AS ÁRVORES
Li algures que, na China, quando nasce um infante, os pais
plantam uma arvore. Á medida que a criança
vai crescendo, vai a arvore ganhando vigor e beleza; e quando o petiz, ainda mal seguro nas
pernas, sai, arrastando pela cauda um
minúsculo papagaio de papel de arroz,
pintado a cores, a sua verde irmã, lá de
longe, acena-lhe com todos os seus ramos
viçosamente cobertos de folhas e, se é precoce,
recamados de flores.
Para alentá-lo tem o jovem chim os cuidados domésticos — os pais não o perdem de vista e a
ama tártara, solicita e carinhosa,
segue-o a toda a parte, protegendo-o, ao
sol, com a sua sombra, equilibrando-o com os seus braços, animando-o com o seu canto monótono e, á noite, depois de o adormecer com uma historia maravilhosa,
deita-se- lhe junto ao berço de laça, em fina esteira e, ao mais leve resmungo, ei-la de pé, debruçada, a
examinar a cócedra macia, a sacudir o mosquiteiro ou a balançar, de leve, o berço delicado. De manhã, lá o leva
ao ar puro, aos jardins, a correr na
relva ainda úmida e, quando o sol
aquece, vai ficar á beira dos lagos que parecem dormir um sono doce e eterno e sobre
os quais as aves, que se refletem
ligeiramente, passando e fugindo no ar,
são como iterativos sonhos.
A arvorezinha tem apenas o sol e as chuvas que a vão nutrindo e, nos tempos secos, duas vezes ao
dia, ao partir e ao chegar das pombas
domesticas, a rega do velho tangia melancólico. Ninguém a agasalha —
dorme exposta ao tempo, ao clarão dos
luares, e cresce, enfolha- se, frondeja e floresce.
O jovem chim deixa os braços da ama e, seguindo para um quiosque forrado de seda, alto como um
agasalhado discreta, silenciosamente num
bosque de bambus, entrega-se a um velho
letrado que lhe fala dos grandes
espíritos do império: Laótseu propagando a doutrina de Taó, Confúcio ditando aos
discípulos as tais sábias leis puras da
moral dos lamas contemplativos que descem
do Tibet, como uma corrente beneficiadora, fazendo crescer nas almas a esperança e, por
desfastio, de quando em quando, lá lhe
põe ante os olhos uma peça dramática
composta por alguma das mulheres do régio liarem para os cômicos da corte.
Depois são as armas — é um espadachim que lhe transmite a sua ágil ciência, manejando uma
espada ou enristando uma lança; depois o
mestre de equitação que aderência um
alfario árdego até que, um dia, moço e lindo,
gracioso e robusto, para continuar a gloria da sua casa, os pais, depois de muitas consultas, resolvem dar-lhe por esposa
uma princesa mandchu senhora de terras
vastas, ricas em arroz e em arvores de
laça.
Contratada a aliança, determinado o dia dos esponsais, é logo chamado um artista perito para
construir o leito nupcial. E a arvore
que, Ia fora, toda se enfeita ao sol, a
arvore plantada no dia do nascimento do
noivo, alta e forte, verde e em flor, é sacrificada
como uma vítima. Recebe no tronco um golpe
fundo, outro logo, ainda outro, cava-se uma cinta donde escorre, como sangue novo e sadio,
a seiva loura, saltam aparas e a madeira
ringe, estrepita, estala, oscila e
pende. A fronde ainda resiste, mas a uma leve aragem, derreia-se languidamente
e, ao peso da folhagem, inclina-se com fragor
atroante e tomba com sonoro farfalhar de folhas e de galhos.
É depois arrastada, entra na oficina, é serrada, acepilhada, torneada e vai, pouco a pouco, sob
os ferros do artista, tomando a feição
graciosa de um leito. Os embutidos
enfeitam-na, os vernizes emprestam-lhe
brilho resplandecente, o ouro enriquece-a
em filetes de caprichosas voltas e, no respaldar,
o dragão emblemático de rútilas escamas, contorce-se, de olhos fuzilantes, com as
garras de ouro esmagando crisântemos e lírios
sobre um fundo vago, indefinido, onde
voam garças.
É nesse leito que se reúnem os membros da nova família. A arvore torna-se assim como um elo humano — o seu destino é nobre, a sua genitora
é poética e, á proporção que sobe, vão
os pais sentindo que ó tempo de cuidar
das bodas e ela, noiva, que deve repousar nos seus braços e gerar no seu colo.
Eis aí um culto poético que, se não garante a eternidade do vegetal, estabelece, ao menos, a
obrigação do replantio, Assim, na China,
enquanto nascerem infantes, nascerão
arvores. Um pimpolho que engatinha
indica que há uma ramaria a dar sombra e
flor, um tronco forte, não longe, destinado a ser o tálamo sagrado — e ganha a natureza
com essa tradição poética, criada, sem
duvida, por um filósofo budista, defensor
de animais e florestas.
Por que não havemos nós de imitar, no amor, essa gente bárbara, que vive confinada entre
as altas muralhas, além das quais não
chega a civilização?
Se um bruto mongol entrasse em uma das nossas matas e encontrasse o lenhador derrubando velhíssimos troncos, não para aproveitá-los em
úteis construções, mas para reduzi-los a
achas, certamente, e com razão,
tomá-lo-ia por um bárbaro. Pois esses
bárbaros constituem legiões — do extremo
Norte ao estremo Sul do Brasil o machado trabalha desapiedadamente, sem descontinuar, devastando.
Quem percorre o interior paulista vê, ao longo das linhas férreas, altas trincheiras de lenha
— é o tributo florestal. As locomotivas,
como os dragões das lendas medievais,
exigem esse repasto cruel. A tarasca de
Ehódano reclamava virgens; o monstro de
ferro exige o cedro, e a selva despovoa-se em proveito do que chamam — o progresso.
A área esterilizada pelo machado é imensa — o calculo feito por um distinto engenheiro, o
dr. João Pedro Cardoso, assombra e prova, com algarismos irrefutáveis, que se os lavradores
não tratarem, em tempo, de sustar a
depredação, dentro em breve uma grande
área do riquíssimo Estado de S. Paulo
não será mais que vageiro esmarrido. Com a morte das arvores desaparecem as fontes:
rios que rolavam águas abundantes derivam agora em filetes rasos e tão escassos que uma
quente semana de verão á bastante para
secá-los; a caça rareia. Estrangeiros,
que percorrem o interior, voltam
impressionados com a ausência de pássaros — não se ouve um gorjeio, não se vê um ninho —
tudo é silencioso, e viaja-se longamente, ao sol, sem um oásis, sem uma arvore, mas os tocos
adustos, que apontam á flor da terra, atestam
a existência anterior de florestas
grandiosas — levou-as o machado,
arrasou-as o fogo, e, sobre, o terreno, nu e sáfaro, cresce a erva maninha que apenas serve
de abrigo á serpe. O ar vicia-se, o
mesmo clima modifica-se, e isso é notado
pelos velhos moradores desses lugares, dantes
bem regados e sadios, e hoje secos,
ingratos e insalubres, onde o homem não vive
nem a sementeira vinga.
Além das estradas de ferro, que devoram as florestas, grande numero de fabricas não
queima outro combustível senão a lenha,
e já não falo na que se consome nos
fogões domésticos.
O lenhador vive folgamente, sem preocupações — não tem o cuidado do lavrador que se alarma quando, no tempo da florada, o sol abrasa ou grandes chuvas assolam; não lhe importa a
geada, as larvas são-lhe indiferentes —
sempre é tempo para destruir e o mercado
é sempre lucrativo.
Um ferro de bom geme, o carro e quatro juntas de bois bastam ao que vai á floresta, e quem atravessa as estradas ouve monotonamente os
golpes do machado, de repente um grito
de aviso e logo o estrondo da queda da árvore
talhada.
Parece, entretanto, que já se vai sentindo a necessidade do replantio; os mesmos «fazedores
de desertos», como muito bem lhes chamou
Euclides da Cunha, começam a compreender
o mal que fizeram, mas não se atrevem a
repará-lo, porque é mais difícil
construir que destruir — emigram, talvez
com remorsos, passam adiante, de olhos compridos,
consultando os horizontes rasos, e onde descobrem
verduras frondosas, aí ficam, afiam os ferros,
armam ranchos e entram em exercício.
Dizem-me que há leis decretadas em favor das arvores, afirmam-me
que o Congresso já se preocupou com
essas míseras autóctones, mas quem há de
fazer respeitar a lei? Onde estão os nossos guardas florestais, a nossa policia das
matas e dos campos? Ninguém os viu até
hoje. O homem, que atravessa a trilha
com a caçadeira e um cão, é um pobre
matuto que vai bater a macega ou o
cerrado, ver se levanta uma perdiz. As arvores não tem defensores.
As municipalidades evitam, com esperta prudência, a luta.
O fazendeiro declara que as matas lhe
pertencem, são seus bens, pôde mandar destruí-las
se assim lhe convier. Que lhe importa a manutenção
dos mananciais que abeberam a cidade ou
a vila? a lenha é tão sua como o café e o milho, a cana e o feijão, o arroz, a batata e a
mandioca que ele colhe e manda ao
mercado, e o lenhador errante é um voto certo e será um terrível capataz da oposição se a municipalidade lhe sair
ao encontro proibindo-lhe a faina cruel.
E, dia a dia, vão os bosques desaparecendo. A região privilegiada
e formosa das arvores será, em breve,
mais árida e mais nua do que a Líbia estéril. Os mais belos espécimes da nossa flora riquíssima
somem-se reduzidos a cinzas e os animais
emigram, fogem: uns pela terra, outros
pelos ares, buscando novos abrigos, e a
terra alhanada, deserta, com uma hirsuta
felpa de capins ressequidos, estende-se, plana e solitária, ao sol que a queima, cheia
de cepos tostados, que são como
fragmentos de colunas, restos de um fastígio
morto, escombros de uma glória extinta,
ou cipos funerais num cemitério.
O arvoredo é o grande químico de Deus. Felizmente o alarma, que repercute em todo o Estado, vai despertando a atenção dos que
ainda se interessam pela sorte desta
terra formosa, rica e desgraçada.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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Advertência:
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