ALEGRIA GAULESA
A José Veríssimo
Enquanto esperávamos o
almoço,—aquele almoço ás pressas encomendado no mais que modesto hotel do
Pinheiro, fomos dar um passeio pela mata, sob a sombra das grandes arvores
copadas.
As senhoras haviam ficado na sala
do hotel, aguçando o apetite no bom cheiro de refogado, que lhes chegava da cozinha.
O meu companheiro de passeio era
um velhote de 50 anos, grande rosto quadrado, de longas suíças grisalhas em
faces tostadas pelo sol da América.
Traváramos conhecimento no
pequeno tombadilho da lancha que da cidade nos transportara ao Pinheiro.
Ainda não havia duas horas que
nos conhecíamos, e já grande familiaridade se estabelecera entre nós,—essa
familiaridade fácil, intima, passageira, das pessoas que viajam.
Estávamos ainda a bordo, e já o
meu simpático companheiro, sentado á amurada, contara-me ser francês, há muitos
anos residente na província do Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.
Sentia-me cada vez mais
impulsionado para aquele sujeito cuja existência eu ignorava algumas horas
antes, e que presentemente, por motivos que eu não tratava de saber, tão
vivamente me atraía a curiosidade.
Quando saltamos para terra,—enquanto
subíamos pela escada da ponte,—convidei-o para almoçar conosco, e ele aceitara
rindo,—com um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem duplicidade.
Fora ele quem me prepusera aquela
excursão á mata, para darmos tempo a que o hoteleiro preparasse a refeição, que
eu já previa frugal e triste, atendendo ás condições da terra em que nos achávamos.
Aceitei-lhe de boamente a
proposta, com aquela vivacidade alegre de quem vive meses inteiros encadeado ao
cepo do trabalho quotidiano e toma, de tempos a tempos, um belo dia para
descansar um pouco, em a paz duma povoação de arrabalde, refestelando-se
preguiçosamente na relva odorífera dos nossos grandes e soberbos matagais.
E fomos por ali fora, seguindo um
carreiro sinuoso, por baixo de farfalhante cúpula de ramos coloridos de um
verde-escuro admirável, cuja uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo
amarelo e pelo branco das varias flores silvestres, cujas pétalas encolhiam-se
um pouco, meio-fanadas pelos raios do sol.
Um forte vento refrigerante e
consolador vinha do norte, do lado por onde a vista se perdia no infinito, após
o rio que fugia para o mar. O cheiro acre da maresia andava no espaço, casado
ao perfume subtil e excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos
escuros e velhos galhos daquelas arvores seculares. Pássaros voavam céleres, num
brando ruflar de asas, soltando pequeninos gritos estrídulos e alegres. De
momento a momento, a curta distancia de nós, lagartos cinzentos ou verdes
fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo seco que juncava o solo. E lá
muito ao longe, no alto, sobre pedaços de céu de um azul deslavado, que nós entrevíamos
pelos interstícios das ramas, urubus recortavam-se muito negros, muito pacíficos
e espalmados, nos seus vôos arredondados, pairando como numa contemplação
enamorada da terra que os sustenta com suas putrefações, com seus resíduos
infames e nojentos.
De repente, o meu companheiro
disse-me:
—Sentemo-nos aqui. O sr. já deve
estar cansado desta longa caminhada.
Não tinha a mínima acentuação
estrangeira; falava como um verdadeiro paraense.
Alongara-se por cima de uma
camada de capim verde pouco espessa, de bruços, com o pescoço estendido e o
grande chapéu de palha do Chile a descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto,
defronte dele.
Ficamos calados por alguns
minutos.
Ele fitava o solo, com as narinas
palpitantes, como sorvendo em longos haustos sensuais aquele bom cheiro acre e silvestre
que a terra exalava.
Perguntei-lhe de repente, não
achando outra coisa a dizer-lhe:
—O sr. é casado?
Fitou-me bem na menina dos olhos,
com uma expressão investigadora de quem deseja conhecer o fundo do pensamento
de seu interlocutor. Depois respondeu:
—Não... Fui... Agora estou
novamente solteiro: sou viúvo.
—Ah!
—É verdade. Sou viúvo e tenho-me
dado muito bem neste novo estado de quem vive sem as preocupações do homem
casado, que tem uma família a sustentar. Bem tolo é quem se casa...
Calou-se, a mirar-se outra vez
nos meus olhos.
Um pequeno sorriso enigmático
frisava-lhe o lábio superior, traçando nas duas faces profundas rugas oblíquas que, nascendo das azas do nariz, partiam a perder-se nos longos fios grisalhos
da parte inferior das suíças.
Eu não compreendia bem o que
diziam aquelas palavras, assim sublinhadas por semelhante sorriso.
Ele pareceu-me haver adivinhado
a minha duvida, porque disse, apertando-me as costas da mão direita, como para
chamar para si toda a minha atenção:
—Está curioso, não? Quer talvez
saber quem seja esta velha ave de arribação que vive no seu país e que tanta
alegria traz sempre no coração, no rosto,—nos lábios e no olhar? É uma historia
muito longa a minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvi-la? Não
perderá nada com isso; pelo contrario, creio aproveitará alguma coisa com a
moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razão nos atos que
pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificará que é muito certo o rifão:
Tristezas não pagam dividas, e adquirirá a certeza de que, neste mundo, o
melhor meio de se gozar saúde e viver tranquillo, é ter o coração calmo como a bonança
e grande como a barriga do desembargador Delfino. Ora vire pra cá as ouças e
preste atenção.
Sentei-me. Ele fez o mesmo e
começou, sorrindo sempre:
—"Quando cheguei ao Brasil, trazia
algumas dezenas de contos de réis, herança de meu pai, morto quando eu era
menino. Estabeleci-me, achando logo um sócio que possuía capital equivalente ao
meu. Ganhamos rios de dinheiro, que o meu sócio conscienciosamente gastava,
esbanjava com uma espanhola reles e velhaca de um hotel da cidade.
"Um belo dia falimos,—por
causa dessas extraordinárias despesas capazes de desfalcarem os repletos cofres
de um Cresus. Cuida que apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido,
doente, desanimado, sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu
amigo! O meu espírito é refratário a tristezas,—o meu coração grande de mais
para fazer-se pequenino e mirrado por tão pouca cousa. Um ou dois contos de
réis que pude ganhar em certo negocio, após o naufrágio a que fora conduzido
pela doidice de meu sócio, empreguei-os em comprar algumas jóias de ouro falso,
em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso carregamento barato, segui
para o rio Madeira, afim de explorar em meu único proveito a ingênua
simplicidade dos seringueiros.
"Não me falharam os cálculos:
meses depois voltei ao Pará, e adquiri maior carregamento, que fui de novo
impingir ás remotas regiões do alto Madeira, onde os jacarés e onças
respeitaram-me sempre a delicada posição de inofensivo estrangeiro, que carece
de proteção, que não deve ser ofendido nunca em um país amigo!"
Calou-se. Em sua larga boca de
expressão franca e descuidosa estava o eterno sorriso zombeteiro, aquele
sorriso simpático, que me atraía para esse homem com toda a enorme força de um
robusto afeto nascente.
Acendeu um charuto e continuou:
—"Para encurtar
prolixidades: seis anos depois de nossa falência, eu regressava definitivamente
ao Pará, trazendo uma sólida fortuna amoedada em bons contos de réis palpáveis,
em notas do Tesouro, no fundo da mala. Tratei logo de cumprir as imposições de
um dever: paguei a todos os credores da massa falida, sem exceção de um só! Uma
dessas dividas da firma era uma anquinha,—uma anquinha!—que meu sócio havia
comprado para a sua Vênus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que
estabeleci-me pela segunda vez,—dessa feita sem sócio, para não mais ser
prejudicado por ninguém.
"Quis a sorte que eu me
apaixonasse por uma formosa rapariga paraense,—farta carnação morenamente
excitante e grandes quadris arredondados, divinos,—filha de um subdelegado de
policia. Casei-me com ela alguns meses depois de a ver. Não tinha educação, era
estúpida, mas possuía a convicção da beleza nas formas, a imponência da
sensualidade no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?
"Dois anos vivi eu nos
braços de uma felicidade ilimitada. Luíza a minha cativante mulher adorada, de
dia para dia ganhava um palmo em minha infinita afeição serôdia, e cada vez
mais revelava-me um esplendido segredo de sua magnífica beleza de crioula! Era
um delírio, uma loucura dulcíssima e purificadora, aquele amor que eu lhe
votava com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina
casa em que vivíamos era para mim uma Cápua desejada, onde a minha languidez
encontrava tranquillo bem estar, nos braços da sedutora Luíza O dia seguinte,
que para muitos é um enigma aterrador, apresentava-se-me franca e gostosamente
como a fiel reprodução inalterável da véspera e do dia presente. Horas
suavíssimas de um amor intenso e bom, como fostes amadas pela pieguice da ingenuidade
do meu espírito!"
Calou-se ainda, com o rosto
demudado em uma espiritualização prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal
sorriso irônico volveu a arregaçar-lhe a rubra ponta do lábio grosso e varonil.
E prosseguiu, após haver acendido
o charuto que se apagara:
—Eu tinha inteira confiança em Luíza Jamais a idéia de uma perfídia de sua parte me passara pelo tranquillo espírito
de marido que confia. Como poderiam enganar-me aqueles olhos tão belamente claros
e brilhantes, aquela boca de perfumosos lábios que davam beijos tão doces, tão
sensuais, tão irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O meu espírito
era o espelho onde se refletia o meu coração e onde eu supunha ver a alma de Luíza estava realmente a minha, a minha que em breve tinha de ser tão
rudemente ferida pelos fatos!
"É como lhe digo. Luíza era
um demônio, longe de ser um anjo, como eu a fantasiava na benevolência do meu
ilimitado amor. De imaginação criadora e ardente, apaixonara-se por um gordo
vaqueiro de Marajó, que viera á cidade, e um belo dia, quando, ao cair da
tarde, regressei a casa para jantar, não mais a vi: a safardana roubara-me todo
o dinheiro que eu tinha em casa e fugira com o sobredito cujo mencionado
vaqueiro, como vim logo a saber, por informações ministradas pela vizinhança,
com grande vergonha dos meus brios de homem robusto, completo, valente e, na
minha valiosa opinião, não de todo incapaz para o principal fim a que visava
aquela ardente mulher material e voluptuosa.
"E que pensa o senhor que eu
fiz para a castigar? Que a persegui com as leis do seu país em punho? Que fui buscá-la
ao meio dos touros de Marajó, onde, por certo, ela repousava, muito lânguida e
sensual, nos braços do ciclópico vaqueiro? Que expus á irrisão publica, ás
chufas da plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparável desonra do
meu nome? Nada disso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incomodar! Olhe, mandei-lhe
mesmo umas camisas e anáguas de que se esquecera com a precipitação da fuga!
Veja até que ponto fui complacente. Veja que santa bondade a minha!
"A desgraçada morreu um ano
depois, vítima de béri-béri; pois bem; para mostrar a Deus que não sou de todo
mau, mandei por alma de minha mulher rezar, na igreja do Carmo, uma triste
missa de réquiem, a que assisti com respeito e piedade."
Calou-se, sem uma comoção no
rosto ou na voz. Falava como se tratasse do tempo ou da cor do céu naquele
momento: com a máxima placidez. E logo o seu velhaco risinho sarcástico
saltou-lhe da boca e veio espreitar-me de sobre o lábio superior,—como se fosse
um depoimento vivo da tranquillidade daquela alma em face de todos os extraordinários
acontecimentos que por cima dela haviam passado, sem conseguirem emocioná-la.
O meu companheiro, o meu estranho
conviva, ergueu-se e, acenando-me para que acompanhasse-o, seguiu em direção ao
povoado, cantarolando esta pandega quadra do Dia e a Noite, de Lecocq:
Minha mulher, que Deus levou,
Foi-me infiel constantemente;
Nada d'isso me acabrunhou:
Levei o caso alegremente!
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Nota:
João Marques de Carvalho: "Contos Paraenses" (1889)
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