A NOIVA DO SOM
Estávamos na sala malva, a
sala das recepções íntimas, das conversas leves em torno da mesa do chá. Mme de
Sousa, linda no seu “ teagown”95 cor
de pêssego, posava entre a trêfega mme Werneck e a sisuda viscondessa de Santa
Maria, e nós, eu e o barão Belfort, já tínhamos esgotado o ataque à música
italiana, quando mme Werneck deu conta da sua última descoberta:
— O barão está triste.
— Triste por isso? O barão,
o homem sem emoções, triste porque acaba de fazer a coisa mais banal desta
vida, entre pessoas de sociedade!
— Não é propriamente por
isso. Estou triste porque vi enterrar a última mocinha romântica deste agudo
começo de século. Se lhes contasse a história da pobre Carlota Paes, ficavam
para aí todos a chorar, e antes de tudo, nesta hora agradável, nunca me
perdoariam ter envermelhecido os lindos olhos de mme Werneck.
— Mas, pelo que vejo, a sua
história tem a propriedade do dilúvio! fez asperamente a viscondessa.
— Conte-nos isso, barão,
disse mme Werneck; com a sua história contemporânea do dilúvio faremos
decididamente coleção de antiguidades sisudas.
Houve um aproximar de
cadeiras. O barão bebeu um gole de chá.
— Não conheceram a Carlota
Paes? Pois a pobre Carlota Paes, coitada! já com um começo de tísica e um perfil
romântico, dava mesmo pena, à noite, no parapeito da janela, muito branca, como
desmaiada. Ninguém lhe sabia da vida, e vendo-a assim, à janela daquela velha
casa, todos a deploravam. Quando a Carlota atravessava a brutalidade do bairro
pobre, com a apagada dor dos humildes aristocratas, trazia no rosto um tal
desgosto que era por quantos a conheciam um só lastimar. Também saía apenas
para acompanhar a mãe, uma senhora escalavrada e roída como um vaso antigo,
para acompanhar com o seu passo de visão a pobre velha carregada de pesadas
costuras. Fôra assim desde nascida! Olhava os pobres e os parentes como se
guardasse na alma a recordação de um mundo melhor, alheava-se deles, e quando a
viam recolher ao sobrado em ruína, já todos tinham a certeza de vê-la aparecer
à janela, muito loura, e muito branca.
Que fazia ela, assim, por
longas horas, alheia à rua, olhando o céu, como um personagem de romance?
Coitada! Era o único meio de esquecer a miséria da casa, a miséria que embota a
alma e engrossa as delicadezas. Carlota ficava ali, numas atitudes serenas de pássaro
triste, com o olhar cravado no infinito, e toda a suavidade sensitiva, quebrada
pela incompreensão dos outros, mucilaginava96 uma dolorosa expectativa.
Parecia um tipo de lenda à
espera da fada que o fosse salvar do bairro escuro e daquela pobre senhora
sempre a trabalhar e sempre de preto.
Como estão a ver, era uma
menina romântica, e que romantismo, minhas senhoras! Até eu cheguei a
admira-la. Tossia mais, estava diáfana, parecia uma ninfa virada em anjo da
saudade — porque, decerto, quem lhe visse o olhar e os irresolutos gestos,
julga-la-ia perdida de um paraíso artificial. Não lhe pude saber a origem desse
esquisito feitio, e certa vez que lhe levava
“bombons” e lhe falei em paixão, ela teve um gesto tal, que me esfriou a
alma. Também, como sumida da realidade, nunca ninguém a tinha visto à janela
baixar o seu severo perfil às vulgaridades do namoro.
Esperava, nada via, e com a
sua ansiedade, assim ficava até tarde, muito branca e muito loura, olhando o
céu.
Uma vez, no mês de junho, a
Carlota estava a chorar, nem sabia bem porque, diante da álgida luz do luar,
quando na casa junto, o harpejo brusco e sonoro de um piano sobressaltou-a. Do
outro lado lentas espirais melódicas espraiavam-se, envolviam-na. Era, num
turbilhão contínuo de notas, de expressões subitâneas e diversas, a expressão
persistente, torturante do desejo que não se termina e se preludia, do amor
cuja volúpia jamais alcança o paroxismo. Ela ficou presa, estarrecida. Quem seria?
Nunca ouvira aquilo, nunca sentira os nervos tocados daquele brusco quebranto,
daquele epidérmico encanto do som, exprimindo o inexprimível. Os sons, como
carícias de rosas, iam a pouco e pouco desfibrando-a, envolvendo-lhe a alma,
machucando-a. toda ela palpitava agora com uma tremura de folha ao vento. Teria
chegado a felicidade, o impalpável prazer até então vedado? Aconchegou-se mais ao
xale, com um arrepio de gozo que lhe subia pelos braços e lentamente se
irradiava pela nuca.
Do outro lado a música,
velada, num resumo de mil emoções, esboçava paisagens sutis e esfumadas,
desfiava risos perlados, cavava-se em soturnas mágoas, e como se a vida
extra-humana fosse um só gemido de amor, toda ela espiralava tormentosos
queixumes, endechas dolorosas, perdidos soluços de paixão. Para os grandes
sensuais só ha um gozo integral que exprimia a ânsia de acabar e a fraqueza humana
— o som, a vibração de uma corda na lamentável evocação de vidas que se não
realizam.
Para que o sentir da pobre
criança fosse mais intenso, no espaço, as estrelas palpitavam e a luz do luar
lustrando as casas com o seu misericordioso brilho, entrava pela janela num
retângulo de ouro que parecia milagre. Oh! nunca a doce Carlota se sentira tão
emocionada, ela que sempre vivera na expectativa do bem!
Essa noite passou-a à
janela até muito depois do piano calar, ouvindo-lhe o último som perdido na
cinza avelhada do luar, e desde então andava o dia à escuta e toda a noite
passava, em que o oculto pianista tocava, presa ao parapeito, entre a luz dos
astros e os sons misteriosos. Nós já ríamos da paixão.
— Então a Carlota?
— Ai! meu senhor, continua
a viver dos sons, está de todo virada!
E quando eu lhe levava
alguma coisa:
— Então a sra. d. Carlota
sempre com os sons?
Ela pendia na cadeira
sussurrando
— É tão bom!
Aqueles sons, como um
rosário sem fim, que se desfiasse, iniciavam-na numa religião de amor desencarnado,
e quando qualquer dificuldade emperrava do outro lado a mão do tocador, a
Carlota sentia uma agonia como se hesitasse em compreender todo o alcance
pecaminoso da frase. Vinha-lhe às vezes a curiosidade de saber quem era esse
tocador. Passava os dias à espreita; a casa ao lado, uma pensão, não lhe
deixava adivinhar, entre as muitas pessoas que entravam, o artista estranho da
noite. Perguntou à mãe se a informavam e a velha senhora respondeu que não
sabia, que não era possível saber.
Bruscamente, então, perdeu
esse desejo. Conhece-lo para que? Bastava a delícia de ouvi-lo, bastava a
inconsútil paixão que a rojava a seus pés! E perdia totalmente as noites, essas
noites de agosto, traidoramente frias, em que a luz brilha mais, há mais
perfume no ar e as brumas, ao longe, parecem sudários consoladores. Era um
inebriamento até ao romper da alva. No fim, quase se arras- tando, ia para o
peitoril, como para uma tortura e do outro lado, a música inquisidora
amortalhava-a desabridamente no delirante tropel do amor!
Ah! o gozo do som! Os seus
nervos sensíveis chegavam ao pranto, ao soluço, ao sorriso, como hipnotizados.
Cada nota já lhe exprimia um sentimento; os trechos repetidos pelo artista ela
os seguia, adivinhando acordes, adivinhando sons, como se fizesse o exame da
sua alma de amorosa, e de cada vez, mais maravilhada ficava, bebendo a pleno
trago o delírio, a morte, o êxtase da música encantada. Decerto, ninguém,
ninguém no mundo amava, sentia-se ainda com esse sagrado e impalpável amor. Encostava-se
ao parapeito, esperava e era sempre com um susto que, de repente, ouvia
abrir-se uma escala, como acordando o piano, e as duas vibrações de bordão,
dois acordes de contrabaixo, pesados e sonoros. Depois, um som subia, outro
respondia, o aviário se encadeava num trinado. Muita vez, o pianista que fundia
a alma com as notas, tocava várias árias simples, com um ar velho, como se os séculos
todos chorassem a vida; de outras, eram trechos modernos, trançando no ar uma
flora bizarra de nervosos acordes e era então uma revoada de dores, ais sem
fim, queixas em harpejos arquejados, rugidos rubros de ciúme, em que o piano
parecia abalado e a musica estrebuchava....
Nos últimos dias, a coitada
ardia em febre, plenamente fora do mundo, gozando com um gozo feroz de
agonisante, o amor incorpóreo, enquanto ao lado, noites em fora, as mãos
invisíveis soluçavam a mágoa e a tristeza.
Ora, ontem, quando eu subia
a escada íngreme da sua velha casa, d. Ana apareceu-me desgrenhada.
— Venha, acuda, a Carlota
morre...
— Como foi isso?
-— Sei lá! Passou toda a
noite à janela; o músico não tocou, a chuva, hemoptises, sangue...
Na sala de visitas, a pobre
Carlota, coitada! estava caída numa cadeira de braços, entre as bacias, as
botijas, os panos, a lúgubre confusão que precede o eterno descanso. Fez um
esforço, estendeu a mão.
— Estou à espera da
música...
Deixei-a, despreguei-me
pelas escadas. Era preciso que a música lhe levasse o supremo consolo. Entrei
pela casa ao lado.
— O pianista? perguntei ao
encarregado.
— O maluco? No primeiro
andar, à direita, quarto n°. 5.
Subi, bati com força no
quarto, empurrei a porta, desesperado. Encontrei um velho homem, magro e
adunco.
— É o senhor o pianista?
— Sou.
— Há aqui ao lado uma
criança que agoniza. Vinha pedir...
— Para não tocar hoje. Vá
com Deus.
— Não. Venho pedir que
toque. Não é possível explicações. Essa menina vive há um mês de ouvi-lo. Está
morrendo. Pede-lhe que toque.
O homem passou a mão pelos
cabelos.
— Escute, é uma loura,
muito loura? Meu Deus! Pobre pequenina! Então ela me ouvia? Vá, eu toco, vou
tocar, vá.
Depois, agarrou-me o braço.
— Mas escute, não lhe diga
como eu sou. Eu sou feio, perdia o encanto!
Quando outra vez entrei na
sala, a Carlota morria. Como a querer beija-la, o luar entrava pelas janelas,
num golfão de ouro, e ela, com as mãos de magnólia cruzadas sobre a peito,
tinha na face a tortura da agonia.
Mas, subitamente, teve um
estremeção. Ao lado, como uma ronda de astros que se despregassem do infinito,
o piano explodia uma indizível revolta. Um tropel de sons reboou,
entrechocou-se, deslizou, rasgando o ar, da terra as estrelas, com uma dor
infinita. Depois, pareceu parar, tremulou brevemente, abrindo um paraíso, onde
os arcanjos cantassem e, enquanto Carlota sorria, os acordes, como um coro de
rosas, envolveram-na, beijaram-na. E ela morreu, docemente, sem uma contração,
ouvindo a música do amor...
Houve um longo silencio na
sala malva, onde há conversas tão alegres, à hora suave do chá. O barão limpou
o monóculo:
— Ora, aqui está porque eu
estou triste!
— Coisas da sua fantasia
macabra, fez a severa viscondessa de Santa Maria.
— Para entristecer a gente,
acrescentou mme de Souza, linda e sentimental.
E, de novo, enquanto mme
Werneck fazia um grande esforço para não chorar, todos nós, com
afinco e erudição, atacamos
a música italiana.
Notas:
Notas:
95 - Vestido para o chá das
cinco. Em inglês no texto.
96 - No texto, sinônimo de
ruminar, remoer.
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Nota:João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
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