domingo, 22 de setembro de 2013

Coelho Neto: "A Nova Raça"

A NOVA RAÇA

Quem conheceu o fazendeiro, o grande senhor  de terras e de almas, mais poderoso do que os soberbos ricos homens da idade media, dificilmente, e com pena, o reconhecerá no  agricultor atual, sombra triste dum fastígio morto,  ruína melancólica duma grandeza extinta. Dantes, quem passava a porteira duma fazenda,  que era como pequena cidade encravada entre  arvores, quase todas com a sua capela erguida no  centro de jardim florido, tinha a certeza de encontrar abundância e alegria: os paióis regurgitavam, o  gado cobria os vargedos ubérrimos, as maquinas nublavam os ares com a poeira do café e a  escravatura, numerosa e forte, espalhada pelos outeiros, punha a nota de vida em todos os cantos,  mesmo no fundo das grotas sombrias, onde a água  límpida manava, negros faziam luzir os ferros  agrícolas, cantando banzeiramente as suas saudades d'África.

 A mesa, copiosamente abastecida, dava a ilusão  opipara de banquetes. Chegasse quem chegasse, lá  encontrava um talher e acolhida amável e, á hora em que  a sopa vinha, a ferver, das imensas cozinhas, ou o sino  badalava alegremente ou um negro possante saía á  varanda, com uma buzina, soprando estentoricamente,  para que os viajantes, que passavam nas estradas  próximas, apressassem os animais e chegassem a tempo  de poder refazer-se sob o teto hospitaleiro da grande  vivenda rural.

As festas eram fantásticas. Não será nestas linhas  escassas que hei de descrever tão suntuosos regalos e só  a pena abundante de um Simão Machado poderia  bosquejar tais maravilhas do passado — eu não tenho as  cores vivas de que se servia o pintor das procissões  mineiras, no tempo rico do transbordamento do ouro.  Dizer fazendeiro correspondia a dizer nababo e  quando, na cidade, aparecia um desses homens de tez  queimada, largo chapéu de palha, calças fofas, de brim  branco, casaco folgado e anéis e ourama lampejando,  corria na assistência um murmúrio de assombro e todos  os olhos deslumbrados cravavam-se no homem que, pelo  habito de tratar soberanamente a escravatura humilde,  julgava-se, em toda a parte, um superior e, quando metia  a mão nas algibeiras fundas, sacava maços de notas  gordas e, ás vezes, ouro reluzente, apanhado á beira dos  seus córregos, que ele trazia, como amostra, para  oferecer á venda.

Um filho de fazendeiro tinha foros de príncipe — era  uma entidade quase sobrenatural, um como Aladino dos contos árabes. As cocottes punham-lhe  cerco, os fornecedores disputavam a honra de pagar-lhe o champagne estróina, o credito escancarava-se ao mais  extravagante dos seus caprichos, e adulado, vangloriado,  sempre com uma turba a formar circulo em volta da sua  pessoa, lá ia ele, orgulhoso, debicando amores, provando  todos os prazeres, a espalhar notas, com a mesma  pródiga-idade com que um rijo vento do outono dispersa  folhas secas.

Era isso no tempo em que o café valia o seu peso em  ouro. Ah! o bom tempo! Hoje, o fazendeiro é um tipo  de que se não fala e, quem o vê, não imagina que está  diante de um descendente dos Cresos rurais, dos famosos  senhores rústicos, cujos lindes territoriais iam além da  linha do horizonte.

Muitas das antigas fazendas são hoje taperas ermas —  o mato reconquistou, palmo a palmo, o terreno que lhe  fora tomado. Vêem-se casarões imensos com as  paredes fendidas, os telhados cobertos de erva, os paióis  em ruínas lúgubres e, ás vezes, estalando os soalhos  podres, pululantes de tortulhos, varando os tetos  carunchosos, uma forte e verde arvore irrompe á grande  luz, sacudindo vitoriosamente a sua rica folhagem, que  farfalha aos ventos e abriga os passarinhos.

Perguntem pelo fazendeiro — foi desalojado pelo  credor e, á luz alegre d'uma manhã, com algumas  relíquias num velho carro de bois, abandonou, com a  família, o solar agreste, lançando-se aventurosamente a  uma vida nova, como um naufrago que se salvasse nu da  pérfida procela.
  
Não julguem que exagero — copio fielmente  quadros da decadência.

O fazendeiro que ainda resiste vive, como o triste  profeta hebreu, desferindo lamentosos trenos — sem  animo e sem esperança, espera resignadamente a  chegada da Miséria. À terra debalde produz, debalde os  campos cobrem-se de flores, de que vale tanta uberdade  para que tanto esmalte nas campinas e nos outeiros, se o  produto depreciado não dá, sequer, para o custeio da  propriedade, que tudo consome?

Os que lucram são aqneles que lá andam pelos  lançantes dos morros, homens, mulheres e crianças  louros, como os temidos germanos de Tácito — são  os conquistadores, que entraram submissamente  como colonos e que, com a vida sóbria,  acumulando os salários, vão conseguindo impor-se,  adquirindo lotes de terras, que eles mesmos  revolvem e semeiam. São os donos futuros, é a  geração nova, que se impõe pela força e pela  perseverança.

No dia em que o fazendeiro esgota o ultimo  recurso o colono levanta a cerviz e é vê-lo, então,  dominando, como para desforrar-se do tempo da  obediência passiva, ditando leis, assediando a casa  senhorial, a exigir com armas e afrontas. Quando li as palavras acerbas do livro presago  de Graça Aranha, senti que o meu patriotismo,  revoltado, protestava contra aqueles augúrios cruéis  do alemão Milkau.

«É provável que o nosso destino seja transformar, de baixo a cima, este país, de substituir por outra  civilização toda a cultura, religião e as tradições de um  povo. É uma nova conquista lenta, tenaz, pacifica em seus  meios, mas terrível em seus projetos de ambição. É  preciso que a substituição seja tão pura, e tão luminosa,  que sobre ela não caia a amargura e a maldição das  destruições. E por ora nós somos apenas um dissolvente  da raça deste país. Nós penetramos na argamassa da  nação e a vamos amolecendo, nós nos misturamos a este  povo, matamos as suas tradições e espalhamos a  confusão!... Há uma tragédia na alma do brasileiro,  quando ele sente que não se desdobrará mais até ao  infinito. Toda a lei da criação é criar á própria  semelhança. E a tradição se rompeu, o pai não transmitirá  mais ao filho a sua imagem, a língua vai morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos e fundos desejos da  personalidade emudeceram, o futuro não entenderá o  passado».

Hoje, porém, posto que reaja com toda a força, com toda a  energia do meu instinto patriótico, diviso, através daquela  profecia, um fundo de verdade: o Brasil vai sendo  transformado, não absorvido. Os inimigos não vêm em  esquadras, aparelhadas belicosamente: chegam em grandes  levas, que enxameiam as proas dos transatlânticos, vêm dos  países regurgitantes, sanem do aperto das grandes cidades e,  como sofreram toda a sorte de torturas, desde o frio, nos  lajedos dos cães, até as fomes nas baiúcas em que se  acumulavam, ás dezenas, confundindo os hálitos e os  gemidos; desde a afronta dos poderosos até o desprezo dos  próprios parentes mais aquinhoados pela fortuna, ou  vindo o nome do Brasil e, talvez, lendas que ficaram  dos venturosos tempos do ouro, demandam ansiosamente a terra do sol e das flores, onde não ha  invernos que transam nem miséria que mate, onde  sobram campos aos pastores e ainda existem regiões  inteiramente virgens, nem trilhadas nem vistas por  homens civilizados, onde só caminham hordas de  bugres e feras fremem, ao luar, em manadas  sanguinárias.

Chegam, são acolhidos pelo clima tépido, que é  uma caricia natural, respiram, a largos pulmões, o  puro ar das florestas, dessedentam-se nas límpidas  águas dos arroios que murmuram, contemplam os  grandes rios, admiram, extasiados, as borbulhantes  cachoeiras e, contentes com o que vêm, dão graças a  Deus pela redenção e vão imediatamente  tratando do estabelecimento, que é o primeiro passo  para a conquista.

Fazem-se colonos e, como já conhecem a  miséria, trabalham ambiciosamente, acorçoados pela  fertilidade. Ha casa, o mealheiro é comum, e como  a família vive com sobriedade, os lucros crescem,  em pouco tempo.

O fazendeiro, ao contrario, habituado ao fausto,  á vida pródiga, não soma as despesas e, á medida  que a crise aumenta, vai dissipando com mais largueza, como para atordoar-se. O seu dinheiro  transfere-se do cofre para as arcas dos colonos, empilhando-se até o dia em que ele se encontra sem  vintém e assediado pelos avaros trabalhadores que  lhe sugaram a fortuna.

Esse é o dia trágico, o dies irae: o senhor  abandona a propriedade absorvida pela hipoteca,  os colonos tornam-se pequenos proprietários e começa a  expansão na terra.

Os berços lá estão ao fundo das casas — são os novos  homens. Onde, antigamente, chorava, em farrapos, o  crioulinho nu, filho do escravo, vage agora o bambino  rosado e louro, abençoado por este sol admirável. Vai-se  a língua cruzando — vocábulos exóticos ressoam  estranhamente em frases portuguesas, é a lenta invasão  da palavra; já se não ouve o ressôo soturno dos tambores  nagôs; agora é o estrepitar das castanholas, ou o sonoro  adufar nas soalhas dos pandeiros napolitanos.  Nos terreiros de congada dança-se a tarantela e as tradições brasileiras vão desaparecendo. Pouco a pouco  uma nova raça surge e a humílima e dessorada geração,  enfraquecida pela abastança desordenada, cede aos sadios  o terreno, como os romanos da decadência cederam aos  robustos bárbaros.

Mas o caldeamento se fará sem prejuízo da Pátria — a  nação não perecerá, porque os que vão nascendo, á  medida que os pais enriquecem e aformoseiam a terra,  vão-lhe ganhando afeição, amam-na e, começando por  defenderem a casa, acabam defendendo a fronteira e  quando, desaparecido o ultimo decadente, viver, rija e  formosa, a nova gente, sobre esse dilúvio, como o  Espírito de Deus nas águas da catástrofe, ha de pairar a  língua, a doce língua portuguesa, enriquecida, sem  duvida, com expressões adventícias, e baixando sobre a  terra a raça que ha de ficar, a Pátria reaparecerá mais  bela, mais graciosa e mais rica, pronta para todas as  sementeiras,  como reapareceu o mundo depois dos quarenta dias de calamidade, tendo como  prova de aliança não o íris fulgurante, mas a bandeira  auriverde, que é o símbolo da nacionalidade.

O que se está realizando — é possível que eu veja  como otimista — é a lei da seleção e não uma  conquista — os fortes hão de prevalecer e queira Deus  que assim seja, para gloria da Terra e orgulho dos nossos  filhos.

A raça desanimada que aí está, essa é que não pode subsistir. Homens que choram em presença do perigo não  merecem as honras do triunfo.

Venham os novos brasileiros, apareça e domine a  gente nova e robusta.

Foram os bárbaros que renovaram o mundo  Ocidental: venceram, mas foram assimilados pelos  vencidos e, para fazer a assimilação das hordas que  chegam, basta-nos o nosso Sol.

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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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