sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Érico Veríssimo: "As Mãos de Meu Filho"

AS MÃOS DE MEU FILHO
Todos aqueles homens e mulheres ali na plateia sombria parecem apagados habitantes  dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio.  Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o  pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos  sonoros.
Beethoven.
Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente  humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte  de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo  luminoso pesa um silêncio grave e parado.
Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece  escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões  da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os  demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto  de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros  sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que  assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar  dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.
Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda.  
Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas  cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é  alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol... A  melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que  tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por  ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente,  as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e  num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas  mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem  no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma  significação especial, contam uma história diferente.
Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos  segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado.
O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.  Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.
Suggestion Diabolique.
D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos.  Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.  Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando,  ele, o seu Gilberto. Parece um sonho... Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas,  bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos  parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!
D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno,  encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica  ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra  um palhaço de circo. D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas  mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos... Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os  olhos sempre fitos nas mãos...  De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a  desculpa. Depois, o coitado estava desempregado... Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava  caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. "Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?" Lá  se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço  desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha.  "Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!" Ah, mas ela não se abatia. Tratava o  marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem  açúcar, voltava apara a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando  quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia...
De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao  presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de  lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde... Gilberto faz curvaturas para o público,  sorri, alisa os cabelos. ("Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre,  crespinhos, vai ser um rapagão bonito.”)
A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas  notas saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.
Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao  passado.
Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho.  Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas   aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância,  não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na  calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo...
— Inocêncio, quando é que tu crias juízo?
O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho
encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o  que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa,  pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças  a Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma proposta:
— Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras...  
— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?
— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a  sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.
Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou... No terceiro, bebeu o dinheiro  da única conta que conseguira cobrar.
Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando  agora... E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos  dançam... Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta  gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos... o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria  que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da  Brigada Militar...
De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D.  Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro  contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: "Vejam, é o meu  filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para  sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!".
A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.
No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele  viu... Mas não tem direito de se queixar... O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez.  Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por  cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela,  era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida,  a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.  
Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela  glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se  matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às  vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqüilo, tão  puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si  mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede  danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse  um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca.  O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam... No fim de contas ele não era nenhum santo.
Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca,  aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui  para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la...  adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos... É capaz até de ficar por lá... esquecer  os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim... E é bem-feito. O pai nunca teve  vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.
Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher  um repertório mais alegre.
No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa.  Inclina o corpo para a frente e murmura:
— Margarida...
A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.
— Chit!
Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a  chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer  esquecer aquelas palavras, quer afugenta-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como  fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.
Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma  piedade:
— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!
Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também  rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.
No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos  admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem  vestido, diz-lhe com voz profunda:
— Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da
mãe:
— Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite... Tudo que sou, devo a
ela.
— Não diga isso, Betinho!
D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa.
Novos admiradores chegam.
Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento  aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma  vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.
Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes  da praça, a grande estátua, as árvores paradas... Sente uma enorme tristeza. A tristeza  desalentada de não poder voltar ao passado... Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo,  evitando todos os erros, todas as misérias...
O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a  marquise.  
— Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa.
O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.
— Linda mesmo.
Pausa curta.
— Não vê que sou o pai do moço do concerto...
— Pai? Do pianista?
O porteiro para, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:
— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.
Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.
— Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos  muito pobres... Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia... o  Betinho tinha seis meses... umas mãozinhas assim deste tamanho... nós botamos ele na nossa  cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor  sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite  impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O  senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa  direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal  aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para  fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as  coisas... Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas  músicas difíceis... Não podia ser o artista que é.  
Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto.
Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o  em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças  uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a na mão do mulato.
— Para tomar um traguinho — cochicha.

E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.


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Nota:
Érico Veríssimo - Contos (1942)

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