O GALO
Todo curvado e atento, a olhar as entranhas sangrentas dum galo, o meu amigo Galracho, arúspice e rosa-cruz, venerador de Peladan, sar nos
cartões de visita e primeiro oficial do
correio, na lúcida manhã de janeiro, enquanto
o Menino se- guia para o templo, a cumprir a Lei Judaica, santa pela intenção e
higiênica pelos resultados, tirava augúrios
no fundo recôndito de um quarto discreto, onde se empilham caixotes nos quais, á guisa
de altar, as vítimas palpitam e mostram
nas vísceras os arcanos do futuro.
Galracho, em robe
de chambre sacerdotal, com um facalhão inglês, de lamina luzente e larga,
lembrava um sacrificador do antigo tempo.
Quando entrei, sentindo os meus passos no soalho que range, voltou a cabeça e fitou-me
com os seus olhos de míope, desarmados
das poderosas lentes. Não me reconheceu
de pronto, mas ouvindo-me a voz, tranquilizou-se e acenou misteriosamente para
que eu encostasse a porta afim de que a
senhora, que é alegre e incrédula, não interrompesse a cerimônia com o seu riso e com os seus comentários
mordentes.
Galracho suava em bicas naquela estufa esotérica e
deposito de velhas caixas. Um raio de sol, descendo pela clarabóia, dourava a vítima gorda em torno da
qual esvoaçavam gulosamente, desrespeitosamente
moscas zumbidoras e o arúspice, com as
mãos mais vermelhas do que as de um
magarefe, tomava notas ligeiras numa larga folha de papel toda manchada de sangue.
— Que diabo fazes tu aqui, Galracho?
— Não vez? estou tirando augúrios, como os nossos pais romanos. Leio o futuro. Leio-o nas
entranhas deste galo como se o lesse nos
mesmos livros da sibila. Estava agora
justamente interpretando o fígado. Ah! meu amigo, suspirou Galracho meneando a cabeça, em
grande e abatido desalento — as coisas
não nos sorriem. Vamos ter moléstias
este ano, moléstias mortais e muitas.
— Epidemias?!
— Epidemias... não digo. Há muita gordura no fígado, vê — o galo está gordo de mais.
— Divino é que ele está
—... e a enxundia confunde as linhas do mistério. Não te posso dizer se teremos epidemias; afirmo-te,
porém, que teremos moléstias.
— Isso também eu afirmo, mesmo sem olhar as entranhas do bicho.
— Olha aqui a moela. Que vês nela?
— Eu... eu vejo que o galo morreu em jejum, ou, antes,
tendo iludido a gana com uns granizos e areia.
— Sabes que quer dizer isto? Sabes?
E a voz de Galracho silvava e os seus olhos de míope
faiscavam.
— Quer dizer que não atiraste milho ao poleiro.
— Não, quer dizer que vamos ter fome! fome!!! Não a fome que sofreram os lídios, mas...
— Uma fome modesta, assim como quem diz: meia ração.
— Isso: meia ração; meia ração ó bem dito. Vamos passar á
meia ração. E Galracho cocou a cabeça intrigado: O diabo é a gordura! Quase que
não posso interpretar com tanta banha. Mas cá está a fome, cá está!
— Olha, Galracho, faze como José; previne-te
— enche a despensa e o galinheiro, põe-te em guarda e não esqueças o meu talher. Mas o grande amigo saltou elétrico, arrepiado,
numa inspiração.
— Olha o fel: a política: está túmido e negro. Vamos ter lutas, lutas tremendas. Ah! meu
amigo, no ano passado, consultando as
entranhas dum apata...
— Tão gorda como este galo?
— Não, mais magra, (era uma pata própria para o mistério) eu anunciei todas as calamidades
que nos haviam de flagelar. Disse que o
presidente seria substituído...
— E foi, realmente.
— Disse que havíamos de perder um grande homem.
— Perdemos vários, a pata foi sóbria; é verdade
que estava magra.
— Prognostiquei o nascimento do Augusto.
— Tua senhora, em outubro, já se sentia mal e, em março,
avisado amigo, levamos o lindo Augusto á pia.
— É verdade! Vi tudo na pata.
— É extraordinário. E agora no galo?
— Vejo todo o ano em que entramos. Chamo a tua atenção
para aquela gordura que se vai fundindo ao calor do sol.
— E que diabo ó aquilo na tua sombria ciência?
— Aquilo? pois não vês? a gordura é dourada, não é? pois é um projeto de conversão do papel
moeda.
— Em ouro, compreendo.
E Galracho meditou e disse:
— E pôde ser também uma tentativa revisionista.
— E sobre o Código Civil, que diz o galo?
— Tem muita gordura, meu amigo, e a gordura é o embaraço. Vou agora consultar uns velhos
livros sibilinos para ordenar o oráculo.
Espera-me um instante no meu gabinete,
tens lá a rede, livros e uma caixa de musica
com doze peças.
Dirigi-me ao gabinete, tomei um livro ao acaso — era um romance venusino com gravuras que fariam humilhação aos camafeus antigos, dei corda á
caixa de musica e afundei molemente na
rede, ouvindo o repinicar do Trovador e deliciando-me com uma historia
d'alcova, ardentemente ilustrada.
Despertei em sobressalto, sacudido pelo
amigo Galracho que me chamava para o almoço.
— Doce sono! exclamei esticando-me nas pontas dos pés. Dorme-se bem neste gabinete.
A caixa emudecera e o livro jazia escancarado sob a rede expondo uma cena lúbrica aos olhos
pudibundos do ledor d'entranhas.
Lá fomos ao almoço e, enquanto roíamos azeitonas e barrávamos, com manteiga fresca, o pão branco
e mole, levantou-se uma questão.
Galracho afirmava que as entranhas do
galo gordo haviam-lhe augurado um sucesso
estranho e tão novo que ele, apesar de haver consultado todos os mestres da ciência, não
conseguira decifrar. E Galracho estava,
em verdade, sombrio e preocupado e, tão
distraindo estava que, com vagar, soprava
para o prato toda a polpa das azeitonas e engolia, com gosto, os caroços. Uma terrina, fumegante
e cheirosa, apareceu e ocupou, com
grandeza e brilho, o centro florido da
mesa. Galracho meditava, enquanto a senhora
ia enchendo os pratos com uma canja, toda lentejoulada d'olhos d'ouro e com
paio ás rodelas. Cheirava e espalhava
por toda a casa o seu apetitoso cheiro.
— Galracho, disse eu, baixa á realidade: deixa lá o transcendente, toma a tua colher e atira-te á
canja. Deixa lá o sucesso: que venha e,
para que não nos encontre fracos,
comamos e bebamos.
— Não, meu amigo, não; o que eu achei no galo não me sai da cabeça. Ali há sucesso e grande!
— Então que foi? dize lá!
— Que foi! que havia de ser? um ovo, homem, achei um ovo.
— Superfetação...
— Qual superfetação!
— Velhice... e eu ia comendo.
— Qual velhice! Um ovo autêntico... num galo. Este país está perdido, meu amigo; irremissivelmente perdido. Nem Deus o salva!
— Por causa do ovo?
— Então? Queres ver?
E, arrebatadamente, Galracho deixou a mesa, correu ao santuário e eu ouvi um urro, um verdadeiro urro e logo o aruspice reapareceu tremendo de terror sagrado, com os cabelos em
pé, lívido, bradando:
— Que é do galo?
E a senhora, serenamente, sorrindo, mostrou a terrina que
rescendia dizendo ao esposo alarmado:
— Está aqui, homem, não te apoquentes — aproveitei-o para a canja; estava tão gordo...
— O galo profético! Estamos perdidos!
E Galracho deixou-se cair pesadamente no sofá e pôs-se a dizer com uma voz tão soturna,
rolando uns olhos tão apavorados:
«Estamos perdidos! Estamos perdidos!»
que eu, francamente, não descansei enquanto
não me vi livre do diabo do galo gordo e
carregado de vaticínios.
---
Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
---
Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário