domingo, 1 de setembro de 2013

Camilo Castelo Branco: "O Cego de Landim"

O CEGO DE LANDIM
  
Foi há treze anos, numa tarde calmosa de Agosto, neste mesmo escritório, e  naquele canapé,  que o cego de Landim esteve  sentado.  São inolvidáveis as  feições do homem. Tinha cinquenta e cinco anos, rijos como raros homens de  vida contrariada se gabam aos quarenta. Ressumbrava-lhe no rosto anafado a  paz e a saúde da consciência. Tinha as espáduas largas; cabia-lhe muito ar no  peito;  coração e pulmões  aviventavam-se  na  amplidão da  pleura elástica.  Envidraçava as pupilas alvacentas com vidros esfumados, postos em grandes  aros de ouro. Trajava de preto, a sobrecasaca abotoada, a calça justa e a bota  lustrosa; apertava na mão esquerda as luvas amarrotadas e apoiava a direita no  castão de prata de uma bengala.

Eu não o conhecia quando me deram um bilhete-de-visita com este nome:

ANTÔNIO JOSÉ PINTO MONTEIRO.

Em S. Miguel de Seide, uma visita que se fizesse preceder do seu cartão era a  primeira.

— Quem é? — perguntei ao criado.

— É o cego de Landim.

— E esse cego quem é?

O interrogado, para me esclarecer superabundantemente, respondeu que era o  CEGO,  como se se  tratasse de um  cego por excelência  e de histórica  publicidade:

Tobias, Homero, Milton, etc.

Mandei que o conduzissem  ao meu escritório.  Ouvi passos  que subiam  rápidos  e  seguros uns  doze  degraus;  e,  no patamar  da  escada,  esta pergunta  muito sacudida:

— À esquerda ou à direita?

— À esquerda — respondi, e fui recebê-lo à entrada.

Estendeu-me firme dois dedos e desfechou-me logo, em estilo de presidente  de  câmara  municipal  sertaneja  às pessoas reais,  uma  alocução  à minha  imortalidade de romancista, lamentando que eu ainda não tivesse em Portugal uma estátua..  equestre; parece-me que ele não disse estátua equestre. Achei-lhe razão. Eu também já tinha lamentado aquilo mesmo; porém, cumpria-me rejeitar modestamente  a  estátua,  como  o  duque de Coimbra,  agradecendo a virginal lembrança do Sr. Pinto Monteiro.

— Tenho ouvido ler os seus livros imortais — disse ele. — Não os leio porque sou cego.

— Completamente?  —  perguntei,  parecendo-me impossível  a  cegueira  absoluta com a segurança da sua agilidade nos movimentos.

— Completamente cego,  há  trinta  e três  anos.  Na flor  da  idade,  quando  saudava as flores da minha vigésima segunda primavera. ceguei.

— E resignou-se...

— Se me resignei!..  Morri de dor e ressuscitei em trevas eternas... O sol,  nunca mais!

Pungia-me a compaixão. Disse-lhe consolações banais; citei os mais luminosos  cegos antigos e recentes. Nomeei-lhe o príncipe da lira peninsular, Castilho, e   ele atalhou:

— Castilho tem o gênio que vê as coisas da Terra e do Céu. Eu tenho as  duas cegueiras do corpo e da alma.

Achei-o eloquentemente sóbrio e ático; figurou-se-me até literato dos bons.  

Lembrei-me se ele vinha convidar-me para fundarmos um jornal em Landim,  ou se  viria  pedir-me para  o propor sócio correspondente da  Academia  Real   das Ciências.

Discreteámos de parte a parte em variados assuntos, até que ele explicou as  suas pretensões. Tinha um litígio pendente sobre a posse disputada de umas  azenhas que lhe tinham custado três contos de réis, e pedia a minha  valiosa  preponderância  a  fim  de que  os  juízes  de  2ª instância  lhe fizessem justiça  inteira.

Observei-lhe  que  a minha influencia  poderia  ser-lhe  necessária  se  a  justiça  estivesse da parte do seu contendor; porquanto, quem não tem justiça é que  pede.

— Apoiado! — interrompeu ele. — A razão diz isso; mas acontece que o meu contendor pede porque não tem justiça; ora não vão os juízes pensar que  eu tenho mais confiança na lei do que neles...

Pareceu-me sagaz, argucioso e um pouco germânico o cego. Deu-me quatro  memoriais,  acendeu o terceiro  charuto  e  ergueu-se.  Acompanhei-o até ao  portão e vi-o cavalgar com garbo quase marialva uma vistosa égua, passar as  rédeas falsas pelas outras com destreza, esporear e partir sozinho.  

Ora  o cego  perdeu  a  demanda  das azenhas porque as azenhas não eram  perfeitamente dele, t eu não podia pedir aos desembargadores que as tirassem  ao dono e mas dessem a mim para eu as dar ao cego.

Nunca mais o vi. Retirou-me a sua admiração e mais a estátua. E, cinco anos  depois, morreu.

A história dos homens descomunais deve começar a escrever-se a lâmpada do  seu túmulo.  À luz da  vida  tudo são miragens  nas ações  dos  heróis e  estrabismos na contemplação dos panegiristas. E tempo de bosquejar o perfil  deste homem esquecido, e quem quiser que o tire a vulto em mármore mais  persistente. Pretendo desmentir os aleivosos que reputam Portugal um alfobre  de líricos, romancistas salobros  de  amorios  de  aldeia,  porque  não temos  personagens  bastantemente  suculentos  de quem se  espremam  romances em  quatro volumes.

***

Nascera em Landim em 11 de Dezembro de 1808.

1808! Os biógrafos portugueses, se escrevem de pessoa nascida naquela data  ou por perto, relatam-nos derramadamente a Revolução Francesa a começar  em Luís  XVI,  exibem  a  Guerra  Peninsular,  e concluem o curso  de História  Moderna ligando  fatidicamente à  evolução social o nascimento daquele  sujeito.

No ano de 1808,  uma  das muitas pessoas  que nasceram sem pesarem um  escrópulo, pelo peso velho, na balança dos lusos destinos, foi aquele Antônio  José Pinto Monteiro.  

O seu pai barbeava em Landim com ferocidade impune. A espada de Afonso  Henriques  e as navalhas  dele têm tradições  sanguinárias. Ainda hoje,  transcorridos setenta anos, os netos dos seus fregueses parece que herdaram a  sensação dos gilvazes dos avós. Em Landim fala-se dele como de Torquemada  em Valhadolid. Aquele barbeiro é uma lenda como a de Gerião, assassinado  por Hércules, e a do monstro de Rodes, cantado por Schiler.   
Antônio,  o primogênito  deste esfolador,  estudou primeiras letras com rara  esperteza.  Aos onze  anos  era  prodígio  em tabuada  e  bastardinho. Aos doze  imitava  firmas com perfeição despremiada  e vingava-se  do menospreço em  que Estado o esquecia, estabelecendo correspondência entre pessoas que não  se  correspondiam,  mediante as quais,  uma  vez  por outra,  agenciava  alguns  pintos.

Como talentos tais não se atabafam muito tempo debaixo do alqueire, o rapaz  sofreu algumas contusões.  Um monge beneditino de Santo Tirso  compadeceu-se  do  jovem,  em tão verdes anos perdido,  à  conta  da  sua  habilidade funesta: pagou-lhe passagem para o Brasil, porque sabia que os ares  de Santa Cruz são como os do Éden para refazer inocentes.   
Empregou-se como caixeiro no Rio. Foi estimado nos primeiros três anos.

Estremava-se  dos  seus  broncos patrícios  no dom da  palavra,  nas lérias aos  fregueses,  nos  ardis lícitos  do balcão,  nas ladroíces  consuetudinárias  que  afirmam a  vocação  pronunciada,  as quais, no  calão da  ótica  mercantil,  se  chamam «lume no olho». Nas horas feriadas, lia aplicadamente e tangia violão. A sua especialidade literária era a eloquência tribunícia. Estudara francês para  ler Mirabeau  e  Danton.  Enchera-se  deles  e  ensaiava  repúblicas federalistas  com os caixeiros,  pedindo cabeças de reis  para  uns  pobres  parvajolas que  suspiravam apenas por cabeças de gorazes.

Os patrões não farejaram um  acabado Robespierre no caixeiro;  mas,  como  desconhecessem a  vantagem da  apoteose dos  girondinos  numa  loja  de  molhados, expulsaram-no como republicano.

Pinto Monteiro  intrometeu-se  na  política  brasileira,  iniciou-se  na  maçonaria  em  1830,  fez discursos  vermelhos contra o  imperador  e escreveu  clandestinamente.  Esteve  assim na  caraira  do pais prometido aos eternos  Paturots.  É indeterminável  o estádio  que ele ganharia  se  um  militar  imperialista  lhe  não cortasse o rosto com  um  látego.  Uma  das tagantadas  contundiu-lhe os olhos. Pinto Monteiro cegou.

***

Reagiu ao desastre  com peito de  ferro. Menos rija alma  engolfara-se na  espessura da sua treva. Ele não. Pediu ao Inferno luz emprestada para entrar  na vereda das suas vitimas. Acendeu interiormente, no cárcere do seu espírito,  a lâmpada do ódio. A vingança levá-lo-ia pela mão, como Malvina ao cego de  Macpherson.  Perdoa-me a  comparação,  ó bardo caledônio!  —  que eu já  vi  Marat comparado a Jesus Cristo.

Quando lhe  deram alta na  barra  da  enfermaria,  pediu  o seu violão,  saiu às  praças,  preludiou e cantou umas trovas com arpejo triste,  às portas dos  argentários e dos taberneiros. As trovas faziam saudades da Pátria e a música  gemia as toadas dos lunduns do Minho. Os ouvintes contemplavam-no com  dó e davam-lhe esmolas avultadas para regressar a Portugal, ao ninho o seu.  Tinha ele um  rapaz: era português-ilhéu, alguns anos mais novo. Levara-o a   doença,  a  podridão do vício,  à  mesma  enfermaria; e a  penúria e o instinto  vincularam-no ao cego. Chamava-se Amaro Faial; mas os que lhe conheciam  as prendas  corrompiam-lhe  o apelido e chamavam-lhe o  Amaro  Falante.  Pessoas escassas de caridade indulgente diziam que a  maldade do cego e os  olhos do rapaz completavam dois refinados maraus.

Pinto Monteiro trajava limpamente, banqueteava-se à proporção e dulcificava  os confortos caseiros com o amor de uma aventureira mal prosperada como  tantas que o arquipélago açoriano exportava consignadas aos Cressos da Rua  do  Ouvidor,  que paxalizavam nos pomares  da  Tijuca. Criara  uma sociedade  nova. Acercara de si toda a vadiagem suspeita, os ratoneiros já marcados com  o estigma  da  sentença,  os  misteriosos,  famintos  sem ocupação,  negros  e  brancos,  não topados ao acaso,  mas  inscritos nos registros  da  polícia  e  afuroados pela sagacidade de Amaro Faial. Tinha lido as Memórias de Vidocq  — o celebrado chefe da polícia de Paris. Encantara-o a equidade do governo que elevara  Vidocq,  a  ladrão famoso,  àquela  magistratura;  porque ele,  por  espaço de vinte anos, exercitara o latrocínio e granjeara nas galés os amigos  que depois entregava à grilheta.

Pinto Monteiro organizou  a  boêmia  que,  até  àquele  ano, roubando sem método nem estatutos, exercitara a ladroeira de um modo indigno de pais em  via de civilização.

Fez-se eleger presidente por unanimidade e nomeou o seu secretário Amaro  Faial.  Havia  um  propósito  quase  heroico  neste feito,  como  logo veremos.  Investido desta presidência incompatível com as artes líricas, depôs o violão e,  à semelhança do poeta latino, emudeceu os cantares, tacuit musa. Sentia-se no congresso uma alma nova, cheia de fomentos e apontada a rasgar horizontes  dilatados.

Quem ouvisse discursar o presidente  sociologicamente,  ficaria  em dúvida  se  furtar era ciência ou arte. Pinto Monteiro enxertava nas suas preleções acerca  da propriedade umas vergônteas que depois enverdeceram com estilo melhor  nas teorias de Cabet. Os malandrins mais inteligentes, depois que o ouviram,  desfizeram-se de escrúpulos incômodos,  e entre si assentiram que não eram  ladrões,  mas simplesmente deserdados  pela  sociedade madrasta e vítimas  de  uma qualificação já obsoleta. A terminologia do livro v das Ordenações num  pais jovem, exuberante, e que tem o sabiá e o coco, era uma anomalia.  

Desta arte organizada a quadrilha, sob a influência auspiciosa de um cérebro  pensante, os cidadãos eram roubados mais artisticamente: na empalmação dos  relógios conhecia-se que havia ideias de física, de mecânica, de equilíbrio, de  dinâmica e ciências correlativas. Os alunos da reforma pareciam colaborar no Manual do  Prestidigitador,  de Roret,  e abandonavam como arcaísmo  aos  poderes públicos a Arte de Furtar, de quem quer que seja.  

A sociedade prosperava  a  olhos  vistos,  posto que o presidente não tivesse  olho  nenhum  — nesta  independência dos órgãos de relação prova a  alma a sua imortalidade.

Foi então que Pinto Monteiro e o secretário, munidos dos livros de registo e  de toda a  escrituração,  se apresentaram ao chefe da  polícia,  Fortunato de  Brito.

Eis  aqui  a  reputação  de  um  homem sacrificada  à  extirpação do crime.  Os  Codros e os Cúrcios, na restauração da moral pública, fazem isto.  

O  chefe da  polícia  conveio nas propostas  de Pinto Monteiro,  que estatuíra  conservar-se na  confidência  dos ladrões  e delatar  a  paragem  dos roubos  quando no  descobri-los  redundassem à  polícia  créditos  e interesses.  O  cego  esclarecera Fortunato sobre a organização do funcionalismo policial em Paris,  ensinara-lhe  alvitres ignorados  e  prometia  auxiliá-lo  num ramo ainda  mal  cultivado no Brasil — a espionagem política.

Surtiu os  previstos resultados  a  perfídia.  Os larápios  mais  soezes eram  arrebanhados  para  a  casa  da  correção;  mas  os  ladravazes mais  ladinos  poupava-os  o  presidente  para  não perturbar de improviso  o equilíbrio do  cosmo. E necessário que haja escândalos, diz o Evangelho.  

Como agente secreto da  polícia  recebia do cofre do  Estado; como chefe da  Associação dos Deserdados, auferia o seu quinhão do pecúlio comum, afora  as forragens da presidência, etc.

Este período da vida do cego durou cinco anos; as duas rendas sobravam-lhe  à  fartura do passadio; principiou Monteiro  a  engrossar o pecúlio,  quando  a  delator e agente juntou o estipêndio de espião.

Voltando às suas antigas camaradagens políticas, falou nas sociedades secretas  com exacerbada virulência; e, vítima de despotismo militar, mostrava os olhos  estoirados e baços com a dolente majestade do general Belisário, vencedor dos Hunos.  

Constou ao Governo que Pinto Monteiro ousara pedir um Cromwell de quem  ele,  cego,  fosse  o Milton. A comparação seria  modesta,  se não fosse  sanguinária. O  Governo  brasileiro,  com  subtileza  própria  dos  cérebros  formados com tapioca e ananás, entendeu que o pescoço do Sr. D. Pedro II  era ameaçado pelo cego com a tragédia de Carlos Stuart.  

A Fortunato de Brito foi ordenado que vigiasse e processasse sedicioso cego.  

Entalação! O chefe da polícia foi explicar ao sei ministro que os discursos de  Pinto Monteiro eram boízes armada a pássaros bisnaus de mais alta volateria.  O  conflito  remediou-se  prescindindo o espião da  oratória, e  atendendo  somente a seguir rastilho das revoluções urdidas no Rio, para rebentarem nas  províncias.

Como no meio da tanta lida ainda lhe sobrava tempo, Monteiro ensaiou pela sua  conta, e sem auxílio da  malta,  uma  reversão de propriedade,  termos  adequados à sua qualidade de deserdado.

Havia morrido um carroceiro quando, avençado com o cego experimentava a sua  fortuna  em aventuras de moeda  falsa,  mandando  abrir os  cunhos  no Porto.

A cidade da Virgem tem tido filhos de raro engenho na gravura; mas os seus  concidadãos, desamoráveis com as graças do buril criaram à volta deles uma  atmosfera  fria  de desalento,  e no  pedes tal em que os  sonhadores,  como  Morggen e Bartolozzi, entreviram a glória a oferecer-lhes umas sopas de vaca,  o menospreço público pôs-lhes a  fome.  Seria bonito para o martirológio  da arte que q honrados alunos da Academia das Belas-Artes se deixassem perecer  de anemia;  porém,  as poderosas reações  do estômago  impulsaram-nos  a  aceitar o único lavor que se lhes oferecia: abrir cunhos de moeda.  

Este ramo das artes imitativas floriu no Porto como planta indígena, a termos  de  haver  ali  trabalhos excelentes e  muito  em conta. Já  se  conheciam os  gravadores  portuenses  como hoje se conhecem os  capelistas da  Rua  de  Cedofeita  —  o Primeiro  Barateiro,  o Rei  dos  Barateiros,  o Barateiro sem  Competidor.  Faziam-se  notas a  5% quando a  arte  estava  no  berço ainda  timorata:  depois,  à  medida  que a  prosperidade das empresas  internacionais  aumentava o pedido, os bons artistas davam de mão aos brasões dos sinetes,  às chapas dos portões e às firmas dos anéis; e, rivalizando-se no primor e na  barateza da obra, já davam um conto de notas falsas por dez mil-réis sinceros.  

Era este o preço da dezena de contos que o carroceiro mandara comprar por  intermédio de Pinto Monteiro, e não chegara a receber, atalhado pela morte.  Deixara,  porém,  segredado à  viúva  que se entendesse  com  o seu amigo  Monteiro quando lhe entregassem a encomenda.

Não sei se estas notas eram parte de uns trezentos contos que por esse tempo  saíram do Porto para o Brasil dentro da imagem do Senhor dos Passos. Não  averiguei as profanações que se deram nesta remessa: o que sei é que a viúva  avisou o  cego;  e  que,  no  mesmo  dia  do aviso,  o  chefe da  polícia  colhia  de  sobressalto a viúva, escondendo  o rolo das  notas entre o guarda-infante e a  parte subjacente que ela julgava intangível aos contatos brutos dos esbirros.  

Levada  a  interrogatórios,  foi pronunciada; mas,  desde que ela  entrou no  cárcere, Pinto Monteiro, consternado até às lágrimas, assistiu-lhe com a mais desvelada benquerença, constituindo-se o seu procurador.  

Esta mulher herdara a independência. Gemeu em ferros seis anos, cumprindo  a  comutação de uma  sentença  que a  condenava  a  degredo  para  a  ilha  de  Fernando.  Essa  comutação custara-lhe  o restante  dos seus  haveres,  absorvidos, pelo cego de Landim.  

Quando saiu do cárcere,  e se  viu roubada  pelo  amigo  do seu  marido, e  reduzida  a  mendigar,  denunciou  ao chefe da  polícia  a  cumplicidade de  Monteiro no negócio das notas. Fortunato de Brito conveio que o seu agente  era  infame maior  da  marca:  mas  fazia-se  mister  que tivesse  aquele tamanho  para dar pela barba à corpulência da corrupção. O cego de Landim gozava a  inviolabilidade de mal necessário.  

A extorsão feita à viúva divulgou-se e acerbou os antigos ódios contra Pinto  Monteiro.  Demais a  mais,  ele tinha  ofendido o espírito dos estatutos,  que  eram obra a sua.

Os consócios acharam irregular e menos honesto que o seu presidente levasse  o  egoísmo  à  extremidade de  reivindicar só para  si  direitos de  propriedade  comum. Toda  a  propriedade alheia  era  deles todos,  pelos  modos.  Alguns  destes,  mais  penetrantes,  incutiram no  falanstério  a  suspeita  de que o chefe  tivesse inteligências com a polícia.

Um mulato de grandes brios, notável capoeira e muito sumário nos processos  daquela espécie, fez lampejar o aço da sua faca e declarou que ia anavalhar o  redenho do cego.

Quando esta cena tumultuária se passava na taberna do João Valverde, na Rua  do  Catete,  Pinto Monteiro e Amaro  Faial já  estavam a  bordo da  galera  Tentadora, que velejava para o Porto.

***

Em Setembro de  1840 apareceram em Landim  Pinto  Monteiro e  o seu  Chamado guarda-livros. Acompanhava-os  a açoriana, intitulada  honorificamente esposa do cego.

Era  uma  mulher desnalgada,  sardenta,  ruiva,  alta  e possante,  com brotoejas  rosáceas na  testa  e um  caracol de barba  no  queixo  inferior.  Galhardeava  moirées,  calçava  botas  verdes e trazia  uns merinaques  que rugiam  como  as  cavernas dos ventos.  

Pinto Monteiro  alugou casa  enquanto  reedificava  outra  sobre o  casebre  do  seus pais. O guarda-livros dizia com certo resguardo que o patrão era muito  rico.

Convergiram logo das freguesias circunvizinhas bastantes cavalheiros a visitá-lo,  uns  porque tinham  sido  os seus  condiscípulos na  escola,  outros  por  parentesco não remoto.

O  cego banqueteava  os seus  hóspedes com iguarias incógnitas  apimentadas  por  cozinheiras negras.  Os comensais,  gente saturada  de vegetais  e milho, comiam à  tripa  forra  e levavam em si  daquela  mesa  lauta  raras indigestões, muitas saudades  e cópia  de  vinhos,  O  cego tinha uma  irmã,  dez anos  mais  nova, que surgiu com bandós, dom e espartilhos dentre um balão da cunhada.  Falou-se  do casamento da  jovem,  dotada  pelo  irmão com dez contos.  Os  morgados já  curveteavam  os seus  potros  por Landim,  e  de  longes  terras  vinham propostas de  casamento,  por intermédio  de padres  e  beatas.  A   rapariga, que eu conheci a encanecer na decadência dos cinquenta anos, devia  ter sido  uma  trigueira  sanguínea  com as mordentes graças das sobrancelhas  travadas e negras como a penugem do bigode.

Pinto Monteiro passava temporadas no Porto com Amaro Faial. Era ali que  ele cumpria a mensagem a que fora enviado pelo chefe da polícia fluminense.  Viera, sob condições estipuladas, relacionar-se com os exportadores de moeda  falsa  e estatuir,.  de  harmonia  com os  interessados,  bases  orgânicas e  auspiciosas para  negócio menos  precário.  O  resultado,  previsto  pelo  cego e  aplaudido por Fortunato de Brito, era a polícia conhecer no Império Brasileiro  os cúmplices dos agentes que residiam no Porto e, de uma vez para sempre,  abranger em rede varredoura os principais.

Conseguira  captar a  confiança  dos dois  gravadores  mais  habilidosos  e  conhecidos além-mar; mas um deles, Coutinho, o ancião que eu vi morrer na  enfermaria da Relação em 1861, não delatou as pessoas com quem negociava,  posto que o cego lhe garantisse uma velhice abastada nos confortos da honra.  O outro artista, que morreu rico, apesar de se ter remido da cadeia à custa de  dezenas de contos, também não denunciou os seus fregueses; mas convidou o  cego a mercar-lhe au rabais uns cinquenta contos, resto da última edição.  

E o cego comprou-os.  

Em 1841, a hospedaria dileta dos brasileiros de profissão (distingam-se assim  dos brasileiros do Brasil) era  a  do  Estanislau,  na  Batalha.  Ali  havia  a  sem-cerimônia  do  chinelo  de liga à  mesa-redonda; os  colarinhos  arregaçados deixavam  arejar as  pescoceiras rorejantes  de  suor,  que se limpavam aos   guardanapos; cada qual podia comer o arroz com a faca e o talharim com o  garfo; a laranja era descascada à unha e os caroços das azeitonas podiam ser  cuspidos na mesa, bem como as esquírolas do pernil do porco desenlatadas a  palito das luras dos queixais. E era até de direito comum cada qual caçar de  guet-apens a importuna mosca na cara e decapitá-la publicamente. Estava-se  ali à vontade, como nos jantares de Peleu e Pátroclo, com um grande estridor de mastigação e arrotos.

O cego hospedava-se no Estanislau e dizia ao secretário:  

— Estamos com a nossa gente, Amaro amigo.

A idade, a compostura e o palavreado, com a reputação de rico, deram-lhe na  mesa o lugar mais autorizado. Os brasileiros vindos do Rio conheciam aquela  figura;  alguns sabiam  que o homem se  tinha  arranjado com expedientes  misteriosos; mas isto mesmo era qualidade meritória e relevante no comensal.  Rosnava-se  de moeda  falsa;  até  alguém teve  a  ousadia  de repetir o boato  corrente ao guarda-livros. Amaro Faial deu aos ombros, sorrindo, e disse:  

— A moeda  falsa  é comércio como  qualquer outro,  com vantagens  em  proporção dos riscos. Negócio execrando só conheço um: é o da escravatura.  Há também uns negócios que, depois de muitos anos de estafa, não deixam  nada: esses chamam-se  negócios  tolos.  Assevero-lhes  que a  riqueza  do Sr.  Pinto Monteiro não se fez com a escravaria.  

Estava lançado o dardo. Esta franqueza deu margem a discussões, nas quais o  cego e o Faial descobriram entre os  contendores os menos  escrupulosos.  Volvidos  alguns dias, Pinto Monteiro  tinha  vendido  os  cinquenta contos  de  notas  para  um  brasileiro  da  Maia  e era  encarregado de agenciar cem contos  para outros que o primeiro aliciara.  

Nesta transação cobrara o cego percentagem e pedira sociedade no quinto dos  interesses, com a cláusula de dirigir no império a circulação da moeda-papel.  Pactuaram  a  viagem para  Julho  daquele  ano.  Pinto Monteiro  convencionou  acompanhá-los, a fim de liquidar o restante dos seus haveres, dar impulso ao  negócio e vir depois descansar na Pátria.

Depois de uma  demora  de dois meses,  Pinto Monteiro recebeu do Porto a  infausta nova de que a açoriana, cativa das negaças de um espanhol operador  de catarata,  fugira  com ele para  a  Galiza.  Bacorejou-lhe ao cego que estava  roubado, e o palpite funesto realizou-se.

A quantia devia  ser  valiosa,  porque  o traído  amante  suspendeu as  obras começadas e desfez contratos  apalavrados  de compras.  Ficou na  memória  dos contemporâneos a respeito da pérfida uma palavra do cego,  significativa  da sua índole:  

— Se o espanhol levasse a mulher e me não levasse o dinheiro, penhorava-me  bastante.  Como  me tirou as cataratas  do  coração,  pagou-se  pelas suas  mãos o patife!

A opinião pública  de Landim irritou-se quando soube que a  fugitiva  era  simplesmente manceba dó cego. A moral exigia que ele fosse marido, para não  se desvaliarem os quilates do escândalo.

***

No mês aprazado, Pinto Monteiro regressou ao Rio de Janeiro, acompanhado  da sua irmã D. Ana das Neves. Embarcaram no Porto com ele os amigos e  sócios  granjeados no hotel.  O  brasileiro da  Maia,  comprador  dos cinquenta  contos, levava algumas pipas de vinho verde, e uma destas vasilhas tinha sido  fabricada conforme o modelo que dera o cego e sob a fiscalização de Amaro  Faial.  No reverso das quatro  aduelas do bojo pregaram um  quadrado de  madeira  com  chanfradura  onde  envasasse  o  rebordo  de um  caixote  de  flandres; a pregagem do quadrado ficava oculta debaixo de quatro dos arcos  de ferro.  O  caixote continha  duzentos contos em  notas  brasileiras e era  estanhado nas junturas, de modo que o liquido as não penetrasse, através de  uma grossa capa de chumbo.

Chegados ao Rio,  a  carregação entrou nos  armazéns da  Alfândega,  e Pinto  Monteiro, com a sua família, hospedou-se em casa de Fortunato de Brito. Ao  apontar o dia seguinte, os passageiros delatados pelo cego eram presos; a pipa  despejada e desfeita; e o caixote das notas conduzido ao tribunal para se lavrar  auto. Os quatro portugueses morreram no degredo, perdidos os haveres que  já  tinham adquirido  honradamente.  Pinto  Monteiro  recebeu  dez contos de  réis, os 5% estipulados e deduzidos da presa.

O leitor vai descobrindo que eu não estou escrevendo um romance. Consta-me que, no Rio, os homens que já o eram há trinta anos recordam estes fatos  com algumas miudezas que não pude obter, nem já agora inventarei. Os meus  apontamentos são  exatíssimos  no sumário das excentricidades do cego;  mas  escassos dos pormenores que eu rigorosamente quisera não omitir.  

Aqui me contam eles os amores da morena filha de Landim com o chefe da  polícia. Este episódio poderia ser o esmalte do meu livrinho, se num chefe da  polícia coubessem cenas de amor brasileiro, mórbidas e sonolentas, como tão  languidamente as  derrete o Sr.  J.  d'Alencar.  Em  país  de tanto passarinho,  tantíssimas flores a  recenderem  cheiros  vários,  cascatas  e lagos,  um  céu  estrelado de bananas, uma linguagem a suspirar mimices de sotaque, com isto,  e com uma  rede  —  ou duas,  por  causa  da  moral  —  a  bamboarem-se  entre  dois coqueiros, eu metia nelas o chefe da polícia e a irmã do cego, um sabiá  por cima, um papagaio de um lado, um sagui do outro, e veriam que meigas  moquenquices, que arrulhar de rolas, eu não estilava desta pena de ferro! Mas eu não sei se me acreditariam coisas tão peregrinas entre o virginal Fortunato,  chefe  da  polícia,  e  ela,  a  Menina  Neves,  que já  havia  colhido as boninas de  vinte e nove primaveras nas florestas do seu Minho, onde a maroteira é pré-histórica!

Amores  e desventuras de pior  natureza  nos  levam a  outro incidente,  e  aí  veremos que Pinto Monteiro fareja todos os latíbulos em que se acoite algum  crime  e não  consente  que a  corrupção  do  século  XIX  ponha  pé  em ramo  verde no novo mundo Certa carioca, esposa de um João Tinoco, português,  fizera  assassinar com veneno  o marido  por um  escravo; mas  com tal  resguardo que o conjugicídio  não escoou  dos  muros da  quinta  onde ela  impunemente se dava às delicias de Agripina. Isto de chamar Agripina à viúva  de João Tinoco é excesso de erudição.  Ela  não tinha  ideia  nenhuma  de  ser  posta em paralelo histórico com a envenenadora de Cláudio; o que ela queria  era que a deixassem gostar as alegrias da viuvez de um marido que entrara em  casa  do seu pai  como aguadeiro e,  exaltado a  esposo,  a  quisera  forçar a  fidelidades  incombináveis  com  o  clima,  desenvolvendo de mais  a  mais um  excedente de calórico na esposa com o atrito do murro português de lei.  

Tinoco  tivera  um  caixeiro que expulsara quando lhe descobriu  capacidade  para o adultério, segundo informações  de um  marçano  que vira piscarem-se  reciprocamente os olhos direitos a sinhá e ao caixeiro. Eis o fio que conduz o  cego até ao tálamo infamado,  e daí à  campa  do multo  João  Tinoco.  O  assassinado tinha irmãos abastados no Rio.

Pinto Monteiro  revela-lhes que  o seu mano  morrera  de morte  violenta  e,  coberto  de  lágrimas, não podendo mostrar os  intestinos dilacerados de  Tinoco, como Antônio a túnica de César, põe as mãos convulsas no ventre e  exclama:  

— Despedaçaram-lhe as entranhas as agonias do arsénico! Etc.  

Fez terror.

Rugem vingança  os irmãos; o  cego dá  vulto às  dificuldades das provas  judiciárias; franqueiam-lhe dinheiro sem conta e um grande prémio, se a prova  se fizer.

 Vejam os profundos segredos do Céu! Os crimes obscuros quase nunca é a  lâmpada da virtude que os descortina; são sempre os cerdos que foçam e tiram  à tona dos lamaceiros as podridões submersas.

Pinto Monteiro fez surdir  à  flor  da  terra  as podridões  de  Tinoco  e a  toxicologia  declarou que o homem morrera  envenenado pela  massa  de Frei Cosme. Não vá o leitor pensar que entra na novela um frade que manipulava  massas homicidas.  Não,  senhor.  A  massa de  Frei Cosme  é uma farinha  saturada de arsênico.

A viúva não pôde defender-se, desde que a negra confessou que envenenara o amo num timbal de borrachos, por ordem da senhora. Degradaram por toda a  vida a  ré convicta,  privando-a  dos bens  herdados do  esposo.  Com a  quinta preciosa  foi  galardoada  a  benemérita  solicitude de Pinto Monteiro  —  o vingador de Tinoco e da Moral, que eu sempre escreverei com o M maior que  eu puder.

Fortunato de Brito, o chefe da polícia, foi demitido por este tempo. Antônio  José Pinto Monteiro resolveu repatriar-se. A denúncia dos moedeiros açulara-lhe  muitos e  poderosos  mastins.  A imprensa  brasileira  insultava  a  colônia portuguesa  pelo fato do  crime e pelo  fato  do delator.  A equidade foi estranha aos ódios e injúrias que golpearam Monteiro. Não lhe descontaram  na perfídia as vantagens comerciais que derivaram dela. Cessara o pânico e o  terror iminente de um cataclismo no crédito e nas casas bancárias. A polícia,  iluminada  pelo cego,  sabia  as veredas que em Portugal  conduziam aos  balancés. A gente honesta, o comércio honrado, rejubilavam com a traição de  Pinto Monteiro;  mas,  atidos  ao velho  prolóquio onde  não reluz faúlha  de  filosofia  prática, execravam o homem  que  levara  às  plagas do  degredo  os  salteadores da probidade incauta.

Esta vitima ainda não estava inscrita no martirológio dos grandes lapidários da  civilização.  

***

Os meus informadores, que mais privaram na intimidade de Pinto Monteiro,  dizem que ele, no segundo regresso a  Portugal, trouxera, além de secretário,  dois filhos,  que  deixara  no Porto a  educar  no Colégio da  Lapa,  e uma  filha  ainda muito na flor da mocidade. Da mãe destes meninos, que pouco há vivia  ainda  nos  arrabaldes do Rio  de  Janeiro,  não há nada  romanesco;  mas  bem  pode  ser que houvesse  da  parte dela  um  profundo sentimento  de dó com  muitíssima abnegação de si mesma; e no coração do cego com certeza houve  extremoso amor de pai. Os tigres sempre tem e os homens costumam ter às  vezes este santo instinto de amarem os filhos.

Vinte  e tantos contos  perfaziam os  haveres  de Pinto  Monteiro. Concluiu as  obras iniciadas, comprou terras e dirigiu pelo tato as benfeitorias que fez no  prédio que habitava. Há duas horas que eu estive a reparar, por cima do muro  do jardim, na graciosa vivenda que ele enchera de luz como se um beijo do sol  de Agosto  pudesse  descondensar a  álgida  escuridão  do seus  olhos.  Ali  passaram alegres dias os seus convivas sob os caramanchéis das parreiras. O  grande prazer de Monteiro era dar banquetes opíparos.

Ouvia  ler as Artes  de Cozinha,  conhecia  Brillat-Savarin, enchia-se  do fino  sentimento dos guisados; e, apontando a pituitária aos vapores das caçarolas,  marcava quando era sobejo o cravo ou escasso o colorau. Fazia pensar se a  vista, voltando-se para o interior, penetrava nos refegos membranáceos o ideal  do estômago!  Se um  cego  ilustre deplorava  o perdido paraíso, outro cego  parecia tê-lo encontrado na cozinha.

Ele, que na América pusera o cautério à ladroagem, à falsificação das notas e  ao  adultério  agravado pelo homicídio,  não sabia  como  amordaçar a  maledicência  dos  seus  conterrâneos,  senão ocupando-lhes as  línguas no  trabalho da deglutição. A cada injúria que lhe chegava aos ouvidos, mandava  comprar dois leitões.

— Mano Antônio, dizem que tu entregaste os ladrões ao chefe da polícia

— dizia a Menina Neves.

— Dizem? Pois, visto que não os posso entregar a eles, compra um peru e  dá-lho amanhã com recheio.


— Mano Antônio, agora dizem que denunciaste os da moeda falsa.

— Compra  anhos e capões;  atasca  essas línguas  em pudim de batata,  embola-mos com almôndegas, deita-lhes aziar de ovos em fio, afoga-lhes os  escrúpulos em vinho de 1815, menina.

E, depois, tinha outra paixão que o deliciava: arranjar casamentos.

Florescem hoje em Landim alguns casais de pessoas ditosas que ele ajoujou,  vencendo estorvos  à  custa  de engenhosas intrigas e  até de liberalidades  das  suas abatidas posses.

A filha  de um  cabaneiro,  que se  criava  pela  sua  casa,  era  o passatempo  do  cego.

Chamava-se a  Narcisa  do  «Bravo»  —  alcunha paterna. Até aos treze anos  andava vestida de rapaz e media-se com os mais gaiatos a trepar à grimpa de  um pinheiro, no assalto noturno às cerejeiras, em duelos à pedrada, no jogo  do pau e no murro.  Era  virilmente  bela  e bem feita;  mas  os  meneios  adquiridos nos trajos  de rapaz desengraçavam-na  vestida de mulher.  Ela  mesmo olhava para si com zanga e puxava a repelões as saias esfrangalhando- se. Pinto Monteiro dava tento destes frenesis, ria-se muito e contava-lhe casos  de mulheres  portuguesas  que batalharam incógnitas,  cobrindo os  seios  com  arnês de ferro.

Estava no plano do cego casá-la. Narcisa dizia-lhe que não pensassem em tal,  porque à primeira pirraça que o marido lhe fizesse, favas contadas, esmurrava-lhe os  focinhos. Este  programa  não assustou Pinto  Monteiro,  visto que os  focinhos ameaçados eram os do marido.

A rapariga  foi pretendida  extra  matrimonialmente  por  vários  devassos de  Landim,  Santo  Tirso  e terras circunjacentes.  A virago  tinha  perrexil do que  morde nas  línguas  já  embotadas; mas também tinha  mãos nervudas e  uns  dedos nodosos que se fechavam em forma de boxe, assim que os pimpões lhe  cantavam desafinados.

Um destes era um forte lavrador de Sequeirô, o Custódio da Carvalha.  

Apaixonou-se  com a  resistência  e falou-lhe  sério em casamento.  Narcisa  contou a  passagem ao cego,  que batia  as palmas com veemente  júbilo,  exclamando:

— Ó  rapariga,  aproveita  antes que o rapaz se arrependa!  Olha  que ele  colhe trinta danos e é um bonacheirão..  E que tal o achas de figura?

— Eu sei cá!. .

— Tu gostas dele ou não gostas?  

— Como se nunca nos víssemos.  

Então, não o conhecias há muito tempo já?  

— Nunca o vi mais gordo.  

— Mas queres casar com ele ou não?

— Tanto se me dá como se me deu; mas o padrinho diga-lhe que, se se faz  fino comigo, eu pinto aí a manta, que ele não sabe de que freguesia é. Eu não  ponho unhas em foicinha nem sachola, ouviu? Não fui criada na lavoura. Se  ele pega a mandar-me sachar milho ou segar erva, temo-las armadas.

— Casa, que tu amansarás...  — dizia o cego.

E casou.

Monteiro deu-lhe magnífico enxoval, cordão, cabaças, anéis, broche; vestiu-se  de fino pano; foi padrinho do casamento, banqueteou os noivos com muitos  convidados, chamou a música de Paiva de Ruivães e queimou dez dúzias de  bombas reais.

O marido sentiu as fascinações que enchem de delicias o inferno dos corações  escravos. Ela manietou-o sem violência de mau gênio, com as suas caricias de  gata que desembainha as unhas brincando. Folia rija! Romagens, quantas havia  no Minho: festanças com três clarinetes e requinta todos os domingos na eira;  a Cana Verde e o Regadinho saltados pelas maiatas mais frandunas; bródios e  vinho, festa fora. Comprou égua de marca, vestiu-se de amazona, e ela aí ia  com o marido corcovado, sonâmbulo, a choutar na mula esparavonada atrás  dela  por  essas  feiras e romarias.  As vezes,  se  os  moleiros não despejavam  depressa os caminhos atravancados com os seus jumentos carregados de foles, verberara-os com o chicotinho e chamava-lhes canalhas. Em questões com os  vizinhos, por causa de regras ou invasões de gado, fazia ameaças sanguinárias.

Carregava as espingardas do marido e atirava aos gaios com pontaria infalível.  Quando soube que as senhoras do Porto usavam colete e gravata à  laia  de  homens,  exultou,  como quem  vê  triunfar  a sua  ideia,  e quis vestir  calções  e botas à Frederica.

O lavrador, já no cairei do abismo, vendidas as melhores propriedades, quis  reagir. Viu que tinha pela frente um virago de fibras. Afrouxou por medo e  por amor.  O  pusilânime vergava  ao prestigio  da  força. Narcisa  ofuscava-o com a rutilante beleza do Demónio, disfarçado na lendária Dama Pé de Cabra  e noutras damas que o leitor conhece com pés chineses.

Dobados dez anos de vertiginosa dissipação, o lavrador resvalou do idiotismo  à sepultura amando ainda a mulher que vendera um lençol para lhe comprar a  última galinha. E Narcisa, viúva aos vinte e oito anos e ainda formosa, atirou  com a honra às goelas do dragão da miséria e não chorou uma lágrima.  

Havia uma amiga que lhe dizia palavras dolorosas, com sincero dó: era a irmã  do  cego.  Pobre Neves!,  quem te predissera  o suplício dos  teus  derradeiros  anos, ligada ao destino da mulher que tu criaras com maternal ternura!....

***

Entretanto, o  padrinho  de Narcisa  não escarmentava  no  sestro  de  casamenteiro;  é  certo  porém que semelhantes casos assim funestos não se  repetiram nas suas operações matrimoniais. Por esse tempo, casou ele a filha  com diminuto dote e abriu a carreira do sacerdócio para um filho, que outras  vocações depois afastaram da Igreja. Os seus teres, com judiciosa economia,  seriam bastantes à decência aldeã; porém, privar-se da mesa farta e franca era  privar-se de amigos que lhe festejassem as anedotas. Pinto Monteiro, no dia  em que falisse de auditório, começaria a morrer no abafador silêncio da célula  penitenciária.

Empobrecia  rapidamente:  mas  dava  a  perceber que a  filosofia  de Job é a  última  moeda  com que o homem decaído  compra  a  resignação  e  a  glória  eterna, par dessus le marché, dizia ele.

Amaro Faial, confidente dos secretos desfalques do patrão, pensou em retirar- se  para  o Brasil,  visto que não tinha  secretaria  para  fiscalizar,  nem  desprendimento tamanho que aceitasse outra vez o ofício de rapaz de cego.  

É aqui  o  lugar  de repetir literalmente  uma acusação  que  todos  os meus  informadores, sem discrepância, irrogam ao cego de Landim.

Um lavrador  da  Lamela, induzido  por  Pinto Monteiro, vendeu  as  suas  herdades por alguns contos de réis, a fim de ir negociar no Brasil e centuplicar  o seu dinheiro.

Saiu Monteiro com destino  ao Rio,  levando  na  sua  companhia  o lavrador.  Passados dias, aparece em Landim o cego, fingindo-se doentíssimo, e diz que  o seu companheiro embarcara e de retrocedera forçado pela moléstia. Ora, do  lavrador  nunca  mais  houve  notícia;  mas no Governo Civil  de Lisboa  fora  visado o passaporte de José Pereira da Lamela e o mesmo nome inscrito na  lista  de passageiros.  Isto não obstante, o cego era acusado de haver  matado  em Lisboa o lavrador,  não  podendo  roubá-lo  por  maneira  mais  suave; e  a  certeza  confirmou-se  quando  parentes que o Lamela  tinha no  Rio,  perguntados  a  tal  respeito,  responderam  que nunca viram tal  homem,  nem,  depois de  chamado  pela  imprensa  de  todas  as províncias,  aparecera.

Asseveravam, porém, que um nome semelhante se lia na lista de passageiros  desembarcados no Rio,  no mesmo  navio  e mês em  que de Portugal  se  informava que ele partira.

Seria  mais natural supor que José  Pereira  morrera  obscuramente  nalguma roça; mas à calúnia pareceu mais romântico decidir que o cego o matara.  — Como presumem os  senhores que o cego matasse o lavrador?  —  perguntei.

— Não sabemos; o mais provável é que o atirasse ao rio quando o bote ia  para bordo da galera.

Esta era e é a opinião corrente. Pelos modos, o cego, em pleno sol do Tejo, na  presença  dos  barqueiros,  alijou o passageiro ao no e fez remar para  terra  o  bote com a  bagagem  do morto;  depois,  saltou no Cais das Colunas com a  mala do dinheiro debaixo do braço e às apalpadelas lá se foi pacificamente a  caminho de Landim.

Corre parelhas em maldade e estupidez esta aleivosia, é certo; mas o lavrador,  de feito, fora assassinado em Lisboa.  

Agora,  posto que  tardia,  aí  vem a  reabilitação de  Antônio José  Pinto  Monteiro.

Quem induzira  o  lavrador  da  Lamela a  vender as terras foi  Amaro Faial,  oferecendo-lhe sociedade em negócio que rendia 200%. O Pereira da Lamela  era calaceiro. O trabalho agrícola pesava-lhe: as suas terras, avaliadas em cinco  contos,  rendiam escassamente o passadio  grosseiro do lavrador  minhoto.  Calculou, firmado na prova matemática das cifras de Amaro, que, ao fim de  cinco anos, devia ter cinco contos dez vezes multiplicados. É claro: 200% —  5 vezes  10  —  50 contos.  Vendeu as terras e  partiu com  o ex-secretário do  cego. Pinto Monteiro, sinceramente afeiçoado ao seu confidente de vinte anos  de vária fortuna, acompanhou-o até ao Porto e dali voltou para Landim algum  tanto enfermo,  e  às pessoas  que lhe  perguntavam pelo Pereira da  Lamela  respondia  naturalmente que tinha  embarcado.  Dava-lhe,  porém,  que pensar  não estar o nome de Amaro Faial, na lista dos passageiros.  

O leitor já descobriu que o assassino do lavrador foi Amaro; que o passaporte  do  morto serviu para  o matador:  mas ignora  os pormenores do  crime,  e eu  também os não sei.

Passados anos, um correspondente de gazeta escrevera o essencial da calúnia  que  assacava  o homicídio ao cego.  O  delegado de Vila  Nova  de  Famalicão,  Soares  de  Azevedo,  e  advogado de Pinto Monteiro em diversas  demandas,  aconselhou-o que justificasse a sua inocência neste crime que lhe imputavam,  porque deixá-lo à  calúnia  e  à  revelia  era  arriscar-se  a  perder todos  os seus  pleitos. O cego, com a lúcida intuição de quem tinha longa prática de crimes  tenebrosos, explicou a morte do lavrador, comprovando-a pelas circunstâncias  do passaporte, peia omissão do nome do homicida na lista dos desembarcados  no Rio e pela certeza que lhe deram de Amaro Faial ter morrido poucos dias  depois que chegara, no hospital, com o roubo ainda intacto, segundo vira na  notícia  dos espólios dos falecidos.  Replicou-lhe o delegado que  semelhante  justificação era insuficiente: o cego redarguiu que não tinha outra,  nem essa  mesma  daria, se  Amaro  Faial  fosse vivo, porque  no seu  braço se amparara  vinte anos,  vinte anos vira  pelos  olhos dele e mal  remunerado o despedira,  sem que o seu guarda-livros murmurasse da mesquinhez da paga.

***

Em 1858, o cego, escasso de posses, escorregava na ladeira da pobreza. Havia  vendido ou hipotecado as terras.  Perdera  demandas valiosas: parece que  em  quase  todas  influiu  a sua  má  nota  a  desculpar a  injustiça. Duas quintas  lhe  foram extorquidas  com  tão  estranho  desaforo que é mister aceitar-se  intervenção de jurisprudência divina para que o homem as perdesse, pois é de  crer que as adquirisse com dinheiro desonrado.

Dizia  ele que viera  encontrar em Portugal  espécies  de ladrões fleumáticos e  frios, que não topara nos, climas quentes; e que o larápio luso-brasileiro era  francamente analfabeto e lerdo, ao passo que o ladrão. estreme e puramente  luso, era, por via de regra, além de perverso, bacharel formado. Aludia a dois  adversários jurisconsultos que eu escondo à curiosidade do leitor, porque me  sustém o pulso  um  quase religioso  respeito à  memória  honesta  de Paiva e  Pona, e também de Pegas.

Com as últimas moedas, abriu Pinto Monteiro  um  botequim em Famalicão,  faz  hoje dezassete anos.  A vila,  nesse tempo,  estava  na  apojadura  das suas prosperidades.

Choviam ali brasileiros que nem maná nos areais da Mesopotâmia. Dos pauis  alagadiços irrompiam casas de azulejos variegados. Vila Nova era o centro da  locomoção do Minho, da  mercancia  agrícola,  da  vilegiatura  dos  Portuenses;  mas não tinha o café — a prova real da civilização.

Pinto Monteiro  contava com as leis do progresso;  porém,  Vila Nova, que  hoje, na extrema decadência, tem três cafés com dois limões sorvados e três  garrafas de licor de  canela,  em tempos  florentíssimos  não sustentou o  botequim do cego,  em que havia  conhaque,  curaçau, chartreusekermann e  absinto. É porque,  há  dezassete  anos,  o  progresso material  desconhecia  a  precisão dos cafés, paragens  de uns ociosos  que se  putrificam,  raça  amolentada  no sibaritismo  da  cerveja  de quartola,  com grandes orgias  de  cigarros de Xabregas.

O cego apenas vendia algum capilé aos vigários encatarroados e orchatas aos  adiposos. A ruína ia consumar-se, e o botequim fechar-se, quando chegou à  vila  e se  hospedou no hotel um  brasileiro  doente vindo do Rio com  a  sua  esposa. Pinto Monteiro conhecia de nome o enfermo.

Visitou-o  e acompanhou-o  nos  desalentos  da  caquexia, animando-o  ou  distraindo-o  com  a sua  variada  e jovial conversação.  Alvino  Azevedo  afeiçoou-se-lhe a ponto de, chegado ao termo dos sofrimentos; lhe confiar a sua mulher, pedindo-lhe que a protegesse e guiasse na administração dos seus  haveres. A esposa do enfermo estava um pouco distante da idade em que as  viúvas correm perigo  se  as não vigiam:  tinha setenta  anos  feitos  e já  não  conservava  toda a  frescura  das suas dezoito primaveras,  nem os  dentes  completos. Os dons do espírito não era transcendentes nem talvez bastantes  para seduzirem outro marido: D. Joana Tecla era idiota. 

O caquético expirou nos braços do cego, despedindo-se da esposa com uma  olhadela cheia de saudades e talvez de esperanças no paraíso de Mafoma, em  que as  mulheres  velhas remoçam.  Ela  chorou copiosamente  e  declarou que  aquele morto era o terceiro marido que lhe fugia para o Céu. Eles tinham tido  razão em fugir todos.

D. Tecla passou  para  casa  do cego, com  todo o  resguardo  da sua pudicícia,  
acompanhada pela mana Neves.

Passados os três dias de nojo, perguntou-lhe Pinto Monteiro se queria voltar  ao  Brasil,  a  sua  pátria,  ou  ficar  em  Portugal,  recebendo os  rendimentos  dos  seus  prédios no  Rio.  A viúva  respondeu  que  a sua  posição  era  muito  melindrosa;  que uma  senhora  não  podia  ir sozinha para  tão longe;  que o  mundo  estava  cheio de  homens malcriados que  mediam tudo  pela  mesma  rasa; que não queria sujeitar-se a algum desaguisado por essas terras de Cristo;  que,  enfim, não ia para  o Brasil  sem ter família  muito  honesta  com  quem  fosse,  —  Mas então,  a  minha senhora  —  redarguiu o cego  —,  quer,  entretanto que não vai, viver sozinha em Vila Nova, ou dá-nos o prazer da sua  companhia? o seu defunto esposo encarregou-me da dirigir; eu, porém, o que  farei é conformar-me com a vontade da senhora, que já tem suficiente idade  para saber o que lhe convém.

— Não  sei  nada  do mundo  —  acudiu Tecla.  —  Estou muito verde.  O  senhor é que há de guiar-me.

— Deus lhe dê melhor guia  do que um cego,  a  minha senhora;..  mas aí  tem a minha mana, que lhe será companheira e irmã.

No dia seguinte, Monteiro fechou o botequim com um sorriso sarcástico e o  ar solene e vingativo de quem fechava a porta que franqueara à civilização de  Vila Nova.

Ele vociferou que os  habitantes de Famalicão eram indignos  do café,  deu  volta à chave e foi caminho de Landim com a hóspede e a irmã.  

***

Os dois  prédios que a  viúva  possuía  na Rua da  Quitanda valiam  quarenta  contos  de réis  fracos;  as suas joias,  dádivas de três maridos,  eram muitas e  nem todas de pedras falsas. A idade da viúva animava um quarto marido, na  hipótese de caber a esse quarto em vez de a ver fugir para o Céu a ela. O certo  é que andavam já  dois empregados  de  Fazenda  e outros  tantos da  Administração  a  espiarem a  oportunidade  de lhe  seduzirem a  inexperiência,  quando a viram ir empertigada numas andilhas, caminho de Landim, a choutar  e a rir-se dos solavancos do macho.

Os pretendentes pegaram de gritar contra o cego, assacando-lhe o rapto e a  coação da viúva. O juiz de direito viu-se obrigado a deferir ao requerimento  de um  curioso que pedia  uma  visita  domiciliária  ao cárcere privado de  D.  Joana Tecla Alves.

Efetivamente, a hóspede de Pinto Monteiro foi interrogada, em presença  de  testemunhas, se estava naquela casa pela sua livre vontade, não coagida nem  seduzida.
  
Respondeu que estava muito contente e que podia estar onde quisesse.  

O juiz concordou.

Algumas cartas amorosas em papel  perfumado lhe enviou o mais galã  dos  funcionários  de Famalicão.  Joana  Tecla  relia  as cartas com secretas  delicias;  mas,  no  exterior,  fingiu-se de uma  isenção  que faria  envergonhar Artemisa,  viúva  de Mausolo,  e  as combustíveis viúvas de Malabar.  Perguntava  à sua  amiga Neves quem era o tolo que lhe escrevia; e, rindo com a garridice arisca  dos dezesseis anos,  dizia  que seria  grande  pagode mangar com ele,  respondendo-lhe às cartas.

A mana do cego segredava ao irmão:

— Olha que a velha é tola, mano Antônio; trata de cortar os voadouros à  cegonha; senão, hás de vê-la voar aos braços do quarto marido.

— O quarto marido hei de ser eu! — disse o cego com uma visagem de  mártir voluntário. — Hei de ser eu o quarto marido — repetiu ele, tragando  um  copo de rum  para  ganhar alma  —,  porque,  a  ter de  entrar nesta  casa  o  espectro da miséria, é melhor que entre Joana Tecla. Não me lembra como se  chamava  um  cego que dava  graças a  Deus  porque não podia  ver um  certo  tirano; eu também as dou, porque não posso ver a minha noiva. — E enchia o  copo esvaziado, mascava o charuto e fazia com as duas pernas um curso de  geometria. — Sacrifico-me a ti e aos meus filhos. Vou ser o bode expiatório  das minhas e as vossas prodigalidades; mas levo a certeza de que ela ao menos  me será  esposa  fiel  —  o que é raro antes dos  setenta  anos.  O  seu terceiro  defunto disse-me que Tecla era uma paz de alma, bruta, sim, mas boa. Enfim,  mana, sonda-ma; vê se lhe achas vontade de casar quarta vez.  

— Tomara ela! — acudiu a irmã. — Está sempre a dizer: «Isto de mulher  sem homem é como peixe fora de água.» Põe papelotes todas as noites e faz  caracóis  quando se  ergue. Que  quer isto dizer?  Queres que  eu  lhe  toque no  casamento contigo?

Toca; que eu começo hoje a fazer-lhe a corte.  

Na tarde desse dia,  passeava  Monteiro, debaixo  da  parreira  do seu quintal,  pelo  braço  da  viúva.  As calhandras e os pintassilgos  trilavam  os seus  requebros  às margens  do rio Pele.  As rãs  coaxavam nas poças  e as auras  ciciavam na  ramaria  dos álamos.  Era  uma  tarde de tirar amores do olho de  uma couve lombarda.

Passeavam silenciosos,  quando ao  longe,  no pinhal do  mosteiro, cantou  um  cuco.

— Olhe o cuquinho a cantar! — disse ela com meiguice.

— Gosta de ouvir o cuco, Sra. D. Tecla? — perguntou o cego.

— Eu gosto de toda  a  passarinhada  —  respondeu ela  com as denguices  infantis da Lili de Goethe.

— O cuco é pássaro de mau agouro! — disse ele. — Eu, com medo de tal  ave, não quis casar.

Tecla  riu-se descompassadamente,  provando que conhecia  a  linguagem  simbólica da  ve agoureira. E o cego, nesta entreaberta de galhofa, beliscou- lhe a polpa do braço esquerdo.
  
— Ai! — exclamou ela. — Isto que foi?!
  
— Não se ria assim das fraquezas do próximo, Joaninha! —respondeu o  cego, dando ao beliscão o ar inocente de um gracejo familiar. — Eu não quis  casar nunca porque  o meu coração  nunca  sentiu  ao  perto  nem ao  longe a  mulher digna  dele.  Cheguei aos cinquenta  e dois  anos, pode-se dizer,  sem  ouvir  a  este coração as palpitações  que estou  agora  ouvindo.  E  a  primeira  vez. . — e estreitava-lhe o braço contra o lado esquerdo com umas pressões  trêmulas  —, e a  primeira vez que  amo;  porque  é esta  a  primeira  vez que  encontro a  mulher,  a  esposa  digna  da  minha ternura.  Que me responde,  Tecla? Não me  responde,  prenda adorada?  —  instava  ele,  sacudindo-lhe  a  mão com transporte.

A viúva  inclinou a  face  para  o seio,  deixou-se  apertar com o indolente  abandono das suas faculdades sensitivas, esteve impando como quem suspira  a custo e murmurou:

— Devagar se vai ao longe, Sr. Monteiro.  

***

Aquilo  foi depressa. O  fervor recíproco dos  noivos  e o preceito do poeta  pagão  que manda não adiar os prazeres  abreviaram quanto  possível  a  identificação das duas almas. O reitor, que os recebeu, era um padre bom a  jovial que está a estes noivos disse o que dizia a todos: «Eu espero o vosso  primeiro filho daqui a nove meses.» A noiva entreabriu à flor dos beiços um  hipotético  sorriso de  pudor;  o cego,  porém,  ferido  na  infecundidade da  esposa, disse, carregando o rosto:

— Neste ato, Sr. Reitor, são impróprias as chalaças.  

O padre, querendo emendar eruditamente a inadvertência, respondeu:  

— As Santas Escrituras falam de Sara. .  

— Eu não sou Abraão — replicou o cego, voltando-lhe as costas.  

Reverdeceram os  contentamentos  da  mesa  lauta  e  das  intimas palestras  ao  fogão.

D. Tecla Monteiro confessava que nunca tão felizes lhe derivaram os dias da  existência.

O  cego sentia-se docemente ameigado e bem,  com  o rosto no regaço  da  esposa.
  
Saboreava  os  santos aconchegos da  companheira  canônica.  Revendia-lhe  o  ninho  dos seus  amores  lícitos  um  patriarquismo anterior  ao sacramento  do  matrimônio, é verdade, mas puro como os conúbios de Jacob e Lia, de Rute e  Bom. Ela não o idolatrava como maior frenesi, mas aquecia-lhe no Inverno os  lençóis com botijas e de manha  levava-lhe  uma  chávena  de  sagu, que  pessoalmente cozinhava com todos os primores de uma vocação especial para os mingaus.

Na venda das propriedades liquidara Monteiro menos do seu valor; mas ainda  assim não desceu de vinte contos de réis o dote da esposa. Parte deste capital  empregou-o  numa quinta  no Alto Douro,  outra  pane  na  reincidência  de  pleitos  que havia  perdido  e o restante  nas opulências da  mesa  e nas  liberalidades  com os  renovados amigos.  Do  mesmo passo que a  opinião  pública  encarecia  a  velhacaria  do cego,  formava-se  uma  confederação de  sujeitos que lhe exploravam a perdulária generosidade. Emprestava facilmente  dinheiro e não negava esmola, nem se desculpava com a falta de cobres. «Tal  desculpa seria boa», disse ele, «se os mendigos se ofendessem com as pratas.»  E também dizia: «Ninguém da esmolas mais às escondidas do que eu, porque  nem vejo as pessoas a quem as dou!» Triste gracejo proferido por um cego.

Pinto Monteiro, que tanto refinara  em  astúcias,  no último quartel da  vida  deixava-se  enganar  por  qualquer velhaco  montezinho.  A  quinta  do Alto  Douro,  comprada  por  seis contos  de réis,  foi  uma  venda  fraudulenta: a  propriedade estava  hipotecada  à  Fazenda  Nacional e o vendedor,  apresentando títulos falsos, recebeu o dinheiro no Porto e fugiu. Os convivas  do cego rejubilavam a cada arremesso novo que a desfortuna lhe dava para a  pobreza e as pessoas contemplativas observavam às incrédulas que o enorme  delinquente estava sofrendo retaliações providenciais. É de crer que sim.  
  
Lance admirável! Pinto Monteiro mantinha serenidade socrática e impertérrita  a cada lançada que lhe resvalava na rodela da filosofia. Se a irmã ou a esposa  choravam, e ele dava tento disso, dizia-lhes: «É uma vergonha chorar quando  a vida é tão curta! As dores são um sonho mau de que se acorda na sepultura.»

Ao sentir desfibrar-se-lhe a  corda  tenaz da  paciência,  digna  de um  cristão,  emborcava  garrafas  de genebra  e fumava  sempre até  cair marasmado  pelo  álcool e pela nicotina; mas, se antes da prostração se exaltava em desvarios de  ébrio,  as frases  refloresciam os  raptos de eloquência  que  aos  vinte  e cinco  anos o arrebatavam nos clubes fluminenses. Nestas ocasiões, projetava ir ao  Parlamento, e ensaiava discursos tão bonitos que pareciam ser decorados no Diário das Câmaras. As vezes pedia à  mulher  e à  irmã  que  lhe  fizessem  «apares»  para  o picarem.  A boa D. Tecla  dava-lhe  para  se rir,  ou pedia-lhe  amorosamente que se deitasse — pedido que a gente não pode fazer a todos  os oradores parlamentares.

Nestas intermitências, quase sempre risonhas, se passavam os dias e boa parte  das  noites  naquela  murmurosa casa  de  Landim.  D.  Tecla  desmentira  os  vaticínios que  a  deploravam,  esbulhada do dote e  abandonada à  piedade  do  Asilo das Velhas do  Camarão.  Não teve  uma hora  de tristeza  esta  senhora;  nem sequer ligeira borrasca de ciúme, em sete anos de casada, lhe nublou as  suas alegrias de esposa leal. As setenta e seis primaveras seguiu-se um inverno  rigoroso  de catarrais  e gota, com perturbações no  aparelho digestivo,  timpanites e cólicas flatulentas. A morte arrebatou-a em Dezembro de 1861 dos braços do marido, que, pela primeira vez na sua vida, chorou.

***

Sete anos de glacial solidão gearam sobre a alma de Pinto Monteiro. As portas  da sua casa raro se abriam. Concordemente se disse que o cego estava pobre  pela terceira vez. Era verdade: estava pobre — vendia o restante das joias da mulher.

As vezes  entrava  naquela  casa  a  Narcisa do Bravo,  sentava-se à  mesa  ainda  abundante do padrinho  e matava  a  fome.  A irmã  do cego debulhava-se em  choro a  confrontar aquela  desgraçada  de rosto  empolado com  esfoliações  rubras à formosa noiva de Custódio da Carvalha, à gentil amazona por amor de quem alguns fidalgos de Guimarães terçaram as suas badines de cauchu na  romaria de S. Torcato.

Sobre todas as famas repelentes, ganhara Narcisa, com legitimo direito, a de  ladra, e ladra à mão armada. Os mais queixosos eram os que lhe colheram as  flores já outoniças da beleza e a rejeitaram com a brutalidade do tédio. Narcisa  saía-lhes  de rosto  nas  concavidades das congostas escuras e abocava-lhes  à  cara  uma  pistola  de dois  canos:  e eles,  com um  fingido sorriso  de piedade  desprezadora, atiravam-lhe a forçada esmola. Outras vezes, escalava as janelas  das alcovas conhecidas e entrouxava  os  bragais  como se  inventariasse o  espólio de um esposo falecido. E temiam-na como para um celerado disposto  a vender cara a vida, porque ela deixava entrever a coronha da pistola entre os  atacadores  do colete  escarlate e,  se  sofraldava  as saias,  quando saltava  as  poldras dos ribeiros, mostrava  a  faca  de  ponta  atravessada  na  liga.  Os  regedores das freguesias  que ela  frequentava tinham  ordem  da capturarem;  mas o medo, predicado pacifico destes magistrados, era a ressalva de Narcisa.  

O cego de Landim não ignorava a desastrosa saída da sua afilhada; conselhos,  naquela  extremidade,  eram perdidos;  censuras,  a  si próprio as fazia  o cego  porque encetara a perdição daquela rapariga, tirando-a da arribana do seu pai, para a criar nas regalias da abundância, sem vislumbres de religião, em plena  liberdade de se viciar com  as travessuras  e gaiatices  que lhe  festejavam.  Narcisa  era  talvez  uma das polés  que  torturaram o cego nas impenetráveis  agonias dos seus últimos seis anos.

Contava um rapazinho, criado de Pinto Monteiro, que ouvira, uma vez, a sua  ama dizer a Narcisa que ia mandar vender dois cobertores porque não havia  dinheiro em casa; e que Narcisa lhe dissera que não vendesse os cobertores,  porque ela  ia  vender  a sua  pistola  por meia  moeda.  Não tenho  outro lance  generoso que possa referir de Narcisa do Bravo.

Quando este caso passou,  entrava  Antônio José  Pinto  Monteiro  nos  paroxismos da morte. A 28 de Novembro de 1868, pelas dez horas da manhã,  disse  à  irmã  que lhe  acendesse um  cigarro e abrisse as janelas,  que sentia  grande calor e ânsia. Sentou-se no leito e inspirou consoladoramente a coluna  de ar frigidíssimo que lhe bateu no rosto,  ao  abrir da  janela.  Pediu uma  chávena  de café,  e,  enquanto a  irmã  o  fazia,  Narcisa  veio para  a  beira  do  padrinho.

— Quem é? — perguntou o cego.

— Sou eu, padrinho. Está melhor?

— Vou estar  melhor,  filha.  Isto  vai acabar.  Quando eu  morrer,  faz  companhia à minha pobre irmã.:.

Narcisa chorava, beijando a mão do cego, que se estorcia nas, dores da cistite.  Ao cair da noite, a prostração, a febre, os soluços e o frio das extremidades  diagnosticavam a gangrena. No 1º de Dezembro, o cego de Landim expirou  reclinado ao seio de  Narcisa, que se  sentara no leito  para  o amparar nos  derradeiros arrancos.

As  suas últimas palavras,  no  delírio que precedeu a  morte,  encerram toda  a  moralidade desta biografia:

— Eu tinha três filhos que criei com tanto amor... Que é deles?...  

E mais nada.

Os três  filhos do cego de Landim afrontar-se-iam com o nome do seu pai? Para  ter  um  peito amigo que o amparasse  na  agonia,  foi mister  que  a  sociedade remessasse  para  dentro  da  alcova  do moribundo uma  mulher  perdida. Mas, lá ao longe, no Brasil, houve lágrimas saudosas, no coração de  uma filha. Pois quando é que Deus consentiu que uma filha as não chorasse..   num epitáfio?

***

CONCLUSÃO
  
No cemitério de Landim está uma sepultura com este letreiro:

AQUI JAZ ANTÔNIO JOSÉ PINTO MONTEIRO

NASCEU A 11 DE DEZEMBRO DE 1808

FALECEU A 1 DE DEZEMBRO DE 1868

TRIBUTO DE GRATIDÃO DE ETERNA SAUDADE QUE LHE DEDICA a sua INCONSOLÁVEL FILHA GUILHERMINA

Ana das Neves ideara  uma  perspetiva de felicidades:  viver  os restantes anos  em  recatada  pobreza,  morrer  mais  desamparada  que  o irmão e ser levada  como quem  remove um  entulho ali  para  aquela  sepultura  onde  se  pulverizavam os ossos execrados do cego.

Estas felicidades não as goza quem quer.

Um dia, a justiça, perseguindo Narcisa pelo roubo de uma coberta de felpo,  soube que a Neves a mandara vender. A ordem de captura envolveu-a como  recetadora de roubos. Invadiram-lhe judicialmente a casa e encontraram, para  maior  prova  do  crime,  um  açafate de  maçãs  camoesas,  dois  calondros  e  algumas batatas que Narcisa recolhera, de colheita aliás suspeitosa, nas lojas da casa da sua protetora. A irmã do cego foi capturada e, sem fiança, encarcerada  na  lôbrega  enxovia  de Famalicão.  Dias depois,  davam-lhe  a  companhia  de  Narcisa, que se entregara  à  prisão,  arrojando a  pistola, quando  lhe disseram  que a Neves estava presa. O juiz misericordioso condenou-as a oito meses de  prisão,  dado que os  jurados as sobrecarregassem de crimes beneméritos  de  degredo perpétuo.

Cumprida a sentença, D. Ana das Neves Miquelina Monteiro vendeu a casa  que o irmão comprara em nome dela. Com o produto dessa venda transferiu-se, em 1872, ao Brasil, e levou consigo Narcisa na Bravo. Parece que não tinha  outros amores neste mundo e desejava expirar, como o seu irmão, nos braços  dela.

E visto  que  não estamos  dispostos a  deixá-la  morrer  nos  nossos  braços,  ó  leitor, parece-me caridosa coisa que a não fulminemos com a nossa honrada  raiva.  Sou de  opinião que sejamos inexoravelmente  severos com os  desgraçados e com as  desgraçadas,  quando  eles e elas repelirem  a  felicidade  que nós lhes oferecermos.

S. Miguel de Seide, Julho de 1876.

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Nota:
Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877) 

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