domingo, 1 de setembro de 2013

Camilo Castelo Branco: "O Comendador"

O COMENDADOR
  
A D. António  da  Costa  Em testemunho da  regalada  leitura que  a  vossa  Excelência me deu com o seu Minho, lhe ofereço uma das novelas de cá. O  Minho tem o romanesco da  árvore  e o  romance  da  família.  A paisagem  sugeriu-lhe, o meu caro poeta, as prosas floridas do ridente livro, o seu estilo  tem a  macia  luz do luar das noites estivais e o cadencioso  murmúrio  das  ribeiras onde o céu estrelado se espelha.

O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial de uma diligencia,  lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas não se alem a ferretoar-nos a  testa e a sevandijar-nos os beiços convulsos de lirismo.

Viu  a  vossa  Excelência  perfeitamente  o  Minho  por  fora:  as verduras  ondulando nas  pradarias,  os  jorros de  água espumando  na  espalda  dos  outeiros, os fraguedos às cavaleiras dos milharais, a amendoeira a florejar ao  lado do pinheiral bravio, as ruínas do paço senhorial com os seus tapetes de  ortigas e  guadalmecins  de  musgo ao  pé da  chaminé  escarlate  e verde do  negreiro a  golfar rolos turbinosos de fumo  indicativo  de  panelas grandes  e  galinhas gordas,  lardeadas de chouriços.  Simultaneamente,  ouviu  a  vossa  Excelência  o som da  buzina  pastoril  ressonando  a sua  longa  toada nas  gargantas da serra; viu os espantadiços rebanhos alcandorados nos espinhaços  dos montes e os  rafeiros à  ourela  das estradas com os  focinhos nas patas  dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante. Reparou decerto na pachorra estoica  do boi cevado, que parece estar contemplando em si mesmo a metempsicose  em futuro cidadão de Londres mediante o processo do bife. Tudo isto, que é a  forma objetiva do Minho romântico, viu a vossa Excelência, afora o mais que  aformoseia  o seu livro,  os encarecimentos, as lisonjas,  as  feitiçarias da  arte  com que a vossa Excelência disputa primores à natureza.

Mas o que D. Antônio da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o miolo,  a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer — os costumes, o  viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro  e a filomela trila.

Ah!, o meu amigo! Romances, tecidos de casos cândidos e inocentes, apenas  os  fazem por aqui os pássaros  em Abril  quando urdem e afofam  os seus  ninhos. O restante dos animais não ovíparos vista-mos a vossa Excelência no  Catarro ou no estabelecimento da famosa Sra. Cecília Fernandes; da Travessa  de  Santa Justa,  que eu lhos farei  representar ao  vivo  no próprio  coração do  Minho — entre Farto e S. João do Calendário — as cenas contemporâneas da  fina Baixa e piores.

A peste, que infecionou os costumes destas aldeias, não sei decidir se veio das  cidades  para  aqui,  se  foi daqui para  lá.  Sá  de Miranda considerou isto  tudo  estragado quando viu correr pardaus por Cabeceiras de Basto Imagine a vossa  Excelência o que terá feito o esmeril do progresso a descodear e a brunir este   entio  há  três séculos!  Não faz ideia,  o meu amigo!  Até a  fotografia,  abarracada nas cabeças dos concelhos, tem feito colaborar o sol e o clorureto  de prata  na  relaxação  dos costumes. Os «conversados» permutam retratos  e  beijam-se  reciprocamente  em  papel-cartão,  aguçando  o  instinto  da  natureza  bruta. Verdade é que os pastores minhotos, há trezentos anos, já traziam ao  pescoço  os retratos  das pastoras  pintados em madeira,  como  se  depreende  destes versos de Diogo Bernardes, o rouxinol do Lima:

Pendurei num salgueiro a minha lira,   
Ouvi-la ao som do vento é uma mágoa, 
Em lugar de tanger geme e suspira.
Maríla que pintada numa tábua 
Aqui no seio trago, também chora; 
Seus olhos dão-me fogo, e os meus dão-lhe água.

Não obstante, o fogo, que acendrava a paixão nos peitos daqueles Bieitos e  Melibeus das éclogas, era uma espécie de lume sacro que velava a virgindade..   dos retratos pintados em tábua. Porquanto, deve a vossa Excelência lembrar- se  que os  pegureiros  do  Minho  tais fornalhas  faulhavam do peito que os  vizinhos iam lá  prover-se  de lume para  cozinhar a  ceia,  como se colige das  lástimas deste pastor do canoro Bernardes:

A viva chama. aquele intenso ardor   
Que brando sinto já pelo costume,   
De noite de si dá tal resplandor 
Que mil pastores vem a buscar lume.

É verdadeiro e bonito. Os mestres da vernaculidade mandam que a gente leia  isto, e mais os outros líricos seiscentistas — caldeirada de favas clássicas com  as quais o entendimento se opila e encrua; mas a língua cresce.  

Como quer que seja, entre os retratos em tábua quais os pintava S. Lucas e o  retrato em fotografia aperfeiçoado  por Fox  Talbot mede a  distância  que  etnologicamente separa as Nizes e Fílis de Diogo Bernardes destas Joanas e  Tomásias que hão de florejar nas Novelas do Minho.

Ouço dizer que a  via  férrea,  sulcando  o seio  virginal desta província,  afugentou  com.  O  estridor  das suas asas os  pardais,  a  mala-posta e a  Probidade.

É possível.  Os caixeiros do Porto,  sadios e sanguíneos,  com  as  suas luvas  amarelas e todo o verniz que lhes coube em sorte nos pés, entraram Minho  dentro, e derramaram a dissolvente chalaça nas aldeias. Por outro lado, a raça  turdetana  de Braga  fechou pelo norte a  barreira  à  inocência  espavorida.  A cidade santa de os nossos pais e dos cônegos, a esposa de Fr. Bartolomeu dos  Mártires, Braga  despeitorou-se,  desnalgou-se,  sofraldou as saias e  mostrou a  liga sobre o joelho desde que um jornal da terra lhe chamou segunda Paris. Eu  não reparo na desproporção do confronto, quando ali me vejo no Café Faria,  a sentir-me arquejar numa das artérias do grande corpo da civilização chamada  Europa, como lindamente diz o Sr. Vaz de Freitas na sua Guia do Viajante em  Braga, por seis vinténs. Tudo me leva à persuasão de que me acho na segunda  Paris, quando a Guia me assevera com exatidão, ainda não contraditada pela  inveja, que Braga encerra nos seus muros sete procuradores de causas, e que aí  os  barbeiros  superabundam. Fazia-se ainda  pelos modos  uma  terceira Paris  com a superfluidade dos barbeiros!

A categoria  modesta  em que o jornalista  afidalgou  a sua  terra  justifica-se

principalmente nas estalagens.  Aí,  é aí onde o viajante  se sente  saturado de  Paris, a ponto de, pensando que acorda alvoroçado pelas campainhas elétricas  do Grande Hotel no Boulevard des Capucines, achar-se em Braga, no Hotel  Aveirense,  Largo dos  Penedos.  Avantajam-se  ainda  às hospedarias  bracarenses, no ponto de vista zoológico, os hotéis da princesa do Minho. Os  forasteiros dados a pesquisas de anatomia comparada podem, mediante uma  gratificação razoável, passar as suas noites em vigílias úteis estudando insetos  sem queixos e sem asas, de membros articulados, consoante a classificação de  Cuvier.  Ali se  lhes  oferecem exemplares  em barda  da  pulga  braguês (Pulex  bracharensis). Convencer-se-á que as seis pernas deste parasita são desiguais, o  que assim se  faz  mister  para  o salto.  Não duvidará  que ele  tem o bico  alongado com duas cerdas, e guarnecido na base de dois palpos escamosos. Se  reparar  bem nas pulgas maiores,  dissipará  suspeitas de que tem asas,  que  realmente não têm  as  do Hotel Leão de Ouro nem as do Hotel  Transmontano.  Encontram-se  nestes dois  estabelecimentos  larvas das  mesmas, cilíndricas e sem  pernas. O  olho armado pode  observá-las a  mudarem-se  em ninfas,  que não são exatamente  umas de quem cantava

Garrett:

As ninfas invoquei do Tejo ameno   
Que em mim criassem novo engenho ardente   
Etc.  

CAM., c. IV.  

 Nem as outras de quem dizia o Épico:

Caem as ninfas, lançam das secretas   
Entranhas ardentíssimos suspiros...  
LUS., canto IX.

Verdade é que  o  acessório das secretas,  inclusas no verso  de Camões, deixa  supor que ele quisesse falar das ninfas dos hotéis de Braga. Que estude o caso  o  Sr.  Visconde  de  Juromenha, e não o  desampare a  Academia  Real das  Ciências.

Nos hotéis de Braga, finalmente, dão-se as mãos o espavento das modernas  indústrias, as refinações da decoração, a obra-prima de marcenaria e vidraria  —  um  luxo  levantino,  como em recâmaras de nababos  —,  e sobretudo a  higiene expansiva de saúde a dar cambalhotas na brancura virginal dos lençóis;  e à  mistura com tudo isto ressalta  não  sei  quê de arqueológico  naqueles  quartos!  A gente,  quando vai deitar-se,  imagina  que  naquela  mesma  cama  dormiu na noite passadas. Pedro de Rates ou Gonçalo Mendes da Maia.  

Por fora das estalagens ainda há proeminentíssimas feições de Paris em Braga.  O  jardim,  por exemplo. Vossa  Excelência  já  esteve no  jardim?  Impressionaram-no com  certeza uns  rumores,  «ora  sufocados,  ora  estrepitosos»,  que ali se  escutam nos domingos  de tarde? Também a  mim. Não pôde soletrar em sons articulados aquele confuso burburinho? Nem eu.  Quem explica o fenômeno, trivial nos Champs Elysées e no Parc de Monceau,  é o já citado Sr. Vaz de Freitas na sua Guia do Viajante em Braga, por seis  vinténs, p. 41. A coisa é isto:  

O  chilrear das crianças,  o devanear das poetisas,  o queixume  sonolento  dos  poetas,  a  conversação pesada  e metálica  dos  proprietários,  todos  estes  murmúrios vagos ou alegres,  sufocados  ou  estrepitosos (hic) infundem uma  vida nova e excecional ao passeio, que o tornam atraente ou deleitoso.  

Théophile Gautier,  o  Benvenuto Cellini da  prosa  francesa,  não  rendilharia com tão  subtis  filigranas  de frase  a  explicação  dos  ruídos babilônicos do  Luxembourg.  Donde  se  colhe  que Braga  tem poetisas que exibem  delirantemente os seus devaneios no jardim, ao mesmo tempo que os poetas  se queixam sonolentos. Paris, tal qual. Note a vossa Excelência o contraste no  sexo destas pessoas que bebem na  Castália:  elas devaneio,  apostrofando a  gritos o arrebol da  tarde e a brisa  que cicia  e se perfuma  nas cilindras; eles,  cabeceando marasmados pelo ópio do narguilé,  queixam-se  sonolentos, porque não  os  deixam dormir as poetisas.  São homens  gastos,  estafados,  roués. Saíram do Café Faria intoxicados do absinto de Espronceda, de Nerval,  de Larra e de Musset. Entraram no jardim com o cérebro anestesiado, querem  dormir; e elas, à imitação do femeaço da Trácia, projetam escalavrar aqueles  Orfeus dorminhocos,  Márcias que  elas,  filhas de  Apoio,  querem esfolar.  Segunda Paris.

Aí vê a vossa Excelência a razão dos «estrépitos» explicada na Guia. Pareciam  outra coisa pior.

Eu, afora isto, conheço outras analogias entre Braga e Paris, que estudei, sem  subsidio — entendamo-nos. Há três meses senti-me ali adoecer da nevropatia,  que é moléstia endêmica dos grandes centros de população, onde os deleites  requintam e o  fluido  nervoso se desperdiça-o que sucede  em Londres,  em  Braga,  em Nova  Iorque,  em  Paris,  quando a  gente desconhece as leis  da  relatividade dos prazeres, como diz o professor escocês Bain. Confiando nos  anti-histéricos, fui comprará botica do Sr. Pipa, na Rua do Souto, um frasco  de cápsulas de éter sulfúrico, e preparava-me para pagá-las com trezentos réis  (um franco e cinquenta cêntimos) — preço corrente no Porto — quando o praticante da farmácia me mandou entender o preço da droga com mais cinco  tostões, e mostrou-me que o sinal aritmético de um franco estava emendado  em dois.  Ainda  assim,  observei-lhe  que dois  francos cambiados  em moeda  portuguesa eram quatrocentos réis. O interlocutor refutou triunfantemente a minha objeção, alegando que em Braga dois francos eram oito tostões.  

Esta fisionomia da botica bracarense dá feições à terra, não de segunda, mas  de primeira Paris. A segunda é a outra que os geógrafos ignaros nos inculcam  primeira.

Corrija-se.  

Dou de barato que as referidas poetisas do jardim consumam cápsulas de  súlfur  copiosamente  nas suas eterizações  e que os  poetas sonolentos  se  despertem com elas, não querendo usar economicamente das cócegas; deve-se  talvez às condições especiais das musas  bracarenses o preço superlativo dos  anti-espasmódicos:  assim mesmo, Paris  segunda  não  pode arbitrariamente  dobrar o valor  da  moeda  de Paris  primeira,  nos  gêneros que importa,  ao  mesmo passo que, no valor legal da moeda francesa, exporta para França os seus chapéus, os seus cavaquinhos e a sua frigideiras.

Aqui tem, pois, D. Antônio da Costa, o foco de progresso que esparge raios  de luz para as aldeias setentrionais do Minho, enquanto o Porto alastra no Sul  os caixeiros contaminadores, que levam consigo a corrupção dos romances e  as tentações do cabelo untuoso com a risca ao meio da cabeça, lasciva como o  dorso de um gato de Angora.

É neste meio que eu  me abalanço a  esgaratujar novelas.  Há  treze anos que  apeguei por esse Minho, em cata do bálsamo dos pinheirais e das fragrâncias  das almas inocentes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro baluarte da  pureza  e que os  lavradores  do Minho,  nivelados  com os  saloios  da Estremadura,  eram os  cândidos  pastores da  Arcádia  comparados aos  malandrins de Gomorra.  Um  dos  meus estudos,  no  intuito de me habilitar  para o confronto do saloio com o minhoto, — da raça sarracena com a galega  — é esta historinha que lhe dedico, o meu nobre amigo.

De Coimbra, aos 15 de Outubro de 1875.  


PRIMEIRA PARTE

6 de Janeiro  de 1832.  Manhã chuvosa  e frigidíssima.  O  zimbro  rufava  nas  frestas  envidraçadas  da  igreja  de  Santa  Maria  de  Abade.  Ringiam as  carvalheiras varejadas  pelo  norte.  Ao arraiar do dia, a  devota  dos  Três  Reis  Magos, a Tia Bernabé, tecedeira — viúva do operário Bernabé, que lhe deixara  o nome  e  uma  cabana com  a  sua  horta  —,  ergueu-se,  foi  à  residência  paroquial pedir a  chave da  igreja;  e,  sobraçando a  vassoura  de  giesta  para  varrer o chão e, almotolia para prover as lâmpadas, entrou no adro. Ao passar  em frente da porta principal, ajoelhou, persignou-se e orou. Neste momento,  ouviu o vagir convulso e ríspido de criança. Voltou o rosto para o lado donde  lhe parecia sair aquele choro. Não viu alguém. Espantou-se.

— Jesus!  Santo  de nome de Jesus!  Isto é coisa  ruim!  —  exclamou ela,  pousando no degrau da porta a vasilha e a vassoura.

E o chorar da criança cessou.

A Tia Bernabé debruçou-se na parede baixa que murava o adro e viu entre as  grossas raízes de uma oliveira secular um embrulho de baeta azul, donde saiu  um vagido. Saltou a parede, agachou-se à raiz da árvore e pegou na criança,  aconchegando-a do calor do peito e bafejando-a no rosto azulado do frio. A  baeta estava ensopada da chuva que escorria da ramaria da oliveira. Tirou-lha  apressadamente, envolveu o menino no avental e agasalhou-o entre o seio e o  farto jaqué de picotilho. Depois desandou para a residência e mandou dizer ao  abade que topara no adro uma criança, que parecia estar a despedir.  

— Pois que quer ela então? — perguntou o abade, expondo uma parte do  nariz e metade do olho esquerdo à frialdade do ar. — Que tenho eu com isso?  Que a leve a Barcelos. Aqui não há roda de enjeitados.  A criada do abade deu o recado.  

— Torne lá, Sra.  Joana  —  replicou a  Tia  Bernabé  friccionando os pés  álgidos do recém-nascido com a barra da sua saia de saragoça —, e diga ao Sr.  Padre que este menino, se morrer sem batismo, é um anjinho do Céu que se  perde. O Sr. Abade há de saber isto melhor que eu...

A criada repetiu a réplica e juntou:  

— A Tia Bernabé diz bem. Salte daí pra fora, o seu calaceiro! — E deu-lhe  uma sonora palmada na nádega esquerda. — Um rapaz de vinte e sete anos  está aí enteiriçado como um velho! Upa!

— Está quieta, Joana, olha que me fazes vento!  

E ela puxou-lhe pelo pé direito, que excedia o volume de três pés; e ele, com o  outro, despedido à toa, sacou-lhe do baixo ventre um som timpânico de odre  cheio.

— T'arrenego!  —  bradou ela,  recuando com  as mios  postas  na  parte  molestada. — Você atira? Tem má manha!

— Cheguei-te?  —  respondeu  ele risonho,  embiocando-se na  felpuda  coberta e encostando-se à almofada de chita que estofava o espaldar do leito.  

— Que brincadeira! — queixou-se a rapariga, arrufada. — Podia-me matar  com o coice, se me dá aqui no coração!...

E punha a mão no estômago.  

— Isso não é nada, rapariga!. . Olha se amuas!  

— Nada, não é... não que a barriga é a minha..   

— Pois tu, com este frio de mil diabos, vens-me mexer na roupa, e de mais  a mais puxaste-me pelo pé do joanete que tem a frieira aberta!. .

— Então dissesse-o..   —  disse ela com rosto ajeitado à  reconciliação. —  Salte  daí!..   Vá batizar  o enjeitado;  que,  se  ele morre sem batismo,  verá  que  ingranzéu se levanta na freguesia. Bem basta o que já dizem.. 

— Calça-me as meias de lã; mas tem cuidado que não se despegue o  emplasto da frieira.

E,  enquanto  a  jovem  com jeitosa  meiguice lhe  encanudava  nas pernas  cerdosas as grossas meias, alisando-lhas ao correr da tíbia, resmungava ele:  

— Quem seria a grande bêbada que enjeitou a cria?  

— Isso há de ser de fora da freguesia...   

— Também me parece..  Cá não me consta. . E vem-ma cá pôr no adro!..   Ah!, bom estadulho!...

— Fica  uma  coisa pela outra.  As de  cá  também as  levam  às outras  freguesias, quando acontece — disse Joana.

E nomeou várias ovelhas fecundas e tinhosas, enquanto o pastor lavava a cara  no alguidar vermelho que a raparigaça lhe chegava, com a toalha no ombro.  

Ao pegar na  toalha,  sacudindo a  cara  e  assoprando ruidosamente com a  sensação  do frio,  o abade apertou a  polpa  da espádua à  jovem com ternura  felina. Este carinho  confirmou as pazes.  Joana  arregaçou  os  beiços  ridentíssimos até às orelhas e mostrou-lhe nos dentes de brilhante esmalte que  o seu amor infinito resistira à prova do coice.  

A Tia Bernabé, afligida, porque o menino soluçando se esverdeava, chamou  outra vez Joana com encarecidos rogos.

— O Sr. Abade está já vestido — disse a rapariga saindo à janela. — Passe  você por casa do Tio Isidro da Fonte, e diga-lhe que vá prá igreja e deite água  na pia.

***  

O padre saiu de casa carrancudo e bocejando. De cada vez que escancarava as  mandíbulas, traçava no envasamento da boca três cruzes com o dedo polegar.

A tecedeira,  que o esperava  no  adro,  abeirou-se dele mostrando-lhe a  cara  roxa da criança. O padre olhou-a de esconso e perguntou:  

— É macho ou fêmea?  

— É um menino — respondeu a viúva.

— Acenda um daqueles cotos — disse o abade ao Isidro, apontando para  os sórdidos castiçais de chumbo de um altar. — A pia tem água?

— Vem aí o meu rapaz com o cântaro.  

— Vocês são os padrinhos? O rapaz há de chamar-se Isidro, ou então põe-se-lhe o nome do santo de hoje — observou o abade, boquejando e benzendo  a boca, no limiar da porta travessa onde a mulher esperava, segundo o ritual.  

— Hoje é dia dos Santos Reis — disse ela.  

— É verdade  —  confirmou o padre,  e pensou  se  Reis  seria  nome ou  apelidos. Não se lembrava de ter estudado esta espécie.

— Os Santos Reis Magos eram três — prosseguiu a Tia Bernabé.  — Bem sei  —  acudiu o  padre,  —  Um chamava-se S. Belchior,  outro S.  Gaspar,  outro S. Baltasar  —  explanou a  devota  dos magos orientais:  —  O menino pode chamar-se Belchior, se o Sr. Abade quiser.

— Eu quero tudo que vocês quiserem. Vamos a isto, que está um frio de  rachar. — E, recolhendo-se à sacristia, esfregava as mãos bufando-as com os  gases do estômago ainda perfumados do vinho da ceia.  

— O  meu rico  anjinho, irá  ele  morrer na  água  fria?  —  lamentava  a  boa  criatura bafejando-lhe as duas faces.

O abade enfiou a sobrepeliz, revestiu a estola, mandou chegar o enjeitado ao  batistério, fez um resumo do latim cerimonial e disse:

— Vão-se à vida.  

— Vou-me daqui às Lagoas a ver se a Teresa do Eido me dá o peito a este  anjinho, até ver se arranjo que algum lavrador me faça a esmola de um bocado  de leite de cabra — disse a Tia Bernabé.

Então você não o leva à roda? — perguntou a abade esbugalhando o espanto  nos olhos.

— Agora  levo eu à  roda  o meu enjeitadinho!  Já  que Deus me não deu  filhos.. 

— E tem muito que lhe dar você?  

— Enquanto eu puder fiar uma meada e tecer uma teia, dou-lhe eu o meu  caldo  e  o meu pão;  depois,  quando eu não puder,  dá-mo ele.  Casa  e dois  palmos de horta, graças a Deus, tenho eu, e não na devo a ninguém... O pior é   que o pequeno,  se  lhe não acudo,  morre de fome..   Ai!,  o meu Deus!,  há  cadelas mais amoráveis que algumas mães.

— Ande lá... meta-se em trabalhos..  — concluiu o abade, safando-se com  os cabeções do capote apanhados na testa.

***  

A criança vingou, espigou e saiu robusta e menos mal encarada: Entre os sete  e  onze  anos aprendia  à ler,  e  nas  horas vagas enchia as  canelas do  fiado ou  dobava meadas.

Belchior  Bernabé  (assinava-se assim com satisfação da.  mãe adotiva),  deparado  a  algum romancista  imaginoso,  daria trela  ao esvoaçar alto  da  fantasia, quanto à sua origem. A mãe poderia ser uma fidalga de Famalicão ou  de Santo urso. O pai, com toda a verosimilhança, poderia fantasiar-se algum  dos generais do exército realista  ou liberal  que,  por aquele tempo,  manobraram nessas paragens. Com estes dois elementos, a fidalga e o general,  qualquer mediano talento,  aproveitando o acessório das  batalhas,  compunha um romance de maus costumes, pelo que respeitaria ao enjeitado, e um livro  histórico, pelo  que  interessaria  à  história da  restauração  da  Carta  Constitucional  e do  sistema  representativo.  Feito isto,  o  pequeno  lucrava  muito,  sabendo nós que  a sua  mãe era uma devassa recatada  que, por  noite  desabrida de Janeiro, o mandou expor entre as raízes de uma árvore, em que  os  cevados  foçavam  luras com o focinho,  e &não  devoraram naquela  madrugada porque estavam ainda cerrados nas suas pocilgas.

Contanto que esta mãe desnaturada enjeitasse o filho, em respeito ao brasão e  ao crédito, a criança ser-nos-ia mais simpática, as linhas de fina casta extremá-lo-iam entre  as caras  boçais da  plebe,  a  auréola  de nascimento  misterioso  banhá-lo-ia então da luz de um melancólico romance. Assim é; mas eu não sei  quem fossem os pais de Belchior Bernabé. O rapaz, segundo ouvi dizer aos  que o viram criança e adulto, era feio, espesso de cara, achamboado de pernas.  Ninguém lhe farejava o pai nem a mãe pela semelhança do rosto: parecia-se  com todas as mulheres e com todos os homens daquelas freguesias, onde as  caras são achatadas sem ressalto de protuberância, ou,  angulosas como  as  pêras de sete cotovelos.

É maravilhoso este capricho fisiológico!  A  terra  da  Maia  é um  alfobre de  raparigas  bonitas,  com os  seios altos  e alvos como  pombas no ninho; os  quadris elásticos e boleados têm saliências que vos levam cativo e vos levarão  doido se lhes virdes as lisas colunas em que a hera do verso de Camões lembra  sempre...

Desejos que como hera se enrolavam.

E lembra sempre este verso e os outros convizinhos por serem Os Lusíadas  um  poema  que se lê  nas escolas e se  encontra  no açafate de  costura das  educandas que puderam subtrair-se à morigeração pestilencial dos lazaristas.  

Transpostos  os limites  da  Mala,  a  primeira  mulher que se  vos depara  na  primeira  freguesia  do concelho de Famalicão é feia  e suja  até ao asco,  escanelada, escalavrada no peito, veste-se a frisar com a desgraça da sua má  figura. E daí até Braga, se vos apraz, podereis inalar em todo o seu perfume a  pura  flor  da  castidade.  Se há  terra  onde possam  ermar  e defecar-se de  sensualismo santos tentadiços,  é ali.  Cada  mulher é uma  figa  benta de que  fogem os três inimigos da alma, principalmente o último.

***

Belchior,  aí por  Maio,  mês  das  flores,  da  brotoeja  e doutras  fatalidades  especificas, começou a amar. Tinha dezanove anos, carnadura rubra, ombros   largos, assobiava como um melro, tangia cavaquinho e amava a Maria Ruiva, filha do Silvestre Ruivo, o maior lavrador da freguesia. Este amor resguardava- se como um delito, e por isso mesmo se escandecia e refinava até à quinta- essência  da  paixão, que está  paredes  meias do  desastre.  O  enjeitado,  se  se  afoitasse a alardear preferências nas atenções de Maria Ruiva, seria espancado  pelos rivais ou por algum dos três padres tios da cachopa.  

Eram três  clérigos afamados por  façanhas  de estudantes em Braga.  Tinham  militado nas guerrilhas da usurpação; terçaram de novo as armas em 1846, na  carnificina  de Braga;  recolheram a  casa  depois da  morte de Mac Donald, e  diziam missas a oito vinténs para não se descaçarem no ofício.  

Uma noite, quando um dos padres recolhia, enxergou um vulto esbatido no  escuro do murtal que formava o tapume da eira da sua casa, e lobrigou por  entre a sebe o alvejar de uma saia a fugir. Cresceu sobre o vulto como pau em  programa  de bordoada,  e ouviu o estalido do  peno de pistola.  Susteve  a  pancada e perguntou:

— Quem está aí?

— Sou o Belchior Bernabé.

— Que fazes aí?

— Nada, Sr. Padre João.

— Porque te escondeste?

Não faço mal a ninguém, Sr. Padre João.

— Mas engatilhaste uma arma  de  fogo!  —  E acercou-se  dele  arremetendo.  —  Que  queres tu desta  casa,  enjeitado?  Servem-te  as minhas  sobrinhas...?  —  E atirou-lhe  um  epíteto  que definia  a  natureza  da  mãe  incógnita.

— Sr. Padre João, olhe que, se me bate, eu, bem me custa, mas... atiro-lhe.  Siga o seu caminho e deixe estar quem está quieto e manso.  

Padre João Ruivo sobraçou o marmeleiro ferrado e murmurou:

— Tomo-te à minha conta, brejeiro!

E passou avante.

Ao apontar do Sol,  esporeou a  égua  para  Famalicão,  demorou-se  com a  autoridade  administrativa, com os  membros  da  comissão distrital,  com o  regedor,  e  saiu alegre.  Ao  outro dia,  na porta  da  igreja  de Santa Maria de  Abade, lia-se «Belchior Bernabé, enjeitado» entre os mancebos apurados para  o recrutamento.

E, entretanto, Silvestre, o pai de Maria, chamou ao sobrado da tulha três filhas  que tinha e disse:

— Qual foi uma de vocês que esteve esta noite na eira a conversar para o  quinchoso com o enjeitado da Bernabé?

Duas responderam logo ao mesmo tempo:  

— Eu não! E acrescentaram:  

— Cega eu seja de ambos os olhos!  

— Quebradas tenha eu as pernas!  

— Má raios me partam! 

A terceira,  Maria,  abaixou  a  cabeça,  levou o avental de  estopa aos  olhos e  chorou.

— Foste tu? — exclamou o pai; e, pegando de um engaço, ia cravar-lhe os  dentes na cabeça, quando as duas filhas lhe ferraram o pulso. O pai, homem  possante  de quarenta  anos,  sacudiu-se  a  custo das presas das  valentes  raparigas, largando-lhes o engaço esmurraçou a outra com tamanho ímpeto de  raiva que Maria caiu atordoada.

Em seguida, voltou-se para as duas filhas e disse:  

— Esta mulher fica fechada aqui, entendem vocês? Se quiserem, tragam- lhe o caldo; se não, que morra para aí, que a levemos diabos!  

E, saindo, rodou a chave e guardou-a na algibeira interior da véstia.  

***

A tecedeira, quando Belchior, lavado em lágrimas, lhe disse que ia ser soldado,  encostou o queixo às mãos postas em súplica, relançou os olhos à imagem do  Bom Jesus do Monte, deteve-se instantes e disse serenamente:

— Não  irás para  soldado,  o meu filho. O  Tio  Silvestre Ruivo já  me  ofereceu dois centos por esta casa, com a condição de me deixar morrer nela.  

Vende-se  a  casa,  ficas  tu  sem  ela,  mas onde quer se  vive.  Para  soldado não  vais,  Belchior.  Dás o dinheiro  aos  governos,  como fazem os filhos  dos  lavradores ricos, e estás livre.

Belchior  não cessava  de chorar,  e de Vez em quando,  por entre  soluços,  articulava  palavras que a  tecedeira,  um  tanto surda  e de  todo alheia dos  amores do rapaz, não percebia.

— Não chores, rapaz! — insistia a velha, repetindo o expediente de vender  a casa; e Belchior, por fim, obrigado a explicar-se, rompeu nesta exclamação:  

— A Maria Ruiva está perdida e desgraçadinha!  

— Credo!. . Tu que dizes, Belchior?!  

O rapaz arrepelava-se; apanhava com as mãos a nuca e batia com os cotovelos  um  contra  o outro.  Atirava-se  de trambolhão sobre uma  grande caixa  de  castanho e jogava de cabeça contra os joelhos com a pasmosa elasticidade da sua  aflição.  Fazia  aquilo  porque não sabia  as frases  que nós,  os  maus  romancistas, costumamos emprestar a esta espécie de sujeitos:  

A Tia Bernabé, ora lhe pegava na cabeça, ora nos braços, dizendo-lhe as mais  carinhosas consolações. Por fim, o enjeitado, erguendo-se de salto e olhando  em redor tão sinistramente quanto cabe na rubrica de um drama e na pupila  fulva  do Sr.  Isidoro  Sabino  Ferreira  na  tragédia,  disse  com o  esbofar das  angústias vertiginosas:

— Assim como assim... mato-me!  

Aqui foi um alto soluçar da tecedeira, um desentoado choro que alvorotou a  vizinhança.

Belchior,  assim que viu a  casa  a  encher-se  de gente,  fugiu pela  porta  da  cozinha, saltou valados, emboscou-se numa seara de centeio, e aí, estirado por  terra sobre as louras gabelas, chorou copiosamente.

A Tia Bernabé pedia entretanto aos vizinhos que fossem atrás dele, porque o seu Belchior dissera que se matava.

O  enjeitado deixou-se trazer como um  ébrio  nos braços dos  vizinhos; e,  chegando a casa, pediu que o deixassem deitar. Depois, ganhando ânimo —  que é sempre certo, esgotadas as lágrimas–, contou à Tia Bernabé a sua curta  história  com Maria  Ruiva,  concluindo-a  com uma  revelação que eriçou os  cabelos da velha.

***

Nessa mesma hora, a tecedeira saiu, cambaleando e encostada às paredes, em  demanda do abade.

Era ainda o mesmo que batizara Belchior. Envelhecera e engordara. Meditava  depois de jantar no destino  da sua  alma,  assim que o destino do corpo  lhe  parecera  consumado. Joana,  a  das sapatadas  naquela  anca  de Hércules  Farnésio,  havia  muito que  cauterizava  a  consciência  chagada,  cortando  o  cabelo e cilhando os rins pecadores com a corda nodosa dos cilícios. O abade  também sofrera um abalo rijo de contrição, a ponto de não substituir Joana e  calçar as meias direta  e pessoalmente.  Nesta  espécie de  amputação  espontânea, não podendo criar processos  de filosofia  nova,  como  Pedro  Abélard,  comia  às suas horas e  profanava  com  silabadas  o latim do missal.  Prometia acabar bem.

A Tia Bernabé referiu-lhe o que Belchior lhe confessara a respeito de Maria  Ruiva.

— Eu bem lhe disse a você, mulher, que se metia em trabalhos, lembra-se?   — recordou o abade.

— Sim, senhor, lembra..   mas  então?  Ainda  me não arrependo,  se o Sr.  Abade me fizer a caridade de falar ao Silvestre e dizer-lhe que o melhor é, já  agora, deixar casar a rapariga.  

— Você — atalhou o padre —, você, Bernabé, deu-lhe volta o miolo! O  Silvestre dar a filha ao enjeitado!... Ora, mulher, peça a Deus juízo, e diga a  esse tratante que se vá quanto antes sentar praça, antes que lhe deem cabo da  pele. Com que então!..  O alma do diabo foi às do cabo, bem?   
  
A tecedeira  ouviu-o com o rosto lavado em lágrimas;  e ele,  solfejando as  palavras iracundas ao compasso do rufo que fazia com a caixa prata sobre o  braço da cadeira, prosseguiu:

— Forte maroto! Atrever-se a conversá-la, já era muito: mas isso que você  me diz,  mulher,  só na  forca!  E  então..,  uma rapariga  sem nota,  que já  foi  pedida pelo Francisquinho das Lamelas, que colhe oitenta carros e vinte pipas,  afora o azeite!. . E, vamos lá, era a melhor das irmãs, uma mocetona!. . Com  que então, esse patife disse-lhe mesmo que ela.., daqui a pouco... já não pode  esconder o fruto do seu crime?

— Sim, senhor — balbuciou a Tia Bernabé.  

— Isto só no Inferno! — respondeu o abade, rebitando a ponta do nariz  para  dilatar a  circunferência  das ventas sobranceiras à  pitada  —  Isto  só  no  Inferno!...

— Valha-me Deus,  Sr.  Abade!  —  replicou timidamente  a  tecedeira.  —  Então a  religião  do  nosso  Senhor Jesus  Cristo  não dá  remédio a  estas  desgraças, que tantas vezes acontecem? No melhor pano cai uma nódoa. Logo  que eles se casem, está tudo remediado, pois não está?...

— Está o quê?..   Então uma  rapariga de boa família, que tem três tios  padres e que  é filha  de um  capitão de ordenanças,  casa-se  assim com um  enjeitado que você encontrou na bouça da igreja entre o mato!?...

— E verdade;  mas todos somos filhos  de Deus  —  argumentou a  Tia  Bernabé; e mais longe iria na sua preleção de caridade ao pastor, quando uma  vizinha  a  chamou à  porta  da  residência  para  lhe  dizer que Belchior  estava  preso, entre seis cabos da polícia que o levavam para soldado, e ele a mandava  chamar para  se  despedir.  Ainda  desceu  precipitadamente as  escaleiras a  trémula velhinha; mas, a poucos passos, caiu de joelhos, amparou-se no valo e  debruçou-se desmaiada.

Entretanto, o regedor ordenava aos cabos que levassem o preso, visto que a  Tia Bernabé fora levada sem acordo para a residência. Belchior pediu que o  deixassem ir lá  despedir-se  da  sua  mãe.  O  regedor  voltou-lhe  as costas  e  acenou aos cabos que marchassem.

***

Em Famalicão deram-lhe uma guia e enviaram-no entre seis espingardas para  Braga. Ao outro dia era soldado.

A Tia procurou-o no quartel do Pópulo nesse mesmo dia. Quando o viu de  cabeça tosquiada como cão morrinhoso e coleira de couro preta, estonteou-se  o juízo e esteve a  pique de  cair.  O  recruta,  chorando com  ela  nos  braços,  apiedou o comandante da guarda, que os mandou entrar na casa das tarimbas.  

Daí a duas horas, tocou a corneta a recruta.  

Belchior já não tinha nome. Era o 29.

— Salta daí, 29! — bradou-lhe um anspeçada.

— Que é? — perguntou a tecedeira.

— Vou para o exercício, a minha mãe.

Ela  viu-o marchar com outros  para  o campo  do exercício;  e logo,  a  meio

caminho  do terreno  das manobras,  um  furriel barbaçudo e de chibata  lhe  assentou na  parte  sobrejacente às pernas um  pontapé instrutivo.  Diga-se a  verdade — era o primeiro.

A tecedeira, quando isto presenciou, saiu do campo estrangulada por soluços,  entrou na  Sé,  e orou largo tempo com  o rosto  no pavimento.  Depois  levantou-se,  reanimada,  e foi para  a sua aldeia  executar o que ficara  convencionado com Belchior: vender a casa e substitui-lo.

Pregou anúncios na porta da igreja e nas árvores vizinhas das estradas. O pai   a  Maria  Ruiva  muito queria  comprá-la para  arredondar um  campo  com  a  horta  e armar na  casa  térrea  um  estábulo  de bois para  embarque;  porém,  receando que o seu dinheiro servisse a resgatar o soldado, consultou os irmãos  clérigos.  Padre João foi  a  Braga  mexer os pauzinhos,  disse ele;  e,  voltando,  sossegou o irmão:

— Compra a casa, que o enjeitado as correias não as bota fora do lombo.  

O lavrador tinha oferecido duzentos mil-réis, quando a tecedeira não pensava  vender  a  casa  onde nascera;  mas agora,  por terceira  pessoa,  mandou-lhe  oferecer cento e quarenta.

A desventurada velha ia ceder, pensando que vinte moedas de ouro bastariam  a resgatar o filho; neste aperto, uma beata de freguesia distante, e confessada  do abade, lhe propôs a compra, a fim de passar a estação das penitências ali à  beira do seu diretor espiritual. Esta mulher,  que era virtuosa, foi desde logo  difamada pelos padres Ruivos à conta do confessor que a dirigia; e o lavrador,  pela  sua  parte,  enraivava-se  sabendo que  a  Bernabé  vendera  a  casa  por  duzentos  mil-réis.  Padre  João,  conversando a  tal  respeito  com o abade,  desfechou-lhe esta ironia entre duas pitadas:

— Quando se está assim gordo, Sr. Abade, é preciso trazê-las para perto...

E o pastor,  exulcerado  na  sua  candura,  cascalhou uns frouxos  de tosse de  esgana e gosmou:

— Se eu trouxesse para esta freguesia ovelhas de fora, talvez que o padre  João me deixasse em paz as do meu rebanho.. 

Entendiam-se.

*

A Tia Bernabé foi a Braga com o dinheiro e com um o seu cunhado, que tinha  sido embarcadiço, e então era calafate em Vila do Conde. Por felicidade, viera  ele à terra ver os parentes; e, condoendo-se da paixão da cunhada, se oferecera  a dar em Braga os passos necessários à baixa do Belchior. O requerimento foi  indeferido. O calafate andou por advogados que lhe escreviam réplicas inúteis.  Por fim, compreendeu que o rapaz havia de gemer sob o peso da vingança do  lavrador.  E  como ele  passara  quarenta  anos  no  mar e aí ganhara ódio  às  misérias da  terra,  tanto que soube  que o rancor era  de padres e o crime do  rapaz era de amores, voltou-se para a cunhada e disse:

— O  rapaz vai de  hoje  a  quinze dias para  o Brasil.  Tu pagas-lhe a  passagem,  e  o  resto fica  por  a  minha conta. Daqui até Vila  do  Conde  é  desertor; assim que sair a barra, é livre... Olha... vês aquela andorinha? É livre  como ela!

— E não hei de tornar a vê-lo? — atalhou ela chorando.  

— Se o não tornares a ver, que monta? Tens tu que fechar os olhos para   sempre ou não? Qual queres tu: vê-lo aqui soldado, ou saber que ele está no  Brasil  a  manobrar  a sua  vida? Deixa-o ir.  A rapariga,  quando ele chegar a  Pernambuco,  já  lhe não lembra;  e,  se enjoar,  então,  é como  quem deita  o  coração pelas  goelas fora.  Tu vens  para  Vila  do  Conde comigo.  Tens  que  comer e uma enxerga onde durmas.

***

Em Março de 1852, fez-se à vela de Vila do Conde a barca Conceição. Entre  os passageiros ia o desertor. Chamava-se aí Manuel José da Silva Guimarães, e  nunca mais ouviu proferir o seu nome.

Quando a  polícia  deitava  inculcas no  concelho de Famalicão procurando a  paragem da Tia Bernabé, rendia ela a alma ao seu Criador em Vila do Conde.  Vira desaparecer as velas da barca Conceição, ajoelhada no terraço do castelo.  Depois, ficara de bruços a chorar. Levaram-na nos braços a casa do cunhado.  As lágrimas secaram-se. Veio a febre e o delírio. Chamou, chamou pelo seu  filho,  até que Deus a  chamou a  ela.  Não foi confessada  nem ungida;  mas  morreu santa porque vivera santamente. Achara aquele enjeitadinho, criara-o, amara-o, venderá  um  cordão para  o  vestir  jeitosamente  a  fim  de mandar  à  escola, vendera as arrecadas para lhe comprar fato novo quando foi à primeira confissão,  vendera  a  casa  e o tear e o leito onde morrera  a  sua  mãe  para  o  remir de soldado. Padeceu grandes angústias quando soube que o filho do seu  coração era  culpado  na  desgraça  de uma  rapariga honesta.  Cuidou que o  padre, o pregador da caridade e da igualdade dos servos de Jesus Cristo, iria  admoestar o lavrador abastado a conceder a filha para esposa do pobre. Esta  santa cegueira da cristã é de crer que Deus lha perdoasse. Por fim, de virtude  em virtude e de dor em dor, logo que aos setenta anos de idade viu sumir-se  para sempre o seu querido enjeitado, pediu a Deus por ele, por si, e... morreu.  


SEGUNDA PARTE

Vinte anos passam-se tão depressa, que eu, neste salto que o leitor vai dar, não  me  despenderei  a  encher-lhe  de frases o passadiço.  O  melhor  é fechar os olhos e saltar, Vinte anos! Que são vinte anos?  

Nós ainda ontem éramos rapazes, é velhos! Este ontem gastou vinte anos a  resvalar para hoje. Que se passou neste lapso fugitivo da nossa vida entre a  juventude e a velhice? Nada! Temos ao nosso lado filhos homens e netos que  amanhã serão homens; e, todavia, parece que ainda ontem, com um raio de  sol e com o perfume  de uma  rosa,  compúnhamos  o sorriso  da  loura  mãe  destes homens, que está hoje velha! Ainda ontem éramos poetas pelo amor,  afoitos pela aspiração, valentes pela mocidade. Que grandes coisas devem ter-se  passado  nesse instante  de vinte anos, enquanto esperávamos  outras  que  nunca  vieram!  A pensar  sempre com o futuro  não o víamos  passar.  Afinal,  parou;  e  deixou-se  conhecer porque marchava  pesado,  tardio  e triste:  era  a  velhice.  Chegou de  repente;  escureceu-se-nos tudo  como se  as  alegrias nos  fulgissem do seio de um relâmpago. Esta treva foi instantânea e gastou vinte  anos a condensar-se. Que são vinte anos?

***

Em 1872, hospedou-se no hotel de Famalicão um brasileiro a quem os seus  criados  negros  e brancos chamavam simplesmente o Sr.  Comendador.  Não  viera  recomendado a  algum dos  barões da  terra. Enviara  adiante a  recomendação da  parelha  das horsas,  da  caleche,  dos  lacaios.  Representava  quarenta  anos florentíssimos.  Basto  bigode,  suíça  inglesa, espesso  cabelo  levantado em novelos crespos que lhe encantavam a cara. Espáduas amplas, à  proporção das pernas que se moviam rijas e baseadas em pés infalíveis como  os alicerces das pirâmides dos faraós. Trajava a primor, de preto, com um ar  de pessoa que passeava de tarde na estrada de Braga, com o intento de ir à  noite a Covent Garden, ao Royal Italian Opera. Fumava sempre uns charutos  que vaporavam os aromas das recâmaras das sultanas. Na mesa, era de uma  elegância frugal  que  desmentia a  procedência.  Olhava  para  o bife  com um  fastio tal e tamanha tristeza que fazia lembrar Tertuliano quando, meditando  na  metempsicose,  olhava  para  o boi  cozido e dizia:  «Estarei eu comendo  o meu avô?» Conquanto nem ele nem os criados declarassem os seus nomes e  apelidos, os jornais do Porto tinham anunciado a chegada do maior capitalista  de Pelotas, o Sr. Manuel José da Silva Guimarães.  

Nada de bioquices com o leitor: aí está Belchior Bernabé, o enjeitado.
  
***

Ao terceiro dia  de hospedagem em Famalicão,  o comendador  cavalgou,  acompanhou-se do lacaio e seguiu na direção de Santiago de Antas.  

— Vai ver a igreja que fizeram os Mouros..  — calculou outro comendador  da  terra,  e assim o comunicou a  mais  dois comendadores,  atribuindo aos  Mouros a igreja dos cavaleiros de Rodes.

— Há de ser isso — confirmou o mais correto. — Este homem é mágico.  O  Guimarães  do hotel  já  lhe perguntou se era  nascido cá  no Minho, e ele  respondeu..   

— Que não tinha a certeza — concluiu o outro. — Tem grande telha!

— Ontem, na  feira,  estava  ele a  ver vender  duas  juntas de bois  para  embarque.

Quem nas vendia era o Silvestre Ruivo...

— Bem sei,  o irmão daquele padre João que morreu há  três  anos  de  apoplexia.

— E isso. O telhudo, que não fala com ninguém, pôs-se a conversar com  o Silvestre a respeito dos bois: depois levou-o à hospedaria e deu-lhe de jantar.  O  Silvestre  esteve depois comigo  e vinha  espantado de  ver dois criados de  casaca, bota de verniz, gravata branca e luvas, a servir à mesa. — E em que falaram vocês?  —  perguntei-lhe  eu.  Disse-me  que o comendador lhe  perguntara coisas e tal et etecetera cá da província e que ficara de ir a casa dele  ver a corte dos bois. Mágico ou não? Olhem vocês!! Vai ver os bois!  

— Se fosse aqui há dez anos atrás — disse o comendador Nunes, — valia- lhe  a  pena  de ir ver  as bezerras..   Você  conheceu as Ruivas,  a  Antônia  e  a  Chica, ó Sor Leite?

— Ora, se conheci! Que fatias!...  

— Que diriam  vocês  —  respondeu  o Sr.  Nunes  —  se conhecessem a  Maria, que eu m'alembro de ver antes de ir ao Rio..  Que pimpona! Apanhou-a um enjeitado... 

— Já ouvi contar esse caso.

— Você  não sabe nada,  perdoe.  O  enjeitado  entrava  na  escola  do Zé  Batata quando eu sala já pronto. Depois, lá tive notícias no Rio que a rapariga  dera  em droga.  Ele  foi preso para  soldado e desertou; e ela  nunca  mais  ninguém lhe pôs o olho no lombo.

Uns dizem que está num recolhimento de convertidas, outros dizem que está  fechada, desde que isso foi..  há de haver, João Nunes, há de haver bons vinte  anos. .

— Isso é que é pai de  febras!. .  Fez  muito  bem!  —  aplaudiu o  mais  devasso.

***

Entretanto,  chegava  o comendador Guimarães  à  porta  do ex-capitão de  ordenanças Silvestre Lopes, de alcunha o Ruivo. Era esperado.  

No patamar  da  escada que conduzia à  vasta  quadra  chamada  «a Sala  dos  Padres» estava o lavrador, entre três clérigos venerandos pela sua idade: devia  contar qualquer deles bastantes anos sobre setenta.

O comendador deu as rédeas do seu alazão ao lacaio, subiu prazenteiramente,  apertando a mão a Silvestre, e cortejando os padres.

— Vossa Excelência, não se perdeu nos atalhos? — perguntou o lavrador.   

— Quem tem boca vai a Roma — respondeu o comendador; e referindo-se aos padres:

— São os seus manos, Sr. Lopes?

— Dois são; o outro é o Sr. Abade.

O hóspede encarou-o muito a fito e perguntou:

— É abade há muitos anos nesta freguesia?

— Vim para aqui paroquiar em 1828, na idade de vinte e cinco anos; tenho  setenta e seis; conte lá a vossa Excelência.

— Está aqui há  quarenta  e quatro anos  feitos.  —  acrescentou o padre  Bento Lopes.

— Justamente  —  confirmou o clérigo que batizara  Belchior,  o enjeitado  exposto na manhã de 6 de Janeiro de 1833.

O comendador não via naquele ancião um sé traço do corpulento abade.  

Conversaram  sobre a  guerra  do Paraguai,  sobre a  emigração dos Minhotos,  sobre o estado florescente da indústria e agricultura portuguesa. O lavrador,  apoiando o  comendador,  encarecia  a nossa  prosperidade com  este  conciso,  pesado e até certo ponto bicórneo argumento:

— Vejam o dinheirame que dão os bois!  

Estava  a  mesa  posta no  sobrado imediato e à  cabeceira  da  mesa  a  cadeira  destinada ao hóspede.

— Vossa Excelência vem para aqui — disse o lavrador apontando-lha com  urbana  homenagem.  —  Ninguém  mais  se  sentou nessa  cadeira  desde que  morreu o nosso irmão mais velho, padre João. Faz agora três anos que morreu  de um estupor.. 

— De apoplexia — emendou o padre Hipólito.  

— Tanto faz — replicou Silvestre. — Estava a dizer missa e caiu redondo  no altar.

— É de crer que  a sua  alma  estivesse  preparada  para  esse transe  —  observou o comendador em tom compungido.

— Era bom padre — disse o abade, talhando à faca os canudos flexuosos  da sopa de macarrão —, isso era, coitado! Deus o tenha à sua vista!...  

— Está aqui toda a sua família, Sr. Silvestre? — perguntou o hóspede. —  Se bem me recordo, disse-me na feira de Vila Nova que tinha filhos...

— Filhos, não, o meu senhor. Tenho duas filhas.  

— Três..  — emendou o abade.

— Duas! — retorquiu desabridamente o lavrador, coruscando-lhe os olhos  irados.

— Ah!, sim.., duas... eu agora estava distraído..  — remediou o indiscreto.  

E o comendador não perdia a mínima expressão das quatro fisionomias.  

— Tenho duas filhas — repetiu o pai de Maria. — Uma está casada fora  com um proprietário, já tem um filho em Braga para padre e outro a doutorar-se em Coimbra. A outra está em casa. Não quis casar e já está a caminhar para  os trinta e sete anos. E a que governa a casa.

Este incidente passou. O comendador mostrava-se profundamente abstraído.  

Comeu pouquíssimo e quase nada  disse.  Apenas,  terminado o  suplício da  exposição do peru, do lombo de porco de vinho e aios, da perna de vitela e do  leitão; pediu licença para retirar-se. pretextando a precisão de estar cedo em  Vila Nova.

O  abade acompanhou-o, porque o brasileiro  mostrou o desejo de ver umas  sepulturas notáveis, de que certo romance dava notícia, no adro da Igreja de  Santa Maria.

Os outros padres quiseram ir também; mas o comendador dispensou-os com  delicada violência, prometendo voltar a vê-los mais de espaço.  

O  abade,  mostradas as duas campas vazias,  convidou o ricaço a subir à sua  pobre residência.

— Com muita  satisfação,  Sr.  Abade:  simpatizo  com  a  vossa  Senhoria,  quero mesmo granjear a sua amizade.

— Ó Excelentíssimo Senhor!, que valho eu, pobre velho, e pobre abade da  mais  pobre das abadias!..   Aqui gastei a  vida,  já  agora  quero  que esta  terra,  onde dormem tantos que batizei, tantos que casei, me coma também os ossos.  

O padre estava lugubremente palavroso. Havia ali uma flor de poesia elegíaca  a  entreabrir-se  um  pouco borrifada  de mau vinho do Porto.  Sentia-se  expansivo.

Pensava  o brasileiro em ocasionar conversação acerca  do incidente,  acontecido no jantar, sobre se eram duas ou três as filhas de Silvestre. Não foi  preciso rodeios. O padre endireitou logo com o assunto nestes termos:  

— O  Silvestre é bom sujeito,  bom paroquiano,  amiguinho  dos  seus  interesses,  isso  sim: mas  desse  pecado, se  o é,  está  o Inferno cheio.  Porém,  Excelentíssimo Senhor, tem  este homem um modo de pensar a  respeito  da  honra  que não se conforma  com a  religião  da  caridade e do perdão. Vossa  Excelência havia de notar a ira com que ele disse que as suas filhas eram duas,  quando eu, por descuido, disse que eram três. Conheci logo que andei mal, e  emendei-me contra a minha consciência; mas enfim, eu estava a jantar em casa  do homem, estava ali um cavalheiro respeitável, a civilidade mandou-me tapar  a boca.. 

— Sim... eu notei que a vossa Senhoria, cedendo ao número das duas, fê-lo  constrangidamente.

— Pois, por isso mesmo que eu percebi que a vossa Excelência notou, é  que devo  à minha  posição de padre esclarecer a  verdade diante do Sr.  Comendador. Se quer ouvir a história... mas a vossa Excelência disse que tinha  pressa...

— Não, senhor. Queira dizer. Tenho muito tempo.

O abade saiu à janela e disse para fora ao criado que fosse levar a égua pela fresca  ao mato.  Depois,  fechando o trinco da  porta  da  saleta,  continuou,  fazendo sentar o  hóspede  numa  cômoda cadeira  de estofo e ocupando ele  outra de pregaria com espaldar de moscóvia:

— O Silvestre não tem duas filhas, tem três. A mais velha, que eu batizei  há  trinta  e nove anos,  chama-se  Maria.  Esta  rapariga,  aqui há  vinte anos,  andou de amores  com  um  enjeitado que por aqui se  criou em  casa  de uma  santa  criatura,  que o  encontrou no  mato  da  igreja,  pelo  lado  de fora  das  campas que a vossa Excelência viu há pouco. O diabo do rapaz desviou-a do  bom caminho e pô-la  na  mais  mísera  situação  que em tais  casos  é possível.  Enfim,  a  rapariga  sentia-se mãe,  quando um  dos  padres,  que já  lá  está  na  presença de Deus, deu com eles em palestra de noite. Daí a dias, o Belchior  (chamava-se assim o enjeitado), foi daqui preso para Braga, e deitaram-lhe as  correias às costas. Passado pouco tempo, o soldado desertou e foi para onde  estivesse seguro.

Agora falemos da rapariga. O pai moeu-a bem moída de pancadaria, fechou-a no  sobrado  de uma  tulha,  e mandava-lhe  dar todos  os dias duas tigelas de  caldo, dois pedaços de pão e uma caneca de água. Dois ou três meses depois,  apareceu-me aqui um calafate de Vila do Conde, que vinha a ser cunhado da   tal Bernabé que criara o Belchior, e disse-me que a sua cunhada morrera de  saudades do  desertor  que não podia mais  voltar  à  Pátria;  e  que, antes  de  expirar, lhe pedira que viesse ter comigo e me rogasse, pelo divino amor de  Deus, que fizesse  eu  todas as diligências por haver à  mão o filho  do seu  Belchior, que ele, calafate, se encarregava de levar para Vila do Conde. A falar  verdade,  era empreitada de costa  arriba  meter-me  eu neste delicado negócio  com o Silvestre;  mas pedi forças a  Deus e fui-me ter com ele.  Contei-lhe o  estado da  filha e ofereci-me para  dar à  criança, quando nascesse,  o único  destino possível em harmonia com os interesses da terra e os da divina religião  da  caridade de Jesus,  que mandava  chegarem-se  a  Ele as  criancinhas.  O  homem ouviu, praguejou, berrou que ia matar a filha; e eu então, resolvido a tudo,  disse-lhe  sem temor  que se  ele matasse a  filha  iria  eu acusá-lo  de  matador de duas vidas. O homem teve medo e concluiu afinai que a criança  me seria entregue; mas que a rapariga nunca mais veria sol nem lua. . Estou  maçando o Sr. Comendador.. 

— Pelo amor de Deus!, estou interessadíssimo nessa triste historia. .

— Tristíssima,  Excelentíssimo Senhor!  Eis  que nasce  um  rapaz, e quem  assistiu  ao  nascimento e  mo  trouxe foi uma viúva  serva  de  Deus,  a  minha  confessada, que vivia aqui na casa que comprara à tal Bernabé. Fui eu que lhe  pedi que merecesse a divina graça por esta obra de misericórdia. Já cá estava  então em casa  de uns  parentes o calafate à  espera  do filho do Belchior. Entreguei-lho, e  lá foi o pequeno para  Vila  do Conde,  depois que o batizei  com o nome do seu pai.

— E esse menino... — atalhou o comendador, arrancando a pergunta das  ânsias que a débil vista do abade não divisava.

— Eu lhe conto, o meu senhor. Dois anos depois, morreu o calafate, e eis  que a  criada dele mo remete para  aqui,  dizendo que o patrão assim lho  ordenara,  para  que eu  o  entregasse às irmãs e sobrinhas dele que moram aí numa freguesia ao pé. Chamei as tais mulheres, mostrei a criancinha, dei-lhes  o recado do calafate falecido, e elas responderam que não queriam saber de  histórias; que tomasse o avô e a mãe conta dele, que eram bem ricos. A serva  de Deus que morava, como já disse a vossa Excelência, na casa que fora da  Tia Bernabé, tomou conta do enjeitadinho. Havia nisto mistério profundo! O pai fora criado na mesma casa onde era criado o filho, ambos sem pai nem  mãe!  Desgraçadamente,  quando o pequeno  ia  nos seis  anos,  morre a  benfeitora  de morte  repentina.  Os parentes  sacudiram dali  o mocinho, e o  Silvestre comprou a casa, botou-a abaixo e fez uma corte de bois. Ali daquela  janela  pode  a  vossa  Excelência ver  a  corte  onde foi  a  casa  das  duas santas  mulheres. É aquela que branqueja por entre aqueles dois carvalhos.  

O  comendador foi  à  janela,  reconheceu os  arredores  da  extinta  casa  da sua  infância, enxugou as lágrimas, voltando as costas ao abade, e voltou a sentar-se em frente ao ancião.

— Que havia eu de fazer-lhe? — prosseguiu o abade. — Trouxe para aqui  o pequeno e mandei-o à escola.

— Muito bem, muito bem! — exclamou arrebatado o brasileiro. — Muito  bem, honrado homem! — E apertou-lhe a mão, levando-a aos lábios.

 O abade, retirando a mão úmida de lágrimas, disse comovido:  

— Fiz o meu dever, senhor! Oxalá que esta boa ação me seja descontada  nas muitas que tenho ruins na minha vida..  

— E depois, o pequeno..  — atalhou pressurosamente o hóspede.  

— O pequeno, eu digo-lhe. . Agora tornemos a falar da mãe... Três anos e  meio  esteve fechada  no  tal  cárcere.  Via  apenas uma  irmã  que lhe levava  o  alimento,  Depois  esteve em perigo  de vida  e pediu  um  confessor.  Fui  eu  o  chamado à falta de outro. No ato da confissão, disse-lhe que o seu filho estava  na minha casa e que passava por ser o meu parente. Outros, Sr. Comendador,  diziam que ele  era  o  meu filho  e da  mulher que o  amparara.  Perdoei aos  caluniadores, para que Deus me perdoe os escândalos que dei: era justo que  me difamassem  porque eu dei azo a  isso com os  desatinos  da minha  mocidade.  Maria, quando soube  que tinha  o seu filho vivo,  ganhou forças,  quis viver, e venceu a doença. Dizia-me ela:

«Se eu viver, hei de ter alguma coisa desta casa, e o que eu tiver será do meu  filho: e, se eu morrer ficará pobrezinho de pedir.» De pedir não — disse eu — ,  porque vou  mandar-lhe ensinar um  ofício,  logo que ele chegue à  idade de  poder trabalhar.

Perguntou-me então se eu sabia alguma coisa do Belchior. Fora da confissão,  respondi-lhe que o calafate muito em segredo me dissera que ele fora para o  Brasil. No primeiro ano, o calafate recebia a miúdo cartas do Belchior, que o  rapaz escrevia à mãe adotiva, pensando que ela estava viva. O calafate escrevia  para lá que a Bernabé tinha morrido; e o rapaz a escrever sempre à Bernabé. A  opinião do calafate era que o Belchior andasse lá pelos sertões onde nunca lhe  chegavam as cartas idas de Portugal.  Depois,  o calafate  morreu. O  que se  passou daí em diante não sei.  Foi isto que eu contei a  Maria.  Por  fim,  espalhou-se por aí que o Belchior tinha morrido; e eu aproveitei a notícia, quer  fosse  verdade,  quer não,  a  fim  de ver se  o pai da  pobre rapariga  lhe dava  alguma liberdade.  Falei  nisto ao Silvestre,  e  em nome de Deus o  fiz  responsável pela privação em que a tinha da missa e dos sacramentos. Tanto  lhe bati à  porta da  consciência  dura,  que  consentiu  deixá-la  confessar-se  e  ouvir missa ao menos uma vez de três em três meses. Pouco e pouco, obtive  que ela viesse à igreja de quatro em quatro semanas, e nessas ocasiões já ela  sabia que o seu filho era o menino que me ajudava à missa. Uma vez entrou  na sacristia, não estando mais ninguém na igreja, abraçou-se no Olho e desfez- se em lágrimas. Deixei-a, coitadinha!, mas depois pedi-lhe que não tornasse a  fazer tal  imprudência,  porque,  se alguém a  visse,  não tornaria  a  sair  do seu  cárcere.  O  rapaz  quando fez catorze anos,  lia  e escrevia  correntemente.  Mandei-lhe ensinar o  ofício  que  escolhesse:  quis  ser carpinteiro,  para  o que  tinha muita habilidade. Essa cadeira em que a vossa Excelência está sentado  fez-ma ele. Veja que bonita peça!, pois ainda não tinha dado um ano ao ofício  quando fabricou essa obra que parece feita no Porto!  

— E está aqui nesta freguesia o tal Belchior? — perguntou o brasileiro.

— Não, o meu senhor, está trabalhando em Braga; mas vem aqui todos os  meses ver a mãe no dia em que ela se confessa.

— Todos os meses?  

— Sim, senhor, na primeira segunda-feira de cada mês. De hoje a oito dias,  se eu viver, hei de ouvi-la de confissão, e dou de jantar ao meu Belchior.  

— De hoje a oito dias? Que prazer a vossa Senhoria me dava, Sr. Abade, o meu honrado e querido amigo, se me consentisse que eu contemplasse na sua  igreja essa mártir a rever-se no seu pobre filho! Seria possível?

— Pois não é?!  Apareça  a  vossa  Excelência  na  segunda-feira  aí pela  seis  horas da manhã, que é quando eu a confesso e lhe dou a comunhão. Vê-a a  ela e vê o rapaz, que é ainda quem me ajuda à missa e ministra o jarro da água  à mãe, depois que ela comunga.

Eriçaram-se os cabelos ao comendador por uma espécie de eterização, mescla de  entusiasmo,  de arroubamento e  de tristeza,  Apertou ao  seio as cãs  do  ancião e beijou-o  na  cara.  O  padre encarava-o com assombro,  e ele  murmurava:
  
— A sua história arrebatou-me!. . Eu sou um homem que tenho a loucura  da admiração pelas ações grandes. Se até hoje não acreditasse em Deus, cairia  de joelhos aos seus pés, confessando-o!

— Quem é que não  acredita  em Deus,  o meu amigo?!  —  perguntou o velho enxugando as lágrimas.

***

A segunda-feira aprazada ralou com todas as pompas e músicas e perfumes de  uma aurora de Julho. O comendador Guimarães chegara de Braga, por volta  da  meia-noite,  e ordenara  ao escudeiro que o chamasse  às quatro  horas da  manhã, Supérflua recomendação. Não dormira. Antes do alvorecer da manhã,  chamara ele os criados e mandara aparelhar os cavalos.  

Às cinco e meia da manhã estava ele encostado para uma das campas do adro  de  Santa  Maria  de Abade.  A distância,  escarvavam os cavalos insofridos na  terra  barrenta  de um  montado calvo.  O  sol  verberava  numa  das frestas da  igreja. Os pardais pipilavam na oliveira, naquela mesma que, trinta e nove anos  antes, dera,  nas suas  raízes  recurvas  à  flor  da  terra,  um  berço  empapado de  chuva  àquele homem que ali  se  sentia  feliz até ao extremo em que as  palpitações de júbilo  laceram o coração  como as famas  da  agonia.  As  andorinhas chilreavam em redor  da  cornija  da  igreja  e,  esvoaçando-se por  longos círculos,  cortavam de  notas embaladas pelas  ondas  da  luz o grande  hino, que na Terra se completa com as lágrimas dos que podem chorá-las de  gratidão à Divina Providência.

Ele, Belchior Bernabé, chorava essas lágrimas benditas, contemplando a terra  onde  a  tecedeira  pobre se ajoelhara  para  o  levantar regelado até  ao  peito  e  ressuscitá-lo com um milagre da caridade.

Às cinco horas e três  quartos  ouviu passos  que soavam na  trempe  de ferro  que forma o limiar do adro. Correu pressuroso ao cunhal da igreja e viu uma mulher, com um capote aconchegado da face, encaminhando-se para a porta   transversal. Simultaneamente chegava, transpondo de salto a parede, um rapaz  de boa presença, vestido de azul, com o seu chapéu de felpo branco na mão. O  comendador  parou,  encostado ao cunhal  A mãe e o  filho abraçavam-se,  quando repararam daquele homem estranho.

— Quem é? — perguntou Maria.  

— É figurão! —  disse ele.  — Eu vi aquele homem em Braga  com  o Sr.  Deão e entraram no paço do Sr., Arcebispo. Ali abaixo na bouça estão dois  cavalos e um criado de libré. Hão de ser dele.. 

— Queres tu ver que é um comendador que esteve em casa do teu avô faz  hoje oito dias? Tua tia viu-o e disse-me que ele era assim de bigode e suíças...  

— Que estará ele a fazer aqui?

— Ele olha para nós?! — perguntou a mãe olhando-o de través por entre a  fresta formada pelo capote em que se encapuzava.

— Não tira os olhos da gente... e parece que está assim a modo de quem  quer perder os sentidos.

— Estará doente?,.  Ainda bem que aí está o Sr. Abade.., — E lá vai falar  com ele, a minha mãe. .

— Então é o mesmo que eu te dizia.  

— Belchior! — chamou o abade —, pega lá a chave e entrem, que eu já vou.

O rapaz  foi buscar à  chave,  beijou a  mão  ao padre e abaixou a  cabeça ao  senhor desconhecido, O comendador, com os olhos cravados nele, movia-se  num balanceado  arfar de peito:  era  o esforço  que punha em  resistir aos  ímpetos  que o impulsionavam  pana  o filho.  O  carpinteiro  abriu a  porta  e  entrou com a mãe na igreja, dizendo-lhe:

— Aquele sujeito estava a olhar para mim de um modo que parecia querer  falar-me...

O brasileiro, depois que respondeu ao cumprimento do abade, perguntou-lhe:  

— Vossa Senhoria terá dúvida em me ouvir de confissão?...  

— Com muito  contentamento,  Sn.  Comendador.  Quando quer,  a  vossa  Excelência?

— Agora. Desejo receber a comunhão juntamente com a sua confessada.  

— Pois seja agora. 

E dizia entre si o padre: «Este homem foi iluminado pela graça divina e Deus  o nosso Senhor escolheu o mais pecador dos seus servos para instrumento da  sua misericórdia com outro pecador!» Entraram no arco da igreja de passagem  para a sacristia, O abade curvou-se ao ouvido de Maria, que fazia oração no altar do Santíssimo, e disse-lhe:

— Demora-te um  pouquinho,  que  eu vou confessar uma  pessoa.  —  E chamando Belchior: — Vai a casa, abre o segundo gavetão da cômoda e traze  a  toalha  grande de  rendas que está  engomada,  para  ministrar a  comunhão  àquele senhor que vou confessar.

***

O comendador saiu da sacristia meia hora depois e foi ajoelhar no primeiro  degrau  do altar-mor.  Maria, como  visse  sair  o abade e acenar-lhe para  o  confessionário,  ergueu-se,  passou rente do  desconhecido com os  olhos no  chão e a gola do capote apanhada nas faces.

Belchior tinha vindo com a toalha de folhos encanudados, que desdobrava e  ajeitava para o sagrado ministério, Depois entrou na sacristia com o galheteiro,  renovou  a  água  e o vinho,  dobrou e sacudiu a  toalhinha  de modo que a  porção ainda não maculada servisse ao lavatório, De vez em quando, saia ao  limiar da sacristia e ficava a olhar para o comendador, que se conservava de  joelhos, bom a  cabeça  abaixada,  amparando a  cara  nas mãos erguidas,  O abade saiu do confessionário a  manquejar trôpego,  amparando-se à  teia  gradeada de um altar, O filho de Maria Ruiva foi dar-lhe o braço, e o ancião  queixava-se de dores reumáticas nos joelhos e nos rins. A confessada subiu até  à  capela-mor  e  ajoelhou atrás do  brasileiro,  lendo atos  de contrição  e  a  ladainha.

O  abade  começara  a  revestir-se  para  ir celebrar,  quando o comendador  se  levantou  e,  de  passagem para  a  sacristia, relançando os  olhos a  Maria, pôde  ver-lhe  o  rosto iluminado pela  réstia  refrata  do  sol  que  lampejava  palpitante  através  da  fresta,  na  superfície  metálica  de  uns tocheiros dourados.  Não a  conheceria se a encontrasse.

Aquele rosto  tinha sido  purpurino, acetinado como as pétalas  das rosas  húmidas pelo  rociar das formosas madrugadas.  Tivera  as curvas boleadas e  lisas da  saúde,  da  força,  dos atritos  do ar  forte e do sol que enrubesce  a  epiderme e cobra o sangue.

Estava magra, angulosa e lívida como as santas esculturas sob a inspiração do  martírio;  mas esta  maceração era  a  formosura  divinal  da  alma,  era  a  santificação da mulher aos olhos daquele homem.  

Entrou na sacristia e, com trémula voz, disse ao padre:  

— Sr.  Abade,  peço-lhe  que antes  de subir ao altar  chame  aqui  a sua  confessada.

— Aqui?! — perguntou o abade com espanto. — Ela é muito acanhada...  

Presumia  que o  comendador  desejava  simplesmente  ver  de perto a  mulher  cuja desgraçada história o comovera.

— Não importa — respondeu o brasileiro —, é urgente que ela aqui venha  antes que o Sr. Abade nos dê a comunhão.

— Sim?! — respondeu o padre. — Pois bem...  

E, saindo ao umbral da sacristia, chamou a filha de Silvestre.  

Ela entrou com timidez e assombro. O filho, que suspendia ainda nas mãos as  dobras da  alva  que o padre estava  vestindo,  largou-as,  deixou pender os  braços e empedrou na expressão imóvel da curiosidade.  

Neste lance, o comendador apresentou ao abade meia folha de papel selado e  pediu-lhe que a lesse. O padre pediu a Belchior que lhe chegasse os óculos,  pô-los tremulamente, acercou-se de uma fresta e, lendo primeiro a assinatura,  disse:

— E a assinatura da sua Eminência o Sr. Arcebispo de Braga?..  Conheço- a. .

Ergueu a vista ao alto da folha e leu: 

Concedemos ao abade de Santo Maria desta a nossa diocese, no concelho de  Vila Novo de Famalicão, que possa, sem prévia leitura de banhos, celebrar o  sacramento do matrimônio entre os contraentes de maior idade...

Aqui, o abade estacou, abriu demasiadamente os olhos, acertou os óculos na  base  do  nariz,  premiu as  pálpebras com o dedo polegar repôs  de  novo os  óculos e disse ao filho de Maria:

— Ó rapaz, que nomes são estes que estão neste papel?  

O carpinteiro leu:

...entre os contraentes  de maior  idade Belchior  Bernabé,  filho  de pais  incógnitos, e Maria Lopes, filha legítimo de Silvestre. Lopes e...  

— Que é isto? — exclamou o abade. — Santo Deus!, que é isto?  

— Belchior  Bernabé  — disse  o rapaz com o mais cândido assombro  —  sou eu!.. 

— Belchior Bernabé é teu pai, o meu filho! — exclamou o comendador,  abraçando-o;  e,  ao mesmo  tempo, encurvando o  braço pelo colo de Maria,  puxou-a para o peito, tocou-lhe com os lábios ardentes como as lágrimas na  face e murmurou-lhe soluçante: — Aqui me tens, a minha desgraçada Maria!  Aqui está o pobre enjeitado!...

Ela  expediu  um  grito  estridente  como  o  da  alegria  dos encarcerados,  dos  condenados à eterna desonra que viram inopinadamente golfar-lhes na treva a  luz do  Céu  e a  reabilitação da  honra.  Queria  reconhecê-lo,  tateando-lhe  as  faces; mas faltou-lhe a claridade dos olhos e a lucidez da razão. Ela pedia luz, pedia a Deus que a não deixasse morrer e desfalecia pendente do pescoço de  Belchior.

***

A felicidade de Maria era santa: custara vinte anos de afrontas sofridas com  paciência, sem revolta contra a  implacável barbaridade do pai, nem contra a  imobilidade das forças divinas. Esperara em Deus, esperara sempre. Dizia ela  que sonhara  aquilo  mesmo  —  a  vinda  de Belchior  e a  restauração  da sua  honra.

Contava-o ela ao abade, e ao esposo, e ao filho, à porta do templo: e ele, o  ancião, com as rugas da face luzentes de lágrimas, dizia:  

— Fui eu quem vos batizou  e quem vos casou  os  meus filhos. Agora,  enterrai-me vós, que eu não tenho ninguém.  

Belchior  Bernabé  exigiu como dote  da  sua mulher o estábulo dos bois  edificado sobre os alicerces da casa onde fora recolhido e aquecido ao seio da  tecedeira. Ali, onde foi cabana de candura e oração, está hoje um palacete com  as mesmas coisas divinas,  acrescentadas pela  felicidade do amor.  Vê-se  de  longe o palácio do comendador Belchior; e lá ao pé, no interior do palácio, as  pompas da arquitetura e das decorações desaparecem deslumbradas pelo que  á de imortal nas obras humanas: a virtude. Lá está o abade resignatário de  Santa  Maria  entrevado:  mas todas as manhãs é transferido da  cama  para  a  cadeira  que  lhe fez  o seu Belchior  Júnior,  aquele rapaz  que não resiste à  vocação de carpintejar e está fabricando uma nova cadeira de rodas e molas  para o seu velhinho.

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Nota:
Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)

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