segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Coelho Neto: "O Passado"

O PASSADO

Depois de um ano bem longo de apartamento  encontramo-nos peito a peito num abraço forte que,  por muito apertado, como que nos espremeu o coração fazendo com que nos subisse aos olhos uma  umidade que o nosso pudor de homens logo
secou.

Não nos ficava bem chorar na gare de uma  estação atulhada de gente, com tantos olhos curiosos  voltados para o nosso lado, porque o povo começa a  interessar-se pelos seus poetas e ali estava o maior  da nossa geração: Bilac.

Olhei-o depois, vagarosamente e, a principio,  pareceu-me o mesmo rapaz robusto e sadio do bom  tempo. Ah! o bom tempo! Pouco a pouco, porém,  (meus olhos estavam deslumbrados pela emoção)  comecei a notar nos cabelos negros do fino cantor  das  Virgens mortas  uns sulcos de rara alvura, uns fios claros como uma  teia que se tramasse naquele  esplendido negror.

Diab! disse comigo numa explosão de  egoísmo, somos da mesma idade e se ele tem esse  «sinal dos tempos » eu o devo ter também e,  maquinalmente, passei a mão pelos cabelos como se  quisesse sentir os mortos, os arrefecidos fios entre  os que ainda conservam o tom louro da mocidade. Não os senti, não podia senti-los, e, confesso,  fiquei com um pequenino orgulho como se houvesse  reconhecido a minha resistência maior. Mas o  amigo, o irmão, como nos fossemos lentamente  dirigindo para o carro, lançou também um olhar  perscrutador á minha cabeça e, como eu,  ufanamente, alisou os seus cabelos negros e  luzidios. E pusemo-nos a falar dos amigos distantes. Enquanto o carro rodava, ia eu pedindo noticias  de um e de outro, de certos lugares amados e o  poeta referia-se aos homens com tristeza, quanto ás  belezas da terra sempre as mesmas, talvez maiores,  realçadas por um ano de copiosos aguaceiros e de  soalheiras abrasadoras. Só os homens mudam. — Mas tu estás o mesmo.

— E tu?!...

Como mentíamos! Eu vira-lhe os cabelos  brancos e ele também descobrira os meus.

Mentíamos ambos.

Quando nos concentramos, no meu gabinete,  entre livros, discorremos largamente sobre os dias  passados — dias de esperança, sem preocupações,  sem tormento. Havia dificuldades, mas com que garbo as vencíamos e o riso era o clarim com que
saíamos a pelejar, entretanto...

— Francamente, suspirou o poeta, se Deus me  propusesse voltar á mocidade com a condição de  repassar os sofrimentos que curti, eu lhe diria:

— Muito obrigado, Senhor!

— Hão querias?

— Não.

 —  Pois eu daria alguma coisa para tornar a esse  tempo.

Houve um silencio entre nós, interrompido  estrondosamente por um dos meus filhos que entrou  cavalgando uma bengala. Enquanto a criança  circulou pelo gabinete estivemos calados, logo,  porém que, ao apelo tartareado do irmão mais  moço, esfuziou pela porta, aos brados, galopando,  voltamos ao nosso assunto.

— Queres saber? Trazes apenas da travessia que  juntos fizemos as impressões amáveis. Há memórias  que repelem as recordações amargas. Se houvesses  lentamente descido pelas barrancas escalavradas  de um abismo, rasgando as carnes nas arestas da  pedra, deixando as roupas, que são as ilusões,  (porque nós andamos vestidos de ilusões) nos  espinhais, sangrando, arquejando, simplesmente  porque na altura o ar era mais fresco e cheiroso e de  lá os horizontes pareciam mais amplos e nas bordas  dos rochedos viste flores de cor admirável e ninhos  cheios de pássaros, quererias voltar ao sofrimento o  aos receios da descida? não, por certo. Pois a nossa  vida, no passado, foi isso, senão foi pior.

— Nem tanto.

— Teríamos de rever os amigos mortos e passaríamos  pela dor de os perder de novo, seriamos pungidos pelas  mesmas desilusões.

— E os gozos?

— Gozo! O gozo é o prazer tranquilo que nunca tivemos. O homem que janta, ás pressas, num hotel de  estação, não aprecia o que come. O nosso prazer era um  delírio e queres a prova? somos dois entediados.

— Eu, não.

— Tu, não? E deixaste o Rio e vieste procurar o  silêncio duma cidade do interior. Que é isso senão  indiferença? O teu prazer hoje é tranquilo, como  convém. Tens a esposa, os filhos, o aconchego seguro,  pensas no amanhã — és homem, enfim. E que eras tu?  um visionário que vivias acumulando utopias e colhendo  desenganos. Queres saber? Eu não olho para o passado  com saudade, senão com tristeza e pena do que lá deixei,  que foi muito, foi tudo, devo dizer.

Demais, para recordar esses dias extintos, não careço  da memória — tenho os achaques. Pensas que venho por  essas serras acima por gosto? Não sou alpinista. Venho  empurrado por esse mesmo Passado que me deixou  assim, como vês. Se me dissessem — volta ao passado e  virás suavemente pela vida sem moléstias, caminhando  sobre libras esterlinas, livre das perfídias, da inveja, do  ódio mesquinho e das discussões políticas, eu ainda  pediria alguma coisa ao bom Deus...?

— ?

— Que me fizesse bronco, mais bronco que um penhasco, para não ser perturbado na minha felicidade pela inteligência. Não há coisa pior, meu amigo. O «Porque? » é pior que o abutre de Prometeu; querer  saber é o diabo. Não há nada como a indiferença dos  lorpas e das coisas. Viver como a água que corre  cantando por entre ribas verdes sem se preocupar com o  destino — se vai direita ao mar ou se tem de rebalsar-se  num açude para depois descer a uma azenha e virar a mó. Isso é que é. Mas viver a vida vivida com todas as suas  vicissitudes, nunca! E queres saber para mim deve ser  esse o suplício infernal. Morre um desgraçado e, na  outra existência, é condenado a repassar todos os  sofrimentos que o atormentaram na primeira provação  — dores, falta de agasalho, dias de solidão, noites de  insônia, intrigas, o diabo...


— E tu que não falas dum só momento feliz, porque  os tivemos.

— Gotas de água no absinto.

— Que pessimismo, homem. Isso é influencia do dia, que está taciturno, com essas nuvens pardas. Vamos dar  uma volta pela cidade. Conheces Campinas? Já aqui  estiveste?

— Sim, em 1892, horas apenas.

— Pois vamos dar uma volta.

Saímos. O dia era triste, nublado; nos telhados das  casas corvos negros, pousados numa imobilidade de  figuras de bronze, concorriam para a melancolia que nos  ia encharcando a alma. Em uma das praças cantava a  água dum chafariz. Começou a polvilhar uma neblina  fria, que ia abrumando o horizonte. Amiudamos os  passos, corremos curvados,  com as golas dos casacos levantadas. Quando nos refugiamos na  Minerva  — justamente o caixeiro chegava para o muito conhecido:  «Que há de ser?»— a chuva caiu forte, aos jorros,  ruflando na vidraçaria e o poeta, sacudindo-se, muito  cauteloso, arrepiado e arrependido de haver saído sem o  guarda-chuva, resmungou contra o tempo pérfido:

— Diabo! esta molhadela agora...

«— Quê? estás impressionado!

— Então? Que pensas? Julgas, talvez, que somos  ainda aqueles doidos que afrontávamos aguaceiros  como o famoso que apanhamos desde o largo do Eocio  até á rua do Riachuelo uma noite de carnaval? Pois sim!...  Hoje os médicos nem querem que eu apanhe sereno. E  tu? O caixeiro serviu-nos dois grogs. Lembras-te da tua  volta do rio d'Ouro, quando lá foste com Moisés Frontin  para a maravilha da água em seis dias? parecias um  daqueles bárbaros de Armínio descritos por Tácito.  — Se me lembro! molhado até os ossos.

— E nada, hein?

— Fome  apenas.

— Bom tempo!

E o poeta, talvez para não cair em contradição, pôs-se a  mexer lentamente o seu grog, mas bem que lhe notei certa  ondulação do peito como se ele houvesse engolido um suspiro.  Por fim, não se contendo, disse:

— Estamos velhos, meu amigo.

Eu afirmei num aceno, descorçoado. E, calados,  ficamos a ouvir a chuva que jorrava grossa.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com 

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