domingo, 22 de setembro de 2013

Coelho Neto: "A Sorte"

A SORTE
  
A bruma viera cedo apressando a noite, a noite maior, e trazendo o frio, o bom frio do S. João. Não havia uma  estrela, certamente Jesus as escondera para que o essênio  bravio, que acabou ás mãos de Menael, no fundo do  cárcere de Machaerous, perto das cavalhariças de  Herodes, onde brilhavam, como de neve, as trezentas  éguas brancas da Arábia que Vitélio arrebanhou,  maravilhado, não se aproveitasse de alguma para, com  ela, incendiar o mundo. Não havia uma estrela, em  compensação, de instante a instante, alguém bradava no  terreiro anunciando um balão. Corriam todos contentes,  em chalrada ruidosa, as crianças empurrando os velhos e,  na varanda, ao frio, ficavam a olhar o fogo errante que lá  ia oscilando, aos boléus, em direção ás montanhas.  A fogueira alta ardia no terreiro espalhando um rubro  clarão  que chegava  ás  arvores tingindo-as  de sangue e tornando a folhagem rutilante. Por  vezes, ao abater dum tronco encarvoado, fagulhava  um enxame de faíscas alegres que estralejavam e  morriam. As crianças levantavam alarido saltando e batendo as palmas: «As abelhas de S. João! As  abelhas de S. João!»
  
Súbito, um foguete arrancava e lá subia serpenteando, explodia: dois, três estouros ou eram bombas que estrondavam. Feixes de cana, rimas de  batatas e de carás esperavam a um canto, perto de  uma aroeira, a hora do pagode, como dizia tio Chico. Violas e cavaquinhos preludiavam e, lá dentro,  na casa iluminada, era um ir e vir de gente apressada em torno da mesa florida, onde já os grandes  bolos tostados, os cremes, as gelatinas, os sequilhos  empilhados, os alfenins alvíssimos e as compoteiras  desafiavam a gula da petizada e mesmo dos taludos  que rondavam aquele altar esquecendo o outro,  armado numa saleta, entre folhagens, onde S. João,  cercado de círios e de rosas, com o cajado e o  malote ao ombro, seguido do cordeirinho, estendia  a mão como a abençoar.

As velhas faziam-lhe a corte: volta e meia lá estava uma espevitando os círios, afastando um  galho pendido ou contemplando, com enlevo, a  imagem. Outras chegavam e, de mãos enclavinhadas, ficavam um instante a olhar, com um  movimento tremulo dos lábios. Só a dona da casa,  muito ocupada com a ceia, não se detinha ante o  santo — quase que nem olhava, tendo-o por uma  «divindade domestica», um intimo com o qual não  fazia cerimônias. As outras que pedissem á vontade,  ela não precisava; tinha-o todo o ano em casa e, quando quisesse alguma coisa, era só abrir o  oratório e rezar um terço.

No peitoril duma janela, ao sereno, um copo de  água esfriava — alguém ali o deixara, com um ovo  dentro, para ver a sorte á meia noite. Tiravam-se os  primeiros cantos, logo interrompidos pelas gargalhadas... recordações alegres de outros anos.

« Quá, genti!» e lá iam os tangedores, dobrados sobre os instrumentos, ponteando com bravura, qual  mais ágil, qual mais faceiro, repenicando os bordões que ressoavam cheios, pondo um arrepio em todas as  raparigas. Mas a noite esfriava deveras; uma  aragem gelada vinha de fora. Pipocavam foguetes,  crepitava a fogueira; mas era inverno bravo, os  dedos estavam duros. «Genti, issu assim não vai.»

Tio Chico entendeu as falas e foi logo, pressuroso, buscar o restilo para animar o povo. «Sim, que  encarangados eles não podiam mesmo tocar coisa que  prestasse e a noite estava dura. Ele próprio, que não era  friorento, estava ali fazendo de forte, só Deus sabia  como.» E lá foi o codório  no mesmo copo de vidro  grosso, de mão em mão, e era um pigarrear satisfeito em  todo o bando. «Agora pega, genti! mas pega olim  sustância, nada d'afrouxá. Oia ca genti não sabe si chega  pro ano!» « Cruz! Credo!» rebateram o agouro. Havemos de chegar, porque não? O santo não tá ahi? qui mais! Deixa di fala ansim. Que a morte tem de vir, todo o  mundo sabe, mas o melhor ó não fala nela. Que venha  quando Deus quisé». «E que seja bem tarde!» disse um  dos violeiros e Casimiro, que era folião, acrescentou  com a sua voz cheia: «Permitia Deus que ela, quando tive di vi pra mim, dê uma topada no caminho e fique concertando o pé uns bons  par de anos ...» Houve riso e um «Pois sim!» atirado num muxoxo.

Mas uma das violas rompeu e as outras, em concerto,  com os trêmulos dos cavaquinhos e os graves dos  violões, deram o sinal da dança.

Uma a uma, graciosamente, foram as moças cedendo  aos convites dos rapazes e, em pouco, os pares  revoluteavam e era um sorriso só em todos os rostos, um  só brilho em todos os olhos e que aroma na sala, de  canela e de lírios, lírios das águas, dos que nascem no  meio das lagoas, nos remansos dos rios, tão brancos,  que  até dizem que são restos da lua cheia que ficam nas águas  e que vêm á tona, de noite, pedindo á lua que os recolha.  As velhas, sentadas pelos cantos, enlevavam-se nas  graças das filhas e, quem sabe lá se aqueles sorrisos, que  lhes franziam mais os rostos encarquilhados, não se  referiam ás suas reminiscencias, ao bom tempo d'antanho,  quando, novas e lindas como aquelas que ali dançavam, cingidas, por braços de rapagões, ai! deles, ouvindo-lhes  as palavras iam, quase sem sentir o chão, fazendo voltas  airosas e leves como se os mancebos fortes as levassem  ao colo, carinhosamente, por um sonho fora. Ai! tempo.  E as violas zangarreavam alegremente e lá fora, com  a grita das crianças, ia morrendo a fogueira. E a bruma crescia como o fumo de uma fogueira maior que ardesse  longe, no céu, talvez, para recreio dos anjos.

 — Mas, gente, quê dê Luzia?!
 
A esta exclamação lançada, de improviso, no meio da  sala que refervia, detiveram-se todos entreolhando-se  pasmados. Os violeiros, que afinavam os instrumentos, levantaram as cabeças fitando a dona da casa que, de braços cruzados, olhava ora para um, ora para outro como á espera de uma resposta. A mocinha ali não estava, não estava lá dentro: dançara uma polca, a primeira, com o Firmiano, isso dançara, mas não a viram mais.

— Quem sabe se ela foi-se deita?  Já olharam no quarto?

— Não está! afirmou a dona da casa com a voz oprimida.

Já as senhoras se haviam espalhado pela casa,  invadindo os aposentos, chamando a mocinha. Tio Chico  chegou á varanda e pôs-se a bradar para o terreiro, onde a  fogueira morria esquecida:

— Luzia! Luzia!

Nada! Um balão fugia pelo ar escuro levado pelo  vento; longe o risco de fogo de um foguete coriscou no  negrume; as arvores buliam devagarzinho e, no silencio,  ouvia-se bem a queda da água no moinho, perto.

— Luzia! Onde se terá metido essa rapariga?

Chegaram outras pessoas á varanda, olhando, chamando.

As moças cochichavam reunidas e já pesavam  suspeitas sobre a mocinha quando, de novo, a voz de Tio  Chico se fez ouvir:

— Que ó aquilo ali em baixo? Vocês não estão vendo um vulto ali para os lados dos bambus?

— Sim. Parece. E o velho bradou de novo: «Luzia!» Um cão pôs-se a ladrar na sombra. «É gente! é. .V E é gente conhecida. O  Tigre  que calou a boca é porque é gente de casa». As senhoras romperam pela varanda aflitas quando um dos violeiros disse: « Vem gente ali, e é mulher.»  « Luzia!»

  — Eh! responderam.

— Que é que você anda fazendo lá fora com essa noite, menina?

Era ela. Vinha devagarzinho com um punhado de lírios na mão e coroada de lírios. Entrou calada, sorrindo timidamente, a brincar com as flores.Cercaram-na e a dona da casa avançou sem poder conter a fúria:

— Que é que você foi fazer lá fora, pequena?  Onde estava você? Fala.

Tio Chico quis intervir, já disposto a perdoar a escapada, mas a mulher, de pé diante da mocinha,  com as mãos nas cadeiras, olhava-a a resmungar ameaças. Luzia, de olhos baixos, esmagava os lírios  alvos sem dizer palavra, com um sorriso triste no  rosto moreno e lindo.

Foi uma velha quem descobriu o segredo:

— Que horas são? perguntou.

— Vai para uma, disseram.

— Então está aí, Luzia foi á fonte. Pois vocês  não estão vendo que ela está cheia de açucenas?  A rapariga levantou vivamente a cabeça e fitou a  indiscreta:

— Pois fui mesmo, disse altiva; fui e que mal  ha nisso! Cada qual sabe de si e Deus de todos.  Fui!

E, nervosa, desatou a chorar.

Foi bom assim porque a gente que a cercava  sentiu um grande alívio, foram-se as suspeitas e as  companheiras, que a julgaram mal, como se as  picasse o remorso, cercaram-na carinhosamente  consolando-a: «Que não chorasse! D. Anna não  estava zangada. Tinham dado falta, não a viam, não  a achavam em casa... Aquilo era um mato  perigoso, podia ter acontecido alguma coisa, ficaram  aflitos. Era natural. Ninguém estava zangado.

Abafando os soluços ela foi seguindo entre as companheiras para o interior da casa. Os violeiros,  querendo acabar com aquelas tristezas, deram o sinal para uma quadrilha e Tio Chico foi logo dizendo que era a ultima, antes da ceia, e como D. Anna, muito ansiada, ainda falasse do grande susto que lhe pregara a filha ele, que estava alegre, fez-lhe uma festa brejeira no rosto gordo:

— Está bom, não falemos mais nisso; a pequena  foi á fonte ver a sorte, já está aí, com a graça de  Deus. Vai ver a ceia, anda; sem isso não teremos  comida senão lá para a madrugada.
— Com uma noite fria assim! até pode apanhar uma coisa no peito.

— Qual, história! em noite de S. João não há  moléstias. Vai, anda. Olha, a gente está fraqueando que até faz pena.

Dançava-se com entusiasmo a terceira parte da quadrilha, marcada, aos berros, pelo Gustavo da Boca nova quando um tiro estrondou no terreiro.

Os cães ladraram com fúria, mas quase ao mesmo tempo,  uma das moças, que olhava para a varanda, exclamou  corando:

— Mundico, gente!

Um rapaz desempenado estava parado á porta, de  botas, chapéu á banda, o chicotinho enfiado no punho,  sorrindo. Foi um alvoroço na sala, desfez-se a quadrilha;  correram todos para o recém-vindo e quando Tio Chico  viu o rapaz, alegre como estava, abriu largamente os  braços e caminhou para ele:

— Quê, homem! Você por aqui! Quando chegou?

— Ontem e aqui estou que ó o mesmo que dizer que  ainda não preguei olho. E tia Anna? E Luzia?

As duas apareceram e foi um espanto ruidoso:

— Meu Deus, Mundico! Quando chegou? Você fez exame? Foi feliz? Como está gordo!

E a velha mirava-o, sorrindo. Luzia, mais retraída, sorria também, mas de olhos baixos.

— Toma alguma coisa, rapaz; um pouco de vinho,  um pouco de cana, café?

— Nada! Nada. Não estavam dançando?

— Sim.

— Uma quadrilha?

— Estávamos na terceira parte.

— Pois vamos continuar. Não ha por aí uma dama?  E voltava-se lançando o olhar em torno. Tens par,  Luziazinha!

— Eu, não.

— Então, anda cá.

—Mas falta um  vis-à-vis, disseram.

— Arranja-se. Tio Chico, titia... Venham.

— O que?

— É para completar aqui o negocio, tenham  paciência.

Os dois velhos, quase empurrados pelo rapaz, foram tomar lugar e os violeiros romperam. O Gustavo gritou  logo, já rouco: En avant!  E Mundico, inclinando-se  disfarçadamente para a prima, perguntou baixinho:

— Então!

— Então?! Então é que eles desconfiaram. Eu bem dizia a você que estava demorando muito.

— Ghâine  de circunstância só para as madamas!  esgoelou o Gustavo.

 E as violas repenicavam com fúria.


---
Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

---
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário