
URBANO DUARTE
As idéias aparecem-nos como a Verdade — nuas;  somos nós, os escritores, que as vestimos e,
como cada  qual tem a sua feição própria,
pode a mesma idéia, tratada  por varias
penas, ser jovial como uma canção,  meditativa
como um provérbio, gloriosa como um  epinício,
passional como uma ode sáfica, dolente como  uma elegia, lúbrica como uma fescenina,
sentenciosa  como uma máxima ou cômica
como uma tabarinada.  
Tudo está no gosto do revestimento. 
Vejamos, por exemplo, uma caveira que sugere, a  quem quer que a veja, a idéia da morte —
ponhamo-la  sobre uma erma, á beira dum
caminho bem trilhado e  façamos desfilar
por ele um grupo de poetas. 
Dirá o primeiro: 
«Eis um espelho de bom aço. Se as mulheres o  tivessem nas suas câmaras não haveria vaidade.
Bem inspirada andou a Madalena que o tomou para seu  uso quando se fez troglodita arrependida. Este
é o  espelho que a Verdade deve trazer na
mão. Pois sim,  senhores — Não somos lá
grandes coisas!»  Dirá outro: «Ser ou não
ser, eis a questão...» 
Outro: « Concha da idéia, saíste do oceano tormentoso  da vida, jazes vazia na praia deserta do nada.
Dentro de ti,  porém, como dentro das
conchas, há um rumor constante  que é o
eco imorredouro da agitação de onde vieste.  Na concha é o estuar da vaga, em ti é o
referver da idéia.  Ondas, maiores que as
do pensamento, tormentas, mais  deseneadeiadas
do que as da consciência, não as tem o  mar
largo. Vós que passais encostai ao ouvido o crânio  tábido e ouvireis o eco da vida que por ele
passou — são  os espectros dos sonhos,
das ambições, das angustias, dos  gozos
que assombram a ruína. Evoé! pela eternidade da  agitação!» 
Outro: 
— «Poste, talvez, como uma flor de aroma e os  beijos procuravam-te ansiosos, hoje, fanada e
seca, jazes  no esquecimento e no
abandono. Onde andarão as  abelhas que te
buscavam? Que outro nectário as prende?  És como um caule seco de onde, uma a uma,
todas as  pétalas caíram ». 
Outro: 
—«Pulvis! poeira e só. A carne levou-a o verme, o  arcabouço rolará na terra até á reversão
total. Eis o que  somos. E já que o fim é
tão triste, porque nos havemos   de  amofinar com a ambição e a vaidade?»
Outro: 
— «Nichos vazios, que é dos olhos que rolavam  ansiosamente dentro do vosso âmbito, como
leões  em jaulas apertadas? Boca, que é
da vossa  umidade? que é do vosso perfume?
vossa melodia? Ouvidos, que é dos vossos andarilhos que levavam ao cérebro
todos os  que é da  recados...? Ah! pobre crânio, já não te abrasa
a  paixão, és como uma velha lâmpada sem óleo.
 Quantas vezes, trazida pela Luxuria, a insônia
 hospedou-se entre os teus muros! Quantas
vezes,  como em antro de lâmias,
esfervilharam em ti  espectros
delirantes? Foste, como cafurna orgitica,  abrigo de súcubas e todo o corpo que encimaste
 sofreu agitadamente com os teus delírios.
Agora  repousas, só os insetos viajam
pela abobada deserta  e os ventos silvam
atravessando é teu bojo vazio.  Mas se o
amor viveu em ti e com ventura, foste feliz  e eu invejo-te, carcaça».
Outro: — « Não somos nada neste mundo ».
Finalmente: « Eis, fazes bem; o teu ritus é  como um recibo irônico. Durante a vida pagaste
 caro o teu tributo, foi uma cilada que
teus pais  armaram-te. Quem eram eles?
talvez não os houvesses conhecido. Fazes bem em rir, mas como a  vida exige a hipocrisia e tu, sendo caveira, áridas
 por entre os vivos, dias antes do
desastre que te  levou os músculos e os
outros enfeites, devias ter  ido a um  dentista para que te arranjasse essa boca...  porque, com franqueza, esses molares estão  indecentes e tu devias gastar muito algodão
nas  covas que eles apresentam: não são
dentes, são  verdadeiros armazéns. Com o
algodão com que os  tamponavas poderia
uma fabrica tecer pano para um regimento. Se é para mostrar os dentes que ris,  podes limpar a mão á parede».
Há disparates nesses comentários, pois são tais  disparates que constituem a harmonia. Homens
há  que se comovem, até ás lagrimas, com
a claridade  pálida da lua cheia, outros
dão para o derriço e  saem afinando
violões á procura de alguma dama  descuidada ou paciente que lhes ouça as loas;  outros, finalmente, dão para valentias e,
ardidos, de  sobrecenho carregado,
brandindo cacetes, investem  provocadoramente
desafiando e, se a policia não  açode a
tempo, os jornais, no dia seguinte, registram  fraturas e contusões e autos de flagrante.
Ainda se  há de escrever uma monografia
sabia com este  claro titulo:
Da Influencia da lua cheia sobre os espíritas  Os nossos cronistas são, em geral, contemplativos
(meã culpa! meã culpa!) e vestem  todas
as idéias de melancolia, torcem o mesmo riso e  descobrem em tudo um estigma de dor — poucos  são os que riem. Dir-se-á — somos um povo
triste e  o cronista, que reflete a alma
do povo, não pôde  andar ás gargalhadas. Não
sei se somos um povo  triste, sei que
somos um povo tímido.
O brasileiro é naturalmente expansivo, mas  profundamente desconfiado e a verdade da  afirmativa, que faço sem receio da
contestação,  tiro-a do seguinte caso
comum:
 Chega-se a uma casa
e, pouco a pouco, vêm  surgindo os
membros da família, todos mais ou  menos
reservados, de olhos baixos, como receosos;  por fim aparece o pimpolho chupando o dedo e  trata logo de encolher-se entre os joelhos da
mamã.  A conversa vai indo arrastada, por
monossílabos,  com grandes pausas, até
que o chefe, vendo o  embezerramento do
petiz, chama-o á ordem: 
— Então, que é isso? Tira o dedo da boca.
O pequeno amua e o hospede, para dizer alguma  coisa, afirma — « que o menino tem um olhar  revelador e parece muito bonzinho..» Espanto
dos  pais:
— Bonzinho! isto... ahn! É porque o se  nhor não sabe. Ele é porque está fazendo
cerimônias, o senhor há de ver.
Efetivamente, dali a instantes está o pequeno a  cavalgar a bengala do hospede, estão as
meninas ao  piano, a dona da casa faz o
histórico da vizinhança, o chefe reclama as chinelas e todos, á vontade, riem,  galram, mostram que têm sangue e que não são  mudos, muito pelo contrario, como dizia o
outro.
O brasileiro é isso: «um povo que faz  cerimônias» e os cronistas sempre o apresentam
 em momentos cerimoniosos, raros são os
que no-lo  mostram como ele
verdadeiramente é — em calças  fofas e
largas chinelas, rindo de mãos nas ilhargas,  como riam os bons velhos de Brantôme e Des  Periers.
Desses raros cronistas um dos mais fieis era 
Urbano Duarte, o excelente, o alegre companheiro que se
finou na estação do riso.
Conversávamos uma vez, no bom e guloso  tempo do 
Babélais,  aqueles opíparos e
intelectuais  jantares! a propósito de crônicas,
era do grupo o  torturado Pompéia, que
então andava a burilar os  seus
rendilhados períodos das  Canções sem
metro,  quando, a propósito de estilo,
alguém lembrou-se  de fazer a apologia da
Fôrma. Urbano,  encarquilhando as pálpebras,
sumindo, ainda mais,  os olhinhos miúdos,
sorria; de repente, pondo-se de  pé,
disse peremptoriamente:
— não concordo. A crônica deve ser um flagrante  da vida, e eu desafio a todos vocês a que me  apresentem um homem, seja uma besta ou um gênio,
 que, na intimidade, fale essa linguagem
que vocês  lhe emprestam. Eu tomo os meus
burgueses nos dias  comuns, no trabalho
ou na cadeira de balanço da  sala de
jantar, com as calças brancas e o paletó de  alpaca ou em mangas de camisa, á fresca, em
quanto  esperam o jantar, ouvindo os seus
canários. Vocês só  apresentam tipos
endomingados, num estilo de   sobrecasaca
e cartola, com muita água de Colônia no  lenço
e muita severidade nos modos. Vocês não  conhecem
o homem — o homem é isso que eu  descrevo;
o resto, meus amigos, arranjo. Vocês  inventaram
essa historia da «tristeza do povo » e  aferram-se a ela. O brasileiro não é triste; o
 brasileiro é o povo mais pândego do
mundo. Querem  a prova? Sempre que eu
conto uma das minhas  anedotas encontro
um sujeito que me diz, sorrindo maliciosamente; «Seu  maganão, aquilo foi com o F.... hein? »
Protesto  — que não, nem conheço o F... e
o homem,  sempre com o risinho malicioso:
«Não conhece,  hein? ora morda-me o dedo
se é capaz». Isso prova  que o fato que
relatei foi um reflexo da realidade.  Eu
não invento — transcrevo. Tristes... tristes  somos nós ».
Efetivamente... tristes somos nós e ele era dos  nossos. Atravessou a vida a fazer rir, que ele
não  ria, as suas crônicas eram
verdadeiras mascaras e,  com a atroada
carnavalesca, como se a Morte  quisesse,
em homenagem a esse dispensador de  prazer, dar-lhe a extrema ilusão no derradeiro
 momento, ele volvia os olhos úmidos para
a  esposa e para os filhos, que era para
esses entes que  ele, calando as dores,
ria através das paginas,  incessantemente,
com a regularidade de uma  máquina
hilariante e, para não entristecer a meiga  companheira... talvez ainda sorrisse.
A sua própria Dor saía disfarçada e quem diria  que era um gemido de moribundo que vinha, ás  vezes, com tão ruidoso tintinabulo pelas colunas
 dos jornais afora?
Bem podia ele dizer com Stecchetti:
Ben ritornato
carneval gioeondo;  
Eccomi serio: ecoo
repiglio il mondo, 
La maschera
bugiaria.  
Oa! non tradire il
mio dolor segreto. 
Pallido aspetto mio!
Mostrati lieto,
Che Ia folia ti
guarda.
Um missionário que por ali passou, demorando-se dois dias
sob as palhas podres dum velho curral,  porque
nenhum dos moradores, para que o santo  homem
não desse pelos torpes vícios que  enegreciam
as suas vidas, tão livres como as dos  animais,
quis hospedá-lo ou apenas visitá-lo, saiu  aterrado daquela aldeia, mais encharcada em pecados
do que a impura Sodoma e, nos campos,  sacudiu,
com horror, a poeira das sandálias. A igreja cabia em ruínas e pastores, nas
horas  mais abrasadas, recolhiam os seus
rebanhos á  sombra fria das lajes da
velha nave e ficavam  profanando o
sagrado muradal com cantares de  amor,
senão com o mesmo amor. O cemitério jazia  desamparado, sem muro ou sebe que o protegesse
 contra os animais e não havia uma cruz
em todo o  vasto terreno tomado pelas ervas
bravas.
Os   sacramentos   eram  
ali   desconhecidos. As crianças
ficavam com os nomes que lhes davam os  pais
sem que o batismo os confirmasse e  purificasse
ao mesmo tempo a almazinha maculada;  não
havia noticias de casamentos e, na hora  extrema,
ninguém se lembrava de reclamar uma  vela
e a presença de um padre para que a alma,  prestes a partir, não saísse em trevas e
carregada de  pecados.
O missionário resumiu a sua impressão numa  Frase: «E uma grande pocilga». E era. Todavia,
 se o santo homem tivesse seguido um trilho
sinuoso  que, por entre velhas arvores,
levava ao alto de um  outeirinho alegre,
teria encontrado os lírios daquele  tremedal:
dois velhinhos e tão puros que, até se  dizia,
á boca pequena, que recebiam no seu casebre  visita de anjos e de santos.
Efetivamente, uma tarde, um velho zagal, que  recolhia com o fato de cabras trêfegas, viu,
no  caminho do outeiro, um lindo moço
louro, com azas  mais brancas do que as
das garças, subindo  vagarosamente em
direção ao casebre. Era um anjo  do
Senhor e, como os velhinhos nem sequer desciam  ao mercado, logo se murmurou na aldeia que o  mesmo Deus os sustentava milagrosamente  mandando-lhes, por anjos, água pura e
manjares.
Em verdade não se pode desejar vida mais santa  do que a que levavam as duas criaturas perdidas
em  tão escuro marnel de crimes. Sempre
juntos, ele e  ela, não desciam ao
povoado para que os seus  trêmulos pés
não tocassem a terra daqueles  caminhos
malditos nem os seus olhos esmorecidos  vissem o rosto dum daqueles heréticos. Viviam
na  moradia solitária e tão arredados da
impureza da aldeia como se estivessem a mil léguas de  distancia.
Contente com eles, já por serem virtuosos e,  principalmente, porque conservavam a virtude
em  tão depravado meio, quis o Senhor
recompensá-los  generosamente com uma ação
de grande  misericórdia. Assim, uma
tarde, estavam os dois  velhinhos, como
de costume, sob uma velha  mangueira,
plantada e tratada por eles, onde as  cigarras
e os g aturamos cantavam ao cerrar do dia,  quando um velhinho, mais velho que eles,  abordoado a um bastão florido, com uma sacola
ao  flanco, apareceu-lhes, como por
encanto, pedindo  agasalho, exatamente
como fez Júpiter, outrora,  procurando,
como peregrino, a Filemon e Baucis. A velha reconheceu prontamente o bom Deus  sob o miserável disfarce e, numa emoção que a  agitou suavemente, sorrindo com lagrimas e tão
 tremula que. nem podia juntar as mãos  engelhadinhas, pôs-se a louvar o Criador,
clamando  que era indigna de receber na
sua miséria Aquele  que governava os
mundos e premiava a justiça.
Mas o Senhor, tranquilizando-a, disse-lhe:
«Que se ela se comovia por vê-lo ali, á sombra  da velha mangueira, mais se comovia a sua  Bondade por ter, naquela terra tão envilecida,
duas  criaturas sãs que lhe abrandavam a cólera
 suspendendo-lhe o movimento de vingança
que  mereciam gente e terra tão vis». E,
aceitando a  oferta dos velhinhos,
sentou-se com eles á mesa  frugal da ceia
e participou, com apetite, da broa e  dum
pedaço de anho que era tudo que havia no armário polire.
 Ao fim do repasto —
já noite negra, posto que o  outeirinho
resplandecesse porque nele estava a  própria
Luz — o Senhor disse aos seus hospedes  que
lhe pedissem uma graça. Os dois hesitaram,  encolhidos de vexame, e foi o mesmo Deus quem,
 de novo, falou:
— Quereis tornar á mocidade? Dar-vos-ei a  mesma força e a mesma beleza que tínheis quando,
na antiga ermida, em presença do cura, vos  recebestes como esposos.
O velhinho sorriu esfregando as mãos a pensar  naquela mocidade ardente e tão bem vivida! Ah!
 como era bom ser moço, poder andar,
correr, bailar,  subir ao monte, ter
força no braço e ligeireza nas  pernas.
Ah! como era bom ser moço!
Por baixo da mesa o seu joelho magro e trêmulo  tocou o joelho trêmulo da velhinha e o Senhor  esperava pacientemente com um doce sorriso na  face venerável. Então a velhinha falou:
— Senhor, o que a Vossa Divina Graça nos  oferece ó, em verdade, um presente divino, só
o  mesmo Deus, como sois, poderia
fazê-lo; mas se a  criaturas vis, como
somos, quisésseis permitir a  sinceridade,
eu vos agradeceria o que nos  ofereceis  com um não respeitoso. Ser moço é, em verdade,
um  grande bem, mas não depois de haver sido
velho. O que torna a vida agradável é a  esperança
e que esperança podemos nós ter quando,  com
a experiência de cem anos pesados, sabemos  que tudo é ilusão? Não, Senhor — não queremos  voltar á mocidade. A vida é um livro que se
não  relê. Já que nos permitis a escolha,
ouso pedir-  vos que nos concedais a
Graça de morrermos sem ânsia, no mesmo minuto, para que um não tenha de  chorar o outro e não sofra a agonia, mesmo rápida,
 da solidão e da saudade. Esta é a graça
que vos  pedimos, Senhor.
E, Deus, comovido, prometeu aos velhos que  assim como desejavam se havia de cumprir.
Disse e  logo um clarão iluminou o
casebre deslumbrando  os velhinhos que
entraram a tremer e, quando os  olhos
tornaram a ver, o recinto estava como dantes  — em silencio e sobre a mesa ardia
escassamente a  candeia das vigílias.
— Queres ver que foi sonho?  exclamou a velha. 
— Sim, foi sonho, afirmou o velho; mas lá estava um prato,
conservando ainda um pouco de  pão e um
pouco de anho, prova de que um terceiro  ali
havia estado e esse terceiro fora o mesmo Deus  que os visitara.
— Tu devias ter pedido a mocidade, disse  baixinho o velho; e a velha, firme na sua
idéia: 
— Foi melhor o que pedi. 
Uma semana depois achavam-se os dois velhos  sentados sob a mangueira, gozando o fresco da
tarde e ouvindo as cigarras e os gaturamos, quando uma nuvem  lhes passou pelos olhos. Ouviram uma doce
musica,  sentiram um aroma gratíssimo e
inclinaram-se, um sobre  o outro,
conservando-se sentados e imóveis, sob a velha mangueira cheia de cigarras e de
gaturamos. Logo  dois anjos desceram e
tomaram as almas dos velhinhos  subindo
com elas ao céu, todo estrelado e com um luar  que luzia como se se houvesse preparado no
Paraíso uma 
grande festa para os receber. 
Os corpos lá ficaram vazios, no banco, sob a velha   mangueira, junto ao casebre do outeirinho e
ali o tempo  os há de consumir sem que os
da aldeia deem pela  morte  daqueles justos. 
Subiam os anjos com as almas e, de repente, o que levava a
da velha,!ouviu-lhe a voz doce a perguntar: 
— E ele! 
— Vem perto, nos braços de um querubim, descansa. 
— Não é uma virgem que o vem trazendo? 
— Não, é um querubim. 
— Ah! 
E subiam. Apesar do voo ligeiro dos anjos levaram  toda a noite a subir até que avistaram a porta
esplendida  do céu, onde uma turba de serafins
desfolhava  flores e  esparzia aromas. 
A alma da velha, sempre preocupada, não se  aquietava entre os braços de seu condutor,
indiferente  aos esplendores celestiais,
só perguntando pela outra.  «Vem aí»,
respondia o anjo sorrindo e assim chegaram á  presença dos Tronos que guardam a entrada do
Paraíso.  Um deles adiantou-se e, tomando
a alma da velha,  levou-a a um grande
santo que se movia entre retortas e  alambiques
em um imenso laboratório. 
O santo trancou-se com a alma da velhinha e, ao cabo  de uns minutos, abrindo de par em par as
portas  rutilantes, declarou que havia encontrado
entre as  virtudes, que eram magníficas,
55 % de ciúme. 
Levantou-se uma discussão entre os anjos: um  bradando que o ciúme era um feio pecado,
porque  A  base do amor deve ser a confiança recíproca,  outros afirmando que o ciúme era a mesma essência
 do amor. Deus decidiu a favor da velha
recebendo-a,  a sorrir, á sua direita e
foi a vez de ser examinada a  alma do
velho.
Não foi longa a operação e o santo, encarregado  do laboratório etliereo, abrindo as portas,
declarou,  carrancudo, que havia
encontrado vestígios de um  amor impuro.
A alma da velha estremeceu á direita de Deus. E  o santo continuou com precisão a expor o crime
 divulgado pela análise:
« Certa noite, na primavera, no caminho do  outeiro, descia uma moçoila para a fonte, com
a  bilha ao ombro, quando esta alma toda
se agitou  num desejo ardente e...» As
virgens coraram e,  batendo azas, fugiram
espavoridas e a alma da velha  tremia á
direita de Deus e soluçava:
— Ah! antes eu não viesse ao céu! Antes eu  não viesse porque conservava a ilusão única da
 minha vida. A Eachel! A Eachel! Estou a
vê-la,  a desavergonhada, com a bilha ao ombro,
a  caminho da fonte. Antes ou não viesse
ao céu.
E a alma do velho, entre os dedos do santo,  tremia, num grande medo. E os juízes declararam
—  «Que aquele pecado merecia ao penas infernais
». Ia o santo soltar a alma pecadora quando a  outra, a da velha, pôs-se a gemer aflita,
rojando-se  aos pés de Deus:
— Para o inferno não, Deus de misericórdia! 
— Louvo a tua caridade, disse o Senhor  comovido, porque tens pena daquele que te  traiu. Não queres que pague nas chamas o seu
crime? 
— Ah! Senhor, não é pelas chamas, não. Pouco  se me dá o fogo que lá arde... 
— Então porque é? perguntou o Senhor e os  anjos, cheios de curiosidade, cercaram a alma  chorosa da velhinha: 
— Ah! Senhor, a falar verdade: é porque  sempre ouvi dizer que o inferno está cheio de  mulheres bonitas.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
 
 
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