domingo, 15 de setembro de 2013

João Marques de Carvalho: "A Lição de Paleógrafo"

A LIÇÃO DE "PALEÓGRAFO"
(Poemetos em prosa)
A Heliodoro de Brito

I

A escrava Josefa teve, naquele dia, um grande sentimento. Sua alma confrangeu-se toda, ante-sofrendo as tredas amarguras do largo e profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de mãe.—O comendador Pereira de Castro, que dali a dias seguiria para a Europa, de concomitância com toda a família, anunciara-lhe a sua resolução de levar consigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas daquela abastada família atualmente em vésperas de viagem.

E ela, a mãe extremosa, que só vivia do tenro afeto suavíssimo da filha, na tenebrosa passividade do seu cativeiro,—não obstante a bondade com que era tratada por todos,—teria de ficar no Pará, separada do pequenino ente que deslaçava-lhe o espírito em fulgidas quimeras de loiras fantasiais, em meio ao triste vegetar da sua existência!

Uma dor profunda empolgou-lhe tiranamente a alma e seus olhos, outrora privados de lágrimas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor, antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto silencioso por toda a noite passada em claro após a declaração ouvida pela manhã.

Só a lembrança de tão rude separação fazia-a sofrer tanto; o que não seria a crua realidade?

Mas o comendador, ao vê-la concentrada e soluçando a furto, no dia seguinte,—com os olhos, mudamente cheios de querulas expressões, fitos na rapariguinha,—acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de benevolências, consolou-a a meio.

—Que se não afligisse, ponderou. A pequena voltaria com ele e com a família, dali a anos. E com quanta vantagem para ela! Prometia trazer-lha instruída, educada, elegante e feliz,—uma verdadeira senhora. Até ela, Josefa, se arrependeria então da sua tolice atual, porque reconheceria os benefícios que tinham querido fazer-lhe á filha. Pois não era certo que todos ali tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha e que esta era tida menos como uma ingênua do que como se, realmente, fosse originaria do casamento dele comendador com sua esposa? Confiasse a Josefa em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com exuberância a justeza do seu proceder.

Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava. Elimina-la, porém, d'alma, era impossível, que não pode um coração de mãe deixar que a sorte, em qualquer de suas inumeráveis manifestações, lhe roube o ente dileto por excelência, sem estalar todo nos loucos frêmitos delirantes da mais intensa dor.

II

A família do comendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ela, a pequena Isaura.

Josefa, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas aflições, não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-na as outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheada de tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes do horizonte limitado uma visão, só para ela criada, a atrair-lhe poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as forças vivas do espírito e da razão.

Mas um dia, três anos depois, o sócio do comendador mandou chama-la ás pressas. Acudiu indiferente, sem mau modo nem solicitude na expressão do rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.

O sócio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta. Bateu desusadamente o coração da preta. Aquele papel não poderia ser senão da sua Isaura: o comendador, de tempos a tempos escrevendo ao sócio, pedia-lhe sempre informasse á Josefa estar a filha desta com saúde, muito desenvolvida e bastante adiantada nos estudos. Segurou a carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquele homem, que sorria-lhe docemente, compadecidamente.

—Anda, vai, disse ele; é uma carta de tua filha.... escrita por ela própria.

Escorreram lágrimas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim dava-lhe precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, imóvel diante do branco, e olhava para ele, como desejando dizer-lhe alguma coisa.

Ele pareceu compreendê-la:

—Queres que a leia?

—Sim, sinhô, respondeu Josefa, entregando-lhe apressada a carta e preparando-se para ouvi-la, para saborear-lhe o gosto transcendente dos sentidos, a divina musica ignorada das doces palavras escritas pela mão infantil da filha.

O sócio do Castro leu:

 MINHA QUERIDA MÃE,

Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo num colégio e donde lhe envio milhares de beijos nesta carta, a primeira que por meu punho escrevo, para lhe contar, se pudesse, as muitas saudades que tenho da minha santa mãe e o grande desejo que sinto de estudar muito, para voltar depressa para onde está a mãezinha do meu coração. Ante- ontem fiz dez anos e o meu protetor ofereceu-me uma bonita pena de ouro, dizendo-me que com ela deveria escrever-lhe esta carta, minha boa mãe. Tenho passeado muito e gostado imenso desta bela cidade, onde o meu prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha.

Abençoe-me e receba mil beijos que lhe envia

ISAURA.

Paris, 30 de dezembro de 1887.
  
Josefa chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a carta,—simples linhas banais, cheias de frases feitas, possuidoras, contudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.

III

Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva aparência, transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira a escravidão no Brasil. Cruzavam-se no ar o esfuziamento de grandes girândolas de foguetes e o eco ingente de milhares de vozes bramindo entusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso sucesso. Galhardetes e coretos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciais difundiam no espaço alegres harmonias de cálidos hinos excitantes.

Da casa do comendador Pereira de Castro correram para a rua todos os pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral regozijo.

Alguém ficou, todavia, indiferente aos sons exteriores do contentamento publico. Uma preta deixou-se estar na cozinha e espreitava agora para todos os lados, temendo fossem surpreendê-la.

Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos lábios um sorriso espiritualizado e, tirando do seio um velho Paleógrafo, abriu-o nas primeiras paginas murmurando comovida:

—Vamo estudá a lição. Nhô Manduca, disse que pro mês que vem já posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?

E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades vencedoras.

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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)

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