segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Coelho Neto: "O Galo"

O GALO


Todo curvado e atento, a olhar as entranhas  sangrentas dum galo, o meu amigo Galracho,  arúspice e rosa-cruz, venerador de Peladan,  sar  nos  cartões de visita e primeiro oficial do correio, na  lúcida manhã de janeiro, enquanto o Menino se- guia para o templo, a cumprir a Lei Judaica, santa pela intenção e higiênica pelos resultados, tirava  augúrios no fundo recôndito de um quarto discreto,  onde se empilham caixotes nos quais, á guisa de  altar, as vítimas palpitam e mostram nas vísceras  os arcanos do futuro.

Galracho, em  robe de chambre    sacerdotal, com  um facalhão inglês, de lamina luzente e larga,  lembrava um sacrificador do antigo tempo. Quando entrei, sentindo os meus passos no  soalho que range, voltou a cabeça e fitou-me com os  seus olhos de míope, desarmados das poderosas  lentes. Não me reconheceu de pronto, mas ouvindo-me a voz, tranquilizou-se e acenou misteriosamente para que eu encostasse a porta afim de  que a senhora, que é alegre e incrédula, não interrompesse  a cerimônia com o seu riso e com os seus comentários  mordentes.

Galracho suava em bicas naquela estufa esotérica e deposito de velhas caixas. Um raio de sol, descendo pela  clarabóia, dourava a vítima gorda em torno da qual  esvoaçavam gulosamente, desrespeitosamente moscas  zumbidoras e o arúspice, com as mãos mais vermelhas do  que as de um magarefe, tomava notas ligeiras numa larga  folha de papel toda manchada de sangue.

— Que diabo fazes tu aqui, Galracho?

— Não vez? estou tirando augúrios, como os nossos  pais romanos. Leio o futuro. Leio-o nas entranhas deste  galo como se o lesse nos mesmos livros da sibila.  Estava agora justamente interpretando o fígado. Ah! meu  amigo, suspirou Galracho meneando a cabeça, em grande  e abatido desalento — as coisas não nos sorriem. Vamos  ter moléstias este ano, moléstias mortais e muitas.

— Epidemias?!

— Epidemias... não digo. Há muita gordura no  fígado, vê — o galo está gordo de mais.

— Divino é que ele está

—... e a enxundia confunde as linhas do mistério.  Não te posso dizer se teremos epidemias; afirmo-te,  porém, que teremos moléstias.

— Isso também eu afirmo, mesmo sem olhar as  entranhas do bicho.

— Olha aqui a moela. Que vês nela?

— Eu... eu vejo que o galo morreu em jejum, ou, antes, tendo iludido a gana com uns granizos e areia.

— Sabes que quer dizer isto? Sabes?

E a voz de Galracho silvava e os seus olhos de míope faiscavam.

— Quer dizer que não atiraste milho ao poleiro.

— Não, quer dizer que vamos ter fome! fome!!!  Não a fome que sofreram os lídios, mas...

— Uma fome modesta, assim como quem diz: meia ração.

— Isso: meia ração; meia ração ó bem dito. Vamos passar á meia ração. E Galracho cocou a cabeça intrigado: O diabo é a gordura! Quase que não posso interpretar com tanta banha. Mas cá está a fome, cá está!

— Olha, Galracho, faze como José; previne-te

— enche a despensa e o galinheiro, põe-te em  guarda e não esqueças o meu talher.  Mas o grande amigo saltou elétrico, arrepiado,  numa inspiração.

— Olha o fel: a política: está túmido e negro.  Vamos ter lutas, lutas tremendas. Ah! meu amigo,  no ano passado, consultando as entranhas  dum apata...

— Tão gorda como este galo?

— Não, mais magra, (era uma pata própria para  o mistério) eu anunciei todas as calamidades que  nos haviam de flagelar. Disse que o presidente seria  substituído...

— E foi, realmente.

— Disse que havíamos de perder um grande  homem.

— Perdemos vários, a pata foi sóbria; é verdade
que estava magra.

— Prognostiquei o nascimento do Augusto.

— Tua senhora, em outubro, já se sentia mal e, em março, avisado amigo, levamos o lindo Augusto á pia.

— É verdade! Vi tudo na pata.

— É extraordinário. E agora no galo?

— Vejo todo o ano em que entramos. Chamo a tua atenção para aquela gordura que se vai fundindo ao  calor do sol.

— E que diabo ó aquilo na tua sombria ciência?

— Aquilo? pois não vês? a gordura é dourada, não  é? pois é um projeto de conversão do papel moeda.

— Em ouro, compreendo.

E Galracho meditou e disse:

— E pôde ser também uma tentativa revisionista.

— E sobre o Código Civil, que diz o galo?

— Tem muita gordura, meu amigo, e a gordura é o  embaraço. Vou agora consultar uns velhos livros  sibilinos para ordenar o oráculo. Espera-me um instante  no meu gabinete, tens lá a rede, livros e uma caixa de  musica com doze peças.

Dirigi-me ao gabinete, tomei um livro ao acaso — era  um romance venusino com gravuras que fariam  humilhação aos camafeus antigos, dei corda á caixa de  musica e afundei molemente na rede, ouvindo o repinicar  do  Trovador e deliciando-me com uma historia d'alcova,  ardentemente ilustrada. Despertei em sobressalto,  sacudido pelo amigo Galracho que me chamava para o  almoço.

— Doce sono! exclamei esticando-me nas pontas  dos pés. Dorme-se bem neste gabinete.

A caixa emudecera e o livro jazia escancarado sob  a rede expondo uma cena lúbrica aos olhos pudibundos  do ledor d'entranhas.

Lá fomos ao almoço e, enquanto roíamos azeitonas e  barrávamos, com manteiga fresca, o pão branco e mole,  levantou-se uma questão. Galracho afirmava que as  entranhas do galo gordo haviam-lhe augurado um  sucesso estranho e tão novo que ele, apesar de haver  consultado todos os mestres da ciência, não conseguira  decifrar. E Galracho estava, em verdade, sombrio e  preocupado e, tão distraindo estava que, com vagar,  soprava para o prato toda a polpa das azeitonas e engolia,  com gosto, os caroços. Uma terrina, fumegante e  cheirosa, apareceu e ocupou, com grandeza e brilho, o  centro florido da mesa. Galracho meditava, enquanto a  senhora ia enchendo os pratos com uma canja, toda lentejoulada d'olhos d'ouro e com paio ás rodelas. Cheirava e  espalhava por toda a casa o seu apetitoso cheiro.

— Galracho, disse eu, baixa á realidade: deixa lá o  transcendente, toma a tua colher e atira-te á canja. Deixa  lá o sucesso: que venha e, para que não nos encontre  fracos, comamos e bebamos.

— Não, meu amigo, não; o que eu achei no galo não  me sai da cabeça. Ali há sucesso e grande!

— Então que foi? dize lá!

— Que foi! que havia de ser? um ovo, homem, achei  um ovo.

— Superfetação...

— Qual superfetação!

— Velhice... e eu ia comendo.

— Qual velhice! Um ovo autêntico... num  galo. Este país está perdido, meu amigo;  irremissivelmente perdido. Nem Deus o salva!

— Por causa do ovo?

— Então? Queres ver?

E, arrebatadamente, Galracho deixou a mesa,  correu ao santuário e eu ouvi um urro, um  verdadeiro urro e logo o aruspice reapareceu  tremendo de terror sagrado, com os cabelos em pé,  lívido, bradando:

— Que é do galo?

E a senhora, serenamente, sorrindo, mostrou a terrina que rescendia dizendo ao esposo alarmado:

— Está aqui, homem, não te apoquentes —  aproveitei-o para a canja; estava tão gordo...

— O galo profético! Estamos perdidos!

E Galracho deixou-se cair pesadamente no sofá  e pôs-se a dizer com uma voz tão soturna, rolando  uns olhos tão apavorados: «Estamos perdidos!  Estamos perdidos!» que eu, francamente, não  descansei enquanto não me vi livre do diabo do  galo gordo e carregado de vaticínios.


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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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