HISTORIA INCONGRUENTE
(Poemetos em prosa)
Ao dr. Franklin Tavora
I
Desde alguns dias andava triste,
apreensivo e taciturno o coronel Fonseca.
A paisagem alegre que cercava a
fazenda já não tinha o poder de evocar-lhe aos lábios aquele seu antigo sorriso
prazenteiro, com que todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janela do seu
vasto quarto.
As pessoas da casa andavam
escrutando o motivo daquela transição súbita no animo do velho. As conversas a
meia-voz no copiar, á hora da sesta não traziam nenhum resultado elucidativo daquelas
tristezas sem causa aparente. Todas as interrogações, que os olhares
apresentavam, iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia num
silencio desanimador.
E não havia razão para andar
assim tristonho o coronel Fonseca: a fazenda progredia, graças ao magnífico
tempo que, havia dois anos, reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros
viviam contentes, com disposição para o trabalho.
O Thiago, filho único do coronel,
não reparara ainda naquelas concentrações do pai. Vivia todo entregue a uma
paixão tão ardente como sincera, para ligar atenção a qualquer coisa que se
passasse em outra parte que não fosse no próprio coração.
E a Venância, a formosa donzela
que todos os dias obrigava-o a ir á vila próxima, bem merecia aquela dedicação egoística,
porém desculpável.
Filha de um velho fazendeiro, era
ela duma bondade proverbial e duma honradez reconhecida, sem precedentes de
macula. Trabalhadora, vivia a cuidar dos irmãozinhos mais novos que ela, a
fazer-lhes a roupa, a apaparicá-los, a rodeá-los de cuidados, interessando-se
muito pelo bem-estar físico do todos aqueles pequeninos seres a ela confiados
pela mãe, na ocasião de morrer.
Entretanto, quem pudesse
perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo que era justamente o amor do
filho a origem das suas tristezas.
É certo: Fonseca sentia grande
contrariedade em ver que o Thiago de dia para dia mais se ligava de amizade á Venância
da vila, como á rapariga chamavam os da fazenda. E quem se aproximasse da
maqueira do coronel, quando ele dormia os seus curtos sonos noturnos, poderia
muitas vezes ouvi-lo pronunciar estas palavras:—"É impossível semelhante
casamento!"
II
Uma tarde, quando o coronel
Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao seu correspondente da capital, apareceu-lhe
o Thiago, dizendo-lhe que necessitava falar-lhe com urgência.
O velho estremeceu, prevendo
talvez que o filho ia acercar-se dum assunto ao qual ele fugia há muito tempo.
Foi a fazer um violento esforço
sobre si mesmo que murmurou:
—Fala quando quiseres.
Thiago sentou-se na beira da rede
e guardou silencio por momentos.
O velho Fonseca olhava para ele
com as pálpebras escancaradas em uma expressão de curiosidade e pavor. Tremia
ligeiramente, com os nervos todos irritados.
—O diabo da gota quer visitar-me!
pensou.
No entanto, Thiago enxugava o
pescoço com o lenço e começava em seguida:
—Meu pai, o negocio a respeito de
que venho falar-lhe é importante de mais, para que eu estrague tempo e palavras
em rodeios desnecessários. Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber
qual será a resposta de meu pai.—Desejo casar-me.
Conteve o coronel um gesto de
indignação e disse, mostrando indiferença.
—Pois casa-te, rapaz. Eu não me oponho....
Contanto que seja a moça escolhida merecedora de ser tua mulher....
—Oh! se tal é a condição que
apresenta, posso afiançar-lhe que brevemente me casarei. Boa e séria, meiga e
honesta, trabalhadora e cheia de dedicação, creio que poucas moças como ela
encontrei no Pará durante os seis anos que lá estive a estudar no seminário e
no liceu.
—Felicito-te, por isso, disse
ainda o coronel, sentindo fortes dores nas fontes, com o coração acelerado,
porém a afetar tranquilidade.—Mas então quem é a rapariga?
Thiago sorriu indizivelmente,—com
uma beatifica expressão de intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:
—É a Venancia da vila, a minha
querida Venância!
O velho ergueu-se impelido pela
comoção. Supondo tal ação um meio de que o pae servia-se para testemunhar-lhe a
sua aquiescência, Thiago ergueu-se também e correu a abraçá-lo.
Mas o velho, fazendo um lento sinal
com o braço estendido, paralisou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou,
tremendo todo:
—Atende-me, Thiago, meu filho! Há
muitos anos que sei de teus amores com a Venância. Grandes motivos, que talvez
conhecerás um dia, impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inibiam-me
de opor-me a eles desassombradamente. Fingi ignorar tudo, na esperança de que
os anos lançassem o tédio sobre as vossas almas captivas uma da outra por aquilo
que eu pensava ser o entusiasmo pela novidade. Com imensa dor verifiquei o meu
engano, porquanto foste fiel á tua palavra, do mesmo modo por que Venância o
foi á sua. Isto seria uma grande felicidade se não fosse uma enorme desgraça.
Quer dizer, seria um apreciável penhor da tua ventura por vir, se o objeto da
tua paixão fosse qualquer outra mulher, que não a Venância..... Olha, Thiago,
sem procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me força
a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visita-la, ausenta-te de
Marajó, vai para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou para qualquer cidade longínqua,
onde julgues ser-te facil achares uma mulher a quem possas oferecer a mão....
—Mas porquê, meu pai? interrogou
Thiago assombrado, com o coração opresso debaixo duma tristeza incalculável,
sentindo que as palavras do pae minavam-lhe o edifício da felicidade por tantos
anos construído com um profundo amor expurgado de malicia.
—Porque assim é necessário,—redarguiu
o velho, numa veemência de gesto e de entonação.
—Pois fique sabendo que, se não
explicar satisfatoriamente a causa de semelhante oposição, só tomarei as suas
palavras como originarias duma razão que a idade torna vacilante e digna de
piedade!—bradou Thiago já fora de si, ferido n'essa grande porção de egoismo
que todo o homem tem consigo.
—Ingrato, murmurou o velho,
deixando-se cair sentado e chorando copiosamente.—Pois assiste á morte do teu
coração, visto assim o desejares: ouve-me!
Pela janela aberta, via-se o
vastíssimo campo do lado oeste da fazenda, coberto duma vegetação uniforme de
capim crestado pelo sol. Vitelos saltavam ás cabriolas e grandes bois mansos, muito
gordos e vagarosos, pastavam tranquilamente os fios de curto capim seco,
abanando as longas caudas num compassado movimento automático. Ao longe, um touro
preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horizonte, entretido em
lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexível língua cor de cinza de
charuto. Um cheiro almiscarado de erva seca e de excremento de boi subia até ao
quarto. Vaqueiros zangarreavam numas flautas campestres, muito rudimentares,
feitas de talos de mamãozeiro. Urros melancólicos de vacas chamando pelas crias
casavam-se com essas fáceis melodias bucólicas, vibravam pelo espaço em
propagações suaves que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um
suspiro flébil de extrema ternura. E da linha do horizonte, que recortava-se
muito distante sobre o azul escuro do céu, levantava-se vagarosamente a noite,
majestosa e tranquila em sua imponência sedutora.
O velho enxugou as lágrimas e
começou a falar.
III
—Como sabes, tinhas dois dias
quando tua santa mãe nos faltou. Até agora não sei como possível me foi
resistir a essa desgraça, que eu a principio reputei capaz de tirar-me a existência.
Três anos passei encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem
receber ninguém, apenas gozando em tuas inocentes caricias um pálido reflexo daqueles
grandes afagos que a tua idolatrada mãe fazia-me constantemente. Passados esses
três anos, compreendi que o teu futuro exigia-me impusesse silencio á minha dor,
e cuidasse de nossos bens, para dar-te uma boa educação e, depois da minha
morte, fazer-te herdeiro de uma riqueza suficiente á tua manutenção. Saí, pois,
do quarto, pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrifício como
feito por amor de ti e, por conseqüência, por amor dela. Negócios meus exigiam
que eu fizesse frequentes viagens á vila, onde, há vinte e três anos, isto é,
quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora amazonense, mulher dum velho
amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador da vila. Essa senhora era o retrato
vivo de tua mãe. Por um fenômeno de impressionismo,—sem o querer, sem o sentir—fui-me
enlevando das graças dela, até chegar ao ponto de pensar que tua boa mãe tornara
á vida e volvera a amar-me como dantes!
Quando eu ia á vila, hospedava-me
em casa desse antigo companheiro. Tal convivência maior aumento deu ao meu
amor, que transformou-se em grande paixão, toda entusiasmos e veemência. As
fazendas de Chaves faziam com que o marido dela se ausentasse muitas vezes da
vila, deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de comunicar-te
que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos mareados de lágrimas, a
arfar do peito e a contrair o rosto numa visível agonia causada pelos remorsos.
—Enfim,—disse com energia e,
desta feita, dando expansão ao pranto,—o resultado dessa criminosa, dessa
infame e baixa paixão, foi o nascimento duma menina, que o meu velho amigo
ingenuamente supôs ser sua filha....
—E essa menina é... Ve..nân..cia?—inquiriu
Thiago com os olhos arregalados, os cabelos crispados, as mãos fechadas
fortemente, sentindo fraquejar-lhe o espírito ao embate de tamanha comoção.
—Sim, Thiago, sim, é Venância,
fruto da minha infâmia, a filha do crime, a filha dum amigo traidor e duma
esposa miserável que não soube resistir á minha tentação! É Venância, a mulher
com quem te queres unir pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!...
E caiu redondamente para traz,
agitado nas convulsões da gota, da sua moléstia habitual, ao mesmo tempo que o
filho rolava sobre a rede de maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente
o livrou duma vida que daí em diante só poderia ser de tormentos e angustias indizíveis.
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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)
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