
Naquele hotel da rua do
Catete havia uma sociedade heteróclita mas toda bem colocada. O proprietário
orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o
ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de
revista, com o seu cachorro, mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em
diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante
tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o
engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável
trágica Zulmira Simões em conclusão da sua última peregrinação provincial em
companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras
ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto,
o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é,
servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de
duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.
Ao almoço era curioso ver
toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns,
entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz
baça de recanto submarino. Parecia um aquário. A mim pelo menos. As atrizes
tomavam ares graves de peixes evoluindo cerimoniosamente no fundo d’água para
cumprimentar as damas sem palco; os homens eram reservadíssimos. Tudo aquilo
mastigava calado, cada um na sua mesa, batendo o talher. Só quando havia
hóspede novo é que surgiam frases breves.
— Quem é?
— O deputado Gomensoro.
— Ah!
Sempre grandes nomes, gente
importante, um complexo armorial de celebridades funcionárias e de titulares
empastilhados. E à noite, no saguão de entrada, saguão de mármore que o gerente
forrara de velha tapeçaria e guarnecera de um indizível mobiliário hesitante
entre o estilo otomano, os belchiores106 e o confortável inglês, podia-se ver os
representantes de todas as classes sociais desde a diplomacia até o trololó107.
Precisamente tínhamos mais
dois hóspedes, o velho ministro do Supremo, Melchior, e seu sobrinho Raul
Pontes, rapaz elegante, vivaz, espirituoso, com vinte anos irresistíveis. Todos
no hotel respeitavam Melchior e gostavam do Raul, e ainda ninguém esquecera a
sua verve quando o deputado Gomensoro, depois de apertar-lhe a mão, dera por
falta do relógio. Onde se fora o relógio? No bonde? Roubado? Saíra Gomensoro
com ele? O Dr. Raul Pontes ria a bom rir. O relógio evaporara-se decerto. Era o
calor. E ficou muito bem aquele estouvamento, tanto mais quanto o velho
Melchior, representante da justiça, mostrava-se incomodado.
No dia seguinte, ao
vestir-me para o almoço, lembrei que na minha gravata creme ficava bem um
alfinete de turmalina azul com brilhantes do Cabo, linda jóia e lindo presente.
Abri a gaveta onde o deixara à noite. Não estava lá. Abri outras gavetas,
procurei, remexi malas e bolsas. O alfinete desaparecera. Quis descer, prevenir
o gerente. Mas contive-me. Podia tê-lo atirado para qualquer canto. Quando se
quer achar um objeto, a gente está vendo-o e é como se não o visse. Depois uma
queixa sem provas contra o criado acirra a má vontade. Menos talvez que as
queixas com provas, mas sempre o bastante para sermos mal servidos. Eu sou
prudente. Três ou quatro dias depois, no saguão, o senador Gomes, que só tinha
livros e roupas velhas no seu aposento, perguntou-me de repente:
— Você tem um alfinete de
turmalina azul, não?
Além de prudente, sou
inteligente. Porque diabo naquele distinto hotel, o senador indagava de um
alfinete desaparecido? Tê-lo-ia apanhado por farsa? Era pouco próprio para o
alto cargo legislativo, mas para mim uma confiança simpática. fez-me o efeito
de um piparote no ventre. Respondi:
— Tenho sim. Porque
pergunta? Ainda hoje saí com ele.....
Gomes travara com a genial
Zulmira Simões, oráculo teatral de aquém e de além mar, uma discussão superior
sobre Calderon de la Barca, a quem, aliás, ambos imputavam várias peças de Lope
de Vega. Em tão elevada esfera da dramaturgia espanhola, Gomes não respondeu à
minha pergunta, e eu que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá,
encontrei no corredor apenas o velho Melchior meio abatido, fechei a porta por
dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie108 de
prata. Coisa estúpida afinal!
O gatuno — porque era o
gatuno, não havia dúvida, — o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha
carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que
aquilo estava ali porque ele voltaria. Que fazer? Prevenir o proprietário? Mas
eu estava num hotel tão distinto! Era pouco correto e estabeleceria o
desequilíbrio na confiança geral. Não! seria melhor esperar.
No dia seguinte, como
voltasse de ouvir o d. Cesar de Bazan com Zulmira Simões e o brumeliano109 de Sousa, enquanto de Sousa subia à frente, a
atriz murmurou:
— Ah! meu amigo, este hotel tem casos curiosos... Sabe que
fui roubada?
— Sério?
— Sim. O objeto tinha um
valor todo estimativo, era um berloque que me dera o Raimundo logo no começo da
nossa ligação. Não lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a
única. O dr. Pontes foi também roubado no seu “porte-monnaie”.
— Como eu!
— O Sr. também? Mas estamos
na caverna de Ali-Babá.
Horas depois felizmente
rebentava o escândalo. Pela manhã, mme de Santarém dera queixa por lhe terem
roubado um face à main de madrepérola com incrustações de ouro sob
desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado
Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapos — dois, três
por dia. Antônio saiu protestando, furioso. Falou até de processo por perdas e
danos. Era um ladrão cínico. E durante o almoço a conversa generalizou-se.
Ninguém escapara. O que acontecera comigo acontecera com de Sousa, com o barão
de Somerino, com o negociante tuberculoso, com o ex-vice-presidente da
ex-missão do México, com a estrela revisteira, com o dr. Melchior. Todos tinham
sido roubados e confessavam por desabafar. Havia até mesmo recordações. O dr.
Pontes, o nosso caro Raul, indagava da genial Simões:
— V. ex. andava à cata do
ladrão naquele dia em que a encontrei no corredor?
— Não; ainda não sabia.
Tive apenas um pressentimento. Acho que deviam prender o homem.
— Mas não há provas!
exclamava mme de Santarém. Não encontraram nada! Era esperto. No dia em que
desapareceu o meu face à main, não saí do quarto.
— Roubos excepcionais...
— Estamos no domínio dos
ladrões geniais. Precisamos de um grande agente dedutivo para resolver o
crime...
— E prender o Antônio
copeiro? Ora para ladrões desse gênero basta a nossa polícia! Aliás o tal
Antônio gatuno parecia mais um doente. O homem afinal não tirara nunca
dinheiro, e as argolas de guardanapos do hotel eram lastimáveis como valores.
Mas, fosse gatuno genial ou doente, Antônio partira e a confiança renascia.
Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, mme de Santarém e a atriz
Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório,
uma o seu face à main, outra o seu berloque.
É uma aventura! É um caso
de diabolismo! sentenciava o negociante tuberculoso.
O hotel convulsionava-se.
Só o senador Gomes resmungou.
— Que besta!
E aquela frase dita
tristemente preocupou-me. No fundo, porém, o sujo e ilustre homem tinha razão.
O gatuno, ou o sportsman
da ladroeira não era Antônio, era outro, existia, anunciava a sua presença,
estava ali, ao nosso lado. Audácia? Loucura? Estupidez? No dia seguinte deu-se
por falta do colar de ouro com pedras finas da atriz Simões, os brincos da
mulher do tuberculoso sumiram-se. Foi o terror. Os hóspedes trancavam o quarto
e saíam levando os valores no bolso, mesmo para almoçar. A limpeza era feita na
presença dos respectivos locatários. Já ninguém se falava direito, já ninguém conversava.
Havia entre nós um ladrão. Um ladrão! O medo prendia as senhoras aos quartos.
Ninguém saía sem necessidade
urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes;
tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna
ferocíssima; os criados serviam, coitados! com uma humildade dolorosa, temendo a
suspeita, o ex-vice-presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao
chefe de polícia, em varejar os quartos.
— Pelo amor de Deus! gemia
o proprietário.
— É outra tolice,
acrescentava Gomes. Nós temos aqui gente respeitável.
— Pois está claro! dizia
logo mme de Santarém, divorciada pela quarta vez.
E apesar da vigilância,
continuarem a desaparecer objetos. Não era possível! Ou sair, ou dar queixa à
polícia.
Uma vez encontrei na cidade
Melchior e Pontes, acompanhando mme de Santarém a uma confeitaria. Eram duas horas
da tarde. Voltei à pensão. Por uma coincidência, morava no mesmo corredor que essas
três pessoas, mesmo pegado ao senador Gomes. Estava a despir-me, quando senti
passos abafados. Abri a porta devagar. Era o alegre e sempre espirituoso
Pontes. Vinha para o seu quarto. Mas não. Parou no quarto de mme de Santarém,
experimentou uma chave, torceu, entrou. Oh! a imoralidade dos hotéis honestos!
O felizardo ia gozar as delicias de um aprés-midi amoroso com a
honestíssima senhora! Pouco depois, porém, ouvi um leve rumor, espiei de novo.
Era Pontes, com o ar mais natural, que fechava o quarto e andava ligeiro. Quis
fazer-lhe uma pilhéria, gritar; — ah maganão! ou outra parvoíce qualquer —
porque eu sou de natural pândego. Mas deixei para o jantar, recolhi. E no
jantar mme de Santarém, que chegara momentos antes, apareceu transmudada:
tinham-lhe roubado o broche de rubis.
Estávamos todos no salão e
sustiveram-se todos num pasmo raivoso, quando a gentil senhora bradou:
— Acabam de roubar o meu
broche de rubis! Mais um!
Os meus olhos cravaram-se
no dr. Pontes. Tinha o mesmo pasmo dos outros, o mesmo ar, o mesmo olhar.
Uma idéia atravessou-me o
espirito. Era ele o gatuno! Não havia dúvida. Era agarra-lo ali, logo... Mas se
fosse apenas o amante? Afinal era um homem que devia respeitar a família e o
tio! As provas eram contra ele, absolutamente contra. No hotel ninguém poderia
lembrar-se de sair depois daqueles roubos. A situação precisava ficar clara. Eu
cometeria um escândalo, diria ali que o vira entrar no quarto de mme de
Santarém e as explicações viriam depois.
Ia falar, ia contar tudo,
quando senti que pesavam em mim os dois olhos do senador Gomes, enquanto este,
balançando a cabeça, balançando a faca entre os dedos, parecia por todos os
modos pedir-me para não dizer nada. Gomes sabia! Desde o dia em que falara do
meu alfinete! Contive-me. Mesmo porque entravam a Pepita, mais o seu cachorro,
ambos desesperados com o desaparecimento de um anel marquise, admirável,
segundo a opinião da estrela.
O engenheiro Pereira
ergueu-se.
— Gerente! Não fico mais um
dia no seu hotel. A situação é delicada para o primeiro que sair do ergástulo110, mas
eu arrosto-a. Tenho família, tenho uma esposa nervosa e tenho valores. Sou o
engenheiro Salústio Pereira. As minhas malas passam pelo seu balcão, para o
exame. Tire-me a conta...
O diplomata, que,
entretanto, devia cinco semanas, teve um esforço:
— Eu também saio.
Os outros ficaram quietos,
incapazes, mas com grande admiração minha, o dr. Pontes falou:
— Vivemos nesta aflição há
já algum tempo. Há um gatuno aqui, ou um gatuno de fora que possui a chave.
— É isso, a chave...,
atalhei eu.
— Mas apesar do mútuo
respeito que nos devemos, a desconfiança existe. Ora, eu já pensei mal de meu
tio. Proponho, pois, que ao sair daqui, façamos uma passeata pelo hotel,
entrando e varejando todos os quartos. Serve?
— Eu tinha acabado de
sorver o café e admirei Pontes : ou um gatuno esplêndido ou um inocente. Em
compensação, o senador Gomes olhava a porta absolutamente pálido. Que se iria
passar?
— Serve? tornou a dizer
Pontes.
— Mas está claro, fez o
Gomes. Partimos todos para a passeata lá da entrada. É o meio alegre de acabar
com uma pressão séria.
— Apoiado ! Este Pontes
sempre o mesmo!
Mas Gomes erguia-se no
rumor das exclamações. Ergui-me, alcancei-o no corredor. Estávamos sós.
Sussurrei-lhe:
— O gatuno é ele. Vi-o
entrar no quarto da Santarém...
— Não é.
— Então quem é?
— Não sei.
— É impossível negar mais
tempo. Ou o senhor diz-me ou eu explico tudo em público. Só o muito respeito...
Gomes teve um gesto
alucinado, junto à escada que dava para os aposentos superiores.
— Nada de palavras inúteis.
Jura segredo?
— É um crime.
— Jura?
— Juro.
— Pois salvemos uma pobre mulher, salvemos uma desvairada,
meu amigo, salve-mo-la! Não pergunte
porque.. Amo-a como pai, como amante, como quiser.
É ela que rouba, é ela. Não
há meio de impedir. Vou manda-la embora e ao mesmo tempo tremo de vê-la no
cárcere. É louca. Neste momento mesmo estamos à mercê da sorte e do disparate
do Pontes, a quem eu devia odiar. Mas vamos salva-la. É preciso salva-la. Tudo
será restituído. Já tenho feito isso. Psiu ! Esconda-se, esconda-se. Aí,
debaixo da escada. Não a veja, não a veja...
Alguém descia a escada
sutilmente. Escondi-me com o coração batendo, enquanto Gomes amparava-se ao
corrimão. O silêncio parecia aumentar a vastidão da escada. A voz do Gomes
indagou:
— Tudo?
— Sim, meu medroso, sim, eu
tinha tudo junto. Toma. E agora, até...
O vulto passou para o
saguão de entrada. Da sala de jantar vinham vindo os hóspedes, excitados com
aquela investigação policial aos quartos. Trêmulo, lívido, Gomes meteu-me na
mão um embrulho, enquanto empurrava nas vastas algibeiras da sobrecasaca e da
calça outros pequenos rolos, a dizer:
— Amanhã, restituiremos
pelo correio, amanhã saem muitos. Sê bom, salva-a!
Era atroz, era trágico, era
ridículo ver aquele homem ilustre e honesto a guardar os roubos de uma
cleptômana satânica e era estúpido o que eu fazia! Mas irresistível.
Fosse quem fosse essa
gatuna inteligente, era de uma ousadia, de um plano, de uma afliteza, de um
egoísmo diabolicamente esplendidos. Estiquei o pescoço na ânsia da curiosidade,
a saber quem era, a ver quem podia ser no hotel tão cheio de hóspedes, aquela
de que me fazia cúmplice, aquela que misteriosamente, impalpavelmente, durante
um mês, trouxera ao hotel atmosfera de dúvida, de crime, de infâmia. E,
contendo um grito de pasmo, vi mme de Santarém entrar no saguão sorridente e
calma.
Notas:
106 - Comerciante de objetos usados.
106 - Comerciante de objetos usados.
107 - Referente ao teatro
do gênero alegre. A expressão vem da notória Companhia Trololó.
108 - Porta-moedas. Em
francês no texto.
109 - Referente a George
Bryan Brummel (1778-1840), célebre dândi inglês, favorito do rei Jorge IV, um
dos parâmetros da elegância masculina.
110 - Cárcere. Prisão.
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Nota:João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
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