domingo, 22 de setembro de 2013

Coelho Neto: "D. João de Maraña"

D. JOÃO DE MARAÑA

Na  lápide de uma tumba rasa, que serve de limiar á  portaria da igreja da Caridade, em Sevilha, lê-se, em  letras gastas pelo contínuo roçar dos pés, este epitáfio  sombrio: « Aqui yace el peor hombre que fue en el  mundo».

Diz Mérimée que tais palavras, ditadas no momento da morte por aquele que debaixo delas repousa, como se  quisesse ficar sob um perpetuo estigma ou sob um  perpetuo anúncio, ou foram sugeridas por humilde  arrependimento ou inspiradas por desmarcado orgulho.  O corpo que ali jaz foi o de galhardo fidalgo destemido e afrontoso, horror de Sevilha e de  Salamanca, herdeiro da fortuna e da nobreza dos condes  de Marana, infame rausor de virgens, profanador de claustros, grande acutilador e matador de  homens.

D. Carlos de Marana, vencedor dos Alpuxarras, era de antiga e ilustre casa sevilhana, famosa nas crônicas esforçadas do tempo das grandes guerras. Depois de muito talhar mourisma, destroçando aduares, escalando muralhas e levando, á frente da sua mesnada afoita, a cavalaria do Islã batida e confundida, mui cangado de «montear» os cães de Mafamede e não menos enfastiado de aventuras,  resolveu recolher ao seu palácio, nos arredores da cidade, no silencio sombrio d'um parque de velhas arvores, com muita terra de semeadura para o fundo, onde verdejavam olivedos e vinhas.

Os fâmulos, com as contínuas e demoradas  sóridas do fidalgo, ficavam a cochilar no imenso e soturno palácio e, de tempos a tempos, acordados pelo mordomo, lá iam aos salões. Abriam largamente as janelas ao sol e ao ar, sacudiam a densa poeira que encobria os quadros, acalavam as armas das panóplias, bruniam os mármores dos moveis, batiam as tapeçarias, mas o senhor não tornava e, de novo, o palácio recaía no silencio, fechado á luz como solar abandonado e maldito.

Ás vezes, um cavaleiro, coberto de pó, com as  armas sem brilho, refreava, diante da grande casa  armoriada, o ginete esfalfado, apeava e, com o  punho da espada, batia de rijo na porta principal,  chapeada de ferro, como a de uma fortaleza. O som  estrondava longamente. Acudiam, a correr, os  fâmulos sobressaltados, olhavam pelo postigo  gradeado e, reconhecendo o cavaleiro, com esforço  faziam rodar a porta emperrada e pesada, de cujos gonzos, no  lento girar dos quícios, caía, como a farinha da mó, uma  vermelha poeira de ferrugem.

O cavaleiro penetrava, era acolhido com alegre  alvoroço, dava-se-lhe do melhor vinho e da melhor fruta  e, á noite, em volta da grande mesa, ao chamejar da  lenha, secando canecos, ele narrava á boa gente domestica os feitos maiores do senhor, que lá ia, ao longo  das praias, repelindo para o mar o ismaelita corrupto, levando-o, á ponta de lança, como o campino, na lesiria,  apua a pampilho o touro. E até noite alta, quando o fogo  morria, os fâmulos, em silencio, maravilhados e  orgulhosos, escutavam as descrições das proezas do   lidador. Na manhã seguinte o cavaleiro apressado  montava um animal robusto e, com outro á destra e  machos resistentes, lá ia levando novas armas ao campeão  que pelejava e vencia a peito descoberto.  

Veio, porém, o fastio da vida errante e incerta e o  fidalgo com mais duma ferida no corpo e um grande  talho d'alfange na face acobreada, entrou no seu palácio e,  suspendendo o montante e o morrião, despindo a couraça  abolada, que foi brilhar, como um troféu, entre as  luzentes armas dos Marafia, mandou abrir, de par em par,  todas as portas e janelas, e, nesse dia, velhos morcegos,  que se haviam acolhido, como em ruínas, aos ângulos daqueles salões, deslumbrados pelo grande sol que  entrava fulgurante, puseram-se a esvoaçar pesadamente,  indo de encontro ás telas, ferindo-se nas ascumas, aos  trissos, e foi para a gente domestica uma divertida e  ruidosa caçada.

D.  Carlos,  porém,  habituado  á vida  agitada dos  acampamentos, sentindo-se muito só naquela imensa  morada, pensou em tomar esposa. Como, pela vida que  adotara, andasse sempre longe, não conhecia as damas  sevilhanas, despindo, porém, as armas e cobrindo-se de  veludos, com um gracioso florete ao flanco, antes   adorno que defesa, fez-se o mais assíduo galanteador  nos salões da nobreza, procurando, com sagacidade,  uma donzela que fosse, em tudo, digna do seu nome e  de seu amor. Achou o que buscava, não no esplendor da  cidade, mas no retiro virtuoso de um paço de velha  nobreza,  calmo no seu recato, todo em sombras  d'arvores, á beira do Guadalquivir.

D. Ignez, nascida e criada naquele pensativo  solar, onde apenas viviam damas, que o pai lá lhe  ficara em guerras, na costa do mar, junto do filho  que o seguira, muito moço ainda, mas já ardente em  batalhas, era d'uma pálida beleza, mais branca do  que as imagens do seu oratório contíguo ao quarto  em que dormia, fechado a ferros como uma cela de  monja ou o ergástulo de galé.

O primeiro homem que os seus olhos calmos  contemplaram com a demora de um olhar foi D. Carlos, o guerreiro acérrimo, junto de quem ela ficava como um lírio fraco e languido perto de  anoso roble. De vê-la a pedi-la não houve demora e  logo se anunciou pelas casas armoriadas o  casamento do conde batalhador com a delicada filha  dos fidalgos de Beira d'Água.

As bodas, como convinha a duas famílias de tanta prosápia, foram suntuosas. Três dias duraram as festas e a gente dos campos desceu a admirar a riqueza e a fulgurância  do palácio dos  Maraña.

Anos tristes passaram sem esperança de  herdeiro. Uma manhã, porém, D. Ignez, a chorar e a   tremer nervosa, deu ao conde a noticia grata de que  se achava fecunda, e, meses depois, na hora da tarde,  com o canto dos frades que enchiam a capela,  nasceu, robusto e lindo, o varão que devia, honrar e  continuar a gloria das duas casas.

Levado á pia com solenidade — dobravam  alegremente os sinos como nos dias grandes da  religião — recebeu o infante o nome de João e  cresceu entre os círios e as rosas da capela, onde a  mãe; que o tinha por dom divino, com ele  desaparecia a rezar.

O conde, taciturno, medindo os vastos salões a duras e largas passadas, murmurava contra aquele  vergar d'alma, e, quando, longe das vistas da mulher,  achava o filho curvado, a folhear velhos livros  cheios de iluminuras devotas, lá o arrancava com  violência e, trancando-se com ele na sala de armas,  ia-lhe apontando, um a um, os retratos de avós,  citando-lhe os seus feitos, descrevendo batalhas e,  ora brandindo uma espada, ora embraçando um  escudo, ora enristando uma lança, arremessando-se e  recuando, aos brados estrondosos, dava-lhe ao vivo  o exemplo dos combates quando, na confusão da  peleja, os ginetes acobertados chocavam-se com  estridor e as lanças voavam em estilhas de encontro  aos aceiros rijos. E, como o menino, em cujas veias  ardia o sangue bravo dos heróis de duas temíveis  linhagens, se fosse inclinando aquele gosto que  renascia no pai, deu-lhe o fidalgo um destro mestre de armas e, assim, entre esfiar de  rosários e botes e arremetidas, devoções no oratório e  retinir de espadas no salão ou no parque, foi crescendo o  mancebo que devia continuar, com honra e denodo, a  tradição dos Maraña.

Vendo-o o conde desenvolto e robusto, resolveu  despachá-lo para Salamanca, onde florescia a Universidade.

D. Ignez, ao despedir-se do filho, encheu-lhe os  bolsos de rezas e amaletos, pedindo-lhe que se lembrasse  sempre do quadro que havia na capela domestica,  representando as almas do Purgatório, sofrendo nas  chamas, espicaçadas por demônios negros, entre  monstros esvoaçantes.

Que a não esquecesse nas suas orações, para que a  sua alma não chegasse a penar como penavam as da tela  sinistra. D. Carlos, cingindo-lhe uma espada de boa tempera, lembrou-lhe a honra dos Marana que elle ia  continuar e engrandecer. E o moço partiu.

Em Salamanca fê-lo o demônio encontradiço com o  estudante mais estróina da Universidade, D. Garcia,  nobre e airoso moço que andava esfarrapado por gosto e  blasfemava por bazófia.

Ligaram-se os dois. De dia dormiam pelos grabatos  das baiúcas ou nos alcouces das marafonas, entre restos  de orgias; á noite, traçando as capas, com a guitarra e a  espada, lá iam pelas ruas e calejas acordando as virgens  que acudiam aos seus cantares sedutores.

Bara era a noite em que D. João, recolhendo, não  referia ao companheiro um novo crime — ou de  desonra, descrevendo, com lascívia cínica, a beleza profanada, ou de morte, comentando o golpe  com que prostrara o desconhecido na treva deserta de  uma esquina.

Tantos e tão seguidos foram os seus crimes que, a  conselho de D. Garcia, que temia um levante dos  burgueses e a rispidez do corregedor, abandonou  Salamanca, passando-se a Flandres a oferecer a sua  espada e sua lealdade ao férreo duque d'Alba.

Tornando, porém, a Sevilha, onde o palácio, por  morte dos fidalgos, reentrara no antigo silencio, uma  noite, num fim de orgia, gabou-se D. João de haver  ultrajado no amor toda a casta de homens. Eolára com  mulheres no estrame do pastor serrano e em damascos de  leitos reais; tivera mesmo nos braços, mia e ardente,  aquela que, em Boma, todos inculcavam como amante do Santo Padre. Só lhe faltava, na lista dos traídos, um  nome — o de Deus. Foi, então, que alguém se lembrou de  o excitar ao derradeiro e mais hediondo ultraje e, para  enraivecê-lo, sorrindo com incredulidade, desafiou-o a  rematar a lista infame com o nome que faltava.

Pálido, oscilando, ergueu D. João o cântaro  espumante e emprazou os companheiros para um festim  que seria presidido por uma freira. Beberam todos e o sol,  entrando pelas janelas enramadas de trepadeiras,  dispersou-os.

Na manhã do dia seguinte estava D. João no leito quando ouviu  tanger de sinos e lembrou-se que ali perto, na vizinhança, a  curtos passos da sua residência, erguia-se um convento de  freiras, casa de muita pureza, de onde jamais saíra para o mundo o eco mais leve do mais leve escândalo. Ali quis ele ensaiar a sedução e, vestindo-se ás pressas,  com austeridade, encaminhou-se ligeiramente para o seu  posto.

Entrou e, seguindo, com ar contrito, por entre bancos e genuflexórios, foi ajoelhar-se junto ás grades que  separavam as freiras e as noviças da multidão dos devotos do ofício da manhã. Logo, lançando o olhar arguto ao gineceu sagrado, pude ver entre as monjas uma ainda  moça e de perturbadora beleza. Tanto, porém, que deu  com ela, bateu-lhe o coração e a si mesmo, baixinho,  lançou esta pergunta: «Onde vi eu este rosto?  » e a  freira, por seu lado, tremia e baixava os olhos corando,  com o que mais se lhe avivava a formosura.

Atentando na face da religiosa lembrou-se de certa  donzela de Alcalá, herdeira de um nome puro que ele, em delírio sensual, enxovalhara. O nome subiu-lhe aos  lábios: «Tereza»; com ele, porém, na mesma  lembrança, veio toda a tragédia que rematou tristemente  aquele caso de amor: o velho pai, que os surpreendera,  ferido de morte no vão duma escada, um lacaio a  escabujar em sangue e ela fria e pálida, cabida como  morta e semi-nua sobre os linhos do leito profanado.  Thereza tremia, mas o amor, que não lhe deixara o  coração, subiu como um fogo abafado que um sopro de  brisa ateia e logo rebrilha e chameja.

Houve entre ambos o entendimento dos olhos, corresponderam-se com as centelhas das pupilas e, mais  tarde, pondo D. João o jardineiro do seu lado, fácil lhe foi  falar á monja e logo a rendeu, combinando-se, entre os  dois, a fuga para a noite próxima. Uma liteira bem fechada  e guardada por homens bravos viria esperá-la a par do muro, numa viela  deserta; o jardineiro guiá-la-ia ao caminho e, para que  não sucedesse, no caso de ser ele interrogado, dizer o  que sabia, um dos lacaios devia emudecê-lo para  sempre. Com tal recado dera-lhe o conde um dos punhais  mais finos da panóplia venerável, arma que os de Marana  só haviam utilizado, com lealdade e bravura, defendendo  a Fé, defendendo a Pátria ou defendendo a honra.

D, João não viveu as horas que o afastavam do momento alegre e de vaidoso triunfo em que devia  aparecer entre os companheiros, conduzindo pelo braço  a esposa do Senhor. Chegada que foi a noite, lá se foi ele postar no sitio mais escuro, á espera que soasse a hora  determinada.

Era pelo começo do outono; um vento frio picava e  as corujas passavam no ar brumoso com chirrio lúgubre.  Impaciente ia e vinha o fidalgo, quando ouviu um  coro de vozes tristes que pareciam entoar um canto  religioso. Devia ser no convento, pensou — alguma prece  noturna. Mas não, era um canto merencório, de morte, e  ele, que olhava, viu aparecer ao longe uma procissão  sinistra.

Duas longas filas de penitentes negros, com círios,  encapuchados em cochilas, precediam lentamente um  esquife forrado de veludo e trazido aos ombros de  monges de longas barbas brancas e armados como  guerreiros.

Apesar do vento as chamas dos. círios conservavam-se direitas e as estamenhas dos homens  mantinham-se imóveis, duras como as roupagens de  pedra das estatuas e, sendo eles numerosos, não  se ouvia, entretanto, o mais surdo rumor de passos.

A procissão encaminhava-se para uma velha igreja  arruinada e desprezada. Como o primeiro penitente  passasse junto do fidalgo, cuja curiosidade ia crescendo  sempre, ele dirigiu-lhe a palavra perguntando: «Quem  era o que levavam a enterrar? »

O farricoco levantou a cabeça e o nobre moço viu dois olhos que pareciam arder e um rosto agudo,  macilento e marmóreo como o de um morto e o estranho  andejo disse sinistramente:

— Senhor, é o conde D. João de Marana.

Ell sorriu afetando indiferença, certo de que o  informante, que o reconhecera, quisera zombar do seu  animo e foi com a procissão como atraído.
O cortejo seguia no mesmo andar pausado e surdo, e  achava-se ainda a alguns passos da igreja quando, entre  os velhos muros, reboou tristonha e fúnebre, a voz grave  do órgão e logo, no limiar, apareceu um grupo de padres  entoando cavernosamente o  De profundis.

Deposto o esquife no cenotáfio, formaram alas os  penitentes para a vigília funérea. Então, já aterrado com  todo aquele cerimonial, o conde adiantou-se e dirigiu-se  a outro penitente, perguntando-lhe:

— Quem ali jazia? e o homem, em voz cava,  respondeu como o primeiro:

— Senhor, é o conde D. João de Marana.  Alucinado, o moço fidalgo arremeteu e, querendo  empurrar os penitentes, a sua mão impetuosa passou  através dos corpos como por um fumo negro. Subiu, em  desvario, os degraus do cenotáfio, chegou ao esquife.  


E esse momento na torre do mosteiro soava vagarosamente a hora do sinistro ajuste. Thereza, ansiosa  e medrosa, devia vir pelo jardim silente supondo-o  escondido na sombra quieta das arvores.

Violentamente descobriu o rosto do cadáver,  inclinou-se e viu: Era ele que ali estava estendido,  as,mãos duramente enclavinhadas no peito, lívido, hirto e  frio; era ele próprio, bem lhe haviam dito os penitentes:  era D. João de Marana, filho do conde Carlos, rausor de  virgens, roubador e matador perverso. Em torno,  sombriamente calados, imóveis, velavam os penitentes  negros.

Curvavam-se-lhe as pernas, um suor frio escorria-lhe  da fronte, faltava-lhe o ar. De repente levantou-se na  igreja uma grita estrondosa e medonha: «A nós, o  infame! A nós, o dilapidador! A nós, o devasso!» E, de  toda a parte: das ruínas dos nichos, dos vãos dos velhos  altares, dos escombros do coro, quebrando, com estrepito,  as lajes sepulcrais que assoalhavam a nave, surgiam  sombras pálidas e nelas ia o conde reconhecendo as suas  vitimas amorosas e as que haviam caído a golpes de  espada e punhal — lindas moças conspurcadas, velhos  cujas barbas brancas esvoaçavam, mancebos duma graça  inda infantil e todas mostravam as feridas sangrentas ou  vociferavam contra o enganador que as manchara e  esquecera.

A velha igreja enchia-se, atroavam os clamores e, nas  cimalhas, nos florões dos capitéis, nas cornijas, demônios  rubros, de cornos em brasa, riam com esgares,  balançando-se suspensos das caudas, brandindo garfos  que chamejavam.

Na manhã seguinte alguém passando, por acaso,  pelas ruínas da igreja viu, caído entre os destroços  dum muro, o moço nobre — a seu lado jazia a  espada nua e úmida do orvalho. Não lhe acharam  no corpo ferimento algum.

Recolhido ao palácio ali esteve, entre a vida e a  morte, longas e tristes semanas, a cuidado de um  velho dominicano e, melhorando, viram-no os  fâmulos sair, envelhecido e curvado, seguindo com  o religioso para desconhecido sitio.

Tempos depois todos os bens dos Marafia eram  convertidos em esmolas e mais um frade rezava no  coro dos dominicanos.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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