O CEGO DE LANDIM
Foi há treze anos, numa tarde calmosa de
Agosto, neste mesmo escritório, e naquele
canapé, que o cego de Landim esteve sentado.
São inolvidáveis as feições do
homem. Tinha cinquenta e cinco anos, rijos como raros homens de vida contrariada se gabam aos quarenta.
Ressumbrava-lhe no rosto anafado a paz e
a saúde da consciência. Tinha as espáduas largas; cabia-lhe muito ar no peito;
coração e pulmões
aviventavam-se na amplidão da
pleura elástica. Envidraçava as
pupilas alvacentas com vidros esfumados, postos em grandes aros de ouro. Trajava de preto, a sobrecasaca
abotoada, a calça justa e a bota lustrosa;
apertava na mão esquerda as luvas amarrotadas e apoiava a direita no castão de prata de uma bengala.
Eu não o conhecia quando me deram
um bilhete-de-visita com este nome:
ANTÔNIO JOSÉ PINTO MONTEIRO.
Em S. Miguel de Seide, uma visita
que se fizesse preceder do seu cartão era a primeira.
— Quem é? — perguntei ao criado.
— É o cego de Landim.
— E esse cego quem é?
O interrogado, para me esclarecer
superabundantemente, respondeu que era o CEGO,
como se se tratasse de um cego por excelência e de histórica publicidade:
Tobias, Homero, Milton, etc.
Mandei que o conduzissem ao meu escritório. Ouvi passos
que subiam rápidos e
seguros uns doze degraus;
e, no patamar da
escada, esta pergunta muito sacudida:
— À esquerda ou à direita?
— À esquerda — respondi, e fui
recebê-lo à entrada.
Estendeu-me firme dois dedos e
desfechou-me logo, em estilo de presidente de
câmara municipal sertaneja
às pessoas reais, uma alocução
à minha imortalidade de
romancista, lamentando que eu ainda não tivesse em Portugal uma estátua.. equestre; parece-me que ele não disse estátua
equestre. Achei-lhe razão. Eu também já tinha lamentado aquilo mesmo; porém,
cumpria-me rejeitar modestamente a estátua,
como o duque de Coimbra, agradecendo a virginal lembrança do Sr. Pinto
Monteiro.
— Tenho ouvido ler os seus livros
imortais — disse ele. — Não os leio porque sou cego.
— Completamente? —
perguntei, parecendo-me
impossível a cegueira absoluta com a segurança da sua agilidade nos
movimentos.
— Completamente cego, há
trinta e três anos.
Na flor da idade,
quando saudava as flores da minha
vigésima segunda primavera. ceguei.
— E resignou-se...
— Se me resignei!.. Morri de dor e ressuscitei em trevas
eternas... O sol, nunca mais!
Pungia-me a compaixão. Disse-lhe
consolações banais; citei os mais luminosos cegos antigos e recentes. Nomeei-lhe o
príncipe da lira peninsular, Castilho, e ele atalhou:
— Castilho tem o gênio que vê as
coisas da Terra e do Céu. Eu tenho as duas
cegueiras do corpo e da alma.
Achei-o eloquentemente sóbrio e
ático; figurou-se-me até literato dos bons.
Lembrei-me se ele vinha
convidar-me para fundarmos um jornal em Landim, ou se
viria pedir-me para o propor sócio correspondente da Academia
Real das Ciências.
Discreteámos de parte a parte em
variados assuntos, até que ele explicou as suas pretensões. Tinha um litígio pendente
sobre a posse disputada de umas azenhas
que lhe tinham custado três contos de réis, e pedia a minha valiosa preponderância
a fim de que
os juízes de 2ª
instância lhe fizessem justiça inteira.
Observei-lhe que a
minha influencia poderia ser-lhe
necessária se a
justiça estivesse da parte do seu
contendor; porquanto, quem não tem justiça é que pede.
— Apoiado! — interrompeu ele. — A
razão diz isso; mas acontece que o meu contendor pede porque não tem justiça;
ora não vão os juízes pensar que eu
tenho mais confiança na lei do que neles...
Pareceu-me sagaz, argucioso e um
pouco germânico o cego. Deu-me quatro memoriais, acendeu o terceiro charuto
e ergueu-se. Acompanhei-o até ao portão e vi-o cavalgar com garbo quase
marialva uma vistosa égua, passar as rédeas
falsas pelas outras com destreza, esporear e partir sozinho.
Ora o cego
perdeu a demanda
das azenhas porque as azenhas não eram perfeitamente dele, t eu não podia pedir aos
desembargadores que as tirassem ao dono
e mas dessem a mim para eu as dar ao cego.
Nunca mais o vi. Retirou-me a sua
admiração e mais a estátua. E, cinco anos depois, morreu.
A história dos homens descomunais
deve começar a escrever-se a lâmpada do seu
túmulo. À luz da vida
tudo são miragens nas ações dos
heróis e estrabismos na
contemplação dos panegiristas. E tempo de bosquejar o perfil deste homem esquecido, e quem quiser que o
tire a vulto em mármore mais persistente.
Pretendo desmentir os aleivosos que reputam Portugal um alfobre de líricos, romancistas salobros de
amorios de aldeia,
porque não temos personagens
bastantemente suculentos de quem se
espremam romances em quatro volumes.
***
Nascera em Landim em 11 de
Dezembro de 1808.
1808! Os biógrafos portugueses,
se escrevem de pessoa nascida naquela data ou por perto, relatam-nos derramadamente a
Revolução Francesa a começar em
Luís XVI, exibem
a Guerra Peninsular,
e concluem o curso de História Moderna ligando fatidicamente à evolução social o nascimento daquele sujeito.
No ano de 1808, uma
das muitas pessoas que nasceram
sem pesarem um escrópulo, pelo peso
velho, na balança dos lusos destinos, foi aquele Antônio José Pinto Monteiro.
O seu pai barbeava em Landim com
ferocidade impune. A espada de Afonso Henriques e as navalhas
dele têm tradições sanguinárias.
Ainda hoje, transcorridos setenta anos,
os netos dos seus fregueses parece que herdaram a sensação dos gilvazes dos avós. Em Landim fala-se
dele como de Torquemada em Valhadolid.
Aquele barbeiro é uma lenda como a de Gerião, assassinado por Hércules, e a do monstro de Rodes, cantado
por Schiler.
Antônio, o primogênito
deste esfolador, estudou
primeiras letras com rara esperteza. Aos onze
anos era prodígio
em tabuada e bastardinho. Aos doze imitava
firmas com perfeição despremiada
e vingava-se do menospreço em que Estado o esquecia, estabelecendo
correspondência entre pessoas que não se correspondiam, mediante as quais, uma
vez por outra, agenciava
alguns pintos.
Como talentos tais não se
atabafam muito tempo debaixo do alqueire, o rapaz sofreu algumas contusões. Um monge beneditino de Santo Tirso compadeceu-se
do jovem, em tão verdes anos perdido, à conta da sua
habilidade funesta: pagou-lhe passagem
para o Brasil, porque sabia que os ares de
Santa Cruz são como os do Éden para refazer inocentes.
Empregou-se como caixeiro no Rio.
Foi estimado nos primeiros três anos.
Estremava-se dos
seus broncos patrícios no dom da
palavra, nas lérias aos fregueses,
nos ardis lícitos do balcão,
nas ladroíces consuetudinárias que afirmam
a vocação pronunciada,
as quais, no calão da ótica
mercantil, se chamam «lume no olho». Nas horas feriadas, lia
aplicadamente e tangia violão. A sua especialidade literária era a eloquência
tribunícia. Estudara francês para ler
Mirabeau e Danton.
Enchera-se deles e
ensaiava repúblicas federalistas com os caixeiros, pedindo cabeças de reis para uns pobres
parvajolas que suspiravam apenas
por cabeças de gorazes.
Os patrões não farejaram um acabado Robespierre no caixeiro; mas,
como desconhecessem a vantagem da
apoteose dos girondinos numa loja de molhados,
expulsaram-no como republicano.
Pinto Monteiro intrometeu-se
na política brasileira,
iniciou-se na maçonaria em
1830, fez discursos vermelhos contra o imperador
e escreveu clandestinamente. Esteve
assim na caraira do pais prometido aos eternos Paturots.
É indeterminável o estádio que ele ganharia se
um militar imperialista
lhe não cortasse o rosto com um
látego. Uma das tagantadas contundiu-lhe os olhos. Pinto Monteiro cegou.
***
Reagiu ao desastre com peito de
ferro. Menos rija alma engolfara-se
na espessura da sua treva. Ele não.
Pediu ao Inferno luz emprestada para entrar na vereda das suas vitimas. Acendeu
interiormente, no cárcere do seu espírito, a lâmpada do ódio. A vingança levá-lo-ia pela
mão, como Malvina ao cego de Macpherson. Perdoa-me a
comparação, ó bardo caledônio! — que
eu já vi Marat comparado a Jesus Cristo.
Quando lhe deram alta na
barra da enfermaria,
pediu o seu violão, saiu às praças,
preludiou e cantou umas trovas com arpejo triste, às portas dos argentários e dos taberneiros. As trovas
faziam saudades da Pátria e a música gemia
as toadas dos lunduns do Minho. Os ouvintes contemplavam-no com dó e davam-lhe esmolas avultadas para
regressar a Portugal, ao ninho o seu. Tinha
ele um rapaz: era português-ilhéu,
alguns anos mais novo. Levara-o a doença,
a podridão do vício, à
mesma enfermaria; e a penúria e o instinto vincularam-no ao cego. Chamava-se Amaro Faial;
mas os que lhe conheciam as prendas corrompiam-lhe o apelido e chamavam-lhe o Amaro
Falante. Pessoas escassas de
caridade indulgente diziam que a maldade
do cego e os olhos do rapaz completavam
dois refinados maraus.
Pinto Monteiro trajava
limpamente, banqueteava-se à proporção e dulcificava os confortos caseiros com o amor de uma
aventureira mal prosperada como tantas
que o arquipélago açoriano exportava consignadas aos Cressos da Rua do
Ouvidor, que paxalizavam nos
pomares da Tijuca. Criara uma sociedade nova. Acercara de si toda a vadiagem suspeita,
os ratoneiros já marcados com o
estigma da sentença,
os misteriosos, famintos
sem ocupação, negros e brancos, não topados ao acaso, mas
inscritos nos registros da polícia
e afuroados pela sagacidade de
Amaro Faial. Tinha lido as Memórias de Vidocq — o celebrado chefe da polícia de Paris.
Encantara-o a equidade do governo que elevara
Vidocq, a ladrão famoso, àquela
magistratura; porque ele, por espaço
de vinte anos, exercitara o latrocínio e granjeara nas galés os amigos que depois entregava à grilheta.
Pinto Monteiro organizou a boêmia que,
até àquele ano, roubando sem método nem estatutos,
exercitara a ladroeira de um modo indigno de pais em via de civilização.
Fez-se eleger presidente por
unanimidade e nomeou o seu secretário Amaro Faial.
Havia um propósito
quase heroico neste feito,
como logo veremos. Investido desta presidência incompatível com
as artes líricas, depôs o violão e, à
semelhança do poeta latino, emudeceu os cantares, tacuit musa. Sentia-se no congresso uma alma nova, cheia de
fomentos e apontada a rasgar horizontes dilatados.
Quem ouvisse discursar o
presidente sociologicamente, ficaria
em dúvida se furtar era ciência ou arte. Pinto Monteiro
enxertava nas suas preleções acerca da
propriedade umas vergônteas que depois enverdeceram com estilo melhor nas teorias de Cabet. Os malandrins mais
inteligentes, depois que o ouviram, desfizeram-se
de escrúpulos incômodos, e entre si
assentiram que não eram ladrões, mas simplesmente deserdados pela
sociedade madrasta e vítimas de uma qualificação já obsoleta. A terminologia
do livro v das Ordenações num pais
jovem, exuberante, e que tem o sabiá e o coco, era uma anomalia.
Desta arte organizada a
quadrilha, sob a influência auspiciosa de um cérebro pensante, os cidadãos eram roubados mais
artisticamente: na empalmação dos relógios
conhecia-se que havia ideias de física, de mecânica, de equilíbrio, de dinâmica e ciências correlativas. Os alunos da
reforma pareciam colaborar no Manual do
Prestidigitador, de Roret, e abandonavam como arcaísmo aos poderes
públicos a Arte de Furtar, de quem quer que seja.
A sociedade prosperava a
olhos vistos, posto que o presidente não tivesse olho
nenhum — nesta independência dos órgãos de relação prova
a alma a sua imortalidade.
Foi então que Pinto Monteiro e o
secretário, munidos dos livros de registo e de toda a
escrituração, se apresentaram ao
chefe da polícia, Fortunato de Brito.
Eis aqui
a reputação de
um homem sacrificada à extirpação
do crime. Os Codros e os Cúrcios, na restauração da moral
pública, fazem isto.
O
chefe da polícia conveio nas propostas de Pinto Monteiro, que estatuíra conservar-se na confidência
dos ladrões e delatar a
paragem dos roubos quando no
descobri-los redundassem à polícia
créditos e interesses. O cego
esclarecera Fortunato sobre a
organização do funcionalismo policial em Paris, ensinara-lhe
alvitres ignorados e prometia
auxiliá-lo num ramo ainda mal cultivado
no Brasil — a espionagem política.
Surtiu os previstos resultados a
perfídia. Os larápios mais
soezes eram arrebanhados para
a casa da
correção; mas os
ladravazes mais ladinos poupava-os
o presidente para
não perturbar de improviso o equilíbrio
do cosmo. E necessário que haja
escândalos, diz o Evangelho.
Como agente secreto da polícia
recebia do cofre do Estado; como
chefe da Associação dos Deserdados,
auferia o seu quinhão do pecúlio comum, afora as forragens da presidência, etc.
Este período da vida do cego
durou cinco anos; as duas rendas sobravam-lhe à
fartura do passadio; principiou Monteiro
a engrossar o pecúlio, quando
a delator e agente juntou o
estipêndio de espião.
Voltando às suas antigas
camaradagens políticas, falou nas sociedades secretas com exacerbada virulência; e, vítima de
despotismo militar, mostrava os olhos estoirados
e baços com a dolente majestade do general Belisário, vencedor dos Hunos.
Constou ao Governo que Pinto
Monteiro ousara pedir um Cromwell de quem ele,
cego, fosse o Milton. A comparação seria modesta,
se não fosse sanguinária. O Governo
brasileiro, com subtileza
própria dos cérebros formados com tapioca e ananás, entendeu que o
pescoço do Sr. D. Pedro II era ameaçado
pelo cego com a tragédia de Carlos Stuart.
A Fortunato de Brito foi ordenado
que vigiasse e processasse sedicioso cego.
Entalação! O chefe da polícia foi
explicar ao sei ministro que os discursos de Pinto Monteiro eram boízes armada a pássaros
bisnaus de mais alta volateria. O conflito
remediou-se prescindindo o espião
da oratória, e atendendo somente a seguir rastilho das revoluções
urdidas no Rio, para rebentarem nas províncias.
Como no meio da tanta lida ainda
lhe sobrava tempo, Monteiro ensaiou pela sua
conta, e sem auxílio da
malta, uma reversão de propriedade, termos adequados à sua qualidade de deserdado.
Havia morrido um carroceiro
quando, avençado com o cego experimentava a sua
fortuna em aventuras de
moeda falsa, mandando
abrir os cunhos no Porto.
A cidade da Virgem tem tido
filhos de raro engenho na gravura; mas os seus concidadãos, desamoráveis com as graças do
buril criaram à volta deles uma atmosfera fria
de desalento, e no pedes tal em que os sonhadores, como Morggen
e Bartolozzi, entreviram a glória a oferecer-lhes umas sopas de vaca, o menospreço público pôs-lhes a fome.
Seria bonito para o martirológio
da arte que q honrados alunos da Academia das Belas-Artes se deixassem
perecer de anemia; porém,
as poderosas reações do
estômago impulsaram-nos a aceitar
o único lavor que se lhes oferecia: abrir cunhos de moeda.
Este ramo das artes imitativas
floriu no Porto como planta indígena, a termos de
haver ali trabalhos excelentes e muito
em conta. Já se conheciam os gravadores
portuenses como hoje se conhecem
os capelistas da Rua de
Cedofeita — o
Primeiro Barateiro, o Rei
dos Barateiros, o Barateiro sem Competidor.
Faziam-se notas a 5% quando a
arte estava no
berço ainda timorata: depois,
à medida que a
prosperidade das empresas
internacionais aumentava o
pedido, os bons artistas davam de mão aos brasões dos sinetes, às chapas dos portões e às firmas dos anéis;
e, rivalizando-se no primor e na barateza
da obra, já davam um conto de notas falsas por dez mil-réis sinceros.
Era este o preço da dezena de
contos que o carroceiro mandara comprar por intermédio de Pinto Monteiro, e não chegara a
receber, atalhado pela morte. Deixara, porém,
segredado à viúva que se entendesse com o
seu amigo Monteiro quando lhe
entregassem a encomenda.
Não sei se estas notas eram parte
de uns trezentos contos que por esse tempo saíram do Porto para o Brasil dentro da imagem
do Senhor dos Passos. Não averiguei as
profanações que se deram nesta remessa: o que sei é que a viúva avisou o
cego; e que,
no mesmo dia do
aviso, o
chefe da polícia colhia
de sobressalto a viúva,
escondendo o rolo das notas entre o guarda-infante e a parte subjacente que ela julgava intangível
aos contatos brutos dos esbirros.
Levada a
interrogatórios, foi pronunciada;
mas, desde que ela entrou no cárcere, Pinto Monteiro, consternado até às
lágrimas, assistiu-lhe com a mais desvelada benquerença, constituindo-se o seu
procurador.
Esta mulher herdara a
independência. Gemeu em ferros seis anos, cumprindo a
comutação de uma sentença que a
condenava a degredo
para a ilha
de Fernando. Essa
comutação custara-lhe o
restante dos seus haveres, absorvidos, pelo cego de Landim.
Quando saiu do cárcere, e se
viu roubada pelo amigo
do seu marido, e reduzida
a mendigar, denunciou
ao chefe da polícia a
cumplicidade de Monteiro no
negócio das notas. Fortunato de Brito conveio que o seu agente era
infame maior da marca:
mas fazia-se mister
que tivesse aquele tamanho para dar pela barba à corpulência da
corrupção. O cego de Landim gozava a inviolabilidade
de mal necessário.
A extorsão feita à viúva
divulgou-se e acerbou os antigos ódios contra Pinto Monteiro.
Demais a mais, ele tinha
ofendido o espírito dos estatutos,
que eram obra a sua.
Os consócios acharam irregular e
menos honesto que o seu presidente levasse o
egoísmo à extremidade de reivindicar só para si
direitos de propriedade comum. Toda
a propriedade alheia era
deles todos, pelos modos.
Alguns destes, mais
penetrantes, incutiram no falanstério
a suspeita de que o chefe tivesse inteligências com a polícia.
Um mulato de grandes brios,
notável capoeira e muito sumário nos processos daquela espécie, fez lampejar o aço da sua
faca e declarou que ia anavalhar o redenho
do cego.
Quando esta cena tumultuária se
passava na taberna do João Valverde, na Rua do
Catete, Pinto Monteiro e
Amaro Faial já estavam a
bordo da galera Tentadora, que velejava para o Porto.
***
Em Setembro de 1840 apareceram em Landim Pinto
Monteiro e o seu Chamado guarda-livros. Acompanhava-os a açoriana, intitulada honorificamente esposa do cego.
Era uma
mulher desnalgada, sardenta, ruiva,
alta e possante, com brotoejas rosáceas na
testa e um caracol de barba no
queixo inferior. Galhardeava moirées,
calçava botas verdes e trazia uns merinaques que rugiam
como as cavernas dos ventos.
Pinto Monteiro alugou casa
enquanto reedificava outra
sobre o casebre do seus
pais. O guarda-livros dizia com certo resguardo que o patrão era muito rico.
Convergiram logo das freguesias
circunvizinhas bastantes cavalheiros a visitá-lo, uns
porque tinham sido os seus
condiscípulos na escola, outros
por parentesco não remoto.
O
cego banqueteava os seus hóspedes com iguarias incógnitas apimentadas por
cozinheiras negras. Os
comensais, gente saturada de vegetais
e milho, comiam à tripa forra
e levavam em si daquela mesa
lauta raras indigestões, muitas
saudades e cópia de
vinhos, O cego tinha uma irmã,
dez anos mais nova, que surgiu com bandós, dom e espartilhos
dentre um balão da cunhada. Falou-se do casamento da jovem,
dotada pelo irmão com dez contos. Os morgados
já curveteavam os seus
potros por Landim, e
de longes terras vinham propostas de casamento,
por intermédio de padres e beatas. A rapariga, que eu conheci a encanecer na
decadência dos cinquenta anos, devia ter
sido uma
trigueira sanguínea com as mordentes graças das sobrancelhas travadas e negras como a penugem do bigode.
Pinto Monteiro passava temporadas
no Porto com Amaro Faial. Era ali que ele
cumpria a mensagem a que fora enviado pelo chefe da polícia fluminense. Viera, sob condições estipuladas,
relacionar-se com os exportadores de moeda falsa e
estatuir,. de harmonia
com os interessados, bases
orgânicas e auspiciosas para negócio menos
precário. O resultado,
previsto pelo cego e aplaudido por Fortunato de Brito, era a
polícia conhecer no Império Brasileiro os
cúmplices dos agentes que residiam no Porto e, de uma vez para sempre, abranger em rede varredoura os principais.
Conseguira captar a
confiança dos dois gravadores
mais habilidosos e conhecidos
além-mar; mas um deles, Coutinho, o ancião que eu vi morrer na enfermaria da Relação em 1861, não delatou as
pessoas com quem negociava, posto que o
cego lhe garantisse uma velhice abastada nos confortos da honra. O outro artista, que morreu rico, apesar de se
ter remido da cadeia à custa de dezenas
de contos, também não denunciou os seus fregueses; mas convidou o cego a mercar-lhe au rabais uns cinquenta
contos, resto da última edição.
E o cego comprou-os.
Em 1841, a hospedaria dileta
dos brasileiros de profissão (distingam-se assim dos brasileiros do Brasil) era a
do Estanislau, na
Batalha. Ali havia
a sem-cerimônia do
chinelo de liga à mesa-redonda; os colarinhos
arregaçados deixavam arejar
as pescoceiras rorejantes de
suor, que se limpavam aos guardanapos; cada qual podia comer o arroz
com a faca e o talharim com o garfo; a
laranja era descascada à unha e os caroços das azeitonas podiam ser cuspidos na mesa, bem como as esquírolas do
pernil do porco desenlatadas a palito
das luras dos queixais. E era até de direito comum cada qual caçar de guet-apens
a importuna mosca na cara e decapitá-la publicamente. Estava-se ali à vontade, como nos jantares de Peleu e
Pátroclo, com um grande estridor de mastigação e arrotos.
O cego hospedava-se no Estanislau
e dizia ao secretário:
— Estamos com a nossa gente,
Amaro amigo.
A idade, a compostura e o
palavreado, com a reputação de rico, deram-lhe na mesa o lugar mais autorizado. Os brasileiros
vindos do Rio conheciam aquela figura; alguns sabiam
que o homem se tinha arranjado com expedientes misteriosos; mas isto mesmo era qualidade
meritória e relevante no comensal. Rosnava-se de moeda
falsa; até alguém teve
a ousadia de repetir o boato corrente ao guarda-livros. Amaro Faial deu aos
ombros, sorrindo, e disse:
— A moeda falsa
é comércio como qualquer
outro, com vantagens em proporção
dos riscos. Negócio execrando só conheço um: é o da escravatura. Há também uns negócios que, depois de muitos
anos de estafa, não deixam nada: esses
chamam-se negócios tolos.
Assevero-lhes que a riqueza
do Sr. Pinto Monteiro não se fez
com a escravaria.
Estava lançado o dardo. Esta
franqueza deu margem a discussões, nas quais o cego e o Faial descobriram entre os contendores os menos escrupulosos. Volvidos
alguns dias, Pinto Monteiro
tinha vendido os
cinquenta contos de notas
para um brasileiro
da Maia e era
encarregado de agenciar cem contos para outros que o primeiro aliciara.
Nesta transação cobrara o cego
percentagem e pedira sociedade no quinto dos interesses, com a cláusula de dirigir no
império a circulação da moeda-papel. Pactuaram a
viagem para Julho daquele
ano. Pinto Monteiro convencionou acompanhá-los, a fim de liquidar o restante
dos seus haveres, dar impulso ao negócio
e vir depois descansar na Pátria.
Depois de uma demora
de dois meses, Pinto Monteiro
recebeu do Porto a infausta nova de que
a açoriana, cativa das negaças de um espanhol operador de catarata,
fugira com ele para a
Galiza. Bacorejou-lhe ao cego que
estava roubado, e o palpite funesto
realizou-se.
A quantia devia ser
valiosa, porque o traído
amante suspendeu as obras começadas e desfez contratos apalavrados
de compras. Ficou na memória dos contemporâneos a respeito da pérfida uma
palavra do cego, significativa da sua índole:
— Se o espanhol levasse a mulher
e me não levasse o dinheiro, penhorava-me
bastante. Como me tirou as cataratas do
coração, pagou-se pelas suas mãos o patife!
A opinião pública de Landim irritou-se quando soube que a fugitiva
era simplesmente manceba dó cego.
A moral exigia que ele fosse marido, para não se desvaliarem os quilates do escândalo.
***
No mês aprazado, Pinto Monteiro
regressou ao Rio de Janeiro, acompanhado da sua irmã D. Ana das Neves. Embarcaram no
Porto com ele os amigos e sócios granjeados no hotel. O
brasileiro da Maia, comprador
dos cinquenta contos, levava
algumas pipas de vinho verde, e uma destas vasilhas tinha sido fabricada conforme o modelo que dera o cego e
sob a fiscalização de Amaro Faial. No reverso das quatro aduelas do bojo pregaram um quadrado de madeira
com chanfradura onde
envasasse o rebordo
de um caixote de flandres;
a pregagem do quadrado ficava oculta debaixo de quatro dos arcos de ferro.
O caixote continha duzentos contos em notas
brasileiras e era estanhado nas
junturas, de modo que o liquido as não penetrasse, através de uma grossa capa de chumbo.
Chegados ao Rio, a
carregação entrou nos armazéns
da Alfândega, e Pinto Monteiro, com a sua família, hospedou-se em
casa de Fortunato de Brito. Ao apontar o
dia seguinte, os passageiros delatados pelo cego eram presos; a pipa despejada e desfeita; e o caixote das notas
conduzido ao tribunal para se lavrar auto.
Os quatro portugueses morreram no degredo, perdidos os haveres que já
tinham adquirido
honradamente. Pinto Monteiro
recebeu dez contos de réis, os 5% estipulados e deduzidos da presa.
O leitor vai descobrindo que eu
não estou escrevendo um romance. Consta-me que, no Rio, os homens que já o eram
há trinta anos recordam estes fatos com
algumas miudezas que não pude obter, nem já agora inventarei. Os meus apontamentos são exatíssimos
no sumário das excentricidades do cego;
mas escassos dos pormenores que
eu rigorosamente quisera não omitir.
Aqui me contam eles os amores da
morena filha de Landim com o chefe da polícia.
Este episódio poderia ser o esmalte do meu livrinho, se num chefe da polícia coubessem cenas de amor brasileiro,
mórbidas e sonolentas, como tão languidamente
as derrete o Sr. J.
d'Alencar. Em país
de tanto passarinho, tantíssimas
flores a recenderem cheiros
vários, cascatas e lagos,
um céu estrelado de bananas, uma linguagem a suspirar
mimices de sotaque, com isto, e com
uma rede
— ou duas, por
causa da moral
— a bamboarem-se
entre dois coqueiros, eu metia
nelas o chefe da polícia e a irmã do cego, um sabiá por cima, um papagaio de um lado, um sagui do
outro, e veriam que meigas moquenquices,
que arrulhar de rolas, eu não estilava desta pena de ferro! Mas eu não sei se
me acreditariam coisas tão peregrinas entre o virginal Fortunato, chefe
da polícia, e
ela, a Menina
Neves, que já havia
colhido as boninas de vinte e
nove primaveras nas florestas do seu Minho, onde a maroteira é pré-histórica!
Amores e desventuras de pior natureza
nos levam a outro incidente, e aí veremos que Pinto Monteiro fareja todos os
latíbulos em que se acoite algum crime e não
consente que a corrupção
do século XIX
ponha pé em ramo verde no novo mundo Certa carioca, esposa de
um João Tinoco, português, fizera assassinar com veneno o marido
por um escravo; mas com tal resguardo que o conjugicídio não escoou
dos muros da quinta
onde ela impunemente se dava às
delicias de Agripina. Isto de chamar Agripina à viúva de João Tinoco é excesso de erudição. Ela
não tinha ideia nenhuma
de ser posta em paralelo histórico com a envenenadora
de Cláudio; o que ela queria era que a
deixassem gostar as alegrias da viuvez de um marido que entrara em casa do
seu pai como aguadeiro e, exaltado a
esposo, a quisera
forçar a fidelidades incombináveis
com o clima,
desenvolvendo de mais a mais um excedente de calórico na esposa com o atrito
do murro português de lei.
Tinoco tivera
um caixeiro que expulsara quando
lhe descobriu capacidade para o adultério, segundo informações de um
marçano que vira piscarem-se reciprocamente os olhos direitos a sinhá e ao
caixeiro. Eis o fio que conduz o cego
até ao tálamo infamado, e daí à campa
do multo João Tinoco.
O assassinado tinha irmãos
abastados no Rio.
Pinto Monteiro revela-lhes que o seu mano
morrera de morte violenta
e, coberto de
lágrimas, não podendo mostrar os
intestinos dilacerados de Tinoco,
como Antônio a túnica de César, põe as mãos convulsas no ventre e exclama:
— Despedaçaram-lhe as entranhas
as agonias do arsénico! Etc.
Fez terror.
Rugem vingança os irmãos; o
cego dá vulto às dificuldades das provas judiciárias; franqueiam-lhe dinheiro sem conta
e um grande prémio, se a prova se fizer.
Vejam os profundos segredos do Céu! Os crimes
obscuros quase nunca é a lâmpada da
virtude que os descortina; são sempre os cerdos que foçam e tiram à tona dos lamaceiros as podridões submersas.
Pinto Monteiro fez surdir à
flor da terra
as podridões de Tinoco
e a toxicologia declarou que o homem morrera envenenado pela massa
de Frei Cosme. Não vá o leitor pensar que entra na novela um frade que
manipulava massas homicidas. Não,
senhor. A massa de
Frei Cosme é uma farinha saturada de arsênico.
A viúva não pôde defender-se, desde
que a negra confessou que envenenara o amo num timbal de borrachos, por ordem
da senhora. Degradaram por toda a vida
a ré convicta, privando-a
dos bens herdados do esposo.
Com a quinta preciosa foi
galardoada a benemérita
solicitude de Pinto Monteiro
— o vingador de Tinoco e da
Moral, que eu sempre escreverei com o M maior que eu puder.
Fortunato de Brito, o chefe da
polícia, foi demitido por este tempo. Antônio José Pinto Monteiro resolveu repatriar-se. A
denúncia dos moedeiros açulara-lhe
muitos e poderosos mastins.
A imprensa brasileira insultava
a colônia portuguesa pelo fato do
crime e pelo fato do delator.
A equidade foi estranha aos ódios e injúrias que golpearam Monteiro. Não
lhe descontaram na perfídia as vantagens
comerciais que derivaram dela. Cessara o pânico e o terror iminente de um cataclismo no crédito e
nas casas bancárias. A polícia, iluminada pelo cego,
sabia as veredas que em
Portugal conduziam aos balancés. A gente honesta, o comércio honrado,
rejubilavam com a traição de Pinto
Monteiro; mas, atidos
ao velho prolóquio onde não reluz faúlha de filosofia prática, execravam o homem que
levara às plagas do
degredo os salteadores da probidade incauta.
Esta vitima ainda não estava inscrita
no martirológio dos grandes lapidários da civilização.
***
Os meus informadores, que mais
privaram na intimidade de Pinto Monteiro, dizem que ele, no segundo regresso a Portugal, trouxera, além de secretário, dois filhos,
que deixara no Porto a
educar no Colégio da Lapa,
e uma filha ainda muito na flor da mocidade. Da mãe destes
meninos, que pouco há vivia ainda nos
arrabaldes do Rio de Janeiro,
não há nada romanesco; mas
bem pode ser que houvesse da
parte dela um profundo sentimento de dó com muitíssima abnegação de si mesma; e no coração
do cego com certeza houve extremoso amor
de pai. Os tigres sempre tem e os homens costumam ter às vezes este santo instinto de amarem os filhos.
Vinte e tantos contos perfaziam os
haveres de Pinto Monteiro. Concluiu as obras iniciadas, comprou terras e dirigiu pelo
tato as benfeitorias que fez no prédio
que habitava. Há duas horas que eu estive a reparar, por cima do muro do jardim, na graciosa vivenda que ele enchera
de luz como se um beijo do sol de
Agosto pudesse descondensar a álgida
escuridão do seus olhos.
Ali passaram alegres dias os seus
convivas sob os caramanchéis das parreiras. O grande prazer de Monteiro era dar banquetes
opíparos.
Ouvia ler as Artes
de Cozinha, conhecia Brillat-Savarin, enchia-se do fino sentimento dos guisados; e, apontando a
pituitária aos vapores das caçarolas, marcava
quando era sobejo o cravo ou escasso o colorau. Fazia pensar se a vista, voltando-se para o interior, penetrava
nos refegos membranáceos o ideal do
estômago! Se um cego
ilustre deplorava o perdido
paraíso, outro cego parecia tê-lo
encontrado na cozinha.
Ele, que na América pusera o
cautério à ladroagem, à falsificação das notas e ao
adultério agravado pelo
homicídio, não sabia como
amordaçar a maledicência dos
seus conterrâneos, senão ocupando-lhes as línguas no trabalho da deglutição. A cada injúria que lhe
chegava aos ouvidos, mandava comprar
dois leitões.
— Mano Antônio, dizem que tu
entregaste os ladrões ao chefe da polícia
— dizia a Menina Neves.
— Dizem? Pois, visto que não os
posso entregar a eles, compra um peru e dá-lho
amanhã com recheio.
— Mano Antônio, agora dizem que
denunciaste os da moeda falsa.
— Compra anhos e capões; atasca
essas línguas em pudim de batata,
embola-mos com almôndegas, deita-lhes
aziar de ovos em fio, afoga-lhes os escrúpulos
em vinho de 1815, menina.
E, depois, tinha outra paixão que
o deliciava: arranjar casamentos.
Florescem hoje em Landim alguns
casais de pessoas ditosas que ele ajoujou, vencendo estorvos à
custa de engenhosas intrigas
e até de liberalidades das suas
abatidas posses.
A filha de um
cabaneiro, que se criava
pela sua casa,
era o passatempo do cego.
Chamava-se a Narcisa
do «Bravo» —
alcunha paterna. Até aos treze anos andava vestida de rapaz e media-se com os mais
gaiatos a trepar à grimpa de um
pinheiro, no assalto noturno às cerejeiras, em duelos à pedrada, no jogo do pau e no murro. Era
virilmente bela e bem feita;
mas os meneios adquiridos nos trajos de rapaz desengraçavam-na vestida de mulher. Ela mesmo
olhava para si com zanga e puxava a repelões as saias esfrangalhando- se. Pinto
Monteiro dava tento destes frenesis, ria-se muito e contava-lhe casos de mulheres
portuguesas que batalharam
incógnitas, cobrindo os seios
com arnês de ferro.
Estava no plano do cego casá-la.
Narcisa dizia-lhe que não pensassem em tal, porque à primeira pirraça que o marido lhe
fizesse, favas contadas, esmurrava-lhe os
focinhos. Este programa não assustou Pinto Monteiro,
visto que os focinhos ameaçados
eram os do marido.
A rapariga foi pretendida extra
matrimonialmente por vários
devassos de Landim, Santo
Tirso e terras circunjacentes. A virago
tinha perrexil do que morde nas
línguas já embotadas; mas também tinha mãos nervudas e uns dedos
nodosos que se fechavam em forma de boxe, assim que os pimpões lhe cantavam desafinados.
Um destes era um forte lavrador de
Sequeirô, o Custódio da Carvalha.
Apaixonou-se com a
resistência e falou-lhe sério em casamento. Narcisa contou a
passagem ao cego, que batia as palmas com veemente júbilo, exclamando:
— Ó rapariga,
aproveita antes que o rapaz se
arrependa! Olha que ele colhe trinta danos e é um bonacheirão.. E que tal o achas de figura?
— Eu sei cá!. .
— Tu gostas dele ou não gostas?
— Como se nunca nos víssemos.
Então, não o conhecias há muito
tempo já?
— Nunca o vi mais gordo.
— Mas queres casar com ele ou
não?
— Tanto se me dá como se me deu;
mas o padrinho diga-lhe que, se se faz fino
comigo, eu pinto aí a manta, que ele não sabe de que freguesia é. Eu não ponho unhas em foicinha nem sachola, ouviu?
Não fui criada na lavoura. Se ele pega a
mandar-me sachar milho ou segar erva, temo-las armadas.
— Casa, que tu amansarás... — dizia o cego.
E casou.
Monteiro deu-lhe magnífico
enxoval, cordão, cabaças, anéis, broche; vestiu-se de fino pano; foi padrinho do casamento, banqueteou
os noivos com muitos convidados, chamou
a música de Paiva de Ruivães e queimou dez dúzias de bombas reais.
O marido sentiu as fascinações
que enchem de delicias o inferno dos corações escravos. Ela manietou-o sem violência de mau gênio,
com as suas caricias de gata que
desembainha as unhas brincando. Folia rija! Romagens, quantas havia no Minho: festanças com três clarinetes e
requinta todos os domingos na eira; a
Cana Verde e o Regadinho saltados pelas maiatas mais frandunas; bródios e vinho, festa fora. Comprou égua de marca,
vestiu-se de amazona, e ela aí ia com o
marido corcovado, sonâmbulo, a choutar na mula esparavonada atrás dela
por essas feiras e romarias. As vezes,
se os moleiros não despejavam depressa os caminhos atravancados com os seus
jumentos carregados de foles, verberara-os com o chicotinho e chamava-lhes
canalhas. Em questões com os vizinhos,
por causa de regras ou invasões de gado, fazia ameaças sanguinárias.
Carregava as espingardas do
marido e atirava aos gaios com pontaria infalível. Quando soube que as senhoras do Porto usavam
colete e gravata à laia de homens, exultou,
como quem vê triunfar
a sua ideia, e quis vestir
calções e botas à Frederica.
O lavrador, já no cairei do
abismo, vendidas as melhores propriedades, quis reagir. Viu que tinha pela frente um virago de
fibras. Afrouxou por medo e por
amor. O
pusilânime vergava ao
prestigio da força. Narcisa ofuscava-o com a rutilante beleza do Demónio,
disfarçado na lendária Dama Pé de Cabra e
noutras damas que o leitor conhece com pés chineses.
Dobados dez anos de vertiginosa
dissipação, o lavrador resvalou do idiotismo à sepultura amando ainda a mulher que vendera
um lençol para lhe comprar a última
galinha. E Narcisa, viúva aos vinte e oito anos e ainda formosa, atirou com a honra às goelas do dragão da miséria e
não chorou uma lágrima.
Havia uma amiga que lhe dizia
palavras dolorosas, com sincero dó: era a irmã do
cego. Pobre Neves!, quem te predissera o suplício dos teus
derradeiros anos, ligada ao
destino da mulher que tu criaras com maternal ternura!....
***
Entretanto, o padrinho
de Narcisa não escarmentava no
sestro de casamenteiro;
é certo porém que semelhantes casos assim funestos
não se repetiram nas suas operações
matrimoniais. Por esse tempo, casou ele a filha com diminuto dote e abriu a carreira do
sacerdócio para um filho, que outras vocações
depois afastaram da Igreja. Os seus teres, com judiciosa economia, seriam bastantes à decência aldeã; porém,
privar-se da mesa farta e franca era privar-se
de amigos que lhe festejassem as anedotas. Pinto Monteiro, no dia em que falisse de auditório, começaria a
morrer no abafador silêncio da célula penitenciária.
Empobrecia rapidamente:
mas dava a
perceber que a filosofia de Job é a última
moeda com que o homem
decaído compra a
resignação e a
glória eterna, par dessus le marché, dizia ele.
Amaro Faial, confidente dos
secretos desfalques do patrão, pensou em retirar- se para o
Brasil, visto que não tinha secretaria
para fiscalizar, nem desprendimento
tamanho que aceitasse outra vez o ofício de rapaz de cego.
É aqui o
lugar de repetir
literalmente uma acusação que
todos os meus informadores, sem discrepância, irrogam ao
cego de Landim.
Um lavrador da
Lamela, induzido por Pinto Monteiro, vendeu as
suas herdades por alguns contos
de réis, a fim de ir negociar no Brasil e centuplicar o seu dinheiro.
Saiu Monteiro com destino ao Rio,
levando na sua
companhia o lavrador. Passados dias, aparece em Landim o cego,
fingindo-se doentíssimo, e diz que o seu
companheiro embarcara e de retrocedera forçado pela moléstia. Ora, do lavrador
nunca mais houve
notícia; mas no Governo Civil de Lisboa
fora visado o passaporte de José
Pereira da Lamela e o mesmo nome inscrito na lista
de passageiros. Isto não
obstante, o cego era acusado de haver
matado em Lisboa o lavrador, não
podendo roubá-lo por
maneira mais suave; e
a certeza confirmou-se
quando parentes que o Lamela tinha no
Rio, perguntados a
tal respeito, responderam
que nunca viram tal homem, nem, depois
de chamado pela
imprensa de todas
as províncias, aparecera.
Asseveravam, porém, que um nome
semelhante se lia na lista de passageiros desembarcados no Rio, no mesmo
navio e mês em que de Portugal se informava
que ele partira.
Seria mais natural supor que José Pereira
morrera obscuramente nalguma roça; mas à calúnia pareceu mais
romântico decidir que o cego o matara. —
Como presumem os senhores que o cego
matasse o lavrador? — perguntei.
— Não sabemos; o mais provável é
que o atirasse ao rio quando o bote ia para
bordo da galera.
Esta era e é a opinião corrente.
Pelos modos, o cego, em pleno sol do Tejo, na presença
dos barqueiros, alijou o passageiro ao no e fez remar
para terra o bote
com a bagagem do morto;
depois, saltou no Cais das
Colunas com a mala do dinheiro debaixo
do braço e às apalpadelas lá se foi pacificamente a caminho de Landim.
Corre parelhas em maldade e
estupidez esta aleivosia, é certo; mas o lavrador, de feito, fora assassinado em Lisboa.
Agora, posto que
tardia, aí vem a
reabilitação de Antônio José Pinto Monteiro.
Quem induzira o
lavrador da Lamela a
vender as terras foi Amaro Faial,
oferecendo-lhe sociedade em negócio que
rendia 200%. O Pereira da Lamela era
calaceiro. O trabalho agrícola pesava-lhe: as suas terras, avaliadas em cinco contos,
rendiam escassamente o passadio
grosseiro do lavrador minhoto. Calculou, firmado na prova matemática das
cifras de Amaro, que, ao fim de cinco
anos, devia ter cinco contos dez vezes multiplicados. É claro: 200% — 5 vezes
10 — 50 contos.
Vendeu as terras e partiu com o ex-secretário do cego. Pinto Monteiro, sinceramente afeiçoado
ao seu confidente de vinte anos de vária
fortuna, acompanhou-o até ao Porto e dali voltou para Landim algum tanto enfermo,
e às pessoas que lhe
perguntavam pelo Pereira da
Lamela respondia naturalmente que tinha embarcado.
Dava-lhe, porém, que pensar não estar o nome de Amaro Faial, na lista dos
passageiros.
O leitor já descobriu que o
assassino do lavrador foi Amaro; que o passaporte do
morto serviu para o matador: mas ignora
os pormenores do crime, e eu também
os não sei.
Passados anos, um correspondente
de gazeta escrevera o essencial da calúnia que
assacava o homicídio ao
cego. O
delegado de Vila Nova de
Famalicão, Soares de
Azevedo, e advogado de Pinto Monteiro em diversas demandas, aconselhou-o que justificasse a sua inocência
neste crime que lhe imputavam, porque
deixá-lo à calúnia e
à revelia era
arriscar-se a perder todos
os seus pleitos. O cego, com a
lúcida intuição de quem tinha longa prática de crimes tenebrosos, explicou a morte do lavrador,
comprovando-a pelas circunstâncias do
passaporte, peia omissão do nome do homicida na lista dos desembarcados no Rio e pela certeza que lhe deram de Amaro
Faial ter morrido poucos dias depois que
chegara, no hospital, com o roubo ainda intacto, segundo vira na notícia
dos espólios dos falecidos.
Replicou-lhe o delegado que
semelhante justificação era
insuficiente: o cego redarguiu que não tinha outra, nem essa mesma
daria, se Amaro Faial
fosse vivo, porque no seu braço se amparara vinte anos,
vinte anos vira pelos olhos dele e mal remunerado o despedira, sem que o seu guarda-livros murmurasse da
mesquinhez da paga.
***
Em 1858, o cego, escasso de
posses, escorregava na ladeira da pobreza. Havia vendido ou hipotecado as terras. Perdera
demandas valiosas: parece que em quase
todas influiu a sua
má nota a
desculpar a injustiça. Duas
quintas lhe foram extorquidas com
tão estranho desaforo que é mister aceitar-se intervenção de jurisprudência divina para que
o homem as perdesse, pois é de crer que
as adquirisse com dinheiro desonrado.
Dizia ele que viera
encontrar em Portugal
espécies de ladrões fleumáticos e
frios, que não topara nos, climas
quentes; e que o larápio luso-brasileiro era francamente analfabeto e lerdo, ao passo que o
ladrão. estreme e puramente luso, era,
por via de regra, além de perverso, bacharel formado. Aludia a dois adversários jurisconsultos que eu escondo à
curiosidade do leitor, porque me sustém
o pulso um quase religioso respeito à
memória honesta de Paiva e Pona, e também de Pegas.
Com as últimas moedas, abriu
Pinto Monteiro um botequim em Famalicão, faz
hoje dezassete anos. A vila, nesse tempo,
estava na apojadura
das suas prosperidades.
Choviam ali brasileiros que nem
maná nos areais da Mesopotâmia. Dos pauis alagadiços irrompiam casas de azulejos
variegados. Vila Nova era o centro da locomoção
do Minho, da mercancia agrícola,
da vilegiatura dos
Portuenses; mas não tinha o café
— a prova real da civilização.
Pinto Monteiro contava com as leis do progresso; porém,
Vila Nova, que hoje, na extrema
decadência, tem três cafés com dois limões sorvados e três garrafas de licor de canela,
em tempos florentíssimos não sustentou o botequim do cego, em que havia
conhaque, curaçau, chartreuse, kermann
e absinto. É porque, há
dezassete anos, o
progresso material
desconhecia a precisão dos cafés, paragens de uns ociosos que se
putrificam, raça amolentada
no sibaritismo da cerveja
de quartola, com grandes orgias de cigarros
de Xabregas.
O cego apenas vendia algum capilé
aos vigários encatarroados e orchatas aos adiposos. A ruína ia consumar-se, e o botequim
fechar-se, quando chegou à vila e se
hospedou no hotel um
brasileiro doente vindo do Rio
com a
sua esposa. Pinto Monteiro
conhecia de nome o enfermo.
Visitou-o e acompanhou-o nos
desalentos da caquexia, animando-o ou distraindo-o com a
sua variada e jovial conversação. Alvino
Azevedo afeiçoou-se-lhe a ponto
de, chegado ao termo dos sofrimentos; lhe confiar a sua mulher, pedindo-lhe que
a protegesse e guiasse na administração dos seus haveres. A esposa do enfermo estava um pouco
distante da idade em que as viúvas correm
perigo se as não vigiam: tinha setenta
anos feitos e já
não conservava toda a
frescura das suas dezoito
primaveras, nem os dentes completos. Os dons do espírito não era
transcendentes nem talvez bastantes para
seduzirem outro marido: D. Joana Tecla era idiota.
O caquético expirou nos braços do
cego, despedindo-se da esposa com uma olhadela
cheia de saudades e talvez de esperanças no paraíso de Mafoma, em que as
mulheres velhas remoçam. Ela
chorou copiosamente e declarou que aquele morto era o terceiro marido que lhe
fugia para o Céu. Eles tinham tido razão
em fugir todos.
D. Tecla passou para
casa do cego, com todo o
resguardo da sua pudicícia,
acompanhada pela mana Neves.
Passados os três dias de nojo,
perguntou-lhe Pinto Monteiro se queria voltar ao
Brasil, a sua
pátria, ou ficar
em Portugal, recebendo os
rendimentos dos seus
prédios no Rio. A viúva
respondeu que a sua
posição era muito melindrosa; que uma
senhora não podia
ir sozinha para tão longe; que o mundo estava
cheio de homens malcriados
que mediam tudo pela
mesma rasa; que não queria
sujeitar-se a algum desaguisado por essas terras de Cristo; que,
enfim, não ia para o Brasil sem ter família muito
honesta com quem fosse, — Mas
então, a
minha senhora — redarguiu o cego —,
quer, entretanto que não vai,
viver sozinha em Vila Nova, ou dá-nos o prazer da sua companhia? o seu defunto esposo encarregou-me
da dirigir; eu, porém, o que farei é
conformar-me com a vontade da senhora, que já tem suficiente idade para saber o que lhe convém.
— Não sei
nada do mundo —
acudiu Tecla. — Estou muito verde. O senhor
é que há de guiar-me.
— Deus lhe dê melhor guia do que um cego, a
minha senhora;.. mas aí tem a minha mana, que lhe será companheira e
irmã.
No dia seguinte, Monteiro fechou
o botequim com um sorriso sarcástico e o ar solene e vingativo de quem fechava a porta
que franqueara à civilização de Vila
Nova.
Ele vociferou que os habitantes de Famalicão eram indignos do café,
deu volta à chave e foi caminho
de Landim com a hóspede e a irmã.
***
Os dois prédios que a
viúva possuía na Rua da
Quitanda valiam quarenta contos
de réis fracos; as suas joias, dádivas de três maridos, eram muitas e nem todas de pedras falsas. A idade da viúva
animava um quarto marido, na hipótese de
caber a esse quarto em vez de a ver fugir para o Céu a ela. O certo é que andavam já dois empregados de
Fazenda e outros tantos da Administração
a espiarem a oportunidade
de lhe seduzirem a inexperiência, quando a viram ir empertigada numas andilhas,
caminho de Landim, a choutar e a rir-se
dos solavancos do macho.
Os pretendentes pegaram de gritar
contra o cego, assacando-lhe o rapto e a coação da viúva. O juiz de direito viu-se
obrigado a deferir ao requerimento de
um curioso que pedia uma
visita domiciliária ao cárcere privado de D. Joana
Tecla Alves.
Efetivamente, a hóspede de Pinto
Monteiro foi interrogada, em presença de
testemunhas, se estava naquela casa pela
sua livre vontade, não coagida nem seduzida.
Respondeu que estava muito
contente e que podia estar onde quisesse.
O juiz concordou.
Algumas cartas amorosas em
papel perfumado lhe enviou o mais
galã dos funcionários
de Famalicão. Joana Tecla
relia as cartas com secretas delicias; mas,
no exterior, fingiu-se de uma isenção
que faria envergonhar Artemisa, viúva
de Mausolo, e as combustíveis viúvas de Malabar. Perguntava
à sua amiga Neves quem era o tolo
que lhe escrevia; e, rindo com a garridice arisca dos dezesseis anos, dizia
que seria grande pagode mangar com ele, respondendo-lhe às cartas.
A mana do cego segredava ao
irmão:
— Olha que a velha é tola, mano Antônio;
trata de cortar os voadouros à cegonha;
senão, hás de vê-la voar aos braços do quarto marido.
— O quarto marido hei de ser eu!
— disse o cego com uma visagem de mártir
voluntário. — Hei de ser eu o quarto marido — repetiu ele, tragando um copo
de rum para ganhar alma
—, porque, a ter
de entrar nesta casa o
espectro da miséria, é melhor que entre
Joana Tecla. Não me lembra como se chamava um
cego que dava graças a Deus
porque não podia ver um certo tirano;
eu também as dou, porque não posso ver a minha noiva. — E enchia o copo esvaziado, mascava o charuto e fazia com
as duas pernas um curso de geometria. —
Sacrifico-me a ti e aos meus filhos. Vou ser o bode expiatório das minhas e as vossas prodigalidades; mas
levo a certeza de que ela ao menos me
será esposa fiel
— o que é raro antes dos setenta
anos. O seu terceiro defunto disse-me que Tecla era uma paz de
alma, bruta, sim, mas boa. Enfim, mana,
sonda-ma; vê se lhe achas vontade de casar quarta vez.
— Tomara ela! — acudiu a irmã. —
Está sempre a dizer: «Isto de mulher sem
homem é como peixe fora de água.» Põe papelotes todas as noites e faz caracóis
quando se ergue. Que quer isto dizer? Queres que
eu lhe toque no casamento contigo?
Toca; que eu começo hoje a fazer-lhe
a corte.
Na tarde desse dia, passeava
Monteiro, debaixo da parreira
do seu quintal, pelo braço
da viúva. As calhandras e os pintassilgos trilavam
os seus requebros às margens
do rio Pele. As rãs coaxavam nas poças e as auras ciciavam na
ramaria dos álamos. Era
uma tarde de tirar amores do olho
de uma couve lombarda.
Passeavam silenciosos, quando ao
longe, no pinhal do mosteiro, cantou um cuco.
— Olhe o cuquinho a cantar! —
disse ela com meiguice.
— Gosta de ouvir o cuco, Sra. D.
Tecla? — perguntou o cego.
— Eu gosto de toda a
passarinhada — respondeu ela
com as denguices infantis da Lili
de Goethe.
— O cuco é pássaro de mau agouro!
— disse ele. — Eu, com medo de tal ave,
não quis casar.
Tecla riu-se descompassadamente, provando que conhecia a
linguagem simbólica da ve agoureira. E o cego, nesta entreaberta de
galhofa, beliscou- lhe a polpa do braço esquerdo.
— Ai! — exclamou ela. — Isto que
foi?!
— Não se ria assim das fraquezas
do próximo, Joaninha! —respondeu o cego,
dando ao beliscão o ar inocente de um gracejo familiar. — Eu não quis casar nunca porque o meu coração
nunca sentiu ao
perto nem ao longe a mulher digna
dele. Cheguei aos cinquenta e dois
anos, pode-se dizer, sem ouvir
a este coração as
palpitações que estou agora
ouvindo. E a
primeira vez. . — e
estreitava-lhe o braço contra o lado esquerdo com umas pressões trêmulas
—, e a primeira vez que amo;
porque é esta a
primeira vez que encontro a
mulher, a esposa
digna da minha ternura. Que me responde, Tecla? Não me
responde, prenda adorada? —
instava ele, sacudindo-lhe
a mão com transporte.
A viúva inclinou a
face para o seio,
deixou-se apertar com o indolente
abandono das suas faculdades sensitivas,
esteve impando como quem suspira a custo
e murmurou:
— Devagar se vai ao longe, Sr.
Monteiro.
***
Aquilo foi depressa. O fervor recíproco dos noivos
e o preceito do poeta pagão que manda não adiar os prazeres abreviaram quanto possível
a identificação das duas almas. O
reitor, que os recebeu, era um padre bom a jovial que está a estes noivos disse o que
dizia a todos: «Eu espero o vosso primeiro
filho daqui a nove meses.» A noiva entreabriu à flor dos beiços um hipotético
sorriso de pudor; o cego,
porém, ferido na
infecundidade da esposa, disse,
carregando o rosto:
— Neste ato, Sr. Reitor, são
impróprias as chalaças.
O padre, querendo emendar
eruditamente a inadvertência, respondeu:
— As Santas Escrituras falam de
Sara. .
— Eu não sou Abraão — replicou o
cego, voltando-lhe as costas.
Reverdeceram os contentamentos da
mesa lauta e
das intimas palestras ao fogão.
D. Tecla Monteiro confessava que
nunca tão felizes lhe derivaram os dias da existência.
O
cego sentia-se docemente ameigado e bem,
com o rosto no regaço da esposa.
Saboreava os
santos aconchegos da
companheira canônica. Revendia-lhe
o ninho dos seus
amores lícitos um
patriarquismo anterior ao sacramento do matrimônio, é verdade, mas puro como os
conúbios de Jacob e Lia, de Rute e Bom.
Ela não o idolatrava como maior frenesi, mas aquecia-lhe no Inverno os lençóis com botijas e de manha levava-lhe
uma chávena de sagu,
que pessoalmente cozinhava com todos os
primores de uma vocação especial para os mingaus.
Na venda das propriedades
liquidara Monteiro menos do seu valor; mas ainda assim não desceu de vinte contos de réis o
dote da esposa. Parte deste capital empregou-o numa quinta
no Alto Douro, outra pane
na reincidência de pleitos que havia
perdido e o restante nas opulências da mesa e
nas liberalidades com os
renovados amigos. Do mesmo passo que a opinião pública
encarecia a velhacaria
do cego, formava-se uma confederação
de sujeitos que lhe exploravam a
perdulária generosidade. Emprestava facilmente dinheiro e não negava esmola, nem se
desculpava com a falta de cobres. «Tal desculpa
seria boa», disse ele, «se os mendigos se ofendessem com as pratas.» E também dizia: «Ninguém da esmolas mais às
escondidas do que eu, porque nem vejo as
pessoas a quem as dou!» Triste gracejo proferido por um cego.
Pinto Monteiro, que tanto
refinara em astúcias,
no último quartel da vida deixava-se
enganar por qualquer velhaco montezinho.
A quinta do Alto Douro,
comprada por seis contos
de réis, foi uma
venda fraudulenta: a propriedade estava hipotecada
à Fazenda Nacional e o vendedor, apresentando títulos falsos, recebeu o
dinheiro no Porto e fugiu. Os convivas do
cego rejubilavam a cada arremesso novo que a desfortuna lhe dava para a pobreza e as pessoas contemplativas observavam
às incrédulas que o enorme delinquente
estava sofrendo retaliações providenciais. É de crer que sim.
Lance admirável! Pinto Monteiro
mantinha serenidade socrática e impertérrita a cada lançada que lhe resvalava na rodela da
filosofia. Se a irmã ou a esposa choravam,
e ele dava tento disso, dizia-lhes: «É uma vergonha chorar quando a vida é tão curta! As dores são um sonho mau
de que se acorda na sepultura.»
Ao sentir desfibrar-se-lhe a corda
tenaz da paciência, digna
de um cristão, emborcava
garrafas de genebra e fumava
sempre até cair marasmado pelo álcool
e pela nicotina; mas, se antes da prostração se exaltava em desvarios de ébrio,
as frases refloresciam os raptos de eloquência que aos vinte
e cinco anos o arrebatavam nos
clubes fluminenses. Nestas ocasiões, projetava ir ao Parlamento, e ensaiava discursos tão bonitos
que pareciam ser decorados no Diário das Câmaras. As vezes pedia à mulher
e à irmã que lhe fizessem «apares»
para o picarem. A boa D. Tecla dava-lhe
para se rir, ou pedia-lhe amorosamente que se deitasse — pedido que a
gente não pode fazer a todos os oradores
parlamentares.
Nestas intermitências, quase
sempre risonhas, se passavam os dias e boa parte das
noites naquela murmurosa casa de
Landim. D. Tecla
desmentira os vaticínios que
a deploravam, esbulhada do dote e abandonada à
piedade do Asilo das Velhas do Camarão.
Não teve uma hora de tristeza
esta senhora; nem sequer ligeira borrasca de ciúme, em sete
anos de casada, lhe nublou as suas
alegrias de esposa leal. As setenta e seis primaveras seguiu-se um inverno rigoroso
de catarrais e gota, com
perturbações no aparelho digestivo, timpanites e cólicas flatulentas. A morte
arrebatou-a em Dezembro de 1861 dos braços do marido, que, pela primeira vez na
sua vida, chorou.
***
Sete anos de glacial solidão
gearam sobre a alma de Pinto Monteiro. As portas da sua casa raro se abriam. Concordemente se
disse que o cego estava pobre pela
terceira vez. Era verdade: estava pobre — vendia o restante das joias da mulher.
As vezes entrava
naquela casa a
Narcisa do Bravo, sentava-se
à mesa
ainda abundante do padrinho e matava
a fome. A irmã
do cego debulhava-se em choro
a confrontar aquela desgraçada
de rosto empolado com esfoliações rubras à formosa noiva de Custódio da
Carvalha, à gentil amazona por amor de quem alguns fidalgos de Guimarães
terçaram as suas badines de cauchu na romaria
de S. Torcato.
Sobre todas as famas repelentes,
ganhara Narcisa, com legitimo direito, a de ladra, e ladra à mão armada. Os mais queixosos
eram os que lhe colheram as flores já outoniças
da beleza e a rejeitaram com a brutalidade do tédio. Narcisa saía-lhes
de rosto nas concavidades das congostas escuras e
abocava-lhes à cara
uma pistola de dois
canos: e eles, com um
fingido sorriso de piedade desprezadora, atiravam-lhe a forçada esmola.
Outras vezes, escalava as janelas das
alcovas conhecidas e entrouxava os bragais
como se inventariasse o espólio de um esposo falecido. E temiam-na
como para um celerado disposto a vender
cara a vida, porque ela deixava entrever a coronha da pistola entre os atacadores
do colete escarlate e, se
sofraldava as saias, quando saltava as poldras
dos ribeiros, mostrava a faca
de ponta atravessada
na liga. Os regedores
das freguesias que ela frequentava tinham ordem
da capturarem; mas o medo,
predicado pacifico destes magistrados, era a ressalva de Narcisa.
O cego de Landim não ignorava a
desastrosa saída da sua afilhada; conselhos, naquela
extremidade, eram perdidos; censuras,
a si próprio as fazia o cego porque encetara a perdição daquela rapariga,
tirando-a da arribana do seu pai, para a criar nas regalias da abundância, sem
vislumbres de religião, em plena liberdade
de se viciar com as travessuras e gaiatices
que lhe festejavam. Narcisa
era talvez uma das polés
que torturaram o cego nas
impenetráveis agonias dos seus últimos
seis anos.
Contava um rapazinho, criado de
Pinto Monteiro, que ouvira, uma vez, a sua ama dizer a Narcisa que ia mandar vender dois
cobertores porque não havia dinheiro em
casa; e que Narcisa lhe dissera que não vendesse os cobertores, porque ela
ia vender a sua
pistola por meia moeda.
Não tenho outro lance generoso que possa referir de Narcisa do
Bravo.
Quando este caso passou, entrava
Antônio José Pinto Monteiro
nos paroxismos da morte. A 28 de
Novembro de 1868, pelas dez horas da manhã, disse
à irmã que lhe
acendesse um cigarro e abrisse as
janelas, que sentia grande calor e ânsia. Sentou-se no leito e
inspirou consoladoramente a coluna de ar
frigidíssimo que lhe bateu no rosto,
ao abrir da janela.
Pediu uma chávena de café,
e, enquanto a irmã o fazia,
Narcisa veio para a
beira do padrinho.
— Quem é? — perguntou o cego.
— Sou eu, padrinho. Está melhor?
— Vou estar melhor,
filha. Isto vai acabar.
Quando eu morrer, faz companhia
à minha pobre irmã.:.
Narcisa chorava, beijando a mão
do cego, que se estorcia nas, dores da cistite. Ao cair da noite, a prostração, a febre, os
soluços e o frio das extremidades diagnosticavam
a gangrena. No 1º de Dezembro, o cego de Landim expirou reclinado ao seio de Narcisa, que se sentara no leito para o
amparar nos derradeiros arrancos.
As suas últimas palavras, no
delírio que precedeu a
morte, encerram toda a moralidade
desta biografia:
— Eu tinha três filhos que criei
com tanto amor... Que é deles?...
E mais nada.
Os três filhos do cego de Landim afrontar-se-iam com
o nome do seu pai? Para ter um
peito amigo que o amparasse
na agonia, foi mister que a sociedade remessasse para
dentro da alcova
do moribundo uma mulher perdida. Mas, lá ao longe, no Brasil, houve
lágrimas saudosas, no coração de uma
filha. Pois quando é que Deus consentiu que uma filha as não chorasse.. num
epitáfio?
***
CONCLUSÃO
No cemitério de Landim está uma
sepultura com este letreiro:
AQUI JAZ ANTÔNIO JOSÉ PINTO
MONTEIRO
NASCEU A 11 DE DEZEMBRO DE 1808
FALECEU A 1 DE DEZEMBRO DE 1868
TRIBUTO DE GRATIDÃO DE ETERNA
SAUDADE QUE LHE DEDICA a sua INCONSOLÁVEL FILHA GUILHERMINA
Ana das Neves ideara uma
perspetiva de felicidades:
viver os restantes anos em
recatada pobreza, morrer
mais desamparada que o
irmão e ser levada como quem remove um
entulho ali para aquela
sepultura onde se pulverizavam
os ossos execrados do cego.
Estas felicidades não as goza
quem quer.
Um dia, a justiça, perseguindo
Narcisa pelo roubo de uma coberta de felpo, soube que a Neves a mandara vender. A ordem de
captura envolveu-a como recetadora de
roubos. Invadiram-lhe judicialmente a casa e encontraram, para maior
prova do crime,
um açafate de maçãs
camoesas, dois calondros
e algumas batatas que Narcisa
recolhera, de colheita aliás suspeitosa, nas lojas da casa da sua protetora. A
irmã do cego foi capturada e, sem fiança, encarcerada na
lôbrega enxovia de Famalicão.
Dias depois, davam-lhe a
companhia de Narcisa, que se entregara à
prisão, arrojando a pistola, quando lhe disseram que a Neves estava presa. O juiz
misericordioso condenou-as a oito meses de prisão,
dado que os jurados as
sobrecarregassem de crimes beneméritos
de degredo perpétuo.
Cumprida a sentença, D. Ana das
Neves Miquelina Monteiro vendeu a casa que
o irmão comprara em nome dela. Com o produto dessa venda transferiu-se, em
1872, ao Brasil, e levou consigo Narcisa na Bravo. Parece que não tinha outros amores neste mundo e desejava expirar,
como o seu irmão, nos braços dela.
E visto que
não estamos dispostos a deixá-la
morrer nos nossos
braços, ó leitor, parece-me caridosa coisa que a não
fulminemos com a nossa honrada raiva. Sou de
opinião que sejamos inexoravelmente
severos com os desgraçados e com
as desgraçadas, quando
eles e elas repelirem a felicidade que nós lhes oferecermos.
S. Miguel de Seide, Julho de
1876.
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Nota:
Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)
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