O COMENDADOR
A D. António da
Costa Em testemunho da regalada
leitura que a vossa Excelência
me deu com o seu Minho, lhe ofereço uma das novelas de cá. O Minho tem o romanesco da árvore
e o romance da
família. A paisagem sugeriu-lhe, o meu caro poeta, as prosas
floridas do ridente livro, o seu estilo tem
a macia
luz do luar das noites estivais e o cadencioso murmúrio
das ribeiras onde o céu estrelado
se espelha.
O Minho lucra muito, visto assim
de passagem, na imperial de uma diligencia, lá muito no galarim do tejadilho, onde as
moscas não se alem a ferretoar-nos a testa
e a sevandijar-nos os beiços convulsos de lirismo.
Viu a
vossa Excelência perfeitamente
o Minho por
fora: as verduras ondulando nas
pradarias, os jorros de
água espumando na espalda
dos outeiros, os fraguedos às
cavaleiras dos milharais, a amendoeira a florejar ao lado do pinheiral bravio, as ruínas do paço
senhorial com os seus tapetes de ortigas
e guadalmecins de
musgo ao pé da chaminé escarlate
e verde do negreiro a golfar rolos turbinosos de fumo indicativo
de panelas grandes e galinhas
gordas, lardeadas de chouriços. Simultaneamente, ouviu
a vossa Excelência
o som da buzina pastoril
ressonando a sua longa
toada nas gargantas da serra; viu
os espantadiços rebanhos alcandorados nos espinhaços dos montes e os rafeiros à
ourela das estradas com os focinhos nas patas dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante.
Reparou decerto na pachorra estoica do
boi cevado, que parece estar contemplando em si mesmo a metempsicose em futuro cidadão de Londres mediante o
processo do bife. Tudo isto, que é a forma
objetiva do Minho romântico, viu a vossa Excelência, afora o mais que aformoseia
o seu livro, os encarecimentos,
as lisonjas, as feitiçarias da arte com
que a vossa Excelência disputa primores à natureza.
Mas o que D. Antônio da Costa não
teve tempo de ver e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho;
quero dizer — os costumes, o viver que
por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila.
Ah!, o meu amigo! Romances,
tecidos de casos cândidos e inocentes, apenas os
fazem por aqui os pássaros em
Abril quando urdem e afofam os seus ninhos. O restante dos animais não ovíparos
vista-mos a vossa Excelência no Catarro
ou no estabelecimento da famosa Sra. Cecília Fernandes; da Travessa de
Santa Justa, que eu lhos
farei representar ao vivo
no próprio coração do Minho — entre Farto e S. João do Calendário —
as cenas contemporâneas da fina Baixa e
piores.
A peste, que infecionou os
costumes destas aldeias, não sei decidir se veio das cidades
para aqui, se foi
daqui para lá. Sá de
Miranda considerou isto tudo estragado quando viu correr pardaus por
Cabeceiras de Basto Imagine a vossa Excelência
o que terá feito o esmeril do progresso a descodear e a brunir este entio
há três séculos! Não faz ideia, o meu amigo!
Até a fotografia, abarracada nas cabeças dos concelhos, tem
feito colaborar o sol e o clorureto de
prata na
relaxação dos costumes. Os
«conversados» permutam retratos e beijam-se
reciprocamente em papel-cartão,
aguçando o instinto
da natureza bruta. Verdade é que os pastores minhotos, há
trezentos anos, já traziam ao pescoço os retratos
das pastoras pintados em
madeira, como se
depreende destes versos de Diogo
Bernardes, o rouxinol do Lima:
Pendurei num salgueiro a minha lira,
Ouvi-la ao som do vento é uma mágoa,
Em lugar de tanger geme e suspira.
Maríla que pintada numa tábua
Aqui no seio trago, também chora;
Seus olhos dão-me fogo, e os meus dão-lhe água.
Não obstante, o fogo, que
acendrava a paixão nos peitos daqueles Bieitos e Melibeus das éclogas, era uma espécie de lume
sacro que velava a virgindade.. dos retratos pintados em tábua. Porquanto,
deve a vossa Excelência lembrar- se que
os pegureiros do
Minho tais fornalhas faulhavam do peito que os vizinhos iam lá prover-se
de lume para cozinhar a ceia,
como se colige das lástimas deste
pastor do canoro Bernardes:
A viva chama. aquele intenso ardor
Que brando sinto já pelo costume,
De noite de si dá tal resplandor
Que mil pastores vem a buscar lume.
É verdadeiro e bonito. Os mestres
da vernaculidade mandam que a gente leia isto, e mais os outros líricos seiscentistas —
caldeirada de favas clássicas com as
quais o entendimento se opila e encrua; mas a língua cresce.
Como quer que seja, entre os
retratos em tábua quais os pintava S. Lucas e o retrato em fotografia aperfeiçoado por Fox
Talbot mede a distância que etnologicamente
separa as Nizes e Fílis de Diogo Bernardes destas Joanas e Tomásias que hão de florejar nas Novelas do
Minho.
Ouço dizer que a via
férrea, sulcando o seio
virginal desta província, afugentou com.
O estridor das suas asas os pardais,
a mala-posta e a Probidade.
É possível. Os caixeiros do Porto, sadios e sanguíneos, com
as suas luvas amarelas e todo o verniz que lhes coube em
sorte nos pés, entraram Minho dentro, e
derramaram a dissolvente chalaça nas aldeias. Por outro lado, a raça turdetana
de Braga fechou pelo norte a barreira
à inocência espavorida.
A cidade santa de os nossos pais e dos cônegos, a esposa de Fr.
Bartolomeu dos Mártires, Braga despeitorou-se, desnalgou-se,
sofraldou as saias e mostrou a liga sobre o joelho desde que um jornal da
terra lhe chamou segunda Paris. Eu não
reparo na desproporção do confronto, quando ali me vejo no Café Faria, a sentir-me arquejar numa das artérias do
grande corpo da civilização chamada Europa,
como lindamente diz o Sr. Vaz de Freitas na sua Guia do Viajante em Braga, por seis vinténs. Tudo me leva à
persuasão de que me acho na segunda Paris,
quando a Guia me assevera com exatidão, ainda não contraditada pela inveja, que Braga encerra nos seus muros sete
procuradores de causas, e que aí os barbeiros
superabundam. Fazia-se ainda
pelos modos uma terceira Paris com a superfluidade dos barbeiros!
A categoria modesta
em que o jornalista
afidalgou a sua terra
justifica-se
principalmente nas
estalagens. Aí, é aí onde o viajante se sente
saturado de Paris, a ponto de,
pensando que acorda alvoroçado pelas campainhas elétricas do Grande Hotel no Boulevard des Capucines,
achar-se em Braga, no Hotel Aveirense, Largo dos
Penedos. Avantajam-se ainda
às hospedarias bracarenses, no
ponto de vista zoológico, os hotéis da princesa do Minho. Os forasteiros dados a pesquisas de anatomia
comparada podem, mediante uma gratificação
razoável, passar as suas noites em vigílias úteis estudando insetos sem queixos e sem asas, de membros
articulados, consoante a classificação de Cuvier.
Ali se lhes oferecem exemplares em barda
da pulga braguês (Pulex
bracharensis). Convencer-se-á que as
seis pernas deste parasita são desiguais, o que assim se
faz mister para o
salto. Não duvidará que ele
tem o bico alongado com duas
cerdas, e guarnecido na base de dois palpos escamosos. Se reparar
bem nas pulgas maiores,
dissipará suspeitas de que tem
asas, que realmente não têm as do
Hotel Leão de Ouro nem as do Hotel Transmontano. Encontram-se
nestes dois estabelecimentos larvas das mesmas, cilíndricas e sem pernas. O
olho armado pode observá-las a mudarem-se
em ninfas, que não são
exatamente umas de quem cantava
Garrett:
As ninfas invoquei do Tejo ameno
Que em mim criassem novo engenho ardente
Etc.
CAM., c. IV.
Nem as outras de quem dizia o Épico:
Caem as ninfas, lançam das secretas
Entranhas ardentíssimos suspiros...
LUS., canto IX.
Verdade é que o
acessório das secretas, inclusas
no verso de Camões, deixa supor que ele quisesse falar das ninfas dos
hotéis de Braga. Que estude o caso o Sr.
Visconde de Juromenha, e não o desampare a
Academia Real das Ciências.
Nos hotéis de Braga, finalmente,
dão-se as mãos o espavento das modernas indústrias,
as refinações da decoração, a obra-prima de marcenaria e vidraria —
um luxo levantino,
como em recâmaras de nababos —, e sobretudo a higiene expansiva de saúde a dar cambalhotas
na brancura virginal dos lençóis; e
à mistura com tudo isto ressalta não
sei quê de arqueológico naqueles quartos!
A gente, quando vai
deitar-se, imagina que
naquela mesma cama dormiu
na noite passadas. Pedro de Rates ou Gonçalo Mendes da Maia.
Por fora das estalagens ainda há
proeminentíssimas feições de Paris em Braga. O
jardim, por exemplo. Vossa Excelência
já esteve no jardim? Impressionaram-no com certeza uns
rumores, «ora sufocados,
ora estrepitosos», que ali se
escutam nos domingos de tarde?
Também a mim. Não pôde soletrar em sons
articulados aquele confuso burburinho? Nem eu. Quem explica o fenômeno, trivial nos Champs
Elysées e no Parc de Monceau, é o já
citado Sr. Vaz de Freitas na sua Guia do Viajante em Braga, por seis vinténs, p. 41. A coisa é isto:
O
chilrear das crianças, o devanear
das poetisas, o queixume sonolento
dos poetas, a
conversação pesada e
metálica dos proprietários, todos
estes murmúrios vagos ou
alegres, sufocados ou
estrepitosos (hic) infundem uma vida
nova e excecional ao passeio, que o tornam atraente ou deleitoso.
Théophile Gautier, o
Benvenuto Cellini da prosa francesa,
não rendilharia com tão subtis
filigranas de frase a
explicação dos ruídos babilônicos do Luxembourg.
Donde se colhe
que Braga tem poetisas que exibem
delirantemente os seus devaneios no
jardim, ao mesmo tempo que os poetas se
queixam sonolentos. Paris, tal qual. Note a vossa Excelência o contraste no sexo destas pessoas que bebem na Castália:
elas devaneio, apostrofando a gritos o arrebol da tarde e a brisa que cicia
e se perfuma nas cilindras; eles,
cabeceando marasmados pelo ópio do narguilé, queixam-se
sonolentos, porque não os deixam dormir as poetisas. São homens
gastos, estafados, roués.
Saíram do Café Faria intoxicados do absinto de Espronceda, de Nerval, de Larra e de Musset. Entraram no jardim com o
cérebro anestesiado, querem dormir; e
elas, à imitação do femeaço da Trácia, projetam escalavrar aqueles Orfeus dorminhocos, Márcias que
elas, filhas de Apoio,
querem esfolar. Segunda Paris.
Aí vê a vossa Excelência a razão
dos «estrépitos» explicada na Guia. Pareciam outra coisa pior.
Eu, afora isto, conheço outras
analogias entre Braga e Paris, que estudei, sem subsidio — entendamo-nos. Há três meses
senti-me ali adoecer da nevropatia, que
é moléstia endêmica dos grandes centros de população, onde os deleites requintam e o
fluido nervoso se desperdiça-o
que sucede em Londres, em Braga, em Nova
Iorque, em Paris,
quando a gente desconhece as
leis da relatividade dos prazeres, como diz o
professor escocês Bain. Confiando nos anti-histéricos,
fui comprará botica do Sr. Pipa, na Rua do Souto, um frasco de cápsulas de éter sulfúrico, e preparava-me
para pagá-las com trezentos réis (um
franco e cinquenta cêntimos) — preço corrente no Porto — quando o praticante da
farmácia me mandou entender o preço da droga com mais cinco tostões, e mostrou-me que o sinal aritmético
de um franco estava emendado em
dois. Ainda assim,
observei-lhe que dois francos cambiados em moeda portuguesa eram quatrocentos réis. O
interlocutor refutou triunfantemente a minha objeção, alegando que em Braga dois
francos eram oito tostões.
Esta fisionomia da botica
bracarense dá feições à terra, não de segunda, mas de primeira Paris. A segunda é a outra que os
geógrafos ignaros nos inculcam primeira.
Corrija-se.
Dou de barato que as referidas
poetisas do jardim consumam cápsulas de súlfur copiosamente
nas suas eterizações e que
os poetas sonolentos se despertem
com elas, não querendo usar economicamente das cócegas; deve-se talvez às condições especiais das musas bracarenses o preço superlativo dos anti-espasmódicos: assim mesmo, Paris segunda
não pode arbitrariamente dobrar o valor
da moeda de Paris
primeira, nos gêneros que importa, ao mesmo
passo que, no valor legal da moeda francesa, exporta para França os seus
chapéus, os seus cavaquinhos e a sua frigideiras.
Aqui tem, pois, D. Antônio da
Costa, o foco de progresso que esparge raios de luz para as aldeias setentrionais do Minho,
enquanto o Porto alastra no Sul os
caixeiros contaminadores, que levam consigo a corrupção dos romances e as tentações do cabelo untuoso com a risca ao
meio da cabeça, lasciva como o dorso de
um gato de Angora.
É neste meio que eu me abalanço a
esgaratujar novelas. Há treze anos que apeguei por esse Minho, em cata do bálsamo dos
pinheirais e das fragrâncias das almas
inocentes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro baluarte da pureza
e que os lavradores do Minho,
nivelados com os saloios
da Estremadura, eram os cândidos
pastores da Arcádia comparados aos malandrins de Gomorra. Um
dos meus estudos, no
intuito de me habilitar para o
confronto do saloio com o minhoto, — da raça sarracena com a galega — é esta historinha que lhe dedico, o meu
nobre amigo.
De Coimbra, aos 15 de Outubro de
1875.
PRIMEIRA PARTE
6 de Janeiro de 1832.
Manhã chuvosa e
frigidíssima. O zimbro
rufava nas frestas
envidraçadas da igreja
de Santa Maria
de Abade. Ringiam as carvalheiras varejadas pelo
norte. Ao arraiar do dia, a devota
dos Três Reis Magos,
a Tia Bernabé, tecedeira — viúva do operário Bernabé, que lhe deixara o nome
e uma cabana com
a sua horta
—, ergueu-se, foi
à residência paroquial pedir a chave da
igreja; e, sobraçando a
vassoura de giesta
para varrer o chão e, almotolia
para prover as lâmpadas, entrou no adro. Ao passar em frente da porta principal, ajoelhou,
persignou-se e orou. Neste momento, ouviu
o vagir convulso e ríspido de criança. Voltou o rosto para o lado donde lhe parecia sair aquele choro. Não viu alguém.
Espantou-se.
— Jesus! Santo
de nome de Jesus! Isto é
coisa ruim! —
exclamou ela, pousando no degrau
da porta a vasilha e a vassoura.
E o chorar da criança cessou.
A Tia Bernabé debruçou-se na
parede baixa que murava o adro e viu entre as grossas raízes de uma oliveira secular um
embrulho de baeta azul, donde saiu um
vagido. Saltou a parede, agachou-se à raiz da árvore e pegou na criança, aconchegando-a do calor do peito e bafejando-a
no rosto azulado do frio. A baeta estava
ensopada da chuva que escorria da ramaria da oliveira. Tirou-lha apressadamente, envolveu o menino no avental e
agasalhou-o entre o seio e o farto jaqué
de picotilho. Depois desandou para a residência e mandou dizer ao abade que topara no adro uma criança, que
parecia estar a despedir.
— Pois que quer ela então? —
perguntou o abade, expondo uma parte do nariz
e metade do olho esquerdo à frialdade do ar. — Que tenho eu com isso? Que a leve a Barcelos. Aqui não há roda de
enjeitados. A criada do abade deu o
recado.
— Torne lá, Sra. Joana
— replicou a Tia
Bernabé friccionando os pés álgidos do recém-nascido com a barra da sua
saia de saragoça —, e diga ao Sr. Padre
que este menino, se morrer sem batismo, é um anjinho do Céu que se perde. O Sr. Abade há de saber isto melhor que
eu...
A criada repetiu a réplica e
juntou:
— A Tia Bernabé diz bem. Salte
daí pra fora, o seu calaceiro! — E deu-lhe uma sonora palmada na nádega esquerda. — Um
rapaz de vinte e sete anos está aí
enteiriçado como um velho! Upa!
— Está quieta, Joana, olha que me
fazes vento!
E ela puxou-lhe pelo pé direito,
que excedia o volume de três pés; e ele, com o outro, despedido à toa, sacou-lhe do baixo
ventre um som timpânico de odre cheio.
— T'arrenego! —
bradou ela, recuando com as mios
postas na parte molestada.
— Você atira? Tem má manha!
— Cheguei-te? —
respondeu ele risonho, embiocando-se na felpuda coberta e encostando-se à almofada de chita
que estofava o espaldar do leito.
— Que brincadeira! — queixou-se a
rapariga, arrufada. — Podia-me matar com
o coice, se me dá aqui no coração!...
E punha a mão no estômago.
— Isso não é nada, rapariga!. .
Olha se amuas!
— Nada, não é... não que a
barriga é a minha..
— Pois tu, com este frio de mil
diabos, vens-me mexer na roupa, e de mais a mais puxaste-me pelo pé do joanete que tem a
frieira aberta!. .
— Então dissesse-o.. —
disse ela com rosto ajeitado à
reconciliação. — Salte daí!..
Vá batizar o enjeitado; que,
se ele morre sem batismo, verá
que ingranzéu se levanta na
freguesia. Bem basta o que já dizem..
— Calça-me as meias de lã; mas
tem cuidado que não se despegue o emplasto
da frieira.
E, enquanto
a jovem com jeitosa
meiguice lhe encanudava nas pernas cerdosas as grossas meias, alisando-lhas ao
correr da tíbia, resmungava ele:
— Quem seria a grande bêbada que
enjeitou a cria?
— Isso há de ser de fora da
freguesia...
— Também me parece.. Cá não me consta. . E vem-ma cá pôr no
adro!.. Ah!, bom estadulho!...
— Fica uma
coisa pela outra. As de cá
também as levam às outras freguesias, quando acontece — disse Joana.
E nomeou várias ovelhas fecundas
e tinhosas, enquanto o pastor lavava a cara no alguidar vermelho que a raparigaça lhe
chegava, com a toalha no ombro.
Ao pegar na toalha,
sacudindo a cara e
assoprando ruidosamente com a sensação do frio,
o abade apertou a polpa da espádua à
jovem com ternura felina. Este
carinho confirmou as pazes. Joana
arregaçou os beiços ridentíssimos até às orelhas e mostrou-lhe nos
dentes de brilhante esmalte que o seu
amor infinito resistira à prova do coice.
A Tia Bernabé, afligida, porque o
menino soluçando se esverdeava, chamou outra
vez Joana com encarecidos rogos.
— O Sr. Abade está já vestido —
disse a rapariga saindo à janela. — Passe você por casa do Tio Isidro da Fonte, e
diga-lhe que vá prá igreja e deite água na
pia.
***
O padre saiu de casa carrancudo e
bocejando. De cada vez que escancarava as mandíbulas, traçava no envasamento da boca
três cruzes com o dedo polegar.
A tecedeira, que o esperava no
adro, abeirou-se dele
mostrando-lhe a cara roxa da criança. O padre olhou-a de esconso e
perguntou:
— É macho ou fêmea?
— É um menino — respondeu a
viúva.
— Acenda um daqueles cotos —
disse o abade ao Isidro, apontando para os
sórdidos castiçais de chumbo de um altar. — A pia tem água?
— Vem aí o meu rapaz com o
cântaro.
— Vocês são os padrinhos? O rapaz
há de chamar-se Isidro, ou então põe-se-lhe o nome do santo de hoje — observou
o abade, boquejando e benzendo a boca,
no limiar da porta travessa onde a mulher esperava, segundo o ritual.
— Hoje é dia dos Santos Reis —
disse ela.
— É verdade —
confirmou o padre, e pensou se
Reis seria nome ou apelidos. Não se lembrava de ter estudado esta
espécie.
— Os Santos Reis Magos eram três
— prosseguiu a Tia Bernabé. — Bem
sei —
acudiu o padre, — Um
chamava-se S. Belchior, outro S. Gaspar,
outro S. Baltasar — explanou a
devota dos magos orientais: — O menino
pode chamar-se Belchior, se o Sr. Abade quiser.
— Eu quero tudo que vocês
quiserem. Vamos a isto, que está um frio de rachar. — E, recolhendo-se à sacristia,
esfregava as mãos bufando-as com os gases
do estômago ainda perfumados do vinho da ceia.
— O meu rico
anjinho, irá ele morrer na
água fria? —
lamentava a boa criatura
bafejando-lhe as duas faces.
O abade enfiou a sobrepeliz,
revestiu a estola, mandou chegar o enjeitado ao batistério, fez um resumo do latim cerimonial
e disse:
— Vão-se à vida.
— Vou-me daqui às Lagoas a ver se
a Teresa do Eido me dá o peito a este anjinho,
até ver se arranjo que algum lavrador me faça a esmola de um bocado de leite de cabra — disse a Tia Bernabé.
Então você não o leva à roda? —
perguntou a abade esbugalhando o espanto nos olhos.
— Agora levo eu à
roda o meu enjeitadinho! Já que
Deus me não deu filhos..
— E tem muito que lhe dar você?
— Enquanto eu puder fiar uma
meada e tecer uma teia, dou-lhe eu o meu caldo
e o meu pão; depois,
quando eu não puder, dá-mo ele. Casa e
dois palmos de horta, graças a Deus,
tenho eu, e não na devo a ninguém... O pior é que o pequeno, se lhe
não acudo, morre de fome.. Ai!,
o meu Deus!, há cadelas mais amoráveis que algumas mães.
— Ande lá... meta-se em
trabalhos.. — concluiu o abade,
safando-se com os cabeções do capote
apanhados na testa.
***
A criança vingou, espigou e saiu
robusta e menos mal encarada: Entre os sete e
onze anos aprendia à ler,
e nas horas vagas enchia as canelas do
fiado ou dobava meadas.
Belchior Bernabé
(assinava-se assim com satisfação da.
mãe adotiva), deparado a
algum romancista imaginoso, daria trela
ao esvoaçar alto da fantasia, quanto à sua origem. A mãe poderia
ser uma fidalga de Famalicão ou de Santo
urso. O pai, com toda a verosimilhança, poderia fantasiar-se algum dos generais do exército realista ou liberal
que, por aquele tempo, manobraram nessas paragens. Com estes dois
elementos, a fidalga e o general, qualquer
mediano talento, aproveitando o
acessório das batalhas, compunha um romance de maus costumes, pelo
que respeitaria ao enjeitado, e um livro histórico, pelo que
interessaria à história da
restauração da Carta Constitucional e do
sistema representativo. Feito isto,
o pequeno lucrava muito,
sabendo nós que a sua mãe era uma devassa recatada que, por
noite desabrida de Janeiro, o
mandou expor entre as raízes de uma árvore, em que os
cevados foçavam luras com o focinho, e &não
devoraram naquela madrugada
porque estavam ainda cerrados nas suas pocilgas.
Contanto que esta mãe desnaturada
enjeitasse o filho, em respeito ao brasão e ao crédito, a criança ser-nos-ia mais
simpática, as linhas de fina casta extremá-lo-iam entre as caras
boçais da plebe, a
auréola de nascimento misterioso banhá-lo-ia então da luz de um melancólico
romance. Assim é; mas eu não sei quem
fossem os pais de Belchior Bernabé. O rapaz, segundo ouvi dizer aos que o viram criança e adulto, era feio,
espesso de cara, achamboado de pernas. Ninguém
lhe farejava o pai nem a mãe pela semelhança do rosto: parecia-se com todas as mulheres e com todos os homens
daquelas freguesias, onde as caras são
achatadas sem ressalto de protuberância, ou,
angulosas como as pêras de sete cotovelos.
É maravilhoso este capricho
fisiológico! A terra
da Maia é um
alfobre de raparigas bonitas,
com os seios altos e alvos como
pombas no ninho; os quadris
elásticos e boleados têm saliências que vos levam cativo e vos levarão doido se lhes virdes as lisas colunas em que a
hera do verso de Camões lembra sempre...
Desejos que como hera se enrolavam.
E lembra sempre este verso e os
outros convizinhos por serem Os Lusíadas um
poema que se lê nas escolas e se encontra
no açafate de costura das educandas que puderam subtrair-se à
morigeração pestilencial dos lazaristas.
Transpostos os limites
da Mala, a
primeira mulher que se vos depara
na primeira freguesia
do concelho de Famalicão é feia e
suja até ao asco, escanelada, escalavrada no peito, veste-se a
frisar com a desgraça da sua má figura.
E daí até Braga, se vos apraz, podereis inalar em todo o seu perfume a pura
flor da castidade.
Se há terra onde possam
ermar e defecar-se de sensualismo santos tentadiços, é ali.
Cada mulher é uma figa
benta de que fogem os três
inimigos da alma, principalmente o último.
***
Belchior, aí por
Maio, mês das
flores, da brotoeja
e doutras fatalidades especificas, começou a amar. Tinha dezanove
anos, carnadura rubra, ombros largos,
assobiava como um melro, tangia cavaquinho e amava a Maria Ruiva, filha do
Silvestre Ruivo, o maior lavrador da freguesia. Este amor resguardava- se como
um delito, e por isso mesmo se escandecia e refinava até à quinta- essência da
paixão, que está paredes meias do
desastre. O enjeitado,
se se afoitasse a alardear preferências nas atenções
de Maria Ruiva, seria espancado pelos
rivais ou por algum dos três padres tios da cachopa.
Eram três clérigos afamados por façanhas
de estudantes em Braga. Tinham militado nas guerrilhas da usurpação; terçaram
de novo as armas em 1846, na carnificina de Braga;
recolheram a casa depois da
morte de Mac Donald, e diziam missas
a oito vinténs para não se descaçarem no ofício.
Uma noite, quando um dos padres
recolhia, enxergou um vulto esbatido no escuro
do murtal que formava o tapume da eira da sua casa, e lobrigou por entre a sebe o alvejar de uma saia a fugir.
Cresceu sobre o vulto como pau em programa de bordoada,
e ouviu o estalido do peno de
pistola. Susteve a pancada
e perguntou:
— Quem está aí?
— Sou o Belchior Bernabé.
— Que fazes aí?
— Nada, Sr. Padre João.
— Porque te escondeste?
Não faço mal a ninguém, Sr. Padre
João.
— Mas engatilhaste uma arma de
fogo! — E acercou-se
dele arremetendo. —
Que queres tu desta casa,
enjeitado? Servem-te as minhas sobrinhas...?
— E atirou-lhe um
epíteto que definia a
natureza da mãe incógnita.
— Sr. Padre João, olhe que, se me
bate, eu, bem me custa, mas... atiro-lhe. Siga o seu caminho e deixe estar quem está
quieto e manso.
Padre João Ruivo sobraçou o
marmeleiro ferrado e murmurou:
— Tomo-te à minha conta,
brejeiro!
E passou avante.
Ao apontar do Sol, esporeou a
égua para Famalicão,
demorou-se com a autoridade
administrativa, com os
membros da comissão distrital, com o regedor, e saiu
alegre. Ao outro dia,
na porta da igreja
de Santa Maria de Abade, lia-se
«Belchior Bernabé, enjeitado» entre os mancebos apurados para o recrutamento.
E, entretanto, Silvestre, o pai
de Maria, chamou ao sobrado da tulha três filhas que tinha e disse:
— Qual foi uma de vocês que
esteve esta noite na eira a conversar para o quinchoso com o enjeitado da Bernabé?
Duas responderam logo ao mesmo
tempo:
— Eu não! E acrescentaram:
— Cega eu seja de ambos os olhos!
— Quebradas tenha eu as pernas!
— Má raios me partam!
A terceira, Maria,
abaixou a cabeça,
levou o avental de estopa
aos olhos e chorou.
— Foste tu? — exclamou o pai; e,
pegando de um engaço, ia cravar-lhe os dentes
na cabeça, quando as duas filhas lhe ferraram o pulso. O pai, homem possante
de quarenta anos, sacudiu-se
a custo das presas das valentes raparigas, largando-lhes o engaço esmurraçou a
outra com tamanho ímpeto de raiva que
Maria caiu atordoada.
Em seguida, voltou-se para as
duas filhas e disse:
— Esta mulher fica fechada aqui,
entendem vocês? Se quiserem, tragam- lhe o caldo; se não, que morra para aí,
que a levemos diabos!
E, saindo, rodou a chave e
guardou-a na algibeira interior da véstia.
***
A tecedeira, quando Belchior,
lavado em lágrimas, lhe disse que ia ser soldado, encostou o queixo às mãos postas em súplica,
relançou os olhos à imagem do Bom Jesus
do Monte, deteve-se instantes e disse serenamente:
— Não irás para
soldado, o meu filho. O Tio
Silvestre Ruivo já me ofereceu dois centos por esta casa, com a
condição de me deixar morrer nela.
Vende-se a
casa, ficas tu sem ela,
mas onde quer se vive. Para
soldado não vais, Belchior.
Dás o dinheiro aos governos,
como fazem os filhos dos lavradores ricos, e estás livre.
Belchior não cessava
de chorar, e de Vez em quando, por entre
soluços, articulava palavras que a tecedeira,
um tanto surda e de
todo alheia dos amores do rapaz,
não percebia.
— Não chores, rapaz! — insistia a
velha, repetindo o expediente de vender a
casa; e Belchior, por fim, obrigado a explicar-se, rompeu nesta exclamação:
— A Maria Ruiva está perdida e
desgraçadinha!
— Credo!. . Tu que dizes,
Belchior?!
O rapaz arrepelava-se; apanhava
com as mãos a nuca e batia com os cotovelos um
contra o outro. Atirava-se
de trambolhão sobre uma grande
caixa de castanho e jogava de cabeça contra os joelhos
com a pasmosa elasticidade da sua
aflição. Fazia aquilo
porque não sabia as frases que nós,
os maus romancistas, costumamos emprestar a esta
espécie de sujeitos:
A Tia Bernabé, ora lhe pegava na
cabeça, ora nos braços, dizendo-lhe as mais carinhosas consolações. Por fim, o enjeitado,
erguendo-se de salto e olhando em redor
tão sinistramente quanto cabe na rubrica de um drama e na pupila fulva
do Sr. Isidoro Sabino
Ferreira na tragédia,
disse com o esbofar das angústias vertiginosas:
— Assim como assim... mato-me!
Aqui foi um alto soluçar da
tecedeira, um desentoado choro que alvorotou a vizinhança.
Belchior, assim que viu a casa
a encher-se de gente,
fugiu pela porta da cozinha,
saltou valados, emboscou-se numa seara de centeio, e aí, estirado por terra sobre as louras gabelas, chorou
copiosamente.
A Tia Bernabé pedia entretanto
aos vizinhos que fossem atrás dele, porque o seu Belchior dissera que se
matava.
O
enjeitado deixou-se trazer como um
ébrio nos braços dos vizinhos; e, chegando a casa, pediu que o deixassem deitar.
Depois, ganhando ânimo — que é sempre
certo, esgotadas as lágrimas–, contou à Tia Bernabé a sua curta história
com Maria Ruiva, concluindo-a
com uma revelação que eriçou os cabelos da velha.
***
Nessa mesma hora, a tecedeira
saiu, cambaleando e encostada às paredes, em demanda do abade.
Era ainda o mesmo que batizara
Belchior. Envelhecera e engordara. Meditava depois de jantar no destino da sua
alma, assim que o destino do
corpo lhe parecera
consumado. Joana, a das sapatadas
naquela anca de Hércules Farnésio,
havia muito que cauterizava
a consciência chagada,
cortando o cabelo e cilhando os rins pecadores com a
corda nodosa dos cilícios. O abade também
sofrera um abalo rijo de contrição, a ponto de não substituir Joana e calçar as meias direta e pessoalmente. Nesta
espécie de amputação espontânea, não podendo criar processos de filosofia
nova, como Pedro Abélard, comia
às suas horas e profanava com
silabadas o latim do missal. Prometia acabar bem.
A Tia Bernabé referiu-lhe o que
Belchior lhe confessara a respeito de Maria Ruiva.
— Eu bem lhe disse a você,
mulher, que se metia em trabalhos, lembra-se? — recordou o abade.
— Sim, senhor, lembra.. mas
então? Ainda me não arrependo, se o Sr. Abade me fizer a caridade de falar ao
Silvestre e dizer-lhe que o melhor é, já agora, deixar casar a rapariga.
— Você — atalhou o padre —, você,
Bernabé, deu-lhe volta o miolo! O Silvestre
dar a filha ao enjeitado!... Ora, mulher, peça a Deus juízo, e diga a esse tratante que se vá quanto antes sentar
praça, antes que lhe deem cabo da pele.
Com que então!.. O alma do diabo foi às
do cabo, bem?
A tecedeira ouviu-o com o rosto lavado em lágrimas; e ele,
solfejando as palavras iracundas
ao compasso do rufo que fazia com a caixa prata sobre o braço da cadeira, prosseguiu:
— Forte maroto! Atrever-se a
conversá-la, já era muito: mas isso que você me diz,
mulher, só na forca!
E então.., uma rapariga
sem nota, que já foi pedida
pelo Francisquinho das Lamelas, que colhe oitenta carros e vinte pipas, afora o azeite!. . E, vamos lá, era a melhor
das irmãs, uma mocetona!. . Com que
então, esse patife disse-lhe mesmo que ela.., daqui a pouco... já não pode esconder o fruto do seu crime?
— Sim, senhor — balbuciou a Tia
Bernabé.
— Isto só no Inferno! — respondeu
o abade, rebitando a ponta do nariz para dilatar a
circunferência das ventas
sobranceiras à pitada —
Isto só no Inferno!...
— Valha-me Deus, Sr.
Abade! — replicou timidamente a
tecedeira. — Então a
religião do nosso
Senhor Jesus Cristo não dá
remédio a estas desgraças, que tantas vezes acontecem? No
melhor pano cai uma nódoa. Logo que eles
se casem, está tudo remediado, pois não está?...
— Está o quê?.. Então uma
rapariga de boa família, que tem três tios padres e que
é filha de um capitão de ordenanças, casa-se
assim com um enjeitado que você
encontrou na bouça da igreja entre o mato!?...
— E verdade; mas todos somos filhos de Deus
— argumentou a Tia Bernabé;
e mais longe iria na sua preleção de caridade ao pastor, quando uma vizinha
a chamou à porta
da residência para
lhe dizer que Belchior estava preso, entre seis cabos da polícia que o
levavam para soldado, e ele a mandava chamar
para se
despedir. Ainda desceu
precipitadamente as escaleiras a trémula velhinha; mas, a poucos passos, caiu
de joelhos, amparou-se no valo e debruçou-se
desmaiada.
Entretanto, o regedor ordenava
aos cabos que levassem o preso, visto que a Tia Bernabé fora levada sem acordo para a
residência. Belchior pediu que o deixassem
ir lá despedir-se da
sua mãe. O
regedor voltou-lhe as costas
e acenou aos cabos que
marchassem.
***
Em Famalicão deram-lhe uma guia e
enviaram-no entre seis espingardas para Braga.
Ao outro dia era soldado.
A Tia procurou-o no quartel do
Pópulo nesse mesmo dia. Quando o viu de cabeça
tosquiada como cão morrinhoso e coleira de couro preta, estonteou-se o juízo e esteve a pique de
cair. O recruta,
chorando com ela nos
braços, apiedou o comandante da
guarda, que os mandou entrar na casa das tarimbas.
Daí a duas horas, tocou a corneta
a recruta.
Belchior já não tinha nome. Era o
29.
— Salta daí, 29! — bradou-lhe um
anspeçada.
— Que é? — perguntou a tecedeira.
— Vou para o exercício, a minha
mãe.
Ela viu-o marchar com outros para o
campo do exercício; e logo,
a meio
caminho do terreno
das manobras, um furriel barbaçudo e de chibata lhe assentou
na parte
sobrejacente às pernas um pontapé
instrutivo. Diga-se a verdade — era o primeiro.
A tecedeira, quando isto
presenciou, saiu do campo estrangulada por soluços, entrou na
Sé, e orou largo tempo com o rosto
no pavimento. Depois levantou-se,
reanimada, e foi para a sua aldeia
executar o que ficara convencionado
com Belchior: vender a casa e substitui-lo.
Pregou anúncios na porta da
igreja e nas árvores vizinhas das estradas. O pai a
Maria Ruiva muito queria
comprá-la para arredondar um campo
com a horta e
armar na casa térrea
um estábulo de bois para
embarque; porém, receando que o seu dinheiro servisse a
resgatar o soldado, consultou os irmãos clérigos. Padre João foi a
Braga mexer os pauzinhos, disse ele;
e, voltando, sossegou o irmão:
— Compra a casa, que o enjeitado
as correias não as bota fora do lombo.
O lavrador tinha oferecido
duzentos mil-réis, quando a tecedeira não pensava vender
a casa onde nascera;
mas agora, por terceira pessoa,
mandou-lhe oferecer cento e
quarenta.
A desventurada velha ia ceder,
pensando que vinte moedas de ouro bastariam a resgatar o filho; neste aperto, uma beata de
freguesia distante, e confessada do
abade, lhe propôs a compra, a fim de passar a estação das penitências ali à beira do seu diretor espiritual. Esta
mulher, que era virtuosa, foi desde logo
difamada pelos padres Ruivos à conta do
confessor que a dirigia; e o lavrador, pela sua
parte, enraivava-se sabendo que
a Bernabé vendera
a casa por duzentos mil-réis.
Padre João, conversando a
tal respeito com o abade, desfechou-lhe esta ironia entre duas pitadas:
— Quando se está assim gordo, Sr.
Abade, é preciso trazê-las para perto...
E o pastor, exulcerado
na sua candura,
cascalhou uns frouxos de tosse de
esgana e gosmou:
— Se eu trouxesse para esta
freguesia ovelhas de fora, talvez que o padre João me deixasse em paz as do meu
rebanho..
Entendiam-se.
*
A Tia Bernabé foi a Braga com o
dinheiro e com um o seu cunhado, que tinha sido embarcadiço, e então era calafate em Vila
do Conde. Por felicidade, viera ele à
terra ver os parentes; e, condoendo-se da paixão da cunhada, se oferecera a dar em Braga os passos necessários à baixa
do Belchior. O requerimento foi indeferido.
O calafate andou por advogados que lhe escreviam réplicas inúteis. Por fim, compreendeu que o rapaz havia de
gemer sob o peso da vingança do lavrador. E como
ele passara quarenta
anos no mar e aí ganhara ódio às misérias
da terra, tanto que soube que o rancor era de padres e o crime do rapaz era de amores, voltou-se para a cunhada
e disse:
— O rapaz vai de
hoje a quinze dias para o Brasil.
Tu pagas-lhe a passagem, e
o resto fica por a minha conta. Daqui até Vila do
Conde é desertor; assim que sair a barra, é livre...
Olha... vês aquela andorinha? É livre como
ela!
— E não hei de tornar a vê-lo? —
atalhou ela chorando.
— Se o não tornares a ver, que
monta? Tens tu que fechar os olhos para sempre ou não? Qual queres tu: vê-lo aqui
soldado, ou saber que ele está no Brasil a
manobrar a sua vida? Deixa-o ir. A rapariga,
quando ele chegar a Pernambuco, já lhe
não lembra; e, se enjoar,
então, é como quem deita
o coração pelas goelas fora.
Tu vens para Vila
do Conde comigo. Tens
que comer e uma enxerga onde
durmas.
***
Em Março de 1852, fez-se à vela
de Vila do Conde a barca Conceição. Entre os passageiros ia o desertor. Chamava-se aí
Manuel José da Silva Guimarães, e nunca
mais ouviu proferir o seu nome.
Quando a polícia
deitava inculcas no concelho de Famalicão procurando a paragem da Tia Bernabé, rendia ela a alma ao
seu Criador em Vila do Conde. Vira
desaparecer as velas da barca Conceição, ajoelhada no terraço do castelo. Depois, ficara de bruços a chorar. Levaram-na
nos braços a casa do cunhado. As
lágrimas secaram-se. Veio a febre e o delírio. Chamou, chamou pelo seu filho,
até que Deus a chamou a ela.
Não foi confessada nem ungida; mas morreu
santa porque vivera santamente. Achara aquele enjeitadinho, criara-o, amara-o,
venderá um cordão para
o vestir jeitosamente
a fim de mandar
à escola, vendera as arrecadas
para lhe comprar fato novo quando foi à primeira confissão, vendera
a casa e o tear e o leito onde morrera a
sua mãe para o
remir de soldado. Padeceu grandes
angústias quando soube que o filho do seu coração era
culpado na desgraça
de uma rapariga honesta. Cuidou que o padre, o pregador da caridade e da igualdade
dos servos de Jesus Cristo, iria admoestar
o lavrador abastado a conceder a filha para esposa do pobre. Esta santa cegueira da cristã é de crer que Deus
lha perdoasse. Por fim, de virtude em
virtude e de dor em dor, logo que aos setenta anos de idade viu sumir-se para sempre o seu querido enjeitado, pediu a
Deus por ele, por si, e... morreu.
SEGUNDA PARTE
Vinte anos passam-se tão
depressa, que eu, neste salto que o leitor vai dar, não me
despenderei a encher-lhe
de frases o passadiço. O melhor
é fechar os olhos e saltar, Vinte anos! Que são vinte anos?
Nós ainda ontem éramos rapazes, é
velhos! Este ontem gastou vinte anos a resvalar
para hoje. Que se passou neste lapso fugitivo da nossa vida entre a juventude e a velhice? Nada! Temos ao nosso
lado filhos homens e netos que amanhã
serão homens; e, todavia, parece que ainda ontem, com um raio de sol e com o perfume de uma
rosa, compúnhamos o sorriso
da loura mãe destes
homens, que está hoje velha! Ainda ontem éramos poetas pelo amor, afoitos pela aspiração, valentes pela
mocidade. Que grandes coisas devem ter-se
passado nesse instante de vinte anos, enquanto esperávamos outras
que nunca vieram!
A pensar sempre com o futuro não o víamos
passar. Afinal, parou;
e deixou-se conhecer porque marchava pesado,
tardio e triste: era a velhice.
Chegou de repente; escureceu-se-nos tudo como se
as alegrias nos fulgissem do seio de um relâmpago. Esta treva
foi instantânea e gastou vinte anos a
condensar-se. Que são vinte anos?
***
Em 1872, hospedou-se no hotel de
Famalicão um brasileiro a quem os seus criados negros
e brancos chamavam simplesmente o Sr.
Comendador. Não viera
recomendado a algum dos barões da
terra. Enviara adiante a recomendação da parelha
das horsas, da caleche,
dos lacaios. Representava quarenta
anos florentíssimos. Basto bigode,
suíça inglesa, espesso cabelo levantado em novelos crespos que lhe
encantavam a cara. Espáduas amplas, à proporção
das pernas que se moviam rijas e baseadas em pés infalíveis como os alicerces das pirâmides dos faraós. Trajava
a primor, de preto, com um ar de pessoa
que passeava de tarde na estrada de Braga, com o intento de ir à noite a Covent Garden, ao Royal Italian Opera.
Fumava sempre uns charutos que vaporavam
os aromas das recâmaras das sultanas. Na mesa, era de uma elegância frugal que
desmentia a procedência. Olhava
para o bife com um fastio tal e tamanha tristeza que fazia
lembrar Tertuliano quando, meditando na metempsicose,
olhava para o boi
cozido e dizia: «Estarei eu
comendo o meu avô?» Conquanto nem ele
nem os criados declarassem os seus nomes e apelidos, os jornais do Porto tinham anunciado
a chegada do maior capitalista de
Pelotas, o Sr. Manuel José da Silva Guimarães.
Nada de bioquices com o leitor:
aí está Belchior Bernabé, o enjeitado.
***
Ao terceiro dia de hospedagem em Famalicão, o comendador
cavalgou, acompanhou-se do lacaio
e seguiu na direção de Santiago de Antas.
— Vai ver a igreja que fizeram os
Mouros.. — calculou outro comendador da
terra, e assim o comunicou a mais
dois comendadores, atribuindo aos
Mouros a igreja dos cavaleiros de Rodes.
— Há de ser isso — confirmou o
mais correto. — Este homem é mágico. O Guimarães
do hotel já lhe perguntou se era nascido cá
no Minho, e ele respondeu..
— Que não tinha a certeza —
concluiu o outro. — Tem grande telha!
— Ontem, na feira,
estava ele a ver vender
duas juntas de bois para embarque.
Quem nas vendia era o Silvestre
Ruivo...
— Bem sei, o irmão daquele padre João que morreu há três
anos de apoplexia.
— E isso. O telhudo, que não fala
com ninguém, pôs-se a conversar com o
Silvestre a respeito dos bois: depois levou-o à hospedaria e deu-lhe de jantar.
O
Silvestre esteve depois
comigo e vinha espantado de
ver dois criados de casaca, bota
de verniz, gravata branca e luvas, a servir à mesa. — E em que falaram
vocês? —
perguntei-lhe eu. Disse-me
que o comendador lhe perguntara
coisas e tal et etecetera cá da
província e que ficara de ir a casa dele ver a corte dos bois. Mágico ou não? Olhem
vocês!! Vai ver os bois!
— Se fosse aqui há dez anos atrás
— disse o comendador Nunes, — valia- lhe
a pena de ir ver
as bezerras.. Você conheceu as Ruivas, a
Antônia e a Chica,
ó Sor Leite?
— Ora, se conheci! Que fatias!...
— Que diriam vocês
— respondeu o Sr.
Nunes — se conhecessem a Maria, que eu m'alembro de ver antes de ir ao
Rio.. Que pimpona! Apanhou-a um
enjeitado...
— Já ouvi contar esse caso.
— Você não sabe nada, perdoe.
O enjeitado entrava
na escola do Zé Batata
quando eu sala já pronto. Depois, lá tive notícias no Rio que a rapariga dera em
droga. Ele foi preso para soldado e desertou; e ela nunca
mais ninguém lhe pôs o olho no
lombo.
Uns dizem que está num
recolhimento de convertidas, outros dizem que está fechada, desde que isso foi.. há de haver, João Nunes, há de haver bons
vinte anos. .
— Isso é que é pai de febras!. .
Fez muito bem! — aplaudiu o
mais devasso.
***
Entretanto, chegava
o comendador Guimarães à porta
do ex-capitão de ordenanças
Silvestre Lopes, de alcunha o Ruivo. Era esperado.
No patamar da
escada que conduzia à vasta quadra
chamada «a Sala dos Padres»
estava o lavrador, entre três clérigos venerandos pela sua idade: devia contar qualquer deles bastantes anos sobre
setenta.
O comendador deu as rédeas do seu
alazão ao lacaio, subiu prazenteiramente, apertando a mão a Silvestre, e cortejando os
padres.
— Vossa Excelência, não se perdeu
nos atalhos? — perguntou o lavrador.
— Quem tem boca vai a Roma —
respondeu o comendador; e referindo-se aos padres:
— São os seus manos, Sr. Lopes?
— Dois são; o outro é o Sr.
Abade.
O hóspede encarou-o muito a fito
e perguntou:
— É abade há muitos anos nesta
freguesia?
— Vim para aqui paroquiar em
1828, na idade de vinte e cinco anos; tenho setenta e seis; conte lá a vossa Excelência.
— Está aqui há quarenta
e quatro anos feitos. —
acrescentou o padre Bento Lopes.
— Justamente —
confirmou o clérigo que batizara
Belchior, o enjeitado exposto na manhã de 6 de Janeiro de 1833.
O comendador não via naquele
ancião um sé traço do corpulento abade.
Conversaram sobre a
guerra do Paraguai, sobre a
emigração dos Minhotos, sobre o
estado florescente da indústria e agricultura portuguesa. O lavrador, apoiando o
comendador, encarecia a nossa
prosperidade com este conciso, pesado e até certo ponto bicórneo argumento:
— Vejam o dinheirame que dão os
bois!
Estava a
mesa posta no sobrado imediato e à cabeceira
da mesa a
cadeira destinada ao hóspede.
— Vossa Excelência vem para aqui
— disse o lavrador apontando-lha com urbana homenagem.
— Ninguém mais
se sentou nessa cadeira
desde que morreu o nosso irmão
mais velho, padre João. Faz agora três anos que morreu de um estupor..
— De apoplexia — emendou o padre
Hipólito.
— Tanto faz — replicou Silvestre.
— Estava a dizer missa e caiu redondo no
altar.
— É de crer que a sua
alma estivesse preparada
para esse transe — observou
o comendador em tom compungido.
— Era bom padre — disse o abade,
talhando à faca os canudos flexuosos da
sopa de macarrão —, isso era, coitado! Deus o tenha à sua vista!...
— Está aqui toda a sua família,
Sr. Silvestre? — perguntou o hóspede. — Se
bem me recordo, disse-me na feira de Vila Nova que tinha filhos...
— Filhos, não, o meu senhor.
Tenho duas filhas.
— Três.. — emendou o abade.
— Duas! — retorquiu
desabridamente o lavrador, coruscando-lhe os olhos irados.
— Ah!, sim.., duas... eu agora
estava distraído.. — remediou o
indiscreto.
E o comendador não perdia a
mínima expressão das quatro fisionomias.
— Tenho duas filhas — repetiu o
pai de Maria. — Uma está casada fora com
um proprietário, já tem um filho em Braga para padre e outro a doutorar-se em
Coimbra. A outra está em casa. Não quis casar e já está a caminhar para os trinta e sete anos. E a que governa a casa.
Este incidente passou. O
comendador mostrava-se profundamente abstraído.
Comeu pouquíssimo e quase
nada disse. Apenas,
terminado o suplício da exposição do peru, do lombo de porco de vinho
e aios, da perna de vitela e do leitão;
pediu licença para retirar-se. pretextando a precisão de estar cedo em Vila Nova.
O
abade acompanhou-o, porque o brasileiro
mostrou o desejo de ver umas sepulturas
notáveis, de que certo romance dava notícia, no adro da Igreja de Santa Maria.
Os outros padres quiseram ir
também; mas o comendador dispensou-os com delicada violência, prometendo voltar a vê-los
mais de espaço.
O
abade, mostradas as duas campas
vazias, convidou o ricaço a subir à sua pobre residência.
— Com muita satisfação,
Sr. Abade: simpatizo
com a vossa
Senhoria, quero mesmo granjear a
sua amizade.
— Ó Excelentíssimo Senhor!, que
valho eu, pobre velho, e pobre abade da mais pobre das abadias!.. Aqui gastei a vida,
já agora quero
que esta terra, onde dormem tantos que batizei, tantos que
casei, me coma também os ossos.
O padre estava lugubremente
palavroso. Havia ali uma flor de poesia elegíaca a
entreabrir-se um pouco borrifada de mau vinho do Porto. Sentia-se expansivo.
Pensava o brasileiro em ocasionar conversação
acerca do incidente, acontecido no jantar, sobre se eram duas ou
três as filhas de Silvestre. Não foi preciso
rodeios. O padre endireitou logo com o assunto nestes termos:
— O Silvestre é bom sujeito, bom paroquiano, amiguinho
dos seus interesses,
isso sim: mas desse
pecado, se o é, está o
Inferno cheio. Porém, Excelentíssimo Senhor, tem este homem um modo de pensar a respeito
da honra que não se conforma com a
religião da caridade e do perdão. Vossa Excelência havia de notar a ira com que ele
disse que as suas filhas eram duas, quando
eu, por descuido, disse que eram três. Conheci logo que andei mal, e emendei-me contra a minha consciência; mas
enfim, eu estava a jantar em casa do
homem, estava ali um cavalheiro respeitável, a civilidade mandou-me tapar a boca..
— Sim... eu notei que a vossa
Senhoria, cedendo ao número das duas, fê-lo constrangidamente.
— Pois, por isso mesmo que eu
percebi que a vossa Excelência notou, é que
devo à minha posição de padre esclarecer a verdade diante do Sr. Comendador. Se quer ouvir a história... mas a
vossa Excelência disse que tinha pressa...
— Não, senhor. Queira dizer.
Tenho muito tempo.
O abade saiu à janela e disse
para fora ao criado que fosse levar a égua pela fresca ao mato.
Depois, fechando o trinco da porta
da saleta, continuou, fazendo sentar o hóspede
numa cômoda cadeira de estofo e ocupando ele outra de pregaria com espaldar de moscóvia:
— O Silvestre não tem duas
filhas, tem três. A mais velha, que eu batizei há
trinta e nove anos, chama-se
Maria. Esta rapariga,
aqui há vinte anos, andou de amores com
um enjeitado que por aqui se criou em casa de
uma santa criatura,
que o encontrou no mato
da igreja, pelo
lado de fora das campas
que a vossa Excelência viu há pouco. O diabo do rapaz desviou-a do bom caminho e pô-la na
mais mísera situação
que em tais casos é possível. Enfim,
a rapariga sentia-se mãe, quando um
dos padres, que já
lá está na presença
de Deus, deu com eles em palestra de noite. Daí a dias, o Belchior (chamava-se assim o enjeitado), foi daqui
preso para Braga, e deitaram-lhe as correias
às costas. Passado pouco tempo, o soldado desertou e foi para onde estivesse seguro.
Agora falemos da rapariga. O pai
moeu-a bem moída de pancadaria, fechou-a no
sobrado de uma tulha,
e mandava-lhe dar todos os dias duas tigelas de caldo, dois pedaços de pão e uma caneca de
água. Dois ou três meses depois, apareceu-me
aqui um calafate de Vila do Conde, que vinha a ser cunhado da tal Bernabé que criara o Belchior, e disse-me
que a sua cunhada morrera de saudades
do desertor que não podia mais voltar
à Pátria; e que,
antes de expirar, lhe pedira que viesse ter comigo e me
rogasse, pelo divino amor de Deus, que
fizesse eu todas as diligências por haver à mão o filho
do seu Belchior, que ele,
calafate, se encarregava de levar para Vila do Conde. A falar verdade,
era empreitada de costa
arriba meter-me eu neste delicado negócio com o Silvestre; mas pedi forças a Deus e fui-me ter com ele. Contei-lhe o estado da
filha e ofereci-me para dar
à criança, quando nascesse, o único destino possível em harmonia com os interesses
da terra e os da divina religião da caridade de Jesus, que mandava
chegarem-se a Ele as
criancinhas. O homem ouviu, praguejou, berrou que ia matar a
filha; e eu então, resolvido a tudo,
disse-lhe sem temor que se
ele matasse a filha iria
eu acusá-lo de matador de duas vidas. O homem teve medo e
concluiu afinai que a criança me seria
entregue; mas que a rapariga nunca mais veria sol nem lua. . Estou maçando o Sr. Comendador..
— Pelo amor de Deus!, estou
interessadíssimo nessa triste historia. .
— Tristíssima, Excelentíssimo Senhor! Eis
que nasce um rapaz, e quem assistiu
ao nascimento e mo
trouxe foi uma viúva serva de
Deus, a minha confessada,
que vivia aqui na casa que comprara à tal Bernabé. Fui eu que lhe pedi que merecesse a divina graça por esta
obra de misericórdia. Já cá estava então
em casa de uns parentes o calafate à espera
do filho do Belchior. Entreguei-lho, e
lá foi o pequeno para Vila do Conde,
depois que o batizei com o nome
do seu pai.
— E esse menino... — atalhou o
comendador, arrancando a pergunta das ânsias
que a débil vista do abade não divisava.
— Eu lhe conto, o meu senhor.
Dois anos depois, morreu o calafate, e eis que a
criada dele mo remete para
aqui, dizendo que o patrão assim
lho ordenara, para
que eu o entregasse às irmãs e sobrinhas dele que
moram aí numa freguesia ao pé. Chamei as tais mulheres, mostrei a criancinha,
dei-lhes o recado do calafate falecido,
e elas responderam que não queriam saber de histórias; que tomasse o avô e a mãe conta
dele, que eram bem ricos. A serva de
Deus que morava, como já disse a vossa Excelência, na casa que fora da Tia Bernabé, tomou conta do enjeitadinho.
Havia nisto mistério profundo! O pai fora criado na mesma casa onde era criado
o filho, ambos sem pai nem mãe! Desgraçadamente, quando o pequeno ia nos
seis anos, morre a benfeitora
de morte repentina. Os parentes
sacudiram dali o mocinho, e o Silvestre comprou a casa, botou-a abaixo e fez
uma corte de bois. Ali daquela janela pode
a vossa Excelência ver a
corte onde foi a
casa das duas santas mulheres. É aquela que branqueja por entre
aqueles dois carvalhos.
O
comendador foi à janela,
reconheceu os arredores da
extinta casa da sua infância, enxugou as lágrimas, voltando as
costas ao abade, e voltou a sentar-se em frente ao ancião.
— Que havia eu de fazer-lhe? —
prosseguiu o abade. — Trouxe para aqui o
pequeno e mandei-o à escola.
— Muito bem, muito bem! —
exclamou arrebatado o brasileiro. — Muito bem, honrado homem! — E apertou-lhe a mão,
levando-a aos lábios.
O abade, retirando a mão úmida de lágrimas,
disse comovido:
— Fiz o meu dever, senhor! Oxalá
que esta boa ação me seja descontada nas
muitas que tenho ruins na minha vida..
— E depois, o pequeno.. — atalhou pressurosamente o hóspede.
— O pequeno, eu digo-lhe. . Agora
tornemos a falar da mãe... Três anos e meio esteve fechada no
tal cárcere. Via
apenas uma irmã que lhe levava o alimento, Depois
esteve em perigo de vida e pediu
um confessor. Fui
eu o chamado à falta de outro. No ato da confissão,
disse-lhe que o seu filho estava na
minha casa e que passava por ser o meu parente. Outros, Sr. Comendador, diziam que ele
era o meu filho
e da mulher que o amparara.
Perdoei aos caluniadores, para
que Deus me perdoe os escândalos que dei: era justo que me difamassem
porque eu dei azo a isso com
os desatinos da minha mocidade.
Maria, quando soube que
tinha o seu filho vivo, ganhou forças, quis viver, e venceu a doença. Dizia-me ela:
«Se eu viver, hei de ter alguma
coisa desta casa, e o que eu tiver será do meu filho: e, se eu morrer ficará pobrezinho de
pedir.» De pedir não — disse eu — , porque
vou mandar-lhe ensinar um ofício,
logo que ele chegue à idade de poder trabalhar.
Perguntou-me então se eu sabia
alguma coisa do Belchior. Fora da confissão, respondi-lhe que o calafate muito em segredo
me dissera que ele fora para o Brasil. No
primeiro ano, o calafate recebia a miúdo cartas do Belchior, que o rapaz escrevia à mãe adotiva, pensando que ela
estava viva. O calafate escrevia para lá
que a Bernabé tinha morrido; e o rapaz a escrever sempre à Bernabé. A opinião do calafate era que o Belchior andasse
lá pelos sertões onde nunca lhe chegavam
as cartas idas de Portugal. Depois, o calafate
morreu. O que se passou daí em diante não sei. Foi isto que eu contei a Maria.
Por fim, espalhou-se por aí que o Belchior tinha
morrido; e eu aproveitei a notícia, quer fosse
verdade, quer não, a
fim de ver se o pai da
pobre rapariga lhe dava alguma liberdade. Falei
nisto ao Silvestre, e em nome de Deus o fiz responsável
pela privação em que a tinha da missa e dos sacramentos. Tanto lhe bati à
porta da consciência dura,
que consentiu deixá-la
confessar-se e ouvir missa ao menos uma vez de três em três
meses. Pouco e pouco, obtive que ela
viesse à igreja de quatro em quatro semanas, e nessas ocasiões já ela sabia que o seu filho era o menino que me
ajudava à missa. Uma vez entrou na
sacristia, não estando mais ninguém na igreja, abraçou-se no Olho e desfez- se
em lágrimas. Deixei-a, coitadinha!, mas depois pedi-lhe que não tornasse a fazer tal
imprudência, porque, se alguém a
visse, não tornaria a sair do seu cárcere.
O rapaz quando fez catorze anos, lia e
escrevia correntemente. Mandei-lhe ensinar o ofício
que escolhesse: quis
ser carpinteiro, para o que tinha
muita habilidade. Essa cadeira em que a vossa Excelência está sentado fez-ma ele. Veja que bonita peça!, pois ainda
não tinha dado um ano ao ofício quando
fabricou essa obra que parece feita no Porto!
— E está aqui nesta freguesia o
tal Belchior? — perguntou o brasileiro.
— Não, o meu senhor, está
trabalhando em Braga; mas vem aqui todos os meses ver a mãe no dia em que ela se confessa.
— Todos os meses?
— Sim, senhor, na primeira
segunda-feira de cada mês. De hoje a oito dias, se eu viver, hei de ouvi-la de confissão, e
dou de jantar ao meu Belchior.
— De hoje a oito dias? Que prazer
a vossa Senhoria me dava, Sr. Abade, o meu honrado e querido amigo, se me
consentisse que eu contemplasse na sua igreja
essa mártir a rever-se no seu pobre filho! Seria possível?
— Pois não é?! Apareça
a vossa Excelência
na segunda-feira aí pela
seis horas da manhã, que é quando
eu a confesso e lhe dou a comunhão. Vê-a a ela e vê o rapaz, que é ainda quem me ajuda à
missa e ministra o jarro da água à mãe,
depois que ela comunga.
Eriçaram-se os cabelos ao
comendador por uma espécie de eterização, mescla de entusiasmo,
de arroubamento e de
tristeza, Apertou ao seio as cãs
do ancião e beijou-o na
cara. O padre encarava-o com assombro, e ele murmurava:
— A sua história arrebatou-me!. .
Eu sou um homem que tenho a loucura da
admiração pelas ações grandes. Se até hoje não acreditasse em Deus, cairia de joelhos aos seus pés, confessando-o!
— Quem é que não acredita
em Deus, o meu amigo?! —
perguntou o velho enxugando as lágrimas.
***
A segunda-feira aprazada ralou
com todas as pompas e músicas e perfumes de uma aurora de Julho. O comendador Guimarães
chegara de Braga, por volta da meia-noite,
e ordenara ao escudeiro que o
chamasse às quatro horas da manhã, Supérflua recomendação. Não dormira.
Antes do alvorecer da manhã, chamara ele
os criados e mandara aparelhar os cavalos.
Às cinco e meia da manhã estava
ele encostado para uma das campas do adro de
Santa Maria de Abade.
A distância, escarvavam os
cavalos insofridos na terra barrenta
de um montado calvo. O sol verberava
numa das frestas da igreja. Os pardais pipilavam na oliveira,
naquela mesma que, trinta e nove anos antes,
dera, nas suas raízes
recurvas à flor
da terra, um
berço empapado de chuva
àquele homem que ali se sentia
feliz até ao extremo em que as palpitações
de júbilo laceram o coração como as famas
da agonia. As andorinhas
chilreavam em redor da cornija
da igreja e,
esvoaçando-se por longos
círculos, cortavam de notas embaladas pelas ondas
da luz o grande hino, que na Terra se completa com as lágrimas
dos que podem chorá-las de gratidão à
Divina Providência.
Ele, Belchior Bernabé, chorava
essas lágrimas benditas, contemplando a terra onde
a tecedeira pobre se ajoelhara para o levantar regelado até ao
peito e ressuscitá-lo com um milagre da caridade.
Às cinco horas e três quartos
ouviu passos que soavam na trempe
de ferro que forma o limiar do
adro. Correu pressuroso ao cunhal da igreja e viu uma mulher, com um capote
aconchegado da face, encaminhando-se para a porta transversal. Simultaneamente chegava,
transpondo de salto a parede, um rapaz de
boa presença, vestido de azul, com o seu chapéu de felpo branco na mão. O comendador
parou, encostado ao cunhal A mãe e o
filho abraçavam-se, quando
repararam daquele homem estranho.
— Quem é? — perguntou Maria.
— É figurão! — disse ele.
— Eu vi aquele homem em Braga
com o Sr. Deão e entraram no paço do Sr., Arcebispo. Ali
abaixo na bouça estão dois cavalos e um
criado de libré. Hão de ser dele..
— Queres tu ver que é um
comendador que esteve em casa do teu avô faz hoje oito dias? Tua tia viu-o e disse-me que
ele era assim de bigode e suíças...
— Que estará ele a fazer aqui?
— Ele olha para nós?! — perguntou
a mãe olhando-o de través por entre a fresta
formada pelo capote em que se encapuzava.
— Não tira os olhos da gente... e
parece que está assim a modo de quem quer
perder os sentidos.
— Estará doente?,. Ainda bem que aí está o Sr. Abade.., — E lá
vai falar com ele, a minha mãe. .
— Então é o mesmo que eu te
dizia.
— Belchior! — chamou o abade —,
pega lá a chave e entrem, que eu já vou.
O rapaz foi buscar à
chave, beijou a mão ao
padre e abaixou a cabeça ao senhor desconhecido, O comendador, com os
olhos cravados nele, movia-se num
balanceado arfar de peito: era o
esforço que punha em resistir aos ímpetos
que o impulsionavam pana o filho.
O carpinteiro abriu a
porta e entrou com a mãe na igreja, dizendo-lhe:
— Aquele sujeito estava a olhar
para mim de um modo que parecia querer falar-me...
O brasileiro, depois que
respondeu ao cumprimento do abade, perguntou-lhe:
— Vossa Senhoria terá dúvida em
me ouvir de confissão?...
— Com muito contentamento, Sn.
Comendador. Quando quer, a
vossa Excelência?
— Agora. Desejo receber a
comunhão juntamente com a sua confessada.
— Pois seja agora.
E dizia entre si o padre: «Este
homem foi iluminado pela graça divina e Deus o nosso Senhor escolheu o mais pecador dos
seus servos para instrumento da sua
misericórdia com outro pecador!» Entraram no arco da igreja de passagem para a sacristia, O abade curvou-se ao ouvido
de Maria, que fazia oração no altar do Santíssimo, e disse-lhe:
— Demora-te um pouquinho,
que eu vou confessar uma pessoa.
— E chamando Belchior: — Vai a
casa, abre o segundo gavetão da cômoda e traze a
toalha grande de rendas que está engomada,
para ministrar a comunhão àquele senhor que vou confessar.
***
O comendador saiu da sacristia
meia hora depois e foi ajoelhar no primeiro degrau
do altar-mor. Maria, como visse
sair o abade e acenar-lhe
para o confessionário, ergueu-se,
passou rente do desconhecido com
os olhos no chão e a gola do capote apanhada nas faces.
Belchior tinha vindo com a toalha
de folhos encanudados, que desdobrava e ajeitava
para o sagrado ministério, Depois entrou na sacristia com o galheteiro, renovou
a água e o vinho,
dobrou e sacudiu a toalhinha de modo que a porção ainda não maculada servisse ao
lavatório, De vez em quando, saia ao limiar
da sacristia e ficava a olhar para o comendador, que se conservava de joelhos, bom a
cabeça abaixada, amparando a
cara nas mãos erguidas, O abade saiu do confessionário a manquejar trôpego, amparando-se à teia gradeada
de um altar, O filho de Maria Ruiva foi dar-lhe o braço, e o ancião queixava-se de dores reumáticas nos joelhos e
nos rins. A confessada subiu até à capela-mor
e ajoelhou atrás do brasileiro,
lendo atos de contrição e a ladainha.
O
abade começara a
revestir-se para ir celebrar,
quando o comendador se levantou
e, de passagem para
a sacristia, relançando os olhos a
Maria, pôde ver-lhe o
rosto iluminado pela réstia refrata
do sol que
lampejava palpitante através
da fresta, na
superfície metálica de uns
tocheiros dourados. Não a conheceria se a encontrasse.
Aquele rosto tinha sido
purpurino, acetinado como as pétalas
das rosas húmidas pelo rociar das formosas madrugadas. Tivera
as curvas boleadas e lisas
da saúde, da
força, dos atritos do ar
forte e do sol que enrubesce a epiderme e cobra o sangue.
Estava magra, angulosa e lívida
como as santas esculturas sob a inspiração do martírio;
mas esta maceração era a
formosura divinal da
alma, era a santificação
da mulher aos olhos daquele homem.
Entrou na sacristia e, com
trémula voz, disse ao padre:
— Sr. Abade,
peço-lhe que antes de subir ao altar chame
aqui a sua confessada.
— Aqui?! — perguntou o abade com
espanto. — Ela é muito acanhada...
Presumia que o
comendador desejava simplesmente
ver de perto a mulher cuja desgraçada história o comovera.
— Não importa — respondeu o
brasileiro —, é urgente que ela aqui venha antes que o Sr. Abade nos dê a comunhão.
— Sim?! — respondeu o padre. —
Pois bem...
E, saindo ao umbral da sacristia,
chamou a filha de Silvestre.
Ela entrou com timidez e
assombro. O filho, que suspendia ainda nas mãos as dobras da
alva que o padre estava vestindo,
largou-as, deixou pender os braços e empedrou na expressão imóvel da
curiosidade.
Neste lance, o comendador
apresentou ao abade meia folha de papel selado e pediu-lhe que a lesse. O padre pediu a
Belchior que lhe chegasse os óculos, pô-los
tremulamente, acercou-se de uma fresta e, lendo primeiro a assinatura, disse:
— E a assinatura da sua Eminência
o Sr. Arcebispo de Braga?.. Conheço- a.
.
Ergueu a vista ao alto da folha e
leu:
Concedemos ao abade de Santo
Maria desta a nossa diocese, no concelho de Vila Novo de Famalicão, que possa, sem prévia
leitura de banhos, celebrar o sacramento
do matrimônio entre os contraentes de maior idade...
Aqui, o abade estacou, abriu
demasiadamente os olhos, acertou os óculos na base
do nariz, premiu as
pálpebras com o dedo polegar repôs
de novo os óculos e disse ao filho de Maria:
— Ó rapaz, que nomes são estes
que estão neste papel?
O carpinteiro leu:
...entre os contraentes de maior
idade Belchior Bernabé, filho
de pais incógnitos, e Maria
Lopes, filha legítimo de Silvestre. Lopes e...
— Que é isto? — exclamou o abade.
— Santo Deus!, que é isto?
— Belchior Bernabé
— disse o rapaz com o mais
cândido assombro — sou eu!..
— Belchior Bernabé é teu pai, o
meu filho! — exclamou o comendador, abraçando-o; e, ao
mesmo tempo, encurvando o braço pelo colo de Maria, puxou-a para o peito, tocou-lhe com os lábios
ardentes como as lágrimas na face e
murmurou-lhe soluçante: — Aqui me tens, a minha desgraçada Maria! Aqui está o pobre enjeitado!...
Ela expediu
um grito estridente
como o da
alegria dos encarcerados, dos condenados
à eterna desonra que viram inopinadamente golfar-lhes na treva a luz do
Céu e a reabilitação da honra.
Queria reconhecê-lo, tateando-lhe
as faces; mas faltou-lhe a
claridade dos olhos e a lucidez da razão. Ela pedia luz, pedia a Deus que a não
deixasse morrer e desfalecia pendente do pescoço de Belchior.
***
A felicidade de Maria era santa:
custara vinte anos de afrontas sofridas com paciência, sem revolta contra a implacável barbaridade do pai, nem contra a imobilidade das forças divinas. Esperara em
Deus, esperara sempre. Dizia ela que
sonhara aquilo mesmo
— a vinda
de Belchior e a restauração
da sua honra.
Contava-o ela ao abade, e ao
esposo, e ao filho, à porta do templo: e ele, o ancião, com as rugas da face luzentes de
lágrimas, dizia:
— Fui eu quem vos batizou e quem vos casou os meus filhos. Agora, enterrai-me vós, que eu não tenho ninguém.
Belchior Bernabé
exigiu como dote da sua mulher o estábulo dos bois edificado sobre os alicerces da casa onde fora
recolhido e aquecido ao seio da tecedeira.
Ali, onde foi cabana de candura e oração, está hoje um palacete com as mesmas coisas divinas, acrescentadas pela felicidade do amor. Vê-se
de longe o palácio do comendador
Belchior; e lá ao pé, no interior do palácio, as pompas da arquitetura e das decorações
desaparecem deslumbradas pelo que á de
imortal nas obras humanas: a virtude. Lá está o abade resignatário de Santa
Maria entrevado: mas todas as manhãs é transferido da cama
para a cadeira
que lhe fez o seu Belchior Júnior,
aquele rapaz que não resiste à vocação de carpintejar e está fabricando uma
nova cadeira de rodas e molas para o seu
velhinho.
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Nota:
Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)
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