O PASSADO
Depois de um ano bem longo de apartamento encontramo-nos peito a peito num abraço forte
que, por muito apertado, como que nos
espremeu o coração fazendo com que nos subisse aos olhos uma umidade que o nosso pudor de homens logo
secou.
Não nos ficava bem chorar na gare de uma estação atulhada de gente, com tantos olhos
curiosos voltados para o nosso lado,
porque o povo começa a interessar-se
pelos seus poetas e ali estava o maior da
nossa geração: Bilac.
Olhei-o depois, vagarosamente e, a principio, pareceu-me o mesmo rapaz robusto e sadio do
bom tempo. Ah! o bom tempo! Pouco a pouco,
porém, (meus olhos estavam deslumbrados
pela emoção) comecei a notar nos cabelos
negros do fino cantor das Virgens mortas uns sulcos de rara alvura, uns fios claros
como uma teia que se tramasse naquele esplendido negror.
Diab! disse comigo numa explosão de egoísmo, somos da mesma idade e se ele tem
esse «sinal dos tempos » eu o devo ter
também e, maquinalmente, passei a mão
pelos cabelos como se quisesse sentir os
mortos, os arrefecidos fios entre os que
ainda conservam o tom louro da mocidade. Não os senti, não podia senti-los, e,
confesso, fiquei com um pequenino
orgulho como se houvesse reconhecido a
minha resistência maior. Mas o amigo, o
irmão, como nos fossemos lentamente dirigindo
para o carro, lançou também um olhar perscrutador
á minha cabeça e, como eu, ufanamente,
alisou os seus cabelos negros e luzidios. E pusemo-nos a falar dos amigos
distantes. Enquanto o carro rodava, ia eu pedindo noticias de um e de outro, de certos lugares amados e o
poeta referia-se aos homens com
tristeza, quanto ás belezas da terra
sempre as mesmas, talvez maiores, realçadas por um ano de copiosos aguaceiros e
de soalheiras abrasadoras. Só os homens
mudam. — Mas tu estás o mesmo.
— E tu?!...
Como mentíamos! Eu vira-lhe os cabelos brancos e ele também descobrira os meus.
Mentíamos ambos.
Quando nos concentramos, no meu gabinete, entre livros, discorremos largamente sobre os
dias passados — dias de esperança, sem
preocupações, sem tormento. Havia dificuldades,
mas com que garbo as vencíamos e o riso era o clarim com que
saíamos a pelejar, entretanto...
— Francamente, suspirou o poeta, se Deus me propusesse voltar á mocidade com a condição de
repassar os sofrimentos que curti, eu
lhe diria:
— Muito obrigado, Senhor!
— Hão querias?
— Não.
— Pois eu daria alguma coisa para tornar a esse
tempo.
Houve um silencio entre nós, interrompido estrondosamente por um dos meus filhos que
entrou cavalgando uma bengala. Enquanto
a criança circulou pelo gabinete
estivemos calados, logo, porém que, ao
apelo tartareado do irmão mais moço,
esfuziou pela porta, aos brados, galopando, voltamos ao nosso assunto.
— Queres saber? Trazes apenas da travessia que juntos fizemos as impressões amáveis. Há memórias
que repelem as recordações amargas. Se
houvesses lentamente descido pelas
barrancas escalavradas de um abismo,
rasgando as carnes nas arestas da pedra,
deixando as roupas, que são as ilusões, (porque
nós andamos vestidos de ilusões) nos espinhais,
sangrando, arquejando, simplesmente porque
na altura o ar era mais fresco e cheiroso e de lá os horizontes pareciam mais amplos e nas
bordas dos rochedos viste flores de cor admirável
e ninhos cheios de pássaros, quererias
voltar ao sofrimento o aos receios da
descida? não, por certo. Pois a nossa vida,
no passado, foi isso, senão foi pior.
— Nem tanto.
— Teríamos de rever os amigos mortos e passaríamos pela dor de os perder de novo, seriamos
pungidos pelas mesmas desilusões.
— E os gozos?
— Gozo! O gozo é o prazer tranquilo que nunca tivemos. O
homem que janta, ás pressas, num hotel de estação, não aprecia o que come. O nosso
prazer era um delírio e queres a prova?
somos dois entediados.
— Eu, não.
— Tu, não? E deixaste o Rio e vieste procurar o silêncio duma cidade do interior. Que é isso
senão indiferença? O teu prazer hoje é
tranquilo, como convém. Tens a esposa,
os filhos, o aconchego seguro, pensas no
amanhã — és homem, enfim. E que eras tu? um visionário que vivias acumulando utopias e
colhendo desenganos. Queres saber? Eu
não olho para o passado com saudade,
senão com tristeza e pena do que lá deixei, que foi muito, foi tudo, devo dizer.
Demais, para recordar esses dias extintos, não careço da memória — tenho os achaques. Pensas que
venho por essas serras acima por gosto?
Não sou alpinista. Venho empurrado por
esse mesmo Passado que me deixou assim,
como vês. Se me dissessem — volta ao passado e virás suavemente pela vida sem moléstias,
caminhando sobre libras esterlinas,
livre das perfídias, da inveja, do ódio
mesquinho e das discussões políticas, eu ainda pediria alguma coisa ao bom Deus...?
— ?
— Que me fizesse bronco, mais bronco que um penhasco, para
não ser perturbado na minha felicidade pela inteligência. Não há coisa pior,
meu amigo. O «Porque? » é pior que o abutre de Prometeu; querer saber é o diabo. Não há nada como a indiferença
dos lorpas e das coisas. Viver como a água
que corre cantando por entre ribas
verdes sem se preocupar com o destino —
se vai direita ao mar ou se tem de rebalsar-se num açude para depois descer a uma azenha e
virar a mó. Isso é que é. Mas viver a vida vivida com todas as suas vicissitudes, nunca! E queres saber para mim
deve ser esse o suplício infernal. Morre
um desgraçado e, na outra existência, é
condenado a repassar todos os sofrimentos
que o atormentaram na primeira provação —
dores, falta de agasalho, dias de solidão, noites de insônia, intrigas, o diabo...
— E tu que não falas dum só momento feliz, porque os tivemos.
— Gotas de água no absinto.
— Que pessimismo, homem. Isso é influencia do dia, que
está taciturno, com essas nuvens pardas. Vamos dar uma volta pela cidade. Conheces Campinas? Já
aqui estiveste?
— Sim, em 1892, horas apenas.
— Pois vamos dar uma volta.
Saímos. O dia era triste, nublado; nos telhados das casas corvos negros, pousados numa imobilidade
de figuras de bronze, concorriam para a
melancolia que nos ia encharcando a
alma. Em uma das praças cantava a água dum
chafariz. Começou a polvilhar uma neblina fria, que ia abrumando o horizonte. Amiudamos
os passos, corremos curvados, com as golas dos casacos levantadas. Quando
nos refugiamos na Minerva — justamente o caixeiro chegava para o muito
conhecido: «Que há de ser?»— a chuva caiu
forte, aos jorros, ruflando na
vidraçaria e o poeta, sacudindo-se, muito cauteloso, arrepiado e arrependido de haver
saído sem o guarda-chuva, resmungou
contra o tempo pérfido:
— Diabo! esta molhadela agora...
«— Quê? estás impressionado!
— Então? Que pensas? Julgas, talvez, que somos ainda aqueles doidos que afrontávamos
aguaceiros como o famoso que apanhamos
desde o largo do Eocio até á rua do Riachuelo
uma noite de carnaval? Pois sim!... Hoje
os médicos nem querem que eu apanhe sereno. E tu? O caixeiro serviu-nos dois grogs.
Lembras-te da tua volta do rio d'Ouro,
quando lá foste com Moisés Frontin para
a maravilha da água em seis dias? parecias um daqueles bárbaros de Armínio descritos por
Tácito. — Se me lembro! molhado até os
ossos.
— E nada, hein?
— Fome apenas.
— Bom tempo!
E o poeta, talvez para não cair em contradição, pôs-se a mexer lentamente o seu grog, mas bem que lhe
notei certa ondulação do peito como se
ele houvesse engolido um suspiro. Por
fim, não se contendo, disse:
— Estamos velhos, meu amigo.
Eu afirmei num aceno, descorçoado. E, calados, ficamos a ouvir a chuva que jorrava grossa.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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