segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Coelho Neto: "Nas Águas do Mar"

NAS ÁGUAS DO MAR


O púlpito da sua maior eloquência não tinha  entalhes preciosos nem recamos clássicos, por ele  não andara o formão nem a goiva o cavara; por ele  não se enastravam folhagens nem anjos o  rodeavam, em coros jocundos, soprando tubas ou  tangendo harpas — o púlpito de sua maior  eloquência foi um bruto e desconforme penhasco,  negro e calvo, fincado nas areias de beira-mar. Da  sua base a onda fervia e o verde e pútrido sargaço  formava uma orla verde. Ali pousavam as gaivotas  nos dias azuis, ali refugiavam-se as procelárias  quando os grandes ventos conflagravam os mares,  dali falou o santo aos peixes.

Não era Antônio um frade do abismo, posto que  as fundas águas de esmeralda também possuam  congregações religiosas. Heine faz menção de dois  ou três bispos marinhos, que deram á costa nos frios  litorais do Norte, arrojados á praia por algum vagalhão herético ou colhidos na rede dum  pescador ousado.

Antônio, nascido em Lisboa, era frade paduano e  a razão que alegam os seus biógrafos, explicando  o seu capricho de pregar aos peixes, é ponderosa. Os  homens, incrédulos e desatentos, faziam ouvidos de  mercador ás suas santas palavras. Debalde ele os  chamava para a virtude, debalde lhes prometia a  bem-aventurança, os ingratos achavam maior prazer  no vicio e preferiam a vida terrena, que conheciam,  á outra que era apenas uma hipótese de  pregadores. «Mais vale um pássaro na mão que dois  voando», diziam e a igreja ficou ás moscas.

Eis porque o santo resolveu pregar aos peixes.

Logo que ele surgiu no cimo do penhasco acardumou-se o mar que, de verde que era, ficou  colmado de prata — robalos, badejos, sardinhas,  pescadas, baleias monstruosas, tubarões vorazes,  linguados, raias, polvos, enguias, todos os  representantes do povo escamoso, acudindo  apressadamente dos antros, subiram á tona do mar  plácido e ouviram devotamente a pregação do frade.

Antônio falou com muita inspiração referindo-se  aos gozos enganadores e efêmeros da vida e,  quando aludiu ao céu, foi tal o poder da sua palavra  inflamada que os peixes entraram a flagelar o mar  com as barbatanas, que é assim que os peixes  manifestam o seu entusiasmo. Alguns, mais  sensíveis, ficaram com os olhos marejados, e,  convertidos, levantaram um grande e atroante
clamor, pedindo o batismo.

Desceu Antônio do penhasco e, como os catecúmenos estivessem na melhor das pias, limitou-se a pronunciar as palavras sacramentais, dando a cada um o  nome que lhe subiu á boca naquela hora milagrosa e foi  assim que os peixes ganharam os nomes porque são hoje  conhecidos nos mercados.

Finda a pregação, despediu o santo o seu auditório e  desceu do sáxeo púlpito. Foi, então, uma alegria imensa  no mar. Os peixes, confiando na promessa de paz  que  lhes fizera o santo, saíram contentes nadando á flor das  águas que o luar fazia de prata.

As baleias golfavam trombas espumosas, os botos  viravam as mais arriscadas cambalhotas, as raias  saltavam caindo de chapa na água, com estrépito, e as  sardinhas, aos milhares, toldavam o mar semelhando ilhas  brancas e resplandecentes que fulguravam ao luar. Só um  velho espadarte, desconfiado e prudente, em vez de sair  em triunfo apregoando a bondade do propagandista e a facúndia do orador, como faziam os seus irmãos, desceu a  meter-se na lapa mais funda, entre as mais enredadas  algas, buscando, com dificuldade, encravar-se nos  labirintos de coral, e quieto, lá se deixou ficar a ver em  que paravam as modas.

Ali jazia mestre espadarte quando viu passar uma  gorda tainha, muito garrida, a dar de cauda, com pressa,  como se fosse ligeiramente a algum negocio urgente.

— Irmã tainha, perguntou o matreiro peixe, onde  vais tão taful e com tamanha azáfama e açodamento?  

— Onde vou? Que pergunta! Vou gozar o luar que lá em cima esplende e vou aspirar o aroma que chega  dos jardins da terra.

— E não receias o anzol e a rede do pescador?

— O anzol e a rede? Pois não ouviste o sermão do  santo, irmão espadarte?

— Ouvi, irmã; ouvi e aqui estou nesta lapa porque  não há outra mais funda por estes mares; e acho que  farias bem se te deixasses ficar entre as lajes em que  nasceste. Deixa lá o luar, deixa lá o perfume; enlapa-te,  irmã tainha, enlapa-te.

— Pois desconfias do santo irmão, espadarte?

— O santo é homem e eu sou peixe, irmã.

— Que tem isso? Ah! minha irmã, bem se vê que  és muito nova. O Deus dos homens, minha irmã, morreu  por eles e não por nós. Eorani os homens que o  trouxeram á terra com os seus pedidos de misericórdia. E  que fizeram os homens? pregaram-no em uma cruz. Que  devia acontecer depois de tamanha ingratidão! devia  baixar sobre os homens um castigo tremendo, não é  verdade?

— Sim.

— Pois, minha irmã, o castigo baixa, mas é  sobre os peixes, que nada fizeram. Quando os homens  comemoram o sacrifício do seu Deus atiram-se a nós sem misericórdia e é uma devastação  por esses mares que... não te digo nada. Se nós  tivéssemos um Deus poderíamos ter uma quaresma  e nela tiraríamos justa vingança dos homens, mas  nós somos peixes, não temos Deus, não temos política,  não temos nada.

— Então achas que Santo Antônio...?

—  Eu acho que Santo Antônio quer pregar-nos alguma. Palavras de tal homem a peixes... uhm! Isso é isca! Minha irmã, quando um superior  desce assim a intimidade com a canalha... desconfia  dele: o menos que pôde pedir é a vida. Para o homem o  reino do céu dos peixes... é o escabeche. Enlapa-te,  irmã tainha, e deixa lá andar em cima quem anda.  Pela manhã uma sardinha passou desgarrada e  espavorida diante do velho espadarte:

— Que é isso, irmã sardinha? Onde vais assim aforçurada!

— Ih! irmão espadarte... o sermão do frade... o sermão do frade.

— Lindíssimo! Admirável! Um primor de fôrma.

— Uma isca perversa! As redes varreram o mar de  praia a praia e, como nós confiávamos na promessa de  paz, a pesca foi avultada, nem sei mesmo se ainda  haverá  peixes que continuem a espécie nestas águas.

— De outros não sei, mas que há espadartes e  sardinhas garanto — sardinhas porque atravessam as  malhas por serem pequeninas, espadartes porque não se  fiam em palavras. Palavras, palavras, palavras... E  parecia que a alma de Hamlet se havia encarnado no  atilado peixe.

Desde então nunca mais quiseram os peixes ouvir  sermões. E por essas e outras vão os milagres rareando  e... não aparecem eleitores em dias de eleição.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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