NAS ÁGUAS DO MAR
O púlpito da sua maior eloquência não tinha entalhes preciosos nem recamos clássicos, por
ele não andara o formão nem a goiva o
cavara; por ele não se enastravam
folhagens nem anjos o rodeavam, em coros
jocundos, soprando tubas ou tangendo
harpas — o púlpito de sua maior eloquência foi um bruto e desconforme penhasco, negro
e calvo, fincado nas areias de beira-mar. Da sua base a onda fervia e o verde e pútrido
sargaço formava uma orla verde. Ali
pousavam as gaivotas nos dias azuis, ali
refugiavam-se as procelárias quando os
grandes ventos conflagravam os mares, dali
falou o santo aos peixes.
Não era Antônio um frade do abismo, posto que as fundas águas de esmeralda também possuam congregações religiosas. Heine faz menção de
dois ou três bispos marinhos, que deram
á costa nos frios litorais do Norte,
arrojados á praia por algum vagalhão herético ou colhidos na rede dum pescador ousado.
Antônio, nascido em Lisboa, era frade paduano e a razão que alegam os seus biógrafos,
explicando o seu capricho de pregar aos
peixes, é ponderosa. Os homens,
incrédulos e desatentos, faziam ouvidos de mercador ás suas santas palavras. Debalde ele
os chamava para a virtude, debalde lhes
prometia a bem-aventurança, os ingratos
achavam maior prazer no vicio e
preferiam a vida terrena, que conheciam, á outra que era apenas uma hipótese de pregadores. «Mais vale um pássaro na mão que
dois voando», diziam e a igreja ficou ás
moscas.
Eis porque o santo resolveu pregar aos peixes.
Logo que ele surgiu no cimo do penhasco acardumou-se o mar
que, de verde que era, ficou colmado de
prata — robalos, badejos, sardinhas, pescadas,
baleias monstruosas, tubarões vorazes, linguados,
raias, polvos, enguias, todos os representantes
do povo escamoso, acudindo apressadamente
dos antros, subiram á tona do mar plácido
e ouviram devotamente a pregação do frade.
Antônio falou com muita inspiração referindo-se aos gozos enganadores e efêmeros da vida e, quando aludiu ao céu, foi tal o poder da sua
palavra inflamada que os peixes entraram
a flagelar o mar com as barbatanas, que
é assim que os peixes manifestam o seu entusiasmo.
Alguns, mais sensíveis, ficaram com os
olhos marejados, e, convertidos,
levantaram um grande e atroante
clamor, pedindo o batismo.
Desceu Antônio do penhasco e, como os catecúmenos
estivessem na melhor das pias, limitou-se a pronunciar as palavras sacramentais,
dando a cada um o nome que lhe subiu á
boca naquela hora milagrosa e foi assim
que os peixes ganharam os nomes porque são hoje conhecidos nos mercados.
Finda a pregação, despediu o santo o seu auditório e desceu do sáxeo púlpito. Foi, então, uma
alegria imensa no mar. Os peixes,
confiando na promessa de paz que lhes fizera o santo, saíram contentes nadando
á flor das águas que o luar fazia de
prata.
As baleias golfavam trombas espumosas, os botos viravam as mais arriscadas cambalhotas, as
raias saltavam caindo de chapa na água,
com estrépito, e as sardinhas, aos
milhares, toldavam o mar semelhando ilhas brancas e resplandecentes que fulguravam ao
luar. Só um velho espadarte, desconfiado
e prudente, em vez de sair em triunfo
apregoando a bondade do propagandista e a facúndia do orador, como faziam os
seus irmãos, desceu a meter-se na lapa
mais funda, entre as mais enredadas algas, buscando, com dificuldade, encravar-se
nos labirintos de coral, e quieto, lá se
deixou ficar a ver em que paravam as
modas.
Ali jazia mestre espadarte quando viu passar uma gorda tainha, muito garrida, a dar de cauda,
com pressa, como se fosse ligeiramente a
algum negocio urgente.
— Irmã tainha, perguntou o matreiro peixe, onde vais tão taful e com tamanha azáfama e
açodamento?
— Onde vou? Que pergunta! Vou gozar o luar que lá em cima
esplende e vou aspirar o aroma que chega dos jardins da terra.
— E não receias o anzol e a rede do pescador?
— O anzol e a rede? Pois não ouviste o sermão do santo, irmão espadarte?
— Ouvi, irmã; ouvi e aqui estou nesta lapa porque não há outra mais funda por estes mares; e
acho que farias bem se te deixasses
ficar entre as lajes em que nasceste.
Deixa lá o luar, deixa lá o perfume; enlapa-te, irmã tainha, enlapa-te.
— Pois desconfias do santo irmão, espadarte?
— O santo é homem e eu sou peixe, irmã.
— Que tem isso? Ah! minha irmã, bem se vê que és muito nova. O Deus dos homens, minha irmã,
morreu por eles e não por nós. Eorani os
homens que o trouxeram á terra com os
seus pedidos de misericórdia. E que
fizeram os homens? pregaram-no em uma cruz. Que devia acontecer depois de tamanha ingratidão!
devia baixar sobre os homens um castigo
tremendo, não é verdade?
— Sim.
— Pois, minha irmã, o castigo baixa, mas é sobre os peixes, que nada fizeram. Quando os
homens comemoram o sacrifício do seu
Deus atiram-se a nós sem misericórdia e é uma devastação por esses mares que... não te digo nada. Se
nós tivéssemos um Deus poderíamos ter
uma quaresma e nela tiraríamos justa
vingança dos homens, mas nós somos
peixes, não temos Deus, não temos política, não temos nada.
— Então achas que Santo Antônio...?
— Eu acho que Santo
Antônio quer pregar-nos alguma. Palavras de tal homem a peixes... uhm! Isso é
isca! Minha irmã, quando um superior desce
assim a intimidade com a canalha... desconfia dele: o menos que pôde pedir é a vida. Para o
homem o reino do céu dos peixes... é o
escabeche. Enlapa-te, irmã tainha, e
deixa lá andar em cima quem anda. Pela manhã
uma sardinha passou desgarrada e espavorida
diante do velho espadarte:
— Que é isso, irmã sardinha? Onde vais assim aforçurada!
— Ih! irmão espadarte... o sermão do frade... o sermão do
frade.
— Lindíssimo! Admirável! Um primor de fôrma.
— Uma isca perversa! As redes varreram o mar de praia a praia e, como nós confiávamos na
promessa de paz, a pesca foi avultada,
nem sei mesmo se ainda haverá peixes que continuem a espécie nestas águas.
— De outros não sei, mas que há espadartes e sardinhas garanto — sardinhas porque
atravessam as malhas por serem
pequeninas, espadartes porque não se fiam
em palavras. Palavras, palavras, palavras... E parecia que a alma de Hamlet se havia
encarnado no atilado peixe.
---
Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
---
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário