejo no letreiro, foi um comendador que a ofereceu... E a gaiola...

—Que tem? Falta de estilo?

—Está cheia de excrementos. Está indecente.

—Já não diria isso se os visse cair de alto, no deserto, sobre o granito cariado duma esfinge... Cenários, digo-lho eu, literatura...

Eu então requintei de pedantismo, e perguntei-lhe a rir de que alta estirpe, de que águias reais, de que família, ela veio a cair neste poleiro onde agora a ouvia perorar num claro entardecer de intimidade, com idílios de guardas e criadas, raros bebês jogando às escondidas e um homem a varrer as folhas secas. Coçava-se a hesitar, com o bico baixo. Sacudiu as longas asas poeirentas e com uma voz de sono, começou:

—De alta estirpe, sim, de uma família de águias antiquíssima. Uma das minhas ancestrais, como agora se diz, fez viagens épicas na Judéia, e num crepúsculo de assombros, abrindo com as garras uma cordilheira de nuvens, viu pregado na cruz o Hebreu Doce, e logo desceu ao morro numa gula tão doida, que ensanguentou no ar de seda as asas bravas... Rasgou o peito magro do Homem-Deus, e ficou doida para sempre, doida, doida, na alucinação desse manjar patético, de martírio divino e desespero. Porque ela ouviu a confidência do Herói meigo... Mas não posso contar-lha, nem mais pio! É um segredo de família, é o meu segredo.

Amuei, retorqui num tom mimalho:

—Mas então, se não podia contar, pra que me falou nisso? Eu sou de uma curiosidade feminina. Já não saio daqui sem que mo diga.

—Mau! O senhor é uma criança. Que tolice! Dezenas e dezenas de avós meus, gerações e gerações de águias marinhas, levaram o segredo herdado e não traído, que nem ao sol, que é o deus das águias, revelaram. E quere agora o senhor com um papelzinho que lhe custou uns cobres (se o pagou) violar o murmúrio que tem séculos, e é a última vibração daquele espírito que vestiu de nebulosas toda a Vida... Sabe que mais? Estou já arrependida de falar.

—Não se zangue. Juro-lhe, juro-lhe que não digo nada a ninguém. Se soubesse o que eu sei!... Segredos de família, dramas... dramas...

Esperei um instante ansiosamente. A águia inteiriçou-se, sem me olhar, bicando longes de memória, de saudade:

—Não sei que tenho hoje. Velhice, morte próxima talvez, pressentimentos... Quando essa avó longínqua cravou as garras no peito desse Réu, e lhe bicou o coração e bebeu sangue, sentiu que enlouquecia, que era outra... Como se ferisse uma irmã, teve remorsos; fixou os olhos bêbedos de sol nos olhos d'Ele, refrescou-lhe com as asas a cabeça, empastada em suor, de um verde lívido...

A cruz que estremecia, ficou hirta. E foi então, foi então que Ele lho disse...

—Mas o quê? O quê? Diga depressa.

—O segredo, senhor, o meu segredo.

—Mas qual é afinal? Quere torturar-me...

—Renegou-se a Si mesmo. Retratou-se! Disse o remorso de não ter vivido, a tristeza infinita, o desespero e o mal sem remédio de ser virgem, de morrer no corpo morto de uma árvore, único corpo que sentiu, o de um cadáver... As estrelas que nasciam no céu dúbio eram pro Moço Hebreu pólen doirado, e a sua alma moribunda abria toda como os hortos ideais da Galileia... O peito arqueou-lhe mais, contracturado... Queria largar a cruz pra poder dar-se, à terra desse cerro, a alguma forma, a um corpo de mulher, a alguém, a alguém...

A voz da multidão pela ravina era um marulho de ressaca mui confuso, e Ele sentiu entre pragas e risadas, entre os lamentos e os insultos que silvavam, sentia vozes de mulher... ouviu, ouviu-as... Só elas Ele ouviu, ouvia sempre... Queria falar ainda, quis falar-lhes e pedir-lhes perdão do que lhes disse, com parábolas mentirosas de doçura e com olhos de lago sem desejo... Esvaía-se em sangue, ia azulando. Foi então que a minha avó num vôo lento, lhe emoldurou nas asas côncavas a Face... e que ela ouviu, senhor, e que ela ouviu...

Calou-se um instante imóvel no poleiro. Reparei. Era o guarda que passava.

—Já não sei onde ia. Estou com febre. Ah! No que ouviu a minha avó naquele instante... Quando eu penso nisso, quando penso... Imagine, se pode, ora imagine... Ele que era um Adivinho, Ele o Vidente, num desses instantes de gênio que abrem séculos, previu, previu bem claramente, como se mentiria à Vida em nome d'Ele, a morte da Beleza e da Alegria, a Tristeza e a Doença em nome d'Ele, séculos e séculos de vida envenenados por o sangue de amor que Ele vertera, e iria embebedar os homens muito tempo, para sempre talvez, talvez pra sempre. Sentiu então que a querer salvá-los, os perdera... Certo, esse instante de dor sempre ignorado foi o maior de dor que alguém viveu. E como Ele a diria, como...

—Em que língua falou? Foi em hebraico?

—Foi na língua das asas que Ele o disse. Não lha posso ensinar, já me não lembro. Quando me engaiolaram, esqueci-a. Mas que impressão lhe faz o meu segredo? Se os homens o soubessem, seria Ele na verdade o Redentor...

—Sim, sim. É bem justo o que me grasna. Shelley tê-lo-ia amado como irmão, e Nietzsche, o próprio Nietzsche...

—Bem sei. Esse afirmou com pompa lá pro Norte, que Ele decerto se teria retratado se tão cedo o não crucificassem. Foi minha mãe que o disse a Zaratustra. Zaratustra ouviu mal, não disse tudo. A verdade é assim, como eu lha conto. Parece que os homens riram do filósofo, acharam tudo isso uma tolice...

—Acharam...

—E afinal esse Hebreu crucificado, no instante supremo de tortura, quando para além das nuvens o esqueciam, chamava só por Pan, o grande Pan! Se os homens soubessem isto e o entendessem, teria o grande Pan ressuscitado. Seriam brancas estas pobres asas.
—Brancas? Porquê?

—Durante séculos tivemos asas brancas, todas nós, águias da minha estirpe. Foi só depois que Pan morreu, que elas ficaram pretas, como luto. Quem se lembra de Pan por estes tempos?...

—Os que sabem amar, os que ainda amam.

—Os que sabem amar!... Esse Hebreu mesmo só conheceu o Amor no alto da cruz. Viveu como um fantasma transparente, com sonho nas artérias e nos olhos... Só escoado em sangue, no madeiro, viu nos olhos da minha avó sanguissedenta, dois espelhos do Amor, irmão do sangue...

—Conhecem lá o amor aves de presa!

A águia crispou as garras no poleiro e casquinou um riso muito seco, que soava sem timbre, como tosse. Depois mudou de aspecto. Começou a tremer, toda friorenta, as asas como andrajos mais pendidas, e nos olhos de febre, muito fitos, uma grande saudade que varava.

—O amor das águias... o amor das águias...

—Que tem? Está comovida. Conte-me o seu amor. Sou todos ouvidos.

—O meu amor... o meu amor... Já me não lembro. Já não posso dizer-lho. Vai tão longe!... Sou uma velha tonta, sem memória, um farrapo de penas para escárnio. Nem olho o sol em face há muito tempo. O meu amor... o meu amor... Já me não lembro. Coisas sem forma... nuvens... nostalgias...

Fez uma pausa. Parecia mais adunca, mais mirrada.

—No convés de um navio abandonado, amei no mar do Norte, aos vagalhões, noites e noites, bêbeda de espuma... Havia a bordo um marinheiro morto. Lembro-me bem. Que noites! Que mar alto!...

Tive um ninho e filhos pequeninos, num jardim vago, ao sol da meia-noite... Que silêncio! Sentia-o a passar por entre as garras...

Ensandeci de gozo no deserto... Ouvi a Esfinge falar, ouvi a Esfinge, quando o sol lhe fendeu todo o granito, pôs ranhuras de dor nos olhos átonos, e escancarou a boca em rictos duros... O que eu ouvi à pobre?

Soluçava!... Eis o enigma afinal, o grande enigma, à hora das miragens, do delírio, quando o sol enraivece, é só desejo, e o deserto urra no silêncio, e as areias escaldam e o ar zune... Amei... amei... amei na terra toda... Desfraldei o desejo, cravei garras. Olhei o mar saciada e compreendi-o.

—Tem saudades do mar, aí na gaiola?

—Como um marinheiro preso... doidamente... O que eu viajei, o que eu viajei por sobre a espuma!... Sei as lendas do mar como ninguém. Contou-mas numa rocha um corvo antigo. Como sabe, os corvos vivem séculos... Sabia-as todas esse velho amigo... naufrágios e terrores... dramas da névoa... O mar! O mar! O que eu amei no mar! Mas o senhor não compreende, o senhor não sabe. Que sabem do Amor os homens todos?... Foi esse Hebreu, sem querer, que os desgraçou. Fizeram ao Desejo o que fazem às águias quando podem... Está como eu o Desejo: engaiolaram-no! Fizeram do Amor isto... um dever! Um dever... um dever... um dever triste! Empalaram-no em leis, codificaram-no. Até fizeram isso... o casamento! E vivem em gaiolas, os seus lares! Raça de escravos! Se esse Hebreu os visse...

—A senhora é uma águia, não percebe... Eu não posso explicar-lhe a Sociedade...

A águia olhou-me com um desprezo frio.

—O quê? Não sei? Sei mais do que Balzac. Eu li-o todo em casa de um burguês. Vivi lá dez anos de amarguras. Estive presa primeiro no quintal. Depois cortaram-me as asas e soltaram-me. Soltaram-me mutilada pelas salas... Canalha! O que eu odeio os homens... As crianças, veja o senhor os anjos!... arrancavam-me as penas, espetavam-me o corpo com agulhas, e um dia um criado, na cozinha, tentou picar-me os olhos às risadas, a rir, a rir... como só riem homens. Sofri dez anos entre essa canalha. Era uma gente séria, muito séria. Vi a Família, a Tradição, vi tudo. Não queira argumentar, não diga nada. Sou uma águia, mas conheço os homens.

—De acordo. Eu não duvido. Não quero discutir, não argumento. Mas falamos do Amor, e apenas digo que há ainda quem ame sobre a terra... gente da minha espécie... homens... homens... O amor, há de a senhora concordar, não é um monopólio de asas nômades... Um bípede implume também ama. É raro, eu sei, amor genuíno, é raro. Mas existe ainda, afirmo-lho eu, existe ainda...

—Que novidade! Pois não lhe disse já que li Balzac? E viajei, e vivi mais do que pensa.

Parou um instante, o olhar cismático, sem foco:

—... Uma vez, num céu da Andaluzia, vi num jardim mourisco dois amantes. Senti o cio encrespar-me as asas largas e desci pros ver de perto na luz de ouro... Era na paz de uma cidade morta. Pousei num dos ciprestes do jardim. Tinha uma taça de alabastro esverdinhada, e uma água glauca que cheirava a febre. Era junto da taça que se amavam, sob a garra do sol, loucos de raiva. Fiquei queda a aspirá-los muitas horas. Que corpos fortes! Eu achava-os lindos. Dormi na torre da igreja, numa gárgula, e de manhã voltei pros ver ainda. E assim dias e dias... Uma vez demorei-me, vim mais tarde, e encontrei-os imóveis e enlaçados. Tanto tempo os vi assim e tão imóveis, que pensei: estão talvez mais que adormecidos... Desci. Bati-lhes com as azas nos cabelos. Cravei as garras devagar nos seios dela... Estavam mortos! Julguei então enlouquecer de gula. Devorei, devorei, até à noite... Lembro-me que sorvi os olhos dela. Estavam secos de amor. Eram cinzentos...

—Que horror! O que a senhora fez!...

A águia ergueu as asas num espanto e tornou a fechá-las lentamente. Depois, com grande enfado, foi dizendo:

—Que absurdos macacos são os homens! São os animais mais torpes que eu conheço. Como tudo que vive, como todos, só pensam em gozar, gozar a vida... e com esta obsessão a estorcegá-los, prendem-se os braços, castram os desejos, adoentam-se, torcem-se... progridem. Querem morder, morder bem fundo... e beijam-se; sentem calor e andam ao sol vestidos; amordaçam o instinto, os imbecis!... Encerram o desejo nas alcovas, onde não entre sol, sombra de lua... Tem estatutos, cláusulas, parágrafo. Não fecundam a amar, são fabricados: são produtos de indústria os homens de hoje! Chamam a isto Civilização. Não vivem por viver: tem deveres a cumprir, obrigações... E tudo isto em códigos, sistemas, em religiões, teorias, em morais!... Para os que tentem ser homens a valer, há prisões, há leis, ha toda a Ordem! Existem já na terra há muitos séculos, e ainda não começaram a viver... ou, se viveram, foi na Pré-História ou na Pré-Lenda! Que macacos absurdos! Que macacos!

—Mas pare um instantinho, ouça, ouça...

—Não me mace, senhor, não me interrompa... O que mais os consome e os faz grotescos, e os enche de vaidade, é a Consciência, o Espelho, o Guia, o grande Guia, que os levou a isso que são hoje...

Atalhei, como quem aponta um cúmplice:

—A culpa foi desse Hebreu de quem falamos. Talvez se o seu segredo se soubesse...

—Não foi só d'Ele, foi de muitos outros... Antes d'Ele e depois..., de muitos outros.

Tremeu-lhe o corpo todo. Arrepanhavam-se-lhe as penas. Estava outra. Via-a transfigurar-se com espanto.

—O senhor é bem um homem. Não se pode nutrir sem ilusão. Quando há pouco lhe disse o meu segredo, dei-lhe a entender que se ele se soubesse, havia na verdade um Redentor, os homens viveriam sobre a terra. Tive pena de si que é um desgraçado. Sempre lho digo agora: era inútil! Conheço bem os homens por meu mal. O segredo do Hebreu que lhe contei, não é um caso único: é de sempre. Á hora de morrer—a uma águia, aos lençóis ou ao travesseiro, todos os homens tem como esse Hebreu, um segredo supremo a revelar. É apenas isto: a confissão de que morrem sem viver.

Continuou depois com o bico alto:

—Os homens são uma espécie condenada. São bastardos de planta e de fantasma. Quem disse isto? Não sei... estou sem memória. Raça de escravos vis, raça de escravos! E pra fugir à Vida o que inventaram! Como trabalham, suam e tressuam!... Dissecam tudo, árvores e pedras, fecham-se em quartos a estudar micróbios... E cada dia são mais desgraçados, mais fracos, mais inquietos e mais tristes!... Cada dia se embrulham mais em roupas, põem mais vidros nos olhos, tem mais medo... E cada dia fogem mais à vida! Que imbecis! Que imbecis! Que espécie torpe!

Sentia-me exaltado, nervosíssimo. A voz saiu-me estrangulada, rouca, em sobressaltos, brusca, sem fluência:

—A senhora diz coisas que me espantam, que por vezes são justas e terríveis, mas há outras também que não entende, que não pode entender, sim, que não pode. É natural. A senhora é de outra espécie. Tem vivido com os homens mas é águia... e águia ficará até morrer.

Parei. Sentia-me vazio, em suores álgidos, quase incapaz de articular palavras. Ela então, com a plumagem toda crespa, transfigurada agora, agora outra, já com metal na voz, interrogou-me:

—O quê? O quê? O que é que eu não entendo?

Sem recursos, nulo, desvairado, atirei-lhe este lugar comum, como se estivesse a falar com um jornalista:

—Por exemplo: o Sentimento, a Beleza moral que há no Universo!

Vi-a saltar do poleiro, esvoaçar, bater asas de fúria nos arames, e recair depois na mesma pose, a arquejar, asmática de raiva. Ficou assim sem fala ainda algum tempo. Apeteceu-me fugir. Tive vergonha. A voz dela por fim veio em arestas, ferindo o meu orgulho já ulcerado:

—A Beleza moral!... O Sentimento! Que fizeram com isso?... Que fizeram? A Harmonia social, esse concerto que é de rasgar os olhos e os ouvidos. A fome, a revolta, o desespero... A raiva de saber, de analisar, de fechar em teorias toda a Vida... A Dúvida, a loucura metafísica, e o culto da dor, esse onanismo!... A impotência em tudo, a impotência... E por paródia à luta de viver, uma luta sem garras, enluvada, um ódio triste e covarde, corrosivo; a intriga e a cilada pela força; a caridade que é o egoísmo doente, e o culto dos ídolos, os cultos, a escravidão aos deuses e às idéias... A Harmonia social... essa gaiola onde vivem a uivar os homens todos!

Dava gritos estrídulos, sarcásticos: as penas eriçavam-se de fúria.

—Oh! O ódio dos homens, que grotesco! E há classes opressoras e oprimidas, com fórmulas, com cláusulas, com leis!

Não é o ódio celular, contraturante; não é o ódio animal todo de instinto; não é o ódio de todos quantos vivem! O ódio dos homens foi canalizado, por seitas, por classes, por partidos, em dogmas, preconceitos, covardias. Nos outros animais o ódio é orgânico! Todo o combate é sempre pela Vida. O dos homens é anêmico, misérrimo, e defende o dever, o preconceito, as taras de domínio e servidão, e até mesmo na revolta é miserável, pautando a Vida, sistematizando.  É o ódio da paródia de viver, do fantasma de Vida que eles vivem!...

Parou. Eu estava como tonto, desvairado. Tinha decerto endoidecido essa águia velha, delirava, dizia só loucuras; mas eu não achei nada para opor-lhe, pra aniquilar nesse silêncio de fadiga. De súbito lembrei-me: a Arte, a Arte, toda a minha quimera de mãos postas!

Sentindo-me desta vez irredutível, gritei-lhe pra gaiola:

—E a Arte? A Arte? Consolação suprema de viver...

Teve farpões de escárnio ao responder-me:

—A Arte!... A Arte é a expressão da Vida. São os homens que o dizem, não é assim? Ora se eles não vivem, se não vivem, se parodiam a Vida a cada instante, se fogem mais e mais da grande Vida, a Arte é uma paródia de paródia, um espectro de espectro... miserável! Querem com tintas imitar o céu, e transcrevê-lo em lonas, em madeiras!... O céu bebe-se aos haustos, com os olhos; olha-se por olhar, sem intenção; recebe-se nas pupilas extasiadas, que se alargam mais com sede dele... É o que faz um sapo a olhar os astros! É o que os homens não compreendem nunca! Toda a terra é feliz se o sol a doura; tudo germina, as pedras e as sementes... Só os homens que se cobrem pra evitá-lo; que nas cidades gastam horas a vestir-se; que tem por céu só um paninho côncavo a que chamam guarda-chuva ou guarda-sol; que o filtram nas igrejas por vitrais, que usam lunetas, que o receiam sempre; que tem medo da morte às suas garras, deslumbramento e orgulho de águias soltas; só os homens, absurdíssimos macacos, querem copiá-lo em lonas, em madeiras, com tintas, com carvões, com paus de cor!...

Que macacos absurdos, que macacos!

Bem quis interrompê-la, não podia. Vibrava de loucura negadora, hierática, estranha, convulsiva.

—E nem poupam o mar nem as searas, as penedias trágicas, as rosas! Metem o mar nuns centímetros de lona, e com medo que as marés vão sufocá-los (a águia ria, ria como louca) mandam emoldurá-lo, encaixilhá-lo!...

Prendem-no assim nas salas, nas alcovas. Oh! A Arte dos homens! Coisa imensa! A paródia da Vida... paralítica! Mas vá alguém dizer-lho! Vão dizer-lho! Ainda os antigos cegavam as estátuas... Estes abrem-lhes olhos, bem abertos, a refletir... o quê? A vida deles, a paródia de vida que eles vivem e que andam a imitar ainda por cima!...

A noite começava a entrar nas coisas. Um grito de pavão varou o parque, assustou os jardins que adormeciam, e um instante no ar, teve saudades... Uma angústia sem nome andava esparsa, caía das árvores grisalhas, que pareciam à escuta, com terror. Em frente o chorão vergava mais, quase rasava a terra com doçura, em curvas de um encanto nazareno. Uma sereia aguda de vapor, já a sair a barra certamente, mugiu como um agouro de naufrágio. A treva ia afogar toda a gaiola. Não via bem a águia, mal a via. Só os olhos e as asas muito vagas... Era um fantasma de águia àquela hora, mas crescia em mim desmesurada, como um ser de fábula e tragédia, oráculo sarcástico e sinistro, lendo o horóscopo num poleiro reles, como se rasgasse a esperança com as garras. Afinal era eu a sua presa, e ouvia-a passivo a torturar-me.

—A Arte dos homens! Que mentira triste! Em vez de serem belos como estátuas, derrancam mais os corpos para erguê-las! Até modelam sonhos e quimeras!...

Nunca olharam as nuvens, nunca as viram, esses mármores ao vento, flutuando... E o vento! O vento! Sabem lá ouvi-lo! Tanto não sabem que quando ele prega, durante o inverno em que ele é todo gênio, metem-se em casas grandes, bem fechadas, pra ouvir sons, sons, imensos sons... Chamam a isso Música. Conheço-a. Desde que vivo com os homens, perseguiu-me. Nem aqui na gaiola eu lhe escapei. Toca aos domingos horas, no coreto. Enche-me mais de raiva e de miséria. A música das águias como é outra!... Quem a ouviu como eu quando era águia, antes de ser esta carcaça reles! Nas montanhas, no mar, na névoa móvel!... Sobretudo no mar, no grande mar... O que eu viajei nos temporais a ouvi-la! Ás vezes partíamos no vento em turbilhões, asas e asas, nômades, pairantes... Regougos de ondas, nuvens a rasgar-se, e os nossos gritos, bêbedas de espuma!... E mil vozes de formas nunca ouvidas, a voz de tudo, tudo, a voz de Pan! E o silêncio, o silêncio... Certos instantes únicos, supremos, em que ele se ouve, o temporal hesita, e um pânico arrepanha as asas todas... Como é agudo, agudo, esse silêncio!... Nas meias-noites de estio... o que eu gostava de despertar no éter melodias, ferindo-lhe o teclado luminoso, numa alma de vôo, sereníssima... Punha medo com o rumor das minhas asas às nuvens que dormiam extasiadas, e auscultava a noite pelo céu, até ouvir a manhã vibrando toda, quando o ar é uma orquestra miriadaria e os homens dormem nas alcovas mornas...

Estendeu por minutos seculares o seu monólogo patético de velha, essa arenga evocativa de fantasma, lapidando o meu ser com ironias, em que memórias épicas passavam, como o granizo aos pobres em dezembro. Todo o meu senso crítico se foi na rajada feroz dos seus desprezos: era uma fúria aguda de vingança, de esfrangalhar essa carcaça oráculo, varar-lhe os olhos com a ponteira da bengala, acabá-la de vez, estrangulá-la. Retorqui-lhe então com a voz dura, pondo raivas de morte nas palavras:

—Sim, sim... Diga ainda mais... o que quiser. Cante à sua vontade, minha amiga! Insulte os homens, ria, desgraçada. Nem me dou ao trabalho de a esmagar. Só lhe pergunto isto, apenas isto: quem a tem aí bem presa na gaiola? A si e a esse mocho seu vizinho? Ao leopardo, ao lobo, a essas feras? Quem lhe dá por esmola bifes podres, e faz de si o riso das crianças, e a há de empalhar depois de morta?... Você é uma águia tonta, dementada, que a escravidão ensandeceu de vez. Melhor, melhor! Assim faz-nos rir mais. Grasne por aí; rebente a divertir-nos!...

Parei pra tomar fôlego, cansado; mas o relevo imóvel dessa ave, a sua forma heráldica de bronze, alheavam-na tanto desta cólera, do desespero besta em que eu tremia, que me pareceu inútil continuar e me senti um títere grotesco. Era o mais infernal dos casuístas, essa águia impossível de ferir, feita de sombra, emoldurada em sombra, presa nessa gaiola e mais distante que se esgarçasse as asas nas estrelas. Enquanto assim pensava, ei-la que fala:

—Bem certo, sim, bem certo o que me diz! O Homem alastra pela terra como um cancro, pervertendo a vida, corroendo. Reduziu-me a mim, asas e garras, a um animal grotesco de capoeira, meio tonto de dor e de miséria. E as feras!... Exibem-nas nas feiras e nos circos, em gaiolas de ferro, à luz elétrica, ante o pasmo alvar das multidões, rindo da força mutilada e doente. Cortam as jubas aos leões, abrem-lhes risca, dão-lhes chicote e bifes, civilizam-nos! E quando os tem nas jaulas, sonolentos, sem força e sem instinto, entorpecidos, com as pupilas de ouro marasmadas, com as garras inúteis já sem preza, acham-se heróicos porque os chicoteiam, mesmo quando eles tremem de sezões, mesmo quando eles morrem de saudade!... Não há amor de asas num rochedo à névoa, que o terror dos homens não errice!... Antes disto, porém, já os adoraram. No Egito, em tardes de colheita, o vôo das íbis riscava no ar do Nilo curvas em que eles viam profecias... E outros como Isis, como Anúbis, sucumbiram no tédio de ser deuses, e depois das pompas rituais, de oferendas, de orações, de sacrifícios, são os servos misérrimos do homem, domesticados já, civilizados!

Mutilam as árvores, deformam-nas; exilam certas plantas nas estufas, com saudades do húmus e do sol, e trazem na lapela rosas mártires, que abriam de desejo como noivas, à espera do pólen bem-amado! Não entendem o sangue nem a seiva: vão pervertendo tudo, corroendo! Até que um dia, não mais florestas, catedrais a Pan! A terra será calva como um sábio, e cordilheiras, montes e ravinas serão assassinadas, cavacadas, pra que os homens mobíliem os palácios, pra que tenham poleiros nas gaiolas... Os areais, as deserteiras ruivas onde o mar espadana e se extasia, terão motores, instalações fabris pra utilizar a raiva das marés, em quê, deus-sol?... a enriquecer indústrias... Todo o azul será viúvo de asas, e os filhos das águias e das feras nascerão em gaiolas e em jaulas! Ah! Mas também nada haverá mais triste do que os filhos dos homens, as crianças... A inocência, essa graça animal, de flor e de ave, que eles chamam divina... os imbecis! não mais existirá nos filhos deles, refletindo nos olhos já doentes, a farsa de viver, como nos velhos... Será assim um dia, será assim. Onde irão depois refugiar-se? Nos braços do amor, do amor deles, em que um olhar de mulher lembra um naufrágio, e faz que, cada trança, por mais loira, venha a ser sempre a força de um destino! A terra será a catedral do sofrimento, fim da farsa sinistra que eles vivem, a inventar anestésicos e dores!

Certo, o farrapo de penas que hoje sou, é bem obra dos homens. Certo, certo... Mas aqui mesmo, num poleiro reles, garras em cotos, quase paralítica, consola-me pensar que nenhum deles será nunca o que eu fui, asas e garras, vivendo pro Desejo pelo instinto, e em nomaderias de vertigem, amando tudo, tudo, a terra toda, na luxúria suprema e inconsciente, de viver, de viver só por viver!

Fez uma pausa. Tive a visão daquela vida fulgurante, evocada em gritos de delírio, por essa pitonisa de asas longas que cortava com o bico o meu destino.

Foi então que eu ouvi estas palavras, que eram mais que um soluço, que um crocito, uma espécie de guincho em que houve lágrimas.

—Iriam cair nas mãos dos homens os meus filhos!...

Lambeu-me um calafrio de vertigem.

Era demais, meu Deus, era de mais! Não era já o meu orgulho em chaga, enovelado como um trapo nessas garras: o que eu agora queria, o que era urgente, era mostrar a essa águia, a essa mãe, que o seu dolorosíssimo terror era uma apreensão de louca, uma injustiça: o que eu agora queria de alma toda, era mostrar-lhe o coração dos homens pra que ela o visse bem e tão patente, como se lhe pendesse a sangrar do bico curvo. Pr convencer daria tudo, tudo. Procurava um meio, sem achar. Sentia a inanidade das palavras. Com uma idéia súbita falei-lhe:

—Vou abrir-lhe a gaiola. Vai ser livre.

Era decerto o pasmo que a gelava, porque não saiu da treva uma palavra. Eu continuei numa emoção crescente em que vibrava a ânsia de a soltar:

—Vai ser livre, livre como outrora. Acorde as suas asas esquecidas. Diga adeus a essa gaiola imunda. Olhe mesmo daí: que encanto de hora! A noite arqueia ao peso das estrelas... Uma palavra sua e abro-lhe a porta. Não duvide. Sou forte. É num instante...

O seu recorte altivo de águia em bronze amezendou: fosse fadiga ou tédio. E num bocejo vago, interrogou-me:

—Vai abrir-me a gaiola... mas pra quê?...

—Pra quê?! Pra que antes de morrer domine o espaço... pra sentir a vertigem do infinito...

—Eu?!... repetiu numa fleuma desdenhosa. Eu?!... Sair deste poleiro, da gaiola? Não sou doida varrida por enquanto. Sair da minha casa, do conforto pra incerteza da noite, pro mistério?... Sou uma águia mas vivi entre homens. Já estou civilizada, meu senhor... E se o vento me arranca as asas velhas? E se chover, e se chover? Já pensou nisso? Nem com as garras enluvadas eu me atrevo... Nem que me cubra as asas de impermeáveis...

Nem com um water-proof, nem assim...

A águia ria, ria doidamente. Crispei as mãos nos arames, exasperado, e com uma voz enrouquecida fui dizendo, num tom de confissão, quase febril:

—Imagina talvez que a não entendo, que sou um homem como os outros, imagina...

É natural... é natural. Não me conhece... Mas eu quero dizer-lhe: ouça! ouça!

Há em mim um não sei quê de águia marinha. A sua sorte comove-me, acredite. Quero também dizer-lhe o meu segredo, quero desabafar, contar-lhe tudo...

Bateu as asas com um ruído seco, e num timbre fatídico de corvo, com uma voz de sibila, crocitante, atirou-me estas palavras derradeiras:

—É cedo, é cedo ainda. Imite os outros. Diga isso ao morrer ao travesseiro.

Esse sarcasmo último transiu-me; e como quem se agarra ainda á esperança, pus-me a gritar pra gaiola, tontamente:

—É o convívio dos homens que nos perde. O seu destino é irmão do meu, escute... Queria ser forte e belo, queria...

Falei, falei, falei... Não sei que disse.

Sandices e quimeras e desejos, larvas de idéias, raivas, desesperos. Parei por fim.

Já nem lhe via os olhos. Decerto cerrara as pálpebras com tédio. Só o vulto de sombra sobre a sombra se alongara mais, estava maior. Ouvi então uma sineta banalíssima, a pôr-me fora secamente: era já tarde. Olhei ainda a gaiola, despedi-me, atirei-lhe pra lá um «adeus» surdo. Ao passar na jaula do leopardo, senti um cheiro mau a carne podre. Vi-lhe o vulto enigmático de esfinge, a cabeça nas patas dianteiras, os olhos de ouro fulvo, fuzilando. Se aquele me falasse, o que diria!... Atravessei o parque silencioso, como numa balada, com terror. Vi nas acácias os pavões adormecidos, olhei o céu filtrado por folhagens onde um langor de outono se esfolhava, e à saída já, pra me acalmar, molhei as mãos febris numa das taças e passei-as nas fontes consolado.

Achei-me enfim na rua, longe dela.

Um rapaz namorava mesmo em frente, a patrulha descia compassada, disse-me adeus um coco conhecido: dobrava a esquina um elétrico apinhado. Tinha ainda no ouvido a voz da águia, quando saiu de uma janela aberta uma ária roufenha de fonógrafo.



Comuniquei feliz com a vida reles. Depois disto, é evidente, não posso mais falar-lhe. Ainda bem! Levava-me ao suicídio essa águia velha.


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Nota:
Antônio Patrício: "Serão Inquieto" (1910)

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Advertência:

Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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