A MAIS ESTRANHA MOLÉSTIA
A Afrânio Peixoto
Era o momento verde, o
momento do aperitivo outrora absinto172, hoje uma série de envenena- mentos
de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos
cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca.
Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos
perdidos na contemplação da Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e
de ruído. No asfalto da rua era a corrida dos carros, apitos, trilos, largo
bater de patas de cavalos, chicotadas estalando no pelo das magras pilecas173 dos tilburis, carroções em disparada, cornetas
de automóvel buzinando arredas174, gente a correr, ou parada nos refúgios,
à espera de um claro para poder passar, o estrépito natural do instante, à hora
da noite nas cidades. Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a
renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e
dândis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados
ao lado de uma multicor galeria de mulheres, a teoria infinita do feminino para
todos os gêneros : pequenas operárias, cocottes notáveis, senhoras de
distinção, meninas casadeiras, simples apanhadoras de amor. As sombras, a
princípio de um azul furfureáceo175, depois de um cinza espesso, iam
preguiçosamente espalhando o veludo da noite na silhueta em perspectiva das
grandes fachadas. À beira das calçadas,
a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores176 formavam uma tríplice candelária de pequenos
focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo
das lâmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras177 faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como
talhadas em vestes de arlequins dos cinematógrafos, brasonando178 de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! os
contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão
mirionima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada
tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Golconda, a escorrer para a
semi-opacidade da noite cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos
cegadores de safiras, espelhamentos jaldes de topázios, e eu recordava outras
cidades, outras casas, o eterno boulevard, suprema orquestração do bom
gosto urbano. Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão.
Algum tempo depois
reconheci, como tendo perdido alguma coisa, os olhos à procura, o nariz ao
vento, o delicado Oscar Flores, um ente muito fino, muito sensível, do qual
diziam horrores e que de resto parecia ter na alma um fatigante segredo. Os
segredos fizeram-se para ser contados. Tudo vai de ocasião. Que estaria Oscar
Flores, com a sua palidez e as suas lindas mãos, a procurar assim? Esperei alguns
minutos olhando a ver se via a causa daquela aflição e por fim, quando o jovem
se resolvia a continuar, chamei-o ruidosamente. Ele voltou-se, como se fosse
apanhado em flagrante. Estava visivelmente contrariado.
— Vem daí tomar um
aperitivo.
— Não, obrigado. Tenho que fazer.
— Pois se já perdeste a
pessoa a quem acompanhavas?...
— Viste? fez ainda mais
pálido.
— Vi, isto é — sossega — vi
que procuravas alguém.
Ele teve um suspiro, deixou-se
cair na cadeira. Já agora tomava um cock-tail. O seu caso porém era
outro. E fechou-se num silêncio nervoso, cortado de sobressaltos, alheado de
mim — o seu habitual silêncio em todas as rodas, como sempre à espera de um
sinal misterioso para partir e desaparecer. Olhei-o então com vagar. Era
encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena,
o negro cabelo anelado. Como devia ser feliz assim rico e belo, com a sua
bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude
inquieta de um príncipe assassino e radiante, o Oscar Flores! E falavam tanto
mal dele! Disse-lhe, íntimo e confidencial:
— Então, Oscar, onde estás?
É por isso que te caluniam...
— Ah! tornou sorrindo,
ainda falam de mim?
— Cada vez mais. És o leit-motiv da
falta de assunto. De resto ha sempre na voz do povo um pouco de razão. Estou a
acreditar que realmente tens um segredo. Ora os segredos deixam-se para as mulheres
e para os homens sem interesse, os homens vulgares...
— Mas não tenho segredos,
protestou cansado. Tenho apenas a mais estranha moléstia nervosa —que ninguém
sabe. Curioso, hein? Diante de mim toda a gente sente a anormalidade, outra
esfera, outra vibração. Que será? Os mais espessos — e dessa espessura
intelectual se faz a opinião da massa — pensam logo nas degenerações normais,
no centro das loucuras que é a cidade. E não é nada disso, é outra coisa — é a
minha moléstia. A existência concentro-a nela, no desejo de doma-la e na
irresistível vontade de satisfaze-la. Tenho estudado, tenho lido, tenho feito
observações a ver se encontro outro tipo igual. Absolutamente impossível..
Tomou um gole de cock-tail
com evidente prazer, sorriu mais acalmado.
— Todos pensam que é um
segredo porque ninguém imagina. E eu sofro desde criança. A princípio, na mais
tenra idade, apareceu como escandalosa precocidade; até a adolescência tive-o
como um crime horrível, castigo e prazer do pecado. Com a razão — porque eu sou
um sujeito muito razoável e muito refletido — vim a descobrir que era um
desequilíbrio dos sentidos, a exaltação lírica, o desenvolvimento assustador de
um dos sentidos, capaz de dominar os outros, submete-los e virar aos poucos em
fonte de todos os prazeres, em único foco das sensações agradáveis, em tirano
da impalpável luxúria.
Já decerto conversaste com
os artistas jovens, os que falam na realização da arte, no ideal que jamais se
corporifica e é na nossa alma como o perpétuo sonho irrealisável. A minha
moléstia, o meu desequilíbrio, o império de um único sentido no meu organismo e
nesta sensibilidade caldeado numa ascendência de requintados, deu-me da vida
íntima uma prévia noção incorpórea, deslocou-me para um mundo de fantasia
exasperante, fez-me o lascivo da atmosfera, o gozador das essências esparsas, o
detalhador do imponderável, o empolgado da miragem da vida.
Emborquei tranquilamente o
veneno que me tirava o apetite, e murmurei:
— Meu caro Oscar, tenho uma
profunda simpatia por ti, em primeiro lugar porque és belo, em segundo porque
tens espírito, em terceiro porque nem a beleza nem o espírito conseguiram
reduzir-te à atroz banalidade de ser totalmente feliz. Daí o poder ouvir sem
comentário todas as narrativas lindas com que me queres honrar. Esse teu
desequilíbrio é de fato de uma psicologia muito sutil, muito trabalhada.
Oscar teve um gesto de
impaciência.
— Quando digo! É tão
inverossímil que ninguém acreditaria. Entretanto tens diante de ti o homem que
analisa o seu tormento e não lhe resiste. Sabes que é o sentido soberano? O
olfato, apenas o olfato. Sou como o escravo, o ergastulado179 do cheiro. Tudo é cheiro. É o cheiro que guia,
repele, atrai, repugna, o cheiro é o condutor das almas. As nossas impressões
são filhas do cheiro que atua como a luz e muito mais porque há cegos e não há
ser vivo que não respire e não sinta o cheiro. O cheiro plasma, porque está no
ambiente. Os caracteres dos homens são feitos de essências, as profissões dão aos
entes certos e determinados cheiros. Vive oito dias numa casa de perfumes ou no
boudoir180 de
uma mulher galante, e as tuas idéias tomam o aspecto de idéias com pó de arroz,
de idéias efeminadas, made expressely181 para uma certa roda
pueril. Sente o cheiro dos marinheiros, com o cheiro do mar e três ou quatro
escalas de cheiros de óleos refrescados pela viração larga. Um homem sensível
não pode viver muito tempo nesses lugares porque o cheiro permanente dá-lhe
como uma continuidade da visão oceânica e um estado trepidante que lembra a
vagabundagem de grandes navios por mares ignotos. A alma dos entes revela-se
pelo cheiro. A das coisas também, só pelo cheiro. Conheço os interiores das
casas, o gênero, a classe das pessoas que as habitam pelo cheiro, como de olhos
fechados dir-te-ei a casa vazia apenas aspirando-a. Posso mesmo dizer-te que
cada cidade tem um cheiro próprio, e que eu os sinto ao aproximar-me, ao saltar
no desembarcadouro, cheiros que conseguem dar a impressão geral dos habitantes,
cheiros honestos, cheiros voluptuosos, cheiros de seio...
— Mas, realmente, é
delicioso.
— É atroz.
— A hiper-acuidade de um
sentido dirigida com estética. És o homem dos perfumes.
— Não me fales de perfumes,
do perfume com a significação normal de extrato fabricado para o mercado. É
outra coisa. Sou a vítima do cheiro. Para mim não há cheiros repugnantes, há
cheiros desagradáveis. Tenho a sensualidade dos cheiros os mais diversos, do
cheiro da terra, do cheiro da erva, do cheiro dos estábulos e do cheiro das
rosas. Como comecei a sofrer desse desenvolvimento paroxismado do sentido
olfativo? Sei lá! Não foi o perfume, foi a extensão vasta dos cheiros que não
são perfumes. Em criança, antes de levar qualquer gulodice à boca,
instintivamente cheirava-a de olhos cerrados, para sentir bem e prelibar
deliciosamente o prazer de degusta-la. Depois, quando me tomavam ao colo, ao beijar-me,
achava sempre meio de cheirar, de aspirar as pessoas agradáveis. Cada Pessoa
tem um cheiro diverso. Na minha infância a perversão — se-lo-á de fato? —
surgiu ensinando-me todo o pecado. Gostei da carne porque cada nuca é um pouco
do olor da natureza, e há bocas que são como orquestrações de odores. Ah! esse
tempo ainda ingênuo, esse tempo instintivo... Eu me envolvia nas roupas brancas
que as raparigas já tinham usado, pendia para as cabeleiras com tal ânsia
aspiradora, tinha uns modos tão pouco normais que a família se assustava e as
raparigas achavam uma infinita graça. Ah! que pequeno vicioso! Elas diziam
convencidas de que eu gostava apenas do cheiro das suas roupas. Não era, porém.
A minha nevrose olfativa se acentuava cada vez mais, cada dia mais com caráter
desabridamente sensual, e já rapazola, não distinguia o que me poderia conceder
o prazer : a erva molhada, o cheiro dos estábulos, um cheiro de nuca, um cheiro
de corpo, e já começava a sentir as cruciantes necessidades de certos cheiros,
que eram tão violentas quanto a fome ou o amor. Então era preciso alhear-me,
deixar a roda dos conhecidos, sair por aí a ver se descobria o cheiro que eu
precisava, o cheiro que não sabia qual era, mas devia tranquilisar-me.
— Tinhas a obsessão de um
cheiro nunca sentido?
— Exatamente. Ainda era
romântico e até aos dezoito anos tentei com um pouco de literatura e alguns
conhecimentos químicos, o prazer dos perfumes, dos cheiros artificiais.
Arranjei catálogos, estudei longamente, tive baterias de perfumes em frascos de
cristal, fiz como todo sujeito lido em livros franceses, a sinfonia dos
perfumes, a alegoria dos perfumes, a pintura sugestiva dos perfumes, combinando
essências, renovando as camadas de ar do aposento com pulverizadores cheios de
misturas sábias ao lado de incensários a queimar olências exóticas. Era
perturbador e era irritante. O meu olfato desejava, tal as marafonas que a
sorte eleva ao grande luxo, excessos de natureza, virilidades de ambiente. Esses
perfumes que as mulheres usam, esses perfumes com que vocês se civilizam e se
friccionam são ignóbeis. Na composição química da enorme quantidade por mim
aspirada senti apenas que poderia fazer um catálogo, dividindo em classes de
almas a diversa temperatura : perfumes quentes, semi-oleosos, perfumes tépidos,
perfumes frios. Os perfumes de Haubigant dão sempre a impressão de calidez, de
calor opressivo. Os ingleses e os americanos fazem-nos frios, desses que a
gente ao aspirar pensa em águas geladas e madrugadas hibernais. Meia dúzia de
refinados franceses conseguem a meia temperatura, evolando-se lentamente. E há
também os medíocres, os reles, os que lembram montras de boulevards em
blefes de luxo e de conforto, elegâncias por todo o preço de armazéns
duvidosos.
Quer uns quer outros,
entretanto, acabaram por me fazer mal, dores de cabeça, apertões nas têmporas,
uma impressão angustiosa de acachapamento. Mas era muito artista. Um amigo, de
volta do Oriente, trouxe-me então uma coleção de perfumes. Eram maravilhosos.
Andei doente e morno, com uma alma de serralho182 e de mel por aspirar um frasco de essência de
rosas. Esses perfumes entravam- me no crânio como estofos bordados de pedraria,
como broqueis encrustrados de gemas coruscantes. Deixavam-me sonambúlico, com
frases de antifonário183 e sonhos de rosas
de Shiraz, de Kernar, de Kashmir. Vi então que a minha doença não amava as
concentrações mais ou menos industriais.
— Príncipe encantador,
havia as flores...
— Sim, as flores, amei as
flores, tateando na sombra do mal. As flores são as caçoulas184 dos perfumes naturais. A natureza condensa
nelas o olor das suas paixões, a alma dos seus desejos, as recordações das
tonturas, de frenesis ou de grandes repousos celestes. Não sorrias. O que eu
sinto não o dizem palavras. É preciso descobrir frases prismáticas como certos
cristais e vê-las à luz do sentimento, que percebe para além das coisas
visíveis. Os deuses gostavam de perfumes; o perfume exorta e exalta. Porque
lisonjear os deuses com perfumes, se não tivéssemos a idéia do sacrifício, do
grande pecado da natureza, que ele representa? Há flores cujo perfume é cínico,
outras cujo cheiro é banal, outras cujo olor se celestisa, outras ainda que nos
dão desesperos de carne. É possível ter à lapela uma gardênia sem sentir
cefalalgias185 horas depois? É possível cheirar certas rosas
sem odia-las?
— Mas, meu querido,
procuras apenas pretexto para dizer coisas infantilmente interessantes. Olha
que antes de ti outros estetas falaram... Odiar as rosas!
— Sim! Odia-las. Há flores
carnudas, as rosas rosas, as rubro negro como sangue coagulado, que a gente
aspira, absorve o odor, cheira, cheira, e depois estraçalha com ódio porque
prometem mais do que dão, porque deixam em meio o gozo, não nos completam o
prazer anunciado pelo cheiro. Ah! essa aflição que dá aos sentidos o cheiro de
algumas flores, as violetas, cujas emanações são como sons de violino em noites
de luar, as tuberosas, crispantes de cio, as rosas chá que cheiram como carnes morenas,
o resedá, a flor do resedá que o Fezensac cantou idiotamente num trocadilho e
que entretanto guardam um frio e exasperante odor de gérmen fecundante, cheiro
de marfim raspado... E, para notares a correspondência de
cheiros idênticos nas coisas mais diversas, a flor que cheira a marfim, é
também, cheiro resumo do cheiro inicial da vida, irmão odor do odor da semente
criadora, estranhamente perdido entre as ervas...
Oscar caíra num abatimento.
Eu começava a temer o delírio.
— Então, se não amas os
perfumes que te fazem mal, se odeias as flores que te exasperam, em que
consiste o desproporcional domínio do olfato sobre os teus sentidos? É decerto
um estado de anemia, uma grande fraqueza que te adoece e te faz sensível aos
odores. Não amas os cheiros, temes todos os cheiros desde que eles se
especializam, se individualizam.
— Ao contrário, fez, de
novo animado, ao contrário. Tenho entre mim e a vida comum um como véu de
talagarça186 espessa. E tudo quanto na vida se faz, eu
sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um “setter”187 humano, amarrado à corrente da conveniência. É
a existência de miragem olfativa, uma existência em que os cheiros visionam
ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-me sensações de
cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada
cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada
diversa do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque
os cheiros têm gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por
tamanha acuidade vibram a arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo,
demoníaco, no meu pobre corpo. Oh! não estejas a olhar para mim assim irônico.
Há uma íntima correlação entre as sensações do homem normal, que o faz amar a
harmonia das coisas e o faz pensar na beleza esplendente. Quando ele ama e
sente assim, na floração da arte, que é o arrimo da vida, minhando o seu
pensamento sutil e vaga essa misteriosa afinidade entrelaça os sentidos, para
que o homem sinta numa curva de anca a música das linhas, na carne de uma
espádua o perfume da rosa, no entreabrir de um lábio o sabor dos frutos, na
criatura que se desnuda o bruto. Desejo cego, caos das sensações... Quando é como
eu, porém vítima de um só sentido, morbidamente absorve os outros e leva louco,
no delírio perpétuo, a tentar reaver a harmonia.
— Daí...
— Daí, fez Oscar afastando
nervosamente o cock-tail em meio, daí para a minha sensibilidade compreender
que a natureza é inconsciente, que todos esses perfumes elas os espalhou
brutalmente, desvairadamente, e que só um instante a razão lhe voltou, quando
fazia a carne, quando criava a criatura, onde todos os cheiros da terra se
encontram em suaves nuanças. O que eu amo é o olor da carne, sempre uma
orquestração, uma sinfonia de recordações de outros cheiros, o cheiro das bocas, o cheiro dos cabelos, o
cheiro das nucas, o estonteante cheiro das axilas... Há cabelos, sabes? que
relembram o aconchego arminoso dos ninhos dos pássaros, cabelos em que a gente
se perde como num imenso oceano de olências reparadoras, cabelos musicais que
fazem pensar em manacás e em magnólias, cabelos que são o tecido de todos os
cheiros reconfortantes. Há carnes douradas, carnes feitas de leite e de sangue
de cerejas que ao aspira-las pensa um pobre no descanso dos bosques, em ragaes,
em fraudas rústicas, em grandes abraços pagãos sobre as liras. E as bocas? Já
reparaste nas bocas? Ha bocas quentes e
frias, bocas sem cheiro algum, e bocas que quando falam junto a ti têm um
cheiro intimo de rosa murcha, quando te beijam parecem feitas de pétalas de
rosas, e quando as sugas transfundem a alma como uma essência especial que
parece o mel feito de todos os perfumes dos campos. As criaturas são as ânforas
da harmonia dos cheiros. Cada carne tem o seu corpo odico que é o cheiro, cada
ser faz-me sentir a alma pela veste incorpórea do cheiro, desse cheiro que cada
um tem próprio e jamais igual ao do outro, do cheiro que se procura para
aquietar e amar...
— Realmente, com um pouco
de “toilette”, cada qual faz o seu cheiro.
— Não! não é isso. Talvez
pela toilette e a perfumaria sejam-me indiferentes as formosas mulheres que
deixam rastileos188 de perfumes
industriais e parecem feitas para os retratos de Heleu ou do Amoedo. Não as
amo, porque, maceradas de essências, com os vestidos pulverisados de perfumes,
a boca lavada por águas e pós brilhantes, os lábios carminados, a face empoada,
são como os manequins da moda. O cheiro é a alma dos seres. Elas afogam a alma
no artificial para encantar os simples, os brutais. Os meus instintos gelam-se,
morrem em frente dessas baiadeiras189 mascaradas com a mascara transparente de outros
cheiros. Houve um silêncio pesado.
— Ah! disse eu vendo a
expirar a confissão, é grave...
Oscar olhou para mim,
cândido como Adonis190, e cansado como se sustentasse nos ombros o mundo.
— Por isso, murmurou,
procuro — é horrível! — procuro as criaturas simples, as que não se perfumam,
as que ignoram o postiço ignóbil da civilização, e guardam o próprio cheiro: as
crianças, as adolescências rústicas, as criaturas que saem do banho brilhando
mais e cheirando mais, os que não sabem se cheiram bem porque pensam que o
cheiro é a falsificação dos perfumistas. Um lindo corpo, um corpo branco, cor
de leite, que tem todos os suspiros campinos das boninas, dos mal-. me-queres, das
margaridas, o sonho casto das violetas brancas e o anseio tranquilo, o cheiro
animal de qualquer coisa que se não sabe! Um corpo moreno, feito de um raio de
Sol, guardando a carnação das rosas e o cheiro da lascívia!...
Beijar corpos assim, aspira-los, aspira-los... É quando há a simpatia do
cheiro, que é o irmanamento das almas. Tudo quanto toca a pessoa fica com o seu
cheiro, o lenço esquecido, um pedaço de móvel. Parta ela, desapareça, cheira
aquele pedaço. O poeta sensual já escreveu:
Ela andou por aqui, andou. Primeiro
Porque há vestígios das suas mãos; segundo
Porque ninguém como ela tem no mundo
Este esquisito, este suave cheiro.
E é. De chofre, à calentura
do cheiro dela, uma onda de gozo nos transmuda, faz-nos reviver delícias e
nevroses da gama que se acordava com o teu desejo. É a música mortal. Que digo
eu? A roupa? Os trastes? Não! Basta o lábio cansado de roçar, basta o contato
das mãos pelo seu corpo. Nós não conhecemos a própria alma porque não sentimos
o nosso cheiro, enigmas para nós mesmos indecifráveis. O cheiro dos outros
fica, impera. De volta de um cheiro amado, é cheirar as mãos e sentir o olor do
amor como um velador nos próprios dedos. Ah! não! E dizer-te que eu uma vez, há
quatro anos senti esse cheiro, o cheiro do meu amor, numa criatura miserável,
dizer que não me lembro das suas feições pelo muito que me lembro da
completa satisfação do meu desejo, dizer que nunca mais a vi, que a procuro,
que a procuro e jamais a encontro... Como queres tu que eu ouça as conversas
idiotas, como queres tu que pense noutra coisa? Vou em busca do meu perfume, do
perfume que amo, da urna desse sonho, do corpo dessa alma. E degringolo a
razão, a moral, o respeito da sociedade, rolo o abismo dos lugares pouco
distintos, dou-me a relações pouco brilhantes, aspiro todos os corpos a espera
de um dia encontrar o perfume incomparável, a essência doce dessa carne de
ouro.
— Curioso.
— A mais rara moléstia que
ninguém sabe.
De repente, porém, os seus
olhos chisparam. Ergueu-se. Sorriu.
— Espera um instante.
Sumiu-se apressado. Eu
também sorri então. Não voltada. Alguém passara que se parecera com o seu
cheiro. Pobre rapaz! Talvez fosse na desvairada luxúria o grande sensual do
ideal. E talvez não, talvez fosse um louco. Somos todos loucos mais ou menos.
Foi então que vi serem oito horas. Como o personagem do poema, Oscar procurava
novos perfumes no seu cheiro ideal e os prazeres não sentidos, sempre mais
amargos e menos consoladores. Ergui-me. Já com toda a Avenida, centenas de
lâmpadas elétricas acendiam a sua grande extensão no clarão da luz, — “a mensageira
da verdade visível ”....
Notas:
Notas:
172 - Licor da erva
artemísia, de sabor amargo e alto teor alcoólico, muito popular entre os
artistas da Belle-Époque. Era tido como indutor de visões
alucinógenas, na qual predominariam as tonalidades da cor verde. Foi
posteriormente proibido em quase todos os
países.
173 - Diz-se de uma
cavalgadura de baixa categoria, velha ou doente.
174 - Aviso ou ordem para
sair do caminho ou da frente.
175 - Relativo à farinha;
farinhento.
176 - Poste de iluminação
pública.
177 - Vitrine.
178 - Enfeitar.
179 - Prisioneiro.
180 - Pequeno gabinete
particular de mulher, decorado elegantemente. Em francês no texto.
181 - Feito expressamente. Em
inglês no texto.
182 - Harém.
183 - Livro de antífonas –
versículo cantado depois de um salmo, respondido alternadamente pelas duas
metades do coro.
184 - Vaso de porcelana onde
se queimam ervas aromáticas.
185 - Dores de cabeça.
186 - Tecido de fios ralos,
sobre o qual se tecem os bordados.
187 - Raça de cães de caça,
da qual a mais conhecida é a variedade irlandesa ( irish setter ).
188 - Rastros. Rastilhos.
189 - Dançarina sagrada da religião
hinduísta, que se veste luxuosamente nas suas apresentações.
190 - Personagem da mitologia
greco-romana. Jovem mortal de grande beleza física, que logrou conquistar a
própria deusa Astarte (Vênus). Foi morto
numa caçada por um javali.
---
Nota:
João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
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