O MONSTRO
— Ah! Eu sou um monstro!
— Palavra?
— E um monstro, meus
amigos, que pode confessar os seus apetites sem correr o risco de poder
contemplar o mundo através das grades de um cárcere. Eu sou um infame.
Ditas estas palavras,
Luciano de Barros estendeu-se, desalentado, no divã e soprou para o ar o fumo
do charuto. Era depois de jantar e nós estávamos em casa de Lauriana de Araújo,
uma das mais elegantes raparigas, de uma vaga semi-sociedade em falha,
sustentada por um velho banqueiro de tavolagens e com grandes pretensões a
mulher de espírito e à literatura. Os jantares eram sempre excelentes; o “maitre d’hôtel ”
irrepreensível, os serviços lindos, e bem se podia notar naquele ambiente, onde
o velho banqueiro tinha o bom gosto de não aparecer, que Lauriana de Araújo
sabia escolher com arte uma roda de homens citável. Havia nomes da Academia,
nomes da alta elegância, o creme das duas casas do Parlamento, e sempre as
altas figuras em trânsito propagador. Naquela casa de jantar cor de morango com
frisos de faiança representando a glória de Pomona111 já tinham estado um embaixador severo e um
quase presidente de grande republica européia. Ao acabar os jantares, Lauriana,
sempre de rendas brancas, como envolta em espumas, acendia um cigarro e
palestrava. Os homens recostavam-se nos divãs e posavam. De vez em quando
tocava-se piano. Quase sempre, entretanto, na varanda guarnecida de jasmins,
ouvia-se um septuor112 de instrumentos
de cordas. Era perfeitamente agradável. Ninguém ignorava que a anfitriã amável
realizara já uma grande fortuna e que sabia, como ninguém, liquidar em seu proveito o
dinheiro alheio sem estrépitos escandalosos. Só como amante de um ministro, obtendo
concessões entre beijos, no espaço de três meses arranjara quinhentos contos.
— Farsista! Tu, infame? Tu
não passas de um ingênuo... Era o conselheiro Andrade, conhecido por quarenta
anos de ceias consecutivas, desde o remoto Rocher de Cancale até os
desvairamentos dos “ cercles” atuais.
— Eu, ingênuo?
— Pois então? Um infame,
nunca diz que o é.
— Conforme.
— Afinal, intervinha Lauriana,
o Luciano disse que era um monstro quando eu perguntava como compreendia o
amor. O Luciano é sempre bizarro. Vai dizer para aí alguma barbaridade e
liquida a infâmia.
— É impossível, minha
amiga. Por que sou eu o dedicado servidor, e servidor sem interesse, de todas
as mulheres? Nunca ninguém mo perguntou. E, entretanto, é apenas por um
permanente e cruciante remorso. Tenho trinta e dois anos, um físico menos mau,
visto discretamente, sou mais inteligente do que o vulgar e tenho algum
dinheiro. Para vocês, nada mais banal. Com esses elementos congregados, porém,
e com uma alma incapaz de amar e de se dedicar senão à variedade, consigo numa
sociedade moderna ser simplesmente o monstro. Como? Ora, como! Fazendo-me
amar...
Um prolongado riso correu pelo
salão de fumar. O deputado Almerindo quase engasga, o conselheiro Andrade
ergueu as mãos ao teto e o célebre poeta acadêmico Clodomir rebolou
positivamente no divã. Luciano continuou tranquilo:
— É preciso partir do
princípio que toda a mulher ama. Apenas, porém, ama ingenuamente e deixa-se
seduzir, deixa-se amar amando absolutamente uma vez na vida: a primeira. As
outras paixões são o resultado do cálculo, do egoísmo, da satisfação dos
desejos. É ela a sedutora e seja para o bem ou para o mal, para elevar o homem
ou para perde-lo, para sofrer-lhe as pancadas ou fazer-lhe da vida um rosário
de beijos, o seu papel moral é sempre o ativo.
— Estás a lançar paradoxos.
— Estou a dizer coisas
velhas. Mas o ambiente, o meio, conseguem também matar o primeiro sentimento, O
amor é um perfume sutil... Uma pequena de sociedade elevada, mais ou menos
culta, sabendo que há de casar com alguém da sua roda, talvez não ame nunca.
Uma rapariga atirada desde cedo ao torvelinho dos bailes, das festas e dos
flertes é uma lutadora prestes a devorar o seu marido próximo. E mesmo as moças
de família modesta, desde cedo obrigadas a uma profissão e ao exercício de
encontrar um esposo, entregando-se aos maiores excessos de permissão aos
namorados, quase sempre fatais, não sentem o amor...
— O amor morreu.
— O amor é eterno, mas nem
todos o podem ver, através da perversão do flerte ou das luxúrias perdidas. E a
minha imensa monstruosidade está exatamente em procurar o amor, gozar esse
perfume e perde-lo. É, talvez, muito vago o que estou a dizer, mas é horrível.
Ando por todos esses clubes e aborreço as mulheres que arrastam vestidos de
contos de réis; percorro os bailes e os “rahuts” com medo das “ flirteuses”; frequento as
caixas113 de teatro e em cada mulher que se pende para
mim, sinto a falsificação. Que fazer? Percorrer os meios humildes, e descobrir,
probresitas e sem nada, as crianças que ainda não amaram. Imaginem vocês um
homem com todos os instintos de perversão da nossa roda
como facilmente pode
empolgar uma alma ingênua, seduzida apenas pelo exterior.
Dizem que nas grandes
cidades não há o tipo ingênuo, a inocência... A inocência é uma propriedade,
uma qualidade que passa, mas existe em toda a parte. Nas classes mais pobres,
nos meios mais miseráveis é que se encontra mais a flor da inocência, exposta
ao vendaval e guardando o perfume, por um prodígio. Desfolhar essa flor,
violentamente, como um sátiro; não é crime — é instinto. Goza-la naturalmente
sem a intenção senão de a gozar — é a natureza. Cerca-la, rende-la, ir aos poucos aspirando-a,
desfolhando pétala por pétala, com refinamento, intenção dupla, consciente e
ferozmente — é que é monstruoso. E vocês não sabem, não podem imaginar a fúria
de caçador que eu desenvolvo para as encontrar, vocês não concebem o gozo meu
ao prelibar a volúpia de um beijo de virgem, um beijo sugado na boca ainda não
beijada...
Eu vou, eu passo, eu
cumprimento. No dia seguinte torno a passar. Três dias depois, mando-lhe uma
recordação. Tudo é tão simples com os pobres! Dentro em pouco a criaturinha
sente-se envolvida numa atmosfera de cuidados e de delicadezas. A principio é
apenas a vaidade. Um homem tão bem vestido, tão distinto, tão fino, que podia
ser amado por lindas mulheres da sua ordem... Depois o orgulho, a sensação de
que é melhor do que as outras por ter sido a preferida, — orgulho que se
perfuma de gratidão, uma vaga, muito vaga sensibilidade. Em seguida, a alegria
da intimidade de um ente que não a ralha, que lhe reflete em admirações como um
espelho simpático todas as pequenas belezas da sua beleza. Mas, ainda assim,
não é amor, é brincadeira, uma brincadeira agradável, o namoro — o namoro que
está para o flerte como a pureza de uma água pura para a falsificação de um
vinho mau. Eu persisto, então, continuo, prolongo a grande cena. E de repente a
criança sente o ciúme, um doce e ingênuo ciúme que tem zelos até do inanimado,
anseia, treme, e ri e chora sem saber porque, toda ela possuída do perpétuo mal
da vida. Então, eu sinto no intuito uma alegria infernal. É o meu esporte, o
meu exercício, o meu prazer de homem da cidade. As regras são infalíveis como
para todos os jogos, e a vitória sorri-me. Tenho satisfeito o meu desejo?
Não! Ao contrário. É o
grande momento, o momento do iniciador. As carícias na mão, puxando essa mão
que resiste instintivamente e treme, as carícias nos braços, os contatos
fugazes que indicam tudo, um beijo nos cabelos, outro longo, guloso, mordido,
na nuca... Gozar as gradações do reconhecimento do gozo, a face que enrubece, o
calor da pele, os olhos que enlanguecem e de repente se dilatam como ao reflexo
de um clarão, as frases curtas de negativas... É a fascinação inebriante. Toda a
minha tática, entretanto, se faz em torno do que a inocência mais custa a dar:
a boca. Eu tenho a nevrose das bocas. Ha algumas muito vermelhas. Há outras de
um róseo peludo. O movimento da língua passando pelos lábios dá-me crises
desesperadas, e certas criaturas quando riem sugerem-me auroras em que eu
desejo estancar toda a sede de uma noite em claro, que é a minha vida. Às
vezes, o beijo rogado vem de súbito. De outras, a princípio é um leve roçar de
lábios, depois uma pressão mais longa, enfim, a absorção, a loucura num
ambiente em que mesmo de olhos abertos vejo, sinto, cheiro, ouço toda uma
sinfonia rósea dos sentidos...
Na roda, os cavalheiros
pareciam um pouco nervosos, e Lauriana batia o leque de sândalo. O conselheiro
Andrade, o menos excitado, exclamou, de olhos em alvo:
— Caramba! É uma doença
cerebral...
Luciano, de olhos cerrados,
parecia em êxtase.
Então, o poeta indagou:
— E que fazes depois?
— Que faço? Aqui tens tu o
meu horror. Fico com um grande dó da criança, acaricio-a ainda mais, envolvo-a
na jura de um amor infinito, chorando a frieza do meu coração incapaz de amar
uma só criatura mais de seis meses. E é o mês dos sofrimentos, em que a vida se
me faz dilema : — ou casas com essa rapariga para abandona-la ou, se a levas
contigo sem o casamento, cometes o crime ainda maior de perder-lhe a honra.
Então, no silêncio do quarto, pensando nela, vendo-a a todo o instante, soluço,
choro, deploro-me, escorcho a alma com a violenta idéia de achar um pretexto
para não perde-la. O amor, porém, o amor verdadeiro é um breve perfume da
virgindade. É senti-lo e é partir. Eu me debato, mas para que serve? Algumas desvairadas
têm vindo até ao desenlace e estão por aí. Outras eu perco de vista, aos
poucos, porque mais adiante outras parecem-me ainda em botão.
— Não é muito bonito, mas
nada tem de ofensivo.
— Achas?
— Há quarenta anos, sem
psicologias malsãs, serias apenas um bandoleiro. Agora, com essa mania de
análise das próprias sensações, é que te julgas um monstro.
Luciano de Barros deitou
fora o charuto que se lhe apagara entre
os dedos.
— Infelizmente, nós somos
levianos, nós os homens, em tomo desse grave e doloroso sentimento. Que sou eu?
Um homem que borboleteia a sua perversão pelos botões entreabertos da vida. Até
é bonito! E quem uma vez sentiu a delícia deliciosa de uma boca virgem que se
entrega pela primeira vez, deve ter de mim inveja. Mas, se eu me sinto infame?
Ainda agora venho de um caso assim. Era uma pequena de quinze anos, alegre como
um pássaro. O seu riso lembrava um chilreio e a sua boca cheirava a rosa. Três
meses depois, sincera, nobre, pura, ela amava, amava sem interesse, apesar de paupérrirna,
sem nunca ter recebido uma dádiva que não fosse inteiramente inútil. Dera-lhe o
meu nome, mas ignorava o que eu era, onde morava, qual o meu modo de vida.
Amava como se ama aos quinze anos, cegamente, e eu tinha essa sensação meio
triste, meio ridícula de me saber amado com um encanto de sonho. Que era ela?
Um personagem de conto. Que era eu? o príncipe... A crise do amor na estufa preparada
por mim floriu. Talvez eu mesmo estivesse mais apaixonado do que parecia.
Propus-lhe a fuga, o rapto. Resistiu com o seu fundo honesto, tanto que lhe
propus casamento. Ela sorriu entre lágrimas, erguendo os dois grandes olhos
negros. —“Não sabes o que dizes! Somos de condições tão diferentes! Isso é
impossível.” — “ Mas, então, que queres?” — “ Nada, não quero nada, coisa
nenhuma. “ Eu voltei, continuei a vê-la, mas insensivelmente, a minha
lamentável alma sentia a necessidade do afastamento, querendo conservá-la. Ela
continuava tal qual, iluminando o semblante quando me via. Certa vez disse-me:
— “ Às vezes quase não tenho coragem de voltar à casa, com medo de me matar.” —
“ Vem comigo, então.” — “ Não. Já hoje chorei tanto...” Eu gozava aquele
martírio por minha causa, aquela inocência perturbada pela minha figura... Ha
quinze dias não a vi à janela. Passei no outro dia, e interroguei a vizinhança.
Tinham-na levado os padrinhos por causa de umas crises de choro que a definhavam.
E eu estou na agonia, a pensar nessa criatura pura e doce.
— D. João114,
sossega! Hás de ver a pequena casada, como as outras.
— Ou perdida, sentenciou,
grave, Lauriana.
Luciano ergueu-se,
consertando a gravata branca.
— Ou talvez morta, porque
já tem acontecido... Então, a linda Lauriana sorriu com infinita tristeza.
— Mas não te julgues, com
esse exagero de análise e de pretensão, o único monstro, meu caro amigo. A
cidade está cheia desses defloradores do amor. A vida é uma luta de sexos. Há
criaturinhas que morrem ceifadas em botão, depois de levemente aspiradas pelos
intelectuais gastos como tu. Há outras, porém, que resistem e ficam como eu.
Houve um prolongado
silêncio. Ninguém rira. E, só, Luciano de Barros, muito pálido, diante de um
grande espelho, parecia pasmo da própria fisionomia. Fora, o septuor tocava uma
valsa lenta, entre os jasmins.
Notas:
Notas:
111 - Divindade romana das
frutas e dos jardins.
112 - Conjunto de sete
músicos.
113 - Coxia. Bastidores de
teatro.
114 - Referência a Don
Juan, lendário conquistador amoroso da literatura francesa e espanhola.
---
Nota:João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
Nenhum comentário:
Postar um comentário