segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Coelho Neto: "As Árvores"

AS ÁRVORES



Li algures que, na China, quando nasce um infante, os pais plantam uma arvore. Á medida que a  criança vai crescendo, vai a arvore ganhando vigor e  beleza; e quando o petiz, ainda mal seguro nas  pernas, sai, arrastando pela cauda um minúsculo  papagaio de papel de arroz, pintado a cores, a sua  verde irmã, lá de longe, acena-lhe com todos os  seus ramos viçosamente cobertos de folhas e, se é  precoce, recamados de flores.

Para alentá-lo tem o jovem chim os cuidados  domésticos — os pais não o perdem de vista e a ama  tártara, solicita e carinhosa, segue-o a toda a parte,  protegendo-o, ao sol, com a sua sombra, equilibrando-o com os seus braços, animando-o com o  seu canto monótono e, á noite, depois de o  adormecer com uma historia maravilhosa, deita-se- lhe junto ao berço de laça, em fina esteira e, ao mais  leve resmungo, ei-la de pé, debruçada, a examinar a cócedra macia, a sacudir o mosquiteiro ou a balançar,  de leve, o berço delicado. De manhã, lá o leva ao ar  puro, aos jardins, a correr na relva ainda úmida e,  quando o sol aquece, vai ficar á beira dos lagos que  parecem dormir um sono doce e eterno e sobre os quais  as aves, que se refletem ligeiramente, passando e  fugindo no ar, são como iterativos sonhos.

A arvorezinha tem apenas o sol e as chuvas que a vão  nutrindo e, nos tempos secos, duas vezes ao dia, ao  partir e ao chegar das pombas domesticas, a rega do  velho tangia melancólico. Ninguém a agasalha — dorme  exposta ao tempo, ao clarão dos luares, e cresce, enfolha- se, frondeja e floresce.

O jovem chim deixa os braços da ama e, seguindo  para um quiosque forrado de seda, alto como um  agasalhado discreta, silenciosamente num bosque de  bambus, entrega-se a um velho letrado que lhe fala dos  grandes espíritos do império: Laótseu propagando a  doutrina de Taó, Confúcio ditando aos discípulos as  tais sábias leis puras da moral dos lamas contemplativos que  descem do Tibet, como uma corrente beneficiadora,  fazendo crescer nas almas a esperança e, por desfastio, de  quando em quando, lá lhe põe ante os olhos uma peça  dramática composta por alguma das mulheres do régio  liarem para os cômicos da corte.

Depois são as armas — é um espadachim que lhe  transmite a sua ágil ciência, manejando uma espada ou  enristando uma lança; depois o mestre de equitação que  aderência um alfario árdego  até que, um dia, moço e  lindo, gracioso e robusto, para continuar a gloria da sua  casa, os pais, depois de  muitas consultas, resolvem dar-lhe por esposa uma  princesa mandchu  senhora de terras vastas, ricas  em arroz e em arvores de laça.

Contratada a aliança, determinado o dia dos  esponsais, é logo chamado um artista perito para  construir o leito nupcial. E a arvore que, Ia fora,  toda se enfeita ao sol, a arvore plantada no dia do  nascimento do noivo, alta e forte, verde e em flor, é  sacrificada como uma vítima. Recebe no tronco um  golpe fundo, outro logo, ainda outro, cava-se uma  cinta donde escorre, como sangue novo e sadio, a  seiva loura, saltam aparas e a madeira ringe,  estrepita, estala, oscila e pende. A fronde ainda resiste, mas a uma leve aragem, derreia-se languidamente e, ao peso da folhagem, inclina-se com  fragor atroante e tomba com sonoro farfalhar de  folhas e de galhos.

É depois arrastada, entra na oficina, é serrada,  acepilhada, torneada e vai, pouco a pouco, sob os  ferros do artista, tomando a feição graciosa de um  leito. Os embutidos enfeitam-na, os vernizes  emprestam-lhe brilho resplandecente, o ouro  enriquece-a em filetes de caprichosas voltas e, no  respaldar, o dragão emblemático de rútilas escamas,  contorce-se, de olhos fuzilantes, com as garras de  ouro esmagando crisântemos e lírios sobre um  fundo vago, indefinido, onde voam garças.

É nesse leito que se reúnem os membros da nova  família. A arvore torna-se assim como um elo  humano — o seu destino é nobre, a sua genitora é  poética e, á proporção que sobe, vão os pais  sentindo que ó tempo de cuidar das bodas e ela, noiva, que deve repousar nos seus braços e gerar no  seu colo.

Eis aí um culto poético que, se não garante a  eternidade do vegetal, estabelece, ao menos, a  obrigação do replantio, Assim, na China, enquanto  nascerem infantes, nascerão arvores. Um pimpolho  que engatinha indica que há uma ramaria a dar  sombra e flor, um tronco forte, não longe, destinado  a ser o tálamo sagrado — e ganha a natureza com  essa tradição poética, criada, sem duvida, por um  filósofo budista, defensor de animais e  florestas.

Por que não havemos nós de imitar, no amor,  essa gente bárbara, que vive confinada entre as altas  muralhas, além das quais não chega a civilização?

Se um bruto mongol entrasse em uma das nossas  matas e encontrasse o lenhador derrubando  velhíssimos troncos, não para aproveitá-los em úteis  construções, mas para reduzi-los a achas,  certamente, e com razão, tomá-lo-ia por um bárbaro.  Pois esses bárbaros constituem legiões — do  extremo Norte ao estremo Sul do Brasil o machado  trabalha desapiedadamente, sem descontinuar,  devastando.

Quem percorre o interior paulista vê, ao longo  das linhas férreas, altas trincheiras de lenha — é o  tributo florestal. As locomotivas, como os dragões  das lendas medievais, exigem esse repasto cruel. A  tarasca de Ehódano reclamava virgens; o monstro  de ferro exige o cedro, e a selva despovoa-se em  proveito do que chamam — o progresso.

A área esterilizada pelo machado é imensa —  o calculo feito por um distinto engenheiro, o dr. João Pedro Cardoso, assombra e prova, com  algarismos irrefutáveis, que se os lavradores não  tratarem, em tempo, de sustar a depredação, dentro  em breve uma grande área do riquíssimo Estado de  S. Paulo não será mais que vageiro esmarrido. Com a morte das arvores desaparecem as fontes: rios que rolavam águas abundantes derivam  agora em filetes rasos e tão escassos que uma quente  semana de verão á bastante para secá-los; a caça  rareia. Estrangeiros, que percorrem o interior,  voltam impressionados com a ausência de pássaros  — não se ouve um gorjeio, não se vê um ninho — tudo é silencioso, e viaja-se longamente, ao sol, sem  um oásis, sem uma arvore, mas os tocos adustos,  que apontam á flor da terra, atestam a existência  anterior de florestas grandiosas — levou-as o  machado, arrasou-as o fogo, e, sobre, o terreno, nu e  sáfaro, cresce a erva maninha que apenas serve de  abrigo á serpe. O ar vicia-se, o mesmo clima  modifica-se, e isso é notado pelos velhos moradores  desses lugares, dantes bem regados e sadios, e hoje  secos, ingratos e insalubres, onde o homem não  vive nem a sementeira vinga.

Além das estradas de ferro, que devoram as  florestas, grande numero de fabricas não queima  outro combustível senão a lenha, e já não falo na  que se consome nos fogões domésticos.

O lenhador vive folgamente, sem preocupações  — não tem o cuidado do lavrador que se alarma  quando, no tempo da florada, o sol abrasa ou  grandes chuvas assolam; não lhe importa a geada,  as larvas são-lhe indiferentes — sempre é tempo  para destruir e o mercado é sempre lucrativo.

Um ferro de bom geme, o carro e quatro juntas  de bois bastam ao que vai á floresta, e quem  atravessa as estradas ouve monotonamente os golpes  do machado, de repente um grito de aviso e logo o  estrondo da queda da árvore talhada.

Parece, entretanto, que já se vai sentindo a  necessidade do replantio; os mesmos «fazedores de  desertos», como muito bem lhes chamou Euclides  da Cunha, começam a compreender o mal que  fizeram, mas não se atrevem a repará-lo, porque é  mais difícil construir que destruir — emigram,  talvez com remorsos, passam adiante, de olhos  compridos, consultando os horizontes rasos, e onde  descobrem verduras frondosas, aí ficam, afiam os  ferros, armam ranchos e entram em exercício.

Dizem-me que há leis decretadas em favor das arvores, afirmam-me que o Congresso já se  preocupou com essas míseras autóctones, mas  quem há de fazer respeitar a lei?  Onde estão os  nossos guardas florestais, a nossa policia das matas  e dos campos? Ninguém os viu até hoje. O homem,  que atravessa a trilha com a caçadeira e um cão, é  um pobre matuto que vai bater a macega ou o
cerrado, ver se levanta uma perdiz. As arvores não  tem defensores.

As municipalidades evitam, com esperta prudência, a luta. O fazendeiro declara que as  matas lhe pertencem, são seus bens, pôde mandar  destruí-las se assim lhe convier. Que lhe importa a  manutenção dos mananciais que abeberam a cidade  ou a vila? a lenha é tão sua como o café e o milho,  a cana e o feijão, o arroz, a batata e a mandioca que  ele colhe e manda ao mercado, e o lenhador errante é um voto certo e será um terrível  capataz da oposição se a municipalidade lhe sair  ao encontro proibindo-lhe a faina cruel.

E, dia a dia, vão os bosques desaparecendo. A região privilegiada e formosa das arvores será, em  breve, mais árida e mais nua do que a Líbia estéril.  Os mais belos espécimes da nossa flora riquíssima  somem-se reduzidos a cinzas e os animais emigram,  fogem: uns pela terra, outros pelos ares, buscando  novos abrigos, e a terra alhanada, deserta, com uma  hirsuta felpa de capins ressequidos, estende-se,  plana e solitária, ao sol que a queima, cheia de cepos  tostados, que são como fragmentos de colunas,  restos de um fastígio morto, escombros de uma  glória extinta, ou cipos funerais num cemitério.

O arvoredo é o grande químico de Deus.  Felizmente o alarma, que repercute em todo o  Estado, vai despertando a atenção dos que ainda se  interessam pela sorte desta terra formosa, rica e  desgraçada.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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