A SENSAÇÃO DO PASSADO
Estávamos a conversar no
gabinete de Jorge Praxedes. Era um fim de tarde prolongado por um lindo e
maravilhoso ocaso. Jorge oferecia chá em xícaras de porcelana da Pérsia; havia
largos divãs sonhadores entre as mesas atulhadas de bugigangas de arte, e
naturalmente, a atmosfera, o tabaco turco, o chá, tudo isso nos dava a lombeira97 das recordações e o desejo de fazer frases. Já
tínhamos falado do amor, da vertigem do tempo, do galope da existência e de
outras coisas novas.
— É curioso, disse um da
roda, nós os homens modernos não temos a sensação do passado, do não sentido,
do total alheamento que o passado devia dar. As dores, as alegrias, as modas
ficam na memória como coisas presentes que se afastaram. Para um homem que vive
a vida intensa não há propriamente passado, há um acumulador que não dá a impressão
especial do antigo, do acabado, do que
não volta mais e há muito tempo terminou.
— Paradoxo!
— É fato. Como homem as
minhas amantes mesmo mortas vivem todas na minha memória como se estivessem
ali, por trás do paravento98; como artista nunca me foi possível ter a
impressão do extinto diante de uma estátua grega, a ouvir um trecho de musica
clássica, a ver uma linda tela antiga.
Houve um prudente silêncio,
e todos olhavam prudentemente as janelas, quando o barão Belfort, que tocava um
pouco distante um vago Schumann num piano meio desafinado por falta de uso, exclamou:
— Como tem você razão! Os
grandes sentimentos e as grandes emoções são sempre os mesmos. Por isso, os
homens guardam na história o mesmo fenômeno de memória da sua vida interna,
lembram-se mais de fatos do tempo de infância do que do tempo de ontem. Como
artistas, neste torvelinho moderno em que a beleza desapareceu, só o que é
medíocre, muito medíocre, dá a sensação do passado, mesmo que seja de ontem.
Diante da Vitória de Samotrácia no Louvre é impossível deixar de ter o enebriamento
do triunfo diante daquele bloco de pedra ardente que parece arrastar as
embaterias99 da conquista, e anima os nossos nervos de hoje
como animaria os dos helenos. A vista da delicadeza pré-angelical de uma cabeça de
Murilo, o nosso amor pela beleza vibra como vibrava o dos contemporâneos do
grande artista. Que digo! Diante dos simples pedaços de pedra apanhados nas
escavações do Egito nós sentimos a vida porque eles sabiam reproduzir a feição
eterna da Vida. Um homem moderno não se admira do progresso porque o presente
não sente o passado porque o guarda no próprio plasma.
— Grande fantasista.
— Repito, só a
mediocridade, a “camelote”100 pode dar a sensação do bem velho, do velho quase
incompreensível para nós, do velho antipático, do velho repugnante, do passado
integral. E para isso bastam dois anos. Eu apalpo as opiniões, o afinamento
nervoso dos homens, nas pequenas coisas, nas emoções dos sentidos. Qual dos
senhores que amam perfumes sente a velhice da essência de rosas? É dos mais
velhos perfumes do mundo e é divino e sempre da nossa alma. Qual dos senhores
será capaz de usar, sem se sentir fora
da moda, fora do tempo, um perfume lançado por qualquer fabricante francês com grande espalhafato e grande êxito há
vinte anos, o “ Jockey Clube” por exemplo? Ao ouvir uma sinfonia de Mozart,
sentindo a cada passagem uma sugestão aos sentimentos eternos, ninguém achará essa
música velha. Ao ouvir uma valsa de 1870, cada um de vocês tratará de fugir...
A roda riu desabaladamente.
O barão, levantou-se do piano, um pouco animado.
— Mas é um fato. Só as
coisas absolutamente insignificantes dão a sensação do passado. Eu já tive essa
sensação, não solitariamente, como me aconteceria cheirando um frasco de
perfume da ex-moda, mas num salão de baile, num dia de baile. E até jamais
esquecerei a sensação porque vi, olhei, encarei e sofri o miserável passado com
toda a sua imensa insignificância.
Como André de Belfort
contava sempre coisas interessantes, os cavalheiros presentes aguçaram a
atenção.
— Nunca pensei, meus
amigos, que fosse tão simples e tão doloroso. Eu que saía dos museus de indumentária
da Idade Média com ensinamento de arte e a alma renascida, eu que vibrara
diante dos frescos de Botticeli como diante da revelação para o futuro, fiquei
aniquilado.
Há cerca de três anos, fui
convidado para um baile nas Laranjeiras. Não era um sarau super-elegante,
absolutamente fashion... Aqueles senhores dançavam ao som de um piano.
Havia, entretanto, casacas, algumas notabilidades literárias e científicas
arrumadas na saleta de fumar, um farto serviço de buffet, a elegância
das mulheres, das moças vestidas de tecidos leves, a adejar a gracilidade suave
dos gestos. O dono da casa recebeu-me com as reverências com que receberia um
bonzo. As moças olharam-me curiosamente, os valsistas ergueram os olhos, as
matronas indagaram o meu nome e eu fui conduzido ao fumoir, onde
murchavam cinco ou seis glórias urbanas. Nesta sala estava o piano, o piano
torturador. Um mulato de pastinhas101, com os colarinhos altíssimos
e o jeito pernóstico de levantar o dedo mínimo onde fuzilava um solitário,
dirigia a caravana das notas, radiante como um deus e suado como uma caldeira.
De vez em quando, chegavam rapazes com vozes súplices:
— Firmino, agora, aquela
tua polca.
— Qual delas? interrogava o
pianista com a fronte de orango camarinhada de suor.
— Aquela muito bonita,
aquela mole...
E, ali mesmo, baixinho,
trauteavam compassos.
— Tocas?
— Pois não.
Por esta apreensibilidade
de motivos musicais, percebi estar diante de um desses pianistas da moda,
peculiares à nossa sociedade, homenzinhos que vivem de escrever, com alguns
erros e muitas aclamações, polcas, valsas e outros sons dançantes. Os jornais
anunciavam mensalmente, havia dois anos, novas composições suas, e, como um
decreto, o seu nome .triunfava nos salões modestos.
A vaidade enlouquecera-o
quase. O Firmino tinha a certeza de estar no galarim102 e, tocando, acompanhava com os ombros e a
cabeça o balanço langoroso dos compassos, de olho aberto, beiço revirado, tal
qual um gênio inebriado com a própria revelação.
Talvez o fosse. Há gênios
para tudo.
Eu ficara depositado numa rocking103 ,ouvindo
o Firmino e um velho químico, professor de Faculdade, o dr. Hortêncio Guedes. O
dr. Hortêncio falava mal do próximo, de modo que o Firmino não me escapava,
dada a minha natural reserva de responder com monossílabos quando se ataca a
vida alheia.
O pianista era, de resto,
curiosíssimo. À roda do piano havia três ou quatro indivíduos hipnotizados pela
sua virtuosidade. De vez em quando, um rancho de moças, escoltadas por
cavalheiros, invadia a saleta para lhe fazer o pedido de uma composição
comovente, e o Firmino logo esticava mais os dedos, erguia a cabeça ao teto,
fingindo-se em pleno sonho, para ter um sobressalto, curvar-se, dizer:
— Minhas senhoras...
Então, todas falavam a um
tempo
-— Firmino, toca a Estrela
d’alva.
— Não! Antes a Irresistível...
— Silêncio! Firmino, mlle.
Abigail deseja aquela tua valsa... aquela muito dançante. Como se chama, mlle.?
— Lolita.
— É isso, a Lolita.
O pianista lambia os
beiços.
— Ah! v. exa. gosta da Lolita
? Um poucochinho velha, tem seis meses.
— Mas é tão bonita!
— Muito obrigado.
E, mais suado, com o lenço
entre o pescoço e o colarinho a desabar, o pianista sacudia no piano os
saracoteios da valsa. Não sei, meus senhores, qual a vossa impressão ouvindo
esse gênero musical. Eu, francamente, sentia-me moço, com vontade de dar à
perna, tamborilando nos braços da cadeira, gostando. Aqueles sons eram do meu
tempo.
De repente, porém, quando o
relógio batia uma hora, o Firmino parou bruscamente, pôs a mão no queixo.
— Não posso mais!
Logo acudiram rapazes, o
dono da casa, senhoras. Era a desgraça. A nevralgia, a terrível nevralgia do
Firmino rebentara. A notabilidade passava o lenço da fronte ao queixo numa
ânsia raivosa. Havia dor de dentes e, principalmente, a dor de não poder
continuar a ser o ídolo do grupo. As meninas, cheias de carinho, já tinham ido
buscar cocaína, um palito, algodão; um dançarino trouxera o espelhinho do toucador:
— Põe isso, Firmino, a ver
se passa.
— Qual! não passa...
chorava o artista. E, subitamente, desapareceu da sala, arrastando os dançarinos.
Durante dez minutos o dr.
Hortêncio tomou sorvete e absorveu as atenções. Eu já estava enfastiado, quando
o anfitrião surgiu:
— Ora esta! E que tal,
hein? Uma festa que ia correndo tão bem! Logo hoje o sr. Firmino dá para ter
dores de dentes. Estraga-me a noite!
Atrás do anfitrião vinham a
pouco e pouco surgindo os convidados e o interesse de gozar a noite aumentava o
ódio contra o pianista, como se ele tivesse a nevralgia só para os desgostar.
Aquilo não passa! É um mulato de maus dentes! E agora? Sim, e agora? Que se há
de fazer? D. Julieta toca? D. Julieta era tímida e ainda estava estudando.
Ninguém tocava, ninguém sabia o que fazer? E tudo por causa desse Firmino...
Um dos rapazes, que usava
lunetas e parecia muito brincalhão, propôs o suicídio geral, um holocausto a
Terpsychore104 e, para dar o exemplo, atirou-se à janela. Mas
voltou de lá, em pontas de pé, a face feliz, pedindo silêncio
— Meus senhores, está tudo
resolvido. Descobri um pianista! Agarrei o impossível!
Todos, num ímpeto,
indagaram onde o guardava
— Ali, em baixo, na rua,
vendo o baile. É o Prates. O Prates, há vinte e cinco anos, era o Firmino de
hoje. Morreu-lhe a mulher, foi para uma fazenda, não sei. O fato é que, quando
voltou, já outros lhe tinham tomado o lugar. O Prates anda por aí furioso
contra os rivais, e passa as noites assistindo aos bailes como convidado do
sereno. Não perdeu o hábito, coitado! Era a sua atmosfera... De manhã lê os cumprimentos
dos jornais e à noite espia os saraus. Original. Lá está ele. É aquele
gorducho, de cavaignac branco, com um ar de agente de polícia aposentado.
— Que romântico! fez o Dr.
Hortêncio, e todos nós fomos à janela, sutilmente, espiar a rua negra, onde,
com um cavaignac branco estava o caso esquisito.
O mocinho indagou do
anfitrião:
— V. ex. permite que o vá
chamar?
— Sei lá! se os senhores
quiserem.
— É velho, clamou alguém.
— Que tem isso? indagou
facundamente105 o Dr. Hortêncio. Então, se ali embaixo
estivessem Beethoven, Schumann, Mozart ou outros luminares da música, nós não
os deixaríamos entrar!
Aquele argumento pareceu
decisivo, apesar de estarmos convencidos de que se Beethoven e os outros
luminares aparecessem, teriam que ficar na calçada e sem abrigo.
O jovem partira,
entretanto, e minutos depois entrava na sala conduzindo um homem ventrudo que
tinha um cavaignac de bode branco e rolava o chapéu nas mãos.
— Meus senhores, o pianista
Prates, que teve a bondade de aceitar o nosso convite.
— Eu passava na ocasião,
murmurava o homem, achei linda a festa...
Um bando de dançarinos já o
envolvia, oferecendo-lhe licores, tirando-lhe o chapéu, sentando-o ao piano.
— Vai tocar alguma coisa?
— Quem estava aqui?
— Nós todos.
— Pareceu-me ouvir as
composições do Sr. Firmino... Abancou, correu uma escala do piano. Hein? Que
era aquilo? Era uma outra escala, uma escala estranha.
— Bem, vou tocar uma valsa.
— Bem moderna, Sr. Prates;
uma valsa dançante.
— Sim, sim...
Os pares voltaram todos ao
salão. Prates pareceu recordar; atacou um acorde, depois outro, e os primeiros
compassos ecoaram. Um vago mal estar pareceu, de repente, estreitar a sala. Que
coisas cômicas, que coisas grotescas, que coisas estúpidas, essas notas de
piano sugestionavam à gente!... A sensação do passado enraivece sempre. Os
convidados estavam irritados como se fossem recebendo uma longa humilhação. Eu
tinha vontade de rir e ao mesmo tempo de destruir, de quebrar o piano. Na sala,
as meninas largaram os pares desanimadas; moças nervosas sentavam-se aos cantos
e era uma crescente exclamação de desprazer.
— Qual ! Não é possível!
Ninguém compreende isso! Pára! Afinal, um, mais ousado, aproximou-se do piano:
— Ó Prates, toca qualquer
coisa de mais novo.
Uma voz rouca respondeu:
— Hein? não estão gostando?
— Muito, não. Vê se nos dá
a Valse Bleu.
— A Bleu? Ah! Essa
não conheço. Parou, fitou um instante a parede fronteira, correu a mão pelo
teclado:
— Vou tocar um dos meus
sucessos.
Eu olhava-o como se olha um
monstro, um trambolho que é preciso destruir e ele estatelava nas sete oitavas
uma espécie de belchior melódico, tendo tudo, desde o Seu soldado não me
prenda até os compassos do tempo em que o Furtado Coelho intitulava
as valsas de homenagens e as meninas dançavam a Flor de neve, a Flor
de baile, a Feíticeirinha e a Varsoviana.
Eu nunca vira coisa tão
assustadoramente horrenda. Era como se, de súbito, saltasse ao salão uma velha
horrível, remexendo molemente as pernas bambas. A mixórdia espoucava como um
rebate devastador. Os tais sons dançantes eram impossíveis de dançar. Por mais
desejos, por mais esforços que fizessem os dançarinos hábeis no “ boston” e nas
“ americanas” , eram incapazes de fazer duas voltas sem errar, sem se
encontrarem, sem desanimar. Dançar com aquela música tornava-se um tormento superior
para os mais alegres. E ele, feliz, com o cavaignac pendente, num gozo
infinito, corria os dedos, evocando recordações, o Prates de outrora, que
dirigia os salões, o Prates querido, o Prates animado no turbilhão das valsas,
enquanto cada um de nós sentia o acostar de um espectro, o esmagamento com o
dia de ontem, uma impressão de bolor, de umidade, de ridículo...
No salão o gás silvava só,
e as janelas abriam num largo bocejo para a escuridão da noite. O pianista
chegava ao fim em dificuldades, de mãos cruzadas no teclado, empinando o cavaignac,
glorioso, ébrio de satisfação. De repente, parou, olhou para todos os lados,
sem ver, limpou o suor das fontes, abriu a boca num sorriso alvar.
Não havia ninguém.
Já muita vez, com certeza,
lhe acontecera aquilo, na sua peregrinação melancólica.
Prates ergueu-se pálido,
tão pálido que eu pensei vê-lo cair com uma vertigem; pegou do chapéu, apertou
o lenço na boca barbuda, como afogando um soluço e saiu vagarosamente. Dentro
batiam os cristas da ceia...
Foi esta a única vez que eu
tive a sensação do passado.
Notas:
97 - Moleza. Sonolência.
Notas:
97 - Moleza. Sonolência.
98 - Biombos.
99 - Esbarrão. Encontro
violento ou brusco entre dois objetos. Choque.
100 -Bugiganga.
Quinquilharia. Mercadoria de baixa qualidade. Em francês no texto.
101 - Penteado em que o
cabelo forma uma ou mais ondas sobre a testa.
102 - O ponto mais alto.
Pináculo.
103 - Abreviação de rocking
chair (cadeira de balanço). Em inglês no texto.104 - Musa da dança na
mitologia greco-romana.
105 - Eloquentemente.
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Nota:João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
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