GRACEJOS QUE MATAM
Ao Dr. Tomás de Carvalho
Ordinariamente, chamam-se, à
francesa, espirituosos uns
sujeitos dotados de gênio motejador, aplaudidos com a
gargalhada e aborrecidos àqueles mesmos que
os aplaudem. São os
caricaturistas da graciosidade.
O
«espirituoso», à moderna,
abrange os variados ofícios que,
antes da nacionalização daquele
estrangeirismo, pertenciam parcialmente aos seguintes personagens,
uns de casa, outros
importados: chocarreiro —
trejeitador — arlequim
— palhaço —
proxinela — polichinelo
— maninelo —
truão — jogral
— goliardo —
histrião — farsista
— farsola —
vegete — bobo
pierrot — momo — bufão — folião, etc.
Esta riqueza de sinonímia denota
que o bobo medieval bracejou na Península
Ibérica vergônteas e enxertias em
tanta cópia que foi
preciso dar nome às espécies.
Ora, o «espirituoso» tem de todas. A antiga jogralidade, que era
mister vil, acendrada
nos secretos crisóis do progresso social,
chegou a nós afidalgada
em «espírito» e com o foro maior de faculdade poderosa, cáustica,
implacável.
Ainda assim, o estreme espírito
português, por mais que o afiem e agucem, é
sempre rombo e lerdo: não se emancipa da velha escola das farsas: é
chalaça.
Há poucos meses,
faleceu em Lisboa um
«espirituoso» que andou trinta ou
quarenta anos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rossio. As
gazetas, ao mesmo
passo que nos inculcavam o
defunto como pessoa que vivera aventurosamente uns setenta
anos tingidos com primoroso pincel,
descontavam nestes defeitos a sua imensa graça e reproduziram nova
edição melhorada das suas anedotas.
Averiguado o «espírito» do homem
em coisas burlescas de que fez mercancia
na feira política, liquida-se, quando muito, um folião que desbragava a
pena e desembestava asselvajadamente o insulto.
Por este, que não deixou
nome sobrevivente para vinte e quatro
horas — nem o terá aqui —, orça a maioria
dos jograis que tenho visto, nos últimos trinta anos, esburgar o osso da
fação que lhes alquila o engenho detraidor e acabarem antes da
geração que os galardoou com a moeda falsa das risadas.
O satírico de sala e botequim é
mais funesto e menos trivial que o político;
mais funesto porque vulnera melindres — coisa que o caloso peito da
política não tem nem finge;
menos trivial porque o chiste de Sterne,
de Byron, de Voltaire, do padre
Isla, de Heine e Boerne não apegou aqui, nem se adelgaça à feição da nossa índole, bem acentuada nas
chocarrices plebeias de Gil Vicente e
António José.
É mais funesto, repito;
porque me ocorre hoje, regressando das Caldas de Vizela,
uma história funestíssima de que
só eu posso lembrar-me.
Duas chalaças terçadas entre dois
amigos cavaram sepulturas de vidas e honras. Se
as novelas pudessem ensinar alguma
coisa, corrigindo aleijões da
alma, eu pediria aos gracejadores que lessem isto; e,
nas ocasiões em que a língua lhes
descabe na boca, engrossada pela opilação da dicacidade, a refreassem
com os dentes.
***
Era em 1851.
Apresso-me a declarar que, no
tocante a nomes e localidades, desfigurei tudo,
salvo generalidades vagas e o lugar em que começa a narrativa. O que
menos monta na exatidão da história é o
que aí se elide. Nomear pessoas e terras seria
denunciar inutilmente um crime, O criminoso está diante do juiz
inapelável e os seus filhos inocentes
respeitam-lhe a memória.
Era, pois, em 1851, aos 15 de
Junho, nas Caldas de Vizela.
Entre os salgueiros que enverdecem uma ilheta
acima da ponte que hoje chamam «velha», à hora da sesta,
emboscaram-se sete pessoas que preferiam
aquele frescor acre do arvoredo,
golpeado por meandros do
rio, ao cheiro sulfuroso e até sulfídrico da «Lameira».
O grupo compunha-se de pessoas de
diversas procedências:
D. Helena da Penha,
chamada na sua terra
a morgada velha.
Cinquenta e tantos
anos, viúva do capitão-mor de
Athey, educada em convento,
murmurando da educação e dos
costumes do claustro, donde saíra
com incertos conhecimentos no
catecismo, e alguma instrução em bisca sueca, e no Feliz Independente, do padre Teodoro de
Almeida. Excelente senhora, que se
conteve viúva desde os trinta e dois anos viçosos e
temperados sanguineamente para
não dar padrasto à filha única.
D. Irene, a morgadinha nova,
vinte e sete anos, galante, mais menina que a sua idade, cheia
de denguices, amimada, acriançando-se em trejeitos
e dizeres, descompondo as artifícios pueris com uns ares
de desgarro e desenvoltura — em bom
sentido, aliás.
Decerto já observou,
leitor, em senhoras de província, um desembaraço
bronco, um remexerem-se
e bacharelarem despropositadamente
— desaires resultantes de lhes haverem dito que o pejo e
o acanhamento são indícios de educação
aldeã. Estes despejos
improvisados sem delicadeza nem
natural, quando topam diversa sociedade em
praias ou caldas, dão-lhes ares do que
não são e abrem margem a suspeitas indecorosas; porque elas, com tais
artes, conseguem desornar-se dos
comedimentos do pudor.
D. Irene eram assim. Depois
veremos o que ela era mais compridamente.
Direi agora dos cinco sujeitos do
grupo.
O abade de Santa Eulália,
passante da meia-idade, pagão em literatura, mestre de Latim no seu concelho de Cabeceiras.
Citava Virgílio apropositadamente.
Quando alguém se dizia regalado com a frescura do salgueiral, declamava
um trecho das Églogas em que havia
sálices. Ao sentar-se na corcova do tronco
retorcido de um amieiro, exclamava
sempre, sibilando as delicias do
meio-grosso: sub tegmine. Tinha reumatismo e contava muitos casos
milagrosos. daquelas águas e outros
casos de amores que ali passaram,
quando ele acompanhava a sua
mãe, no tempo em que as
senhoras de Cabeceiras de Basto por lá
faziam (dizia ele) o seu S. Miguel de amor.
Em cavaco de homens, gretava-lhe a índole e declarava-se o
personagem ou protagonista dos casos atribuídos
a terceira pessoa em presença das morgadas. Honestava com citações de Ovídio (Ars amandi — passim) a lubricidade dos pecados da sua juventude; e dizia com unção de velhaco:
Delicta juventutis meae, suspirando. Às vezes,
encontrando senhoras sertanejas
de Basto, acotovelava o
companheiro de passeio, e murmurava:
«Aqui vem uma das tais» — Uma das
tais vinha a ser uma das suas amadas, de
1825, a sílfide que ele havia ensinado a
dançar o minuete e a gavota com
outras prendas, e não dava agora, no pisar coxo e na gordura fofa, o
mínimo vislumbre de ter sido silfídica e bastante
leveira para o
gingar picado da gaivota. «Está como eu», dizia o abade.
... . . . . . . . . .. . . . . .
. . . . .
Mudado como eu, como ela,
Que a vejo sem conhecê-la!...
cantava Garrett de uma das suas estrelas cadentes.
O abade, ao menos,
conhecia-as, embora enrocadas em tecido adiposo,
e remoçava-as na sua
imaginação saudosa, alindando-as com o colorido escarlate da paixão. Bom
e discreto conversador, se
a matéria obrigava
à seriedade; filósofo eclético, alegre, rijo
de estômago, cabralista por
amor da ordem, e herege,
porque negava que o Espírito
Santo concorresse ao Concilio Tridentino. Em ciências eclesiásticas, ignorantíssimo por livre
vontade e voto deliberado. Eis o abade
de Santa Eulália.
Álvaro de Abreu, da estirpe dos
Abreus de Regalados, filho segundo da casa e
Honra de S. Gens, em Refojos de Basto, bacharel em Direito,
vinte e nove anos compacto de carnes,
barbaçudo, cara plebeia, esbatida nas proeminências malares,
testa descantoada e pilosa
até aos arcos das sobrancelhas. Anel
de ouro com armas:
em campo vermelho cinco
asas de ouro sanguíneas nas
cortaduras postas em sautor; timbre, uma asa idêntica. As mesmas armas
na cigarreira de prata,
e nos botões dos punhos, e na
ametista dos berloques
antigos, pendentes em châtelaine
do cós das calças. Tinha cavalo
e lacaio fardado de azul com
guarnições escarlates, botas de
picaria com prateleira e espora
amarela encorreada de branco.
Era inteligente como a
maioria dos bacharéis formados, e talvez mais. Em
Coimbra, dado que não versejasse, era da
roda do Couto Monteiro, do Luís de Beça Correia, do João de Lemos, do brasileiro
Gonçalves Dias, do Lima poeta e
do Evaristo Basto. Recitava
sentimentalmente às morgadas os solaus
dos irmãos Serpas; e as paródias do Beça
e Couto Monteiro.
Cábula a minha pachorrenta e gorda
Quem dentre as folhas te espremeu dos livros!
Ou então, o caso da castelã que
desafogava saudades:
... . . . . . . . . .. . . . . .
..
tangendo no mandolim,
e a chorar dizia assim:
«Ó fado que foste fado,
ó fado que já não és!»
Cito de memória, pouco fiel
nestas coisas conspícuas.
Da convivência daqueles rapazes
ficou-lhe um verniz epigramático. Flagelava
os padres do seu sítio com chalaças, era mais fino nos remoques ao
cirurgião, e fizera mudar da terra o
boticário, com quem se inimizara inexoravelmente desde que ele, por causa de umas eleições municipais,
solenizadas a arrocho, o doestou, no
Periódico dos Pobres,
de ateu e carbonário. Ainda
havia carbonários e ateus naquele tempo.
Hoje há mais fé. . e petróleo.
Álvaro de Abreu tinha a saúde atlética e vermelha
que eu desejo aos meus leitores.
Viera a Caldas porque ali
namorara, no ano anterior, a morgada nova, a sua prima
em quarto grau; visitou-a em
Athey nas festas de Natal
e Páscoa, e combinou então encontrarem-se em Vizela.
Outro:
João Pacheco, do Arco de Baúlhe,
morgado de Vale Escuro.
Um gentil rapaz de vinte e quatro
anos, educado em Lisboa, onde tinha nascido, quando o seu pai
comandava uma brigada realista. Era órfão desde
1832. Aos vinte
anos emancipara-se, e retirou-se
para a província, onde possuía fartos bens e tias solteiras que
muito lhe queriam e o indemnizaram dos
mimos que não gozara na infância.
Asseveravam-lhe as tias que ele descendia de Duarte Pacheco Pereira — o
Aquites Lusitano...
— Que morreu no hospital... —
atalhava o rapaz.
— A infâmia a quem toca. . —
emendava a Sra. D. Isabel Pacheco, freira
beneditina bastante instruída.
E, abrindo Os Lusíadas, apontava
dois versos em que Luís de Camões vingava
Duarte Pacheco da injuriosa ingratidão de D. Manuel:
Isto fazem os reis cuja vontade
Manda mais que a justiça e que a verdade.
João Pacheco sorria-se.
A freira azedava com o desdém do
sobrinho e repetia-lhe a ode pindárica de
António Dinis, consagrada
ao seu avô. Era, porém,
quase ridículo o entusiasmo antigo da filha de S. Bento,
declamando com teatral gesticulação a
farfalhuda estrofe:
Cem faraós torveados
Donde por bocas mil brota
Mavorte Entre horrorosos brados,
Em fogo, em fumo, em sangue envolta a morte,
Zargunchos, frechas, que em chuveiros voam;
Elefantes bramindo a terra atroam;
Neptuno da batalha ao som horrendo
No fundo mar se espanta;
Nos eixos muda a terra está tremendo,
Mas nada o grande coração quebranta.
— O que eu penso
desses versos — dizia
o sobrinho da
transportada senhora — é
que o bravo Duarte Pacheco espatifou muito índio, fez
espadanar muito sangue de povos que
defendiam o seu lar, e nunca
vieram aqui atacar o nosso. Ora,
a Providência castigou o Aquiles Lusitano, baixando-o a tragar na barra dos
desvalidos a miséria do rei de Calecut, arrojado por ele do trono à indigência.
Com poucos mais traços, está
bosquejado o perfil ideal de João Pacheco.
Completá-lo-ão os sucessos
ocorrentes nesta história.
A sexta pessoa do grupo, que
povoava o sinceiral do Vizela, era um dos Saint-Preux portuenses, o modelo
acabado da beleza varonil, já passante dos trinta e cinco
anos, cansado, mas fingindo que amava sempre porque
era deveras querido.
Não sei se
ele, à imitação do
marselhês Louis Gauffredi,
pactuara com o Diabo dar-lhe a
alma em troca das mulheres que soprasse; o que sei é que as damas que ele quis, sopradas ou não,
amaram-no. Parte dessas estava nas
Caldas, a abrir o apetite enfarado ou a diluir os empachos da nutrição
rija. As meninas anêmicas e eloróticas
dos trovistas da atualidade,
em 1851, pertenciam ainda à
embriologia; assim como os bardos, que atualmente lhes receitam boi e vinho do Porto,
fermentavam no ventre da Ideia..
com I grande.
José de Almeida,
o dom-joão do Porto, bem que
reconhecesse os amavios
corpóreos da morgada de Athey, chegara à idade em que o espírito,
ganhando entojo às carnalidades, entra a
namorar-se da beleza moral. Almeida zombava
dos trejeitos, do palavreado,
das relambórias denguices de Irene.
Quem o atraia àquele grupo era
João Pacheco; e quem atraía João Pacheco era o abade de Santa Eulália com o engodo das anedotas,
com a simpatia das boas tolices e a
prodigiosa arte de exorcizar a tentação do suicídio das pessoas que penam em Vizela quinze dias de Junho. José de
Almeida me dizia a mim...
A mim?.. para um homem muito diverso que há vinte e
quatro anos tinha o meu nome, e esse tal era o último do grupo.
***
Dizia João Pacheco a José de
Almeida uma vez:
— Este Abreu, se não tivesse
cartas de bacharel, seria um homem regular; porém,
como não advoga, nem faz leis,
nem as interpreta, quer à força
mostrar que a formatura lhe deu alguma distinção. Faz espírito. Traz
sempre consigo as pilhérias requentadas
que forrageou em Coimbra e não perde lanço
das desfechar contra o abade ou contra mim, se D. Irene lhas pode
vitoriar com o sorriso parvoeirão. Eu já
lhe disse que os seus gracejos incomodavam o
abade e me não lisonjeavam a mim. Se não se emendar, um dia jogo-lhe
um remoque desagradável e amordaça-o na
presença da menina.
Isto dissera
João Pacheco naquele dia em que o
grupo, à
hora da sesta,
se embrenhou no salgueiral.
Nesta ocasião, Álvaro de Abreu
refinara no sestro da mordacidade. O coração tem crises de embriaguez e
sobre-excitações sanguíneas que refluem às bossas cranianas. A morgada naturalmente deixara-se
apertar suavemente nas polpas do
antebraço e correspondera à pressão voluptuosa.
O bacharel, a meu
ver, esponjava as suas chalaças da
abundância do coração. Eu também tive dose na
sua liberalidade. Estava
eu a entalhar um M na
casca de um
amieiro. Era a
inicial de uma das cinco Marias que eu amava.
— Esse M —
disse ele galhofando
— pode significar uma celebrada
exclamação vociferada por Cambronne em Waterloo.
— Prove a exclamação histórica —
interveio José de Almeida, vingando-me com aquele riso percuciente dele.
Todos perceberam,
salvante as damas, que não
conheciam os aromas da história de França.
— Que horas são? — perguntou
enfastiada a morgada Irene.
— Cinco —
responderam todos, abrindo
os relógios, exceto
João Pacheco.
— Singular caso!
— disse ele —, tenho este
relógio há doze anos;
é a primeira vez que pára, tendo
corda. Se o ar sulfúrico de Vizela tiver sobre o dono a influência que tem sobre o relógio,
serei obrigado a parar; e parar, diz não
sei quem, é morrer.
— Mas é que tu precisas de
corda.. — remoqueou Álvaro.
— De corda preciso;
de carrasco é que não, contando contigo —
redarguiu Pacheco.
— Apanhe aquele pião à unha, Sr.
Doutor! — exclamou o abade de Santa
Eulália.
As duas morgadas riram-se com bastante
inteligência; e José de Almeida, golfando três novelos de fumo da pipa do
cachimbo turco, regougou:
— Bem boa!, bem boa!, essa vou
escrevê-la. .
E tirou a carteira.
Álvaro de Abreu enfiou. As damas
fitavam-no de modo que o esporeavam a
desforrar-se. O riso vingativo do abade torturava-o; e; por fim, o
silêncio de todos era um comum vexame:
sentia-se mortificada a gente.
D. Helena da Penha ergueu-se do
seu frouxel de junco e relva, dizendo:
— Vamos dar um passeio na
ponte.
***
Todos se debruçaram no parapeito
da ponte, menos Álvaro de Abreu, que se
retirou à entrada, pretextando o que quer que fosse.
— O doutor ficou entupido! —
disse o abade. — Foi uma embarrilação
bem merecida.. Onde se dão aí se apanham.
Cuidava ele que todos nós éramos
espolinhadoiro do seu espírito!... Sempre com o dedo no gatilho da
graçola! Uma graça atura-se;
mas estar sempre
com o dente mordaz arreganhado, isso é próprio dos botequins, em
camaradagem de estudantes e banabóias.
— Tem razão, Sr. Abade —
obtemperou D. Helena —, mas, a falar o que
é verdade, o Sr. Pacheco respondeu muito forte.
Aceito a repreensão da
vossa Excelência — disse urbanamente
o cavalheiro —, mas
peço licença para não
me arrepender. Quem
me considera talhado
para a corda não se ofenda se eu o reputo digno de exercitar o
instrumento da forca.
D. Irene exclamou:
— Credo!
Era a expressão espontânea do
horror à palavra forca.
E, espevitando a língua,
continuou saracoteando-se:
— Não gosto
dessas coisas.. Estou nervosa.
. O
Álvaro ia pálido e
trémulo..
Vejam lá se
fazem algum desaguisado por causa de uma
graça. . Vamos embora, mamã!
Estou muito nervosa...
veja...
E oferecia o pulso ao abade.
— Tem febre? — perguntou a mãe
alvoroçada ao abade.
— Está agitadinha — confirmou o
abade, envesgando para nós os olhos
zarolhos de velhacaria. — Quer apalpar, Sr. João Pacheco?
— Não percebo de pulso — disse o
convidado.
Com licença. . —
interveio José de Almeida, — Eu
vejo. —E, tateando
o pulso de Irene com o relógio
aberto, disse: — Cem
pulsações por minuto. Isto não é febre..,
é amor, a minha senhora. .
— Boa! —
disse a menina,
retirando a mão —,
o Sr. Almeida
tem lembranças! O amor sente-se
no coração, não é no pulso.
— O pulso é o
denunciante do coração —
retrucou o portuense. — O amor é o sangue mais apressado.
— Faltava-me ouvir essa!
— notou D. Helena, jubilosa por ver que a
menina já sorria.
— Em boa ciência é aquilo que diz
o Sr. Almeida — confirmou o abade.
— Efetivamente, o amor acelera a
circulação do sangue.
— Aqui tem o voto de pessoa
experiente — disse Almeida.
— Está feito...
— assentiu o abade, dando à
cabeça três ligeiras
demonstrações de consentimento.
— É muito prendado,
não tem dúvida... — respondeu
ironicamente a viúva do capitão-mor de Athey. — Ora, tenham
juízo!
— Que remédio senão tê-lo, a
minha senhora! — redarguiu
o clérigo pagão. — Sátiro velho
não topa dríades nas florestas.
— Como estás, menina? — perguntou
D. Helena à filha.
— Queria eu dizer, Excelentíssima
Senhora, que o juízo em mim, velho de cinquenta
anos, não se recomenda, lastima-se.
— Como estás, menina? — perguntou
D. Helena à filha.
— Sobressaltada.. Tenho medo de alguma desordem... O
primo Álvaro tem tão mau gênio...
E fez várias visagens.
— Agradeço a sua compaixão, a
minha senhora — ocorreu João Pacheco —;
mas peço-lhe que empregue a sua sensibilidade mais oportunamente.
***
Ao empardecer da
tarde, José de Almeida foi procurado na farmácia da Lameira, onde então florescia um boticário
que parecia imortal pelas sandices
originais — e ninguém já hoje se lembra dele! Este pais não é para
ninguém: desenganemo-tos.
Era João Pacheco a chamá-lo de
parte para lhe dizer:
— Acabo de ser procurado por dois sujeitos de Braga, que se
dizem padrinhos do desafio a
que sou reptado por parte do Abreu.
Respondi-lhes que eu enviaria
pessoa com quem se entendessem, — Estou às tuas ordens — condescendeu prontamente Almeida,
que era padrinho vitalício
de todos os
duelos daquele tempo na sua
briosa cidade. — Que arma escolhes?
Sabre?, florete?, pistola?...
— Mais devagar — atalhou o
morgado de Vale Escuro. — O Abreu não
joga arma nenhuma. O meu mestre de tiro foi o marques de Nisa, de sabre
foi o Chico Belas e de florete foi o Petit.
Sei pouco; mas sei mais que Álvaro. Se
lhe aceito o duelo, vou
seguro da minha superioridade, e,
pouco mais ou menos, não sairei do campo com a consciência
mais tranquila que um
homicida. Vai tu, se me queres obsequiar, dizer isto aos padrinhos.
José de Almeida voltou à noite, —
O Abreu teima em bater-se — disse-lhe
ele. — Quer duelo de morte, pistolas
carregadas e desfechadas à
ponta de lenço.
— Vai declarar aos padrinhos que aceito —
deliberou serenamente João
Pacheco.
— Estás doido?!
— Faz o que te digo.
— Escolhe outra testemunha,
enquanto eu vou avisar o
regedor — retorquiu sorrindo José de Almeida. — Eu
pensei que eras um rapaz valente e
prudente. Não te batias, há pouco, porque as tuas vantagens repugnavam
ao cavalheirismo; e aceitas
o combate, dada
a igualdade que pode dar-se entre dois assassinos estupidamente ferozes!
Pacheco ria-se: e Almeida
discorria razoavelmente.
— Faz o que te digo — repetiu o
morgado. — Pois tu, criança, persuades- te que o Abreu deseja bater-se em tais
condições? Os covardes têm fantasias
dessas enquanto o desafio procede nas incruentas conferências
dos parlamentários. Assevera
tu ao Álvaro que eu
aceitei o combate à ponta
de lenço; e espera o desfecho.
— Mas supõe que ele sustenta a
palavra!...
— Sustentarei a minha. — E,
batendo-lhe no ombro, acrescentou: — Vai
sossegado.
O homem tem mais amor ávida que à
honra. Ouviste? Se ele propuser o duelo
à ponta de língua, declara logo que não aceito.
Os bracarenses, ouvindo a
resposta de Almeida,
ficaram embaçados e atónitos. O
mais cordato, com o
louvável intento de economizar sangue
ilustre, ponderou que era uma
desgraça matarem-se dois cavalheiros
da primeira nobreza do Minho, e
aventou o seguinte:
— Se João Pacheco lhe desse uma
satisfação na presença das pessoas que
ouviram a injúria. .
— Satisfação.., como? — inquiriu
Almeida. — Dizer-lhe que não o reputa
carrasco?
A emenda é pior
que o soneto. Não proponho isso. Deixá-los
matarem-se!
Morrem gloriosamente. Tanto faz
morrer de cálculos na bexiga como de uma
bala no coração.
João Pacheco já teve em Lisboa e
Madrid quatro duelos de morte, e está vivo.
— Parece-me isso
extraordinário! — observou maravilhado o braguês,
supondo que no duelo de morte era obrigatório morrer.
— Não há nada de extraordinário.
O estilo estatuído no Código de Honra é
que as pistolas, uma cevada de pólvora e pelouro e a outra simplesmente de pólvora,
sejam sorteadas. Pacheco teve
sempre a sorte por
si. Mas o nosso
caso é outro. Morrem ambos irremediavelmente.
— E nós?, que há
de ser de nós? —
atalhou sobressaltado o filho
da outrora circunspecta Braga.
— Nós? — respondeu Almeida. —
Praticaremos a rara virtude de nos não
matarmos, Os senhores fogem para
a sua terra e eu para
a minha. É o que legisla
o Código de Honra. As testemunhas, não
podendo depor acerca da honra
dos afilhados mortos, safam-se a
unhas de cavalo. O
restante da tragédia pertence ao
coveiro.
Um dos padrinhos fez menção de
lavar as mãos e disse:
— Eu cá de mim...
— É Pilatos neste negócio? —
perguntou o portuense.
— E dois —
respondeu também o outro, recordando e recitando três
passagens pesadas de um livro do conselheiro Rodrigues de Bastos a
respeito de desafios.
— Em que ficamos? — rematou José
de Almeida. — Deixe lá o sermão.
— Vamos falar com o Abreu: e ou ele desiste de se
bater, ou nós declinamos a missão.
— Pois não se demorem, que João Pacheco já está
escrevendo as suas disposições testamentárias.
***
Conquanto a bravura não fosse o
predicado mais proeminente do amador de
Irene, deu-se nele um fenômeno de heroísmo que pertence aos
milagres do amor. A nova,
que os pálidos agentes lhe levaram,
apenas o desfaleceu por
instantes. A imagem da prima foi-lhe, como a visão de Palas aos
guerreiros da Grécia de Homero,
acoroçoando-lhe alentos sobrenaturais à sua índole.
— Pois morreremos! — exclamou ele
com ar de Leônidas no desfiladeiro das Termópilas.
— Resolves então morrer? —
perguntou um dos padrinhos.
— Que remédio?!
— Arranja outras testemunhas... —
intimou o segundo padrinho. — Nós temos
deliberado abrir mão desta asneira. Se te batesses por um motivo sério, verbi
gratia, se o Pacheco te desonrasse uma irmã ou coisa semelhante, ou te chamasse algum nome injurioso, ladrão, verbi gratia, então estaríamos ao
teu lado, e até seríamos os primeiros
a defender-te com as armas
na mão;
ora agora matar-se um homem a
troco de uma chalaça que não vale dois caracóis, isso é a bestialidade maior
que pode praticar um homem, se não está doido
furioso! Lá que tu, verbi gratia.
.
— Não dês mais razões — atalhou
Álvaro de Abreu. — Procurarei outros
padrinhos...
Altercaram até às dez e meia da
noite. Um dos dois
bracarenses, que argumentava
valentemente com o recheio do verbi gratia, repetiu as sãs doutrinas do conselheiro Rodrigues de Rastos,
piorando-as na linguagem. O certo foi
que a pertinácia do sensato amigo vingou abalar o ânimo renitente de Abreu, a ponto de lhe incutir por um lado da
alma o raciocínio e pelo outro lado o
medo.
Entretanto, no quartel do morgado
de Vale Escuro ocorriam casos notáveis. José
de Almeida, encontrando às onze
horas da noite o abade de Santa Eulália, que vinha de fazer a partida de
voltarete à morgada de Athey, disse-lhe ao ouvido:
— Os homens matam-se amanhã ao romper
da aurora. O
Sol, quando nascer.., verá dois cadáveres.
O
abade não duvidou. A
catadura do portuense tinha os
assombros da catástrofe.
— Jesus, santo nome! — exclamou o
padre. — Eu vou avisar o regedor, se me
dá licença; e quer dê, quer não, o meu dever é evitar tal desgraça.
— Não evita
nada, abade. O
regedor só pode prendê-los no
conflito de transgredirem a lei.
Quem sabe o lugar onde eles vão matar-se?!
O
abade apertou o passo,
retrocedendo para casa de D.
Helena. Entrou ofegante e roxo. Assoprava as palavras e
embebia no lenço vermelho as bagas de
suor que lhe bolhavam na testa. Referiu o que soubera de José de Almeida. Irene, que estava ceando bifes de cebolada,
foi logo atacada de histerismo, e a
mãe arrotava nas ânsias
espasmódicas do flato. Outro padre que ali
estava, capelão e administrador
da casa de Athey, pegou a declamar contra a relaxação do País, desde 33 para cá.
— Sra. Morgada! — alvitrou o
abade atalhando a objurgatória política do
outro —, aqui perto de nós mora o Sr. João Pacheco. Se a vossa
Excelência quer, vamos lá. É impossível
que este cavalheiro resista às reflexões de uma
senhora que ele tanto venera!
— É já — assentiu D. Helena
cobrindo-se com o xale e recomendando ao
capelão que fizesse companhia à menina.
Quando entraram, havia
conferência entre os padrinhos de Álvaro e José de Almeida.
João Pacheco, segundo o estilo, não era presente;
mas, contra o
estilo, em tais andanças, estava a dormir. Foi chamado para receber a
visita da Sra. Morgada. Espertou
estrouvinhado e foi à saleta onde a senhora dialogava ansiadamente com Almeida e com os outros
acerca do desafio. O portuense havia já
anunciado que as condições mortíferas do duelo estavam modificadas.
Abreu, coagido pelos
padrinhos, prescindira de morrer,
e propunha o
combate nos termos comuns.
A fim de aplacar as agonias flatulentas
da viúva, Pacheco asseverou-lhe que
não haveria ferimento de perigo. Quanto a recusar-se ao desafio,
consoante a dama rogava, alegou que a
sua dignidade lho proibia. Redarguiu a consternada senhora que ia pedir ao seu primo Álvaro que
desistisse do duelo.
— Se ele desistir —
observou Pacheco —, tem a vossa
Excelência conseguido o seu bom
intento; mas coloca
o seu parente em má posição perante
os cavalheiros em quem
confiou a desafronta
da sua imaginária
desonra. Vá descansada,
a minha senhora. O seu
futuro genro não sofrerá
mutilação de espécie alguma. O nosso combate será um simulacro de
esgrima, uma espécie de ginástica de
sala com espadas sem ponta nem gume.
***
Ao repontar da manhã,
atravessamos o Vizela por
umas alpondras sobre as quais se
encurvam hoje os arcos da Ponte Nova. Trinavam ainda os rouxinóis nas margens frondosas do rio e ao longe
assobiavam melros e grasnavam as pegas
nos pinheirais. A
corrente murmurosa trapejava nas franças dos amieiros debruçados à flor
da água.
Daí ladeamos o Banho
do Mourisco, à volta do qual
estavam umas mulheres aldeãs espulgando-se nos seios com um despejo digno da inocência da Arcádia. Os
homens respetivos escodeavam as
calosidades calcâneas ou atarracavam tachas nos tamancos.
Depois subimos uma charneca
declivosa por onde hoje se alarga e complana a
estrada de Penafiel
e entramos numa encosta
de tojeiras e sargaçais. Carregámos
à esquerda, fraldejando o outeiro por sobre o
bravio, e emboscamo-nos por boiças de carvalheiras até
encontrarmos uma clareira chã e menos
acidentada.
— É aqui — disse Almeida aos
padrinhos de Álvaro.
Os combatentes despiram as
quinzenas e os coletes.
Os pulsos de Álvaro negrejavam
cabeludos e quadrados, de uns que o povo
diz que têm só uma cana, como sinal de rijeza inquebrantável: os dedos
eram penugentos e trigueiros, com as
unhas sujas. As mãos de João Pacheco eram
magras, translúcidas e depauperadas do bom sangue que tinge a epiderme.
O que me deu a mim alento e esperança na vitória
de Pacheco foi o sereno e risonho
aspeito do rapaz e a confiança na arte que neutraliza os ímpetos da força.
Rompeu o combate à voz de José
de Almeida. Álvaro de Abreu —
caso singular! — fechou os olhos
e floreou a espada em sarilho tal que o adversário lhe cedeu terreno, aparando-lhe uns botes e
esquivando o embate dos outros.
Eu seguia ansiado aquele
vertiginoso redemoinho do aço que lampejava e o
tinido aspérrimo das lâminas. João Pacheco bradou:
— Pare lá.
Álvaro estacou, provavelmente
pensando que o adversário estava ferido.
— Este homem — disse o outro às
testemunhas — fecha os olhos, não se defende, e eu involuntariamente posso
matá-lo!
— Se me permite uma reflexão
— interpôs-se Almeida
dirigindo-se a Álvaro de Abreu —, o senhor está enganado com
o seu sistema de esgrimir às cegas. Como
há de ver a espada do seu contendor?
— Não sei jogar espada —
respondeu ele. — Faço o que sei e posso.
— Vejo que pode; mas o que sabe é
perigoso — contestou Almeida. — a vossa Senhoria era já cadáver, se o quisesse
o Sr. Pacheco. Bata como quiser, mas
veja o que faz: abra os olhos.
— Parece-me acertado — obtemperou
um braguês com assentimento do outro.
Recuaram ao ponto designado no
terreno. Rompeu Álvaro no mesmo
estilo de pancada
de cego, mas com os olhos
coruscantes e esbugalhados.
João Pacheco fez-lhe uni golpe dos
primorosos da arte, o coup de manchette,
no antebraço, sobre os tendões que
inserem no pulso, com destridade e limpeza
dignas das artes benfazejas. Estava desarmado o possante Abreu. O
discípulo do Chico Belas honrara o
mestre. (*)
[(*) Chico Belas era D. Francisco de Castelo Branco, irmão do conde de
Pombeiro. Foi oficial de cavalaria, teve vida
de amores aventurosa e altíssima, morreu em 1862 cancerado, podre de embriaguez
e de devassidão. Conheci-o, em
1861, idiota, a babar-se e a pedir um pataco para genebra. Os seus
nobilíssimos parentes não puderam nada
contra o destino deste homem, que exercitara o magistério na esgrima, na gineta
e na galanteria bruta e... feliz!]
***
João Pacheco almoçou com José de
Almeida para, em seguida, se recolher à sua
casa do Arco. Percebia-se-lhe um aborrecimento
penoso do sucesso. Confessou que tinha vergonha deter ferido
um homem que desconhecia o jogo
das armas e fechava covardemente os olhos.
Retirava-se para evitar
o espetáculo em que havia de
exibir-se logo que a triste façanha se divulgasse.
Acompanhamo-lo até Guimarães. Aqui
nos disse ele:
— Não vos admireis se um dia vos
constar que fui assassinado à traição. O
rancor do Abreu há de respirar
seja por onde for.
Na família antepassada deste homem há crimes que dariam matéria para
um romance sanguinário. Os próprios
parentes dizem que o pai de Álvaro matara o irmão para lhe suceder no vinculo e matara um cunhado para
administrar e desfalcar a casa da irmã.
Era capitão-mor e amordaçava as suspeitas.
Este filho herdou-lhe a índole;
mas, aquecido ao sol de outra civilização e mais cultivado que o pai, supura-lhe a peçonha na
língua. Não o temo a ele; mas devo acautelar-me dos facinorosos que acoita
na sua casa,
como se prevalecessem ao novo
sistema as antigas Honras dos paços senhoriais.
Quando voltamos de
Guimarães, Álvaro de Abreu
passeava na estrada, de
braço ao peito, com as primas e com o abade de Santa Eulália.
— Íamos agora
visitá-lo, Sr. Abreu
— disse José de Almeida. —
Ainda bem que o encontramos excelentemente
disposto.
— Estou bom — respondeu
secamente.
— Fê-la bonita o Sr. Pacheco!...
— invetivou D. Helena.
— Ainda há de topar quem lhe
abata as bazófias.. — acrescentou a
filha, chibatando com o guarda-sol um
festão de madressilva.
— As minhas senhoras — contrariou
solenemente José de Almeida —, o Sr.
João Pacheco procedeu com extremado cavalheirismo.
— Muito cavalheiro!, pois não! —
replicou D. Irene sarcasticamente com
uns esgares lorpas.
— Com toda a certeza, muito
cavalheiro — insistiu o portuense. — Aqui está o Sr. Álvaro de Abreu que me não
desmente.
O invocado respondeu
grunhindo:
— Hum.
E Almeida prosseguiu:
— Se as vossas Excelências, as
minhas senhoras, não negassem a honradez
generosíssima de João Pacheco, eu teria a conscienciosa obrigação de
apelidar infame quem lha duvidasse.
Assim, pedindo vênia a vossas Excelências para
não dar peso à sua opinião em matérias tão alheias do seu juízo,
sustento que é um biltre quem negar o cavalheirismo
de João Pacheco na
pendência que teve esta manhã com o Sr. Álvaro de Abreu.
E, fitando-o, esperava resposta,
que não logrou.
— Acabou-se! —
interveio o abade. — Com
águas passadas não moem moinhos...
— Diz bem, Sr. Abade — aplaudiu a
morgada velha. — Não se fale mais nisso.
— O que eu sei — juntou Irene — é
que, no ano passado, gozamos em Vizela
dois meses deliciosos; e este ano veio aquele Sr. Pacheco lá de Lisboa perturbar a nossa alegria com as suas prendas
de jogador de espada.
José de Almeida sorriu-se com o
mais característico gesto de mofa, abaixou a
cabeça sem se
descobrir e retirou-se sacudindo a
calça com o chicote de
baleia.
Montado no cavalo de que apeara,
quando avistou o grupo, disse-me rubro de
cólera:
— Aquela mulher fez-me acreditar que é possível
dar-se um pontapé
na parte posterior do merinaque
de uma senhora.
***
Quando, por fins de Junho, saímos
de Vizela, mexericava-se que um rapaz do
Porto, oriundo de família
inglesa e celebrado por
vinte e sete fraques que estadeava com os
respetivos coletes, fora
visto, à claridade da lua
cheia, cochichar com Irene, ele
no quinchoso e ela no muro do quintal.
Em fins de Julho, José
de Almeida, no encalço
de uma liteira portadora
de certo objeto amado, voltou a
Vizela e observou uns aleijões psicológicos na
enfermidade crónica chamada o sexo pelas senhoras de Basto.
A saber:
Irene, admitida aos saraus e
passeios das ilustres famílias da Torre da Marca, Machados Pindelas, Guedes da Costa, Alentém,
Infias e Paço de Sousa, ouvir a motejar
de Álvaro, à conta do desafio, por causa das grotescas arremetidas de esgrima
pelo sistema obsoleto da cabra-cega.
Alguns fidalgotes, às vezes, no
meio das salas, sem se resguardarem da morgadinha, fechavam os olhos e terçavam
as bengalas com atitudes farsistas. As gargalhadas atroavam, e Irene disfarçava o despeito perguntando às vizinhas
que brinquedo era aquele. Afinal,
teve uma sincera amiga
que lhe explicou o libreto daquelas pantomimas, metendo a riso o Abreu.
Coincidiu então a
chegada do sujeito dos vinte
e sete fraques a Vizela, galhardeando em prendas de sala, e savoir
vivre com mulheres, muito
distintamente. De feito, Jacques Smith, educado em Londres, enfarinhado
nos ademanes franceses, enfronhado em
vaidades de fidalgo que tinha os ossos do
seu patriarca saxônio na Palestina, elegante e quase inteligente, formava
de tudo isto, reunido aos
vinte e sete fraques
e respetivos coletes, uma
personalidade capaz de sensibilizar damas no uso de caldas e amor.
A frescura montezinha da filha do
capitão-mor de Athey, a garridice um tanto
canhestra, os seus saltos
de ovelha espantadiça e o fluido do olhar que ela derramava remirando-o de esconso escandeceram
Smith. Era atrevido como todos os
sujeitos de cerebelo grande, onde demora a bossa da amatividade. A lua cheia de Junho e Julho viu coisas que a
poesia costuma idear nas varandas das
Julietas e que a prosa espreita em qualquer horta de couve galega por
entre festões de abóbora-menina.
O bacharel Abreu não viu tanto
como a casta Lua; mas farejou. O rival tinha o
prestigio que esmaga com a superioridade. O
coração do homem traído abisma-se
a chorar na consciência que diz: «Eu valho menos que o meu rival.» Enfureceu-se, e vozeou rusticidades à prima,
que lhas escutou como quem as recebe
impassivelmente com a condição de perjurar. Não se desculpou nem carpiu. Aborrecia-o, porque era
irrisório desde o duelo, e porque
estava perdida de amor,
fulminada por Jacques Smith, bom tipo da
perfeição viril, tirante as
escrófulas cicatrizadas no pescoço.
Álvaro de Abreu foi para a
sua aldeia. Jacques voltou em princípios de
Agosto, com José de Almeida, para a praia da Foz.
Perguntando-lhe Almeida se
a morgadinha de
Athey passara à história, respondeu:
— Pois então!
— Era uma rapariga fresca. . —
disse o outro.
— Sim, fresca e indigesta como a
melancia.
***
Em uma gazeta do Porto, de 15 de
Novembro do mesmo ano de 1851, lia-se
esta correspondência datada no Arco:
Esta vila sofreu a perda irreparável de um cavalheiro consumado em toda
a extensão da palavra e representante de
uma família, talvez a mais ilustre das províncias do Norte, pois
entre os seus avoengos se conta o grande e imortal Duarte Pacheco
Pereira, por antonomásia o Aquiles
Lusitano e o Leão dos Mares.
Ontem de manhã saíra o Sr. João Pacheco a visitar uma a sua prima em
Refojos de Basto, onde passou o dia
até às quatro
da tarde. O cavalo
em que montava era um potro
não educado ainda e comprado nas
manadas espanholas que vieram à feira de S. Miguel. Os seus amigos, posto que João Pacheco fosse
ótimo cavaleiro, muitas vez s lhe observaram que os caminhos precipitosos destas aldeias eram
impróprios para ensinar potros.
Fiado, porém, na destreza do pulso e firmeza de joelhos, o temerário
cavaleiro rompia por esses algares e barrocais
com um denodo digno de melhor
emprego. Realizaram-se funestissimamente as previsões dos seus
amigos.
Ao lusco-fusco entrou pelo portão da casa de Vale Escuro o potro sem o
cavaleiro, com as rédeas e bridões despedaçados. O mesmo foi levantar-se na
casa um clamor a que todos os vizinhos acudiram. João Pacheco era
extremosamente amado por três
tias, respeitáveis senhoras, que
não viam outra
coisa neste mundo. Amigos e criados, salmos todos pelo caminho de Refojos; e a meia légua de
distância, num barrocal fundo e lamacento (espetáculo doloroso!), encontramos o cadáver de João
Pacheco, de bruços, com as mãos submersas no
lamaçal e sem gota de sangue que denunciasse o órgão ferido. Como já era
escuro, e o cadáver só podia
levantar-se depois do exame judiciário,
ali ficamos alguns amigos até
ao dia guardando
os despojos de tão nobre
rapaz, desastradamente morto
na flor da vida!
O cirurgião examinou-o
e apenas lhe encontrou o crânio
amolgado, sem extravasação de
líquidos, exceto dois fios de
sangue que derivavam do nariz. Presume-se com bom fundamento que o cavalo o cuspira contra uma
rocha angulosa que forma um dos valados da
barroca; porque também na
palma da mão
direita mostra contusões
resultantes de se amparar contra as
escarpas do penhasco. Não pode atribuir-se esta catástrofe a outra causa que não seja a queda. Se fosse homicídio,
seriam outros os vestígios de ferimentos; além de que, João Pacheco era benquisto,
honestíssimo, respeitador da
honra das famílias, não
obstante haver sido criado e educado em Lisboa.
Além de rico, era um gentil
rapaz; pois não consta que deitasse a perder algumas dessas centenas de jovens pobres que se consideram
felizes quando os fidalgos as levam à vereda da
desonra.
Nós, os seus amigos, chorá-lo-emos enquanto as suas virtudes lembrarem
como exemplo a Filhos e cidadãos. Que descanse
na perpétua morada da virtude o tão chorado mancebo; e peço ao altíssimo resignação para a sua
inconsoláveis tias!...
Quando li
compungido esta correspondência, lembraram-me as palavras
de Pacheco, na última hora em que
o vi: «Não vos admireis se um dia vos constar
que fui assassinado à
traição.» Comuniquei a minha desconfiança a
José de Almeida, — Palpita-me que foi assassinado
pelo Abreu! — concordou o meu amigo, e
acrescentou: — Escrevo hoje ao abade de Santa Eulália, citando-lhe as palavras de João Pacheco e pedindo os
pormenores do desastre.
O abade respondeu que eram
infundadas as nossas desconfianças; porquanto,
no dia 11, em que João Pacheco perecera, estava Álvaro de Abreu na feira
de S. Martinho, em Penafiel,
com ele, abade, e com as senhoras morgadas de Athey;
e que por sinal nesse dia perdera
o Abreu cento e tantas moedas de
ouro ao monta, à vista de dezenas de pessoas que nunca o tinham visto
jogar.
E rematava a carta deste
teor:
Os namorados fizeram as pazes. A pequena veio das Caldas muito coada de
cores e com grandes.. Olheiras
(ia a escrever
«orei/ias»). Nos primeiros
dias, enfanicava-se a cada
passo e dava uns ais românticos
como as damas de Basto de
1825. Infandum...renovare dobrem. Depois, a mãe, que é também matreira
de 1825, escreveu ao Abreu dizendo-lhe que a sua filha era vítima da ingratidão
dele. Aquela «lua cheia» de Vizela de que a vossa Senhoria me falava, não foi
ouvida a tal respeito. Ora o Abreu quer-me parecer que sabia pouco menos que a referida
Tétis e que o janota luso-britânico de que
reza a
crônica escandalosa das termas
romanas do corrente ano, 1890, da era de César. Porém, como o patrimônio dele é magro e as fazendas de
Athey são de encher (e de fechar) o olho, a vossa Senhoria
verá que, afinal, a morgadinha,
embora não tenha
de desatar a cinta
virginal, apanha marido, parente,
fidalgo e bacharel. Se. depois, as costelas lho pagarão, isso não é da minha
conta. Lá se avenham; mas melhor será que ele se resigne, e feche os olhos como
no duelo, porquanto
saco com honra e proveito
é raro, ou não
o há, se o
anexim é tão verdadeiro, quanto eu sou da vossa Senhoria amigo e
venerador, Abade Silva.
***
No ano seguinte, a floresta de
amieiros do Vizela já não deu sombra e frescura
a nenhum dos seus hóspedes do ano anterior.
A José de Almeida e a
mim figurou-se-nos que as
frondas do salgueiral afestoavam um túmulo. Doeu-nos pungentíssima
a saudade de João Pacheco. Nunca mais
ali voltamos.
Estavam nas Caídas a morgada
velha e o abade de Santa Eulália.
Irene e o seu marido, Álvaro de
Abreu, esperavam-se mais tarde.
Esperava-os D. Helena; mas o abade secretamente nos
disse que D. Irene nem o marido tornariam a Vizela em dia da sua
vida.
Segredou-nos que a morgadinha, ao
oitavo dia de casada, tentara fugir para a
mãe...
— Oh! — exclamou Almeida —, ao
oitavo dia!, que lua-de-mel! — a meu ver
— piscou o abade entortando a boca disformemente —, esta lua-de-mel recebia
a luz reflexa daquela
outra lua cheia
aqui das Caldas, tão a sua conhecida, Sr. Almeida, .
— Maganão! O
abade é o calendário de todas as luas que iluminam
há trinta anos os amores noturnos
de Vizela. .
— O que o senhor não sabe é que o
marido lhe bate às cegas...
— Sim? Agora vejo que o homem, no
duelo, obedecia ao costume.
— E, quando sai, fecha-a num
quarto de cantaria que lá chamam a «torre»,
e até dos criados a zela!
— Que amor e que conceito lhe
merece! — disse Almeida com a secura
irónica do seu gênio quando as situações demandavam piedade.
— Eu vi-a há
quinze dias na
igreja de Refojos. Que mudança!
Está escaveirada, sem atavios,
o desalinho da desgraça... Fez-me compaixão! O
marido estava à beira dela; não pude sequer dizer-lhe que fugisse.
— Mas a mãe.., assim a deixa
desprotegida?
— A mãe definha-se; e não saber
tudo o que ela sofre, porque a filha não
se queixa..
— Não entendo essa resignação! —
objetou Almeida.
— Entendo-a eu.
Irene era descompassadamente estúpida a
respeito de certas coisas..
— A respeito de todas, pensava eu
— emendou o portuense.
— Cuidou que o matrimônio
era o conserto de certos aleijões com que fora daqui de Vizela.
— Fez do marido algebrista,
percebo.
— É isso; mas o bacharel tem lá
os seus Provarás...
— De cacete, hem?
— E a mulher tem medo que o
marido peça contas à sogra dos desatinos
da filha.
— As meninas que em tais
condições se casam não temem as mães, abade.
Casou ela livremente?
— Com toda a liberdade, e contra
a vontade da mãe. Tanto assim que a
velha, prevendo que o Abreu seria mau esposo, entregou-lhe simplesmente
o que era do pai da noiva: setenta mil
cruzados em propriedades. A casa vale o
tresdobro. Foi velhacaria muito
louvável; porque, dizia
ela: «Se o marido a
maltratar, ameaço-o com a privação do meu dote, que é privilegiado e
isento da meação da casa.» É o que ela
está ensaiando: já anunciou a venda de duas
quintas. Veremos como ele se porta...
— Por essas duas quintas fechará
o genro os olhos ao passado e ao futuro.
Ele bem sabia que Irene o
desprezou pelo Jacques
Smith. Que alentado canalha salpicado de
brasões! Não posso
despersuadir-me que foi ele o assassino do infeliz Pacheco...
— Juro que não foi: já o
defendi.
— Então, mandou-o matar.
— Isso é uma hipótese
sem nenhum fundamento, No cadáver
de João
Pacheco não havia
sinal de ferro, nem de tiro, nem contusões de pancadas. Foi a queda do cavalo, que era bravo. Não dê
vulto a essa suspeita aleivosa.
***
Joeirando as minhas
reminiscências de coisas relativas a Irene, referidas pelo abade em cartas a José de Almeida, apuro o
seguinte, na correnteza dos anos de 1853 a 1855:
Sem impedimento dos dissabores conjugais, Irene deu à
luz o seu primeiro filho, e, mediante o prazo restrito para o fenômeno
da geração, provou a sua fecundidade com
segundo rapaz robusto. Donde se depreende que ele a não espancava incessantemente.
Irene vivia mais desoprimida
desde que o marido reatara com uma raparigaça
barrosã a mancebia interrompida pelo casamento. Ele pernoitava fora
noites seguidas e não sofria em casa a
menor inquietação com ciúmes.
Durante o primeiro ano, raro dia
passava que a não atanazasse com perguntas
cruamente torpes acerca de
Jacques Smith. Depois, parecia esquecido ou
reconciliado, se não era antes o receio de que a mulher lhe fugisse e a
sogra alienasse as quintas.
No meado de 1855, a
morgada velha faleceu nos braços da
filha, recomendando-lhe que
recorresse nas suas aflições ao abade de Santa Eulália. Desde este dia, recrudesceram em Álvaro de
Abreu os desprezos, as injúrias e até
a difamação da mulher.
aos seus parentes,
que o arguiam de devasso, respondia
que lhe era mister
aturdir uma desonra com outras:
e, pondo em miúdos a
frase anfibológica, delatava a fragilidade ante-matrimonial da
sua mulher e parenta.
Apertada pelos insultos face a
face, Irene disse-lhe um dia:
— Se eu tivesse um irmão que pegasse numa espada, você não me
ofenderia assim..
— Se você tivesse um irmão que
pegasse numa espada e me ferisse com
ela, iria para onde foi um homem que uma vez me feriu...
Irene não percebeu o sentido
latente da réplica; mas referiu ao abade
a passagem, digna de ponderação.
«Quem sabe», dizia ele consigo,
«se José de Almeida acertou quanto à morte
de João Pacheco,.
Os criminosos asilados sob as
telhas de Álvaro de Abreu favoreciam
a suspeita: entre outros somenos na tuba
da fama avultavam o José Pequeno, da
Lixa, e o José do Telhado, que o neto dos senhores de Regalados sentava
à sua mesa, quando Irene ficava no quarto. Entrou em averiguações o abade,
e soube que os dois salteadores, quando
João Pacheco morreu, estavam na casa dos
Abreus de Refojos, jogando a esquineta com os criados.
Como quer que fosse, o abade entrou-se de medo bem entendido
quando Irene lhe pediu que a protegesse
e resgatasse da escravidão em que vivia.
«Este homem, se eu
me intrometo nos distúrbios da sua
casa, é capaz demandar
um dos seus
celerados apunhalar-me!»,
conjeturava ele racionalmente.
Não obstante, indagava com
cautela o modo de libertar Irene pelo divórcio,
ou pela fuga para mosteiro ou casa de família honesta. As famílias
honestas recusavam-se a
receber a esposa difamada
pelo marido; as
menos honestas esquivavam-se
a desavenças com
Álvaro de Abreu, respeitando mais os hóspedes que o hospedeiro. Os donos das
casas endinheiradas dormiam
tranquilamente enquanto o amigo
do José do Telhado e
José Pequeno lhes
não retirasse a sua estima.
E, naquele tempo, havia governadores
civis, administradores de concelho,
regedores, cabos de polícia, etc. Esta corporação de funcionários não
prendia ladrões: fazia deputados.
***
Irene instava com urgentes rogos. Dizia desatinos ao abade. Traçava
planos vulgares; mas de escândalo
estrondoso. Fugiria para o Porto, onde estava um homem que ela amava: iria pedir-lhe o amparo
do amante ou a vingança do
cavalheiro. Tinha lido o Palmeirim de Inglaterra; mas não conhecia o
Cavaleiro da Triste Figura.
O abade recomendava-lhe juízo e
paciência; e pensava mais
fervorosamente em salvá-la do amante que do marido. Falava-lhe dos filhos. A comoção era
medíocre. As mães que
desafogam as suas angústias,
ajoelhando à beira de um
berço, estão salvas.
Irene carecia da
virtude redentora das esposas, que fazem os seus anjinhos intercessores
com a justiça divina. Era criminosa. O
marido cuspia-lhe uma injúria, e ela abaixava
o rosto indelevelmente
manchado. Um dos esteios
da honra quebrara-o a
jovem solteira em Vizela: restava-lhe outro — o da sinceridade com o
noivo aborrecido: quebrou-o
também. Se a sorte lhe deparasse
marido tão amante quanto generoso, a regeneração fá-la-ia o
esquecimento do erro, e o segundo batismo
da alma seria
a unção das lágrimas nas faces
cariciosas dos filhos. Havia uma
chaga a cicatrizar na consciência de Irene; não lha leniram com o bálsamo do amor ou da caridade: exulceraram-lha a
ferroadas de inúteis vitupérios. As mulheres assim, quando não se
engolfam no tremedal, ou são feias como
o pecado, ou predestinadas como Santa Pelágia
e Santa Maria Egipcíaca.
O abade de Santa Eulália
solicitou a proteção de um prelado, o seu parente, a favor
da desditosa Irene.
Conseguiu-se a entrada da
esposa fugitiva no
Convento de Santa Clara de Coimbra. O abade avisou-a, guiando-a no
passo da
fuga. Irene deveria
sair para uma das suas quintas de Cerva, onde
costumava ir ao Outono, e fugir de lá
com duas pessoas da confiança
do abade. Aceitou alegremente a
proposta; porém, dias depois que se transferira à quinta
donde devia fugir, com efeito
fugiu; mas não eram confidentes do
abade as pessoas que lhe protegiam a retirada pela serra de Marão em
direitura ao Porto.
A mulher de Álvaro de Abreu
escondeu-se nos arrabaldes daquela cidade, no
Bom Sucesso, numa casa-chalé, telhada e ladrilhada de asfalto negro à inglesa, com estores impenetráveis e à volta um
silêncio sepulcral a ouvir — permita-se-me a expressão — os suspirosos
murmúrios que lá dentro se atabafavam nas alcatifas e nos cortinados.
Aquela casinha abarracada era o
chalé de Jacques Smith, o homem dos vinte e
sete fraques para quem a frescura da melancia era indigesta. Não é natural que a esposa fugitiva fizesse
por ali escala para o cubículo de Santa
Clara.
***
Avisado Álvaro de Abreu que a sua
mulher desaparecera da quinta de Cerva,
deixando os filhos com recomendação às amas que os entregassem ao pai,
não se afligiu desesperadamente. Sabia
que Irene suspirava pelo convento e que o
abade, confidente dela,
era o agente desse
plano. Procurou o abade na sua
residência e perguntou-lhe, carranqueando, onde estava a doida.
— Não sei, Sr. Abreu.
— Não mangue comigo, abade.. Em qual convento está Irene? O senhor tratou disso, foi a Braga, falou ao deão,
etc.
— Sem dúvida; mas a Sra. D.
Irene, quando foi procurada para entrar no
Convento de Santa Clara de Coimbra, já tinha saído da quinta.
— Não me conte lérias, abade! —
retorquiu sarcasticamente o bacharel. —
Eu estou a ler-lhe na alma.
Irene vai requerer o divórcio,
guiada pelos seus conselhos.
— Não é verdade, Sr. Abreu —
atalhou o abade.
— Não me desminta.
Que interesse tem o senhor,
pastor de almas, em
insinuar a desordem no seio de uma família?
— Já disse a vossa Senhoria.
.
— O senhor é tolo! Parece que não
tem amor à pele... Repare no que lhe
digo: se a justiça, a requerimento de Irene, me inquietar, quem paga as
custas é o Sr. Abade de Santa Eulália.
Fica avisado.
— Mas..., Sr. Abreu..., juro-lhe
pela sagrada hóstia. .
— Não me fio
em hóstias!. . Padres!,
corja de marotos!, pensam que estamos ainda nas trevas do absolutismo!.
. Fica avisado, entende-me?
E saiu tinindo rijo com as
esporas no pavimento e dando estalos com
o chicote.
O abade era uma congestão de
pavor, com o espírito estritamente necessário
para pensar em transferir-se para outra abadia.
Nesses dias de sobressalto,
escrevera ele a José de Almeida, contando-lhe as suas cólicas em linguagem picaresca. Mais
egoísta que caritativo, dava ao
Diabo do Inferno a tonta
da Irene e perguntava
onde iria parar aquela
extravagante.
Quanto a mim
[aventava o solerte
abade], a mulher está
aí no Porto, sob a proteção
da bandeira inglesa,
enquanto eu cá estou debaixo
do cacete português do marido.
Ela muitas vezes me disse que
tinha aí paladino. Procure-a
a vossa Senhoria; e,
se tiver modo de lhe transmitir
os meus cumprimentos pela
bestialidade que fez, peça-lhe que não demande o marido, visto que as custas já eu fui citado para as pagar em
moeda de costela. Entretanto, diligencio escapulir-me daqui.
Está vaga uma boa abadia no Alto Minho.
Vou requerer a mudança, esperançado no valimento
da vossa Senhoria. O deputado do circulo há de
fazer-me guerra, porque eu laboro nas
fileiras da rainha
e Carta e votei contra
ele; mas, repito, conto
com a vossa
Senhoria e com o José
Bernardo. Não me desconviria nesta
ocasião um canonicato em Braga, e
já mó ofereceram os Srs. Cabrais em 1850; hoje torço a orelha. . Ah!, femeaço!, femeaço!
Quando a política me agourava uma
mitra, as mulheres far-me-iam rejeitar o
chapéu de cardeal. Mulheres, piores que o Diabo, diz o Eclesiastes.
Devia de estar velho quem disse isto...
Finalmente, agora, em remate de cantiga, vem essa doida da
Irene perturbar o meu
repouso!. . Quem me mandou a
mim endireitar tuertos, se ela já
estava retorcida!? Etc.
José de Almeida, contando com a
fatuidade de Jacques Smith, mostrou-lhe a
carta do abade e perguntou-lhe se ele podia informá-lo.
Smith riu à farta das graçolas do
padre, encaracolou as guias do bigode, estirou
três vezes os braços com sacudida elegância, assentou a gola do fraque
décimo nono, fez meia volta sobre os
tacões, enclavinhou os dedos alisando os vincos
das luvas, e falou desta arte:
— Eu te digo. É uma pobre
rapariga. Deixei-a, como sabes. Escreveu-me
sempre.
Respondi-lhe de
vez em quando. Quis
fugir à mãe. Pediu-me que a fosse
esperar a Guimarães. Dissuadi-a
de tal parvoíce.
Desesperou-se, quando soube que eu fora para
Paris, e casou-se por
despeito. Que estupidez!,
uma mulher com duzentos contos!
Cheguei de Paris,
e encontrei uma carta
de Irene, escrita na
véspera do casamento. Era um adeus com raiva e lágrimas.
Dizia que não lhe importavam as
consequências.. — que,
se o marido a matasse,
Deus me pediria contas. Compadeceu-me esta tolice!
Passados dois anos, escreveu-me
uma história deplorável de dores íntimas. É
vítima do amor que me teve. O marido mata-a lentamente e atormenta-a
com o meu nome.
Respondi-lhe em nome suposto, com
pesar, com dó, com saudade, queres que
te diga?, amando-a!.. Caprichos
do coração... Primeiramente, aconselhei-a
a que se separasse
do bruto; depois
aprovei o refúgio do convento;
por fim, quando ela me disse:
«Vou suicidar-me«, fui buscá-la. Andei cavalheiramente?
— Com toda a certeza. A ter ela de se
matar, fizeste bem. Salvaste-a
da morte e das penas eternas que esperam os suicidas
— aplaudiu Almeida, casquinando frouxos de riso que eram uma satânica
beleza na fisionomia dele.
— Estás a gracejar?
— respondeu o outro com aprumo entre inglês e
portuense.
— Pois tu falas tão fúnebre que eu deva ouvir-te com as lágrimas nos olhos? Rio-me
dos advérbios que
eu t tu usamos
nestes casos. Cavalheiramente! Foste buscá-la cavalheiramente! E se
tivesses casado com ela, na
ocasião em que a comparavas à melancia fresca e indigesta, com que advérbio celebrarias a tua ação?...
— Casar!.. Porque não casas tu?...
— Isso é outra questão...
— É a mesma: porque não casas tu
com.,.
E recenseou meia dúzia de nomes
tão respeitáveis presentemente que só cada
um de per si bastaria para desbotar o pudor das Pórcias e
Cornélias. José de Almeida, em verdade,
no terreno da morigeração, estava deslocado.
Mudou sensatamente de rumo; e,
voltando ao ponto, disse:
— Que queres que eu responda ao
abade?
— Diz-lhe que D.
Irene está comigo; e que o diga
ao marido, se isso
convier à sua defesa. Quanto a demandas, que não se assuste o selvagem
nem o abade.
Fez uma pirueta congenial, acenou
ao jóquei, sentou-se de um pulo no coxim
do mail-coach e silvou a
pita do pingalim na crina dos alazões, que saíram curveteando.
«Aí vai um perfeito feliz», dizia
a mocidade portuense verminada de invejas.
Seria um
pouco mais feliz que um mendicante sadio se
não tivesse um
aneurisma a arfar-lhe no coração. Compensações.
***
O
abade, recebendo a resposta do portuense, procurou Álvaro de Abreu e
disse-lhe:
— Lamento a desgraça de que não
tenho a mínima culpa. A Sra. D. Irene
está.. onde a levou a fatalidade.
Se a vossa Senhoria me admite um conselho, não se divulgue tal desgraça.
E, contando-lhe com melindrosos rodeios que O.
Irene vivia com Jacques Smith, ofereceu-se para intervir no remédio
deste escândalo.
— Como? — interpelou Álvaro
iradamente.
— Meditarei no modo da encaminhar
ao convento.
Abreu ringiu os dentes e
rosnou:
— O senhor,
se não fosse uma besta,
seria um canalha
que vem aqui avisar-me da infâmia dessa mulher!...
— Oh, senhor!
— exclamou o abade, conturbado do
ímpeto do fidalgo.
— Pois eu venho
participar-lhe,.
— O quê? Que vem o senhor
participar-me? Que estou desonrado? Ora
ponha-se no meio da rua antes que o despeje pela janela! Quem perdeu,
quem prostituiu essa devassa, foram os
seus conselhos, O abade limpava o suor e
gaguejava.
— Rua! —
bradou Álvaro —, e mude de terra, quando não.... faço-o esfolar. Você
teve quinhão nas devassidões da
mãe; que lhe importa a
devassidão da filha?
Era uma
seva calúnia, propalada
por Álvaro de Abreu e aceite
pela opinião pública. O abade então chorou, ergueu a cara
com arrogância e bradou:
— O senhor informa as honradas
cinzas da sua sogra! Eu não posso vingá-la, mas Deus nos vingará, a ele e a
mim!
— Fora, hipócrita! Rua!
O
padre saiu aturdido.
Zuniam-lhe os ouvidos
e congestionava-se-lhe o sangue na cabeça.
E, desde esta
hora — dizia
ele —, nunca
mais teve saúde nem descanso. Apagou-se-lhe a
clara e serena satisfação da vida.
Fechou a aula de
Latim. Insulou-se da convivência
dos amigos. Tinha cinquenta e seis anos. A filosofia socrática não bastava a robustecer-lhos
contra os abalos da religião de Jesus.
Entrou-lhe no espírito a memória severa do seu passado licencioso.
Pesares, abafados pela
dúvida, exulceraram-se em
remorsos. Ara o assombro dos fregueses.
O relâmpago da fé abrasara-o. Fez-se
missionário e, no púlpito,
desentranhava a invencível e penetrante eloquência das lágrimas.
Acaso vi o nome deste padre na
lista de missionários que uma gazeta injuriava.
Comuniquei o espantoso achado a
José de Almeida.
O meu amigo escreveu-lhe, Na
volta do correio, a resposta dizia assim:
O desgraçado a quem escreveis
morreu. Subsiste um penitente a rogar vos de
mãos postas que, antes do
inverno da vida, ofereçais a
Deus as vossas lágrimas em desconto das que fizestes chorar.
— Que celebreira! — disse
Almeida. — Quem havia de esperar isto de um
padre tão patusco!
E mais nada —
celebreira! Que desabrimento com
umas ingentes dores, dobradamente
deploráveis, se são quimeras!
Eu, de mim, compreendi aquela
transformação, porque decifrara os segredos
dela na minha
alma. Aos vinte e um
anos estudara eu Teologia,
com o propósito
de ir missionar entre os vituperados
da loucura da
Cruz. Recai, propelido pela zombaria do mundo; mas aprendi
a não zombar.
***
Por aquele tempo, um
cavalheiro de Basto, o Sr.
Paulino Teixeira Botelho,
murava um terreno lavradio que nos anos anteriores fazia parte da feira
de S. Miguel, em Refojos.
A política de campanário introduzira
a sua garra nesta
contenda de propriedade. O povo, acirrado pelos adversários políticos do
Sr. Paulino Teixeira, ameaçara derribar
o muro e invadir a propriedade a ferro e
fogo. O proprietário,
forte do seu direito e bravo
do seu natural, aceitou a luva, aguerrilhou criados e caseiros e avisou
as autoridades que tomaria sobre si o desempenho
dos deveres que incumbiam aos fiscais da segurança pública.
Os amotinados eram, pela maior
parte, jornaleiros, soldados com baixa, a ralé
Intima das aldeias, poucos
lavradores e alguns caseiros de casas afidalgadas.
Entre estes, sobrepujava
na investida e na bravura da excitação
um Manuel Fialho,
que tinha sido lacaio de Álvaro de Abreu, e àquele tempo era
o seu feitor em duas quintas
nas margens do Tâmega.
Fora ele quem arremetera
primeiro ao muro e aperrara
um bacamarte ao peito de um
criado da casa agredida.
Rompeu a espingardaria, menos
trovejada que o alarido da multidão. As balas
zuniam na ramagem dos
castanhais. Milhares de pessoas,
de envolta como gado espavorido, despejavam a feira. O povo
inerme açodava com o alarido os
combatentes.
Dos de fora, alguns caíam
feridos, outros baqueavam sob os muros derruídos.
O mais pimpão, Manuel Fialho,
caíra atravessado por um pelouro do peito às
costas. Acudiram a levantá-lo do chão lamacento alguns dos seus
sequazes.
— Quero confessar-me! —
rouquejava ele. — Levem-me onde esteja um
padre!. .
Depressa, que morro!
Olharam em redor, e viram um
sacerdote que, de mãos postas, sem receio das
balas que lhe sibilavam de perto, pedia ao povo que se retirasse.
— Além está o Sr.
Abade de Santa Eulália! —
exclamou um dos amparadores do agonizante.
Outro correu a dar-lhe parte de
que estava ali um feitor do fidalgo de Refojos
mortalmente ferido que se queria confessar.
— Trazei-mo depressa, eu o espero
nesta primeira casa.. —disse o
abade.
O
moribundo, nos braços de dois
homens, entrou para um
quarto onde o esperava o confessor. A confissão e a vida
duraram-lhe dez minutos.
***
Álvaro de Abreu, quando, ao fim
da tarde, lhe disseram que Manuel Fialho,
antes de expirar, pedira
confessor e morrera nos
braços do abade
de Santa Eulália, acusou nas alterações de cor e
fixidez dos olhos alvoroço aflitivo.
Os dois filhinhos, conduzidos
pela despenseira, iam beijar a mão do pai para
se deitarem. Álvaro manteve quieto
entre eles, prostrado numa cadeira,
abstraído, enquanto as crianças lhe contavam a
batalha da feira,
imitando a troada dos tiros com a
boca e a estratégia com umas manobras infantilmente graciosas. A despenseira, pensando que o pai
se entretinha com os pequenos,
retirou-se admirada. Era raro deter-se Álvaro cinco minutos com os
filhos; e, quando eles se demoravam, afastava-os
desabridamente.
Neste comenos, anunciou-se o
abade de Santa Eulália.
Abreu levantou-se de golpe, fincou na
cabeça os dedos engrifados e resmoneou:
— É certo...
O criado, que dera o anúncio,
esperava a resposta.
— Que entre!. . e leva estas
crianças.. — disse Álvaro.
O criado foi à sala de espera e
fez sinal ao abade que entrasse pela porta da
direita.
— Deixe ir comigo os meninos —
disse o abade, tomando-lhos cada um na
sua mão.
As crianças, pondo
no rosto caricioso do velho os
seus grandes olhos, iam
alegremente, saltando sobre um
pé, e floreando as suas espingardas de cana fabricadas expressamente para darem aos criados um
simulacro do tiroteio
daquele dia.
— Com licença. Louvado seja
o nosso Senhor Jesus Cristo — saudou
o abade à entrada da sala, introduzindo
as crianças.
— Entre! — disse o fidalgo.
O missionário, entrado à sala,
fechou a porta e disse:
— As crianças podem entrar porque
são anjos e não entendem as nossas
palavras.
Em nome delas, tenho de pedir: e
elas pedirão comigo.
Álvaro de Abreu escutava-o em pé,
imóvel, hirto. O abade mal o divisava na
quase escuridão da vasta quadra, assombrada de castanheiros seculares.
— Sr. Álvaro
de Abreu — prosseguiu
o abade com a voz tremente
—, ouvi de confissão, em artigo de morte, Manuel Fialho, o homem que
matou João Pacheco, com
a pancada de
um mangual na cabeça, e à
traição na Barroca das Duas Fontes, ao anoitecer do dia
11 de Novembro de 1851. Este homem só
compreendeu e temeu a justiça divina quando se sentiu varado por uma bala. Eu venho rogar a vossa Senhoria que
compreenda e tema a justiça divina
manifestada na morte violenta do seu criado Manuel Fialho, homicida do inocente João Pacheco. Não
lhe direi que se
tema da justiça
humana, porque o único homem que
podia acusá-lo é morto; e eu não o acusarei na
Terra; porém, se Deus chamar a minha alma a depor no tribunal divino,
direi que de mãos postas e na presença
do seus filhinhos lhe pedi que se curvasse
pela contrição e pela penitência aos pés de Jesus Cristo misericordioso.
E ajoelhou aos pés de Álvaro com
as criancinhas adiante de si.
— Levante-se, Sr. Abade! —
balbuciou o marido de Irene, erguendo-o nos
braços. — Eu sou um miserável, sou
indigno da sua estima.. Perdoe-me as
injustiças que lhe fiz...
— Não tenho que perdoar... Adeus,
anjinhos — disse o padre beijando as
crianças. — Ide ver-me algumas vezes à residência, que vos ensinarei a
orar a Deus por o vosso pai e.. por a vossa mãe.
— A mamã? Onde está? —
perguntou o menino mais velho, que tinha
quatro anos.
O abade passou o canhão da batina
pelos olhos e saiu.
A voz lamentosa do
padre soou no deserto, as
lágrimas caíram sobre o penhasco
estéril.
Álvaro desdava as roscas da
serpente do remorso sem
grande esforço: era
ateu.
Bazofiara sempre de
racionalista; mas da sua razão era excluído Deus. Acreditava, tal
qual vez, nas vantagens sociais da
virtude e nos perigos do
crime; mas para
além da torrente negra
da morte não
aceitava sequer a
discussão absurda.
Apalpava-o agora duramente a
desgraça. Havia um homem que podia acusá-lo
de assassino covarde; tinha uma
esposa adúltera que passeava ao
grande sol das praias e das praças o seu
escândalo; rareavam à volta dele os cavalheiros
considerados; acanalhavam-no os celerados que se acolhiam às suas
quintas; as autoridades judiciárias,
açuladas pela imprensa, aguilhoavam os regedores a assaltarem-lhe as casas.
Perderam-lhe o respeito,
e até nos periódicos o amalgamavam com os hóspedes, invocando os manes dos condes de
Regalados.
Convulsionavam-no frenesis,
exasperos que ninguém mitigava com o amor ou
com os linimentos da
amizade, Os risos das crianças irritavam-lhe a
misantropia. Era-lhe impossível
a quietação e baldado o
paliativo das deleitações brutais.
Deliberou viajar. Não podia
vender quintas sem o consenso da mulher.
Hipotecou-as com enormes
usuras. Embolsou o dinheiro à farta
para demoradas viagens e saiu,
entregando os filhos para uma cunhada, esposa do irmão morgado.
Desde 1857 a
1861 triunfou a vida
nas principais cidades da
Europa. Conheceu todos os salões
e todos os antros. Viu a devassidão no espavento das pompas do Louvre, onde as duquesas
apresilhavam diamantes nos bicos dos
peitos, e remirou-se nos
grandes espelhos dos bordéis em que as
mulheres, nuas como as bacantes, se espreguiçavam sobre divãs, com os
seios aljofrados de pérolas e os cabelos
aromatizados de grinaldas de jasmim. Em
Veneza, Milão, Paris, Londres, Madrid, em todas as cidades capitais,
comprava um daumont, dois cavalos e uma mulher dar mais cotadas; às vezes,
comprava duas mulheres e quatro cavalos.
Chamavam-lhe conde, porque nos seus trens
fizera pintar a coroa dos Abreus, condes do Pico de Regalados.
D. Irene viajava simultaneamente
com Jacques Smith. Uma vez, no Prado, em
Madrid, o faeton de Smith perpassou pelo breque de Álvaro, que
boleava. Refestelavam-se nos
coxins duas francesas do café-concerto. Jacques
acotovelou Irene e disse-lhe, risonho:
— Aos pares, hem? E tu a
imaginá-lo a semear calondros em Basto...
Irene chorava.
— Porque choras?
— Por os meus filhos, que não têm
pai, nem mãe, e hão de ficar pobres.
Álvaro avistara a mulher,
cravara-lhe os olhos indecisos, reconheceu-a, e não tenho a certeza se lá no intimo da sua pessoa
lhe chamou descarada.
É natural que sim.
O honesto era ele.
Em 1862, um
padre que administrava as
quintas de Álvaro de
Abreu não achou usurário que lhe
adiantasse mais dois contos de réis que o fidalgo pedia com urgência.
Um legitimista minhoto que visitara O.
Miguel na Alemanha propalou. que
vira Álvaro de Abreu em Florença muito doente, descarnado, tossindo, com
o peito retraído, as gengivas brancas e
as orelhas secas. Os usurários enfiaram de
pavor. Se ele morresse,
a viúva e os órfãos,
alegando lesão enormíssima e ilegalidade dos contratos, levantar-se-iam com os
rendimentos hipotecados das
propriedades. Álvaro esperava
em Londres a letra.
O padre-mordomo enviou-lhe
algum dinheiro, desculpando
os capitalistas com o boato
da sua enfermidade.
Resolveu repatriar-se, a fim de
restabelecer-se no Minho. A sua doença era o
corolário da libertinagem: a caquexia. Os médicos franceses
aconselharam-lhe as águas minerais de
Cauterets nos Pirenéus. Mudou de rumo. Era-lhe grata a esperança de voltar à Pátria restabelecido e
gordo para desmentir o legitimista.
Bebeu as águas sulfúricas de Cauterets,
consumou o esfacelamento dos intestinos baixos, e morreu medicinalmente.
Além de um titular português que
lhe assistiu na morte e enviou a Portugal a
notícia, ninguém, por afeto
ou caridade, lhe humedecera os
beiços na derradeira febre.
Contou o titular a José de Almeida que o tal Abreu tinha um pasmo de olhos horrendo quando agonizava.
Veria o espectro de João
Pacheco?
***
O
abade de Santa Eulália
rezava uma missa
por alma de Álvaro de Abreu quando
D. Irene, trajada de luto rigoroso, entrou na
casa de Refojos, onde
esperava encontrar os
filhos. Disse-lhe o mordomo que os meninos, por direção
do abade, estavam a
educar no colégio de Landim,
oito léguas distante. Escreveu ao
missionário, pedindo-lhe que lhe levasse a sua amizade e o seu
perdão. O velho,
que ela não vira nos últimos nove
anos, era tão
acabado, tão decomposto, que Irene
chorava, comparando-o ao
festivo e juvenil abade que radiava alegria na casa de
Athey.
— Afinal.. — murmurou o padre.
— Aqui estou... — soluçou Irene.
— Quer ver os seus filhos?
— Sim...
— Vou mandá-los buscar. Cuidei
deles, porque a sua cunhada não podia
sofrê-los: e as criancinhas amavam-me... E preciso, a minha senhora,
salvar o que puder desta casa por amor
destes meninos. Com ordem e economia, se
Deus me der vida, tudo se fará.
Irene apressava o inventário,
resgatava as vendas
ilícitas, anulava hipotecas,
afanava-se em liquidar o que
devia pertencer-lhe da
meação do casal e dos rendimentos
absorvidos na totalidade pelo marido.
Observara-lhe o abade que um
tamanho apuro de contas iria, sem ela querer,
cercear o patrimônio dos filhos.
— Se a
vossa Excelência acrescentava
ele — tenciona reduzir as suas
despesas ao viver aldeão, sobra-lhe tanto do que percebe da sua metade
que talvez possa deixar intactos os
rendimentos dos órfãos.
— Tenciono ir viver no Porto.,. —
explicou ela.
— Ah! — exclamou o abade. — Com
que então, a minha senhora. . ainda não?
— Ainda não.. O quê?
— Nem o grito da consciência? Nem
o grito do exemplo? Nem a presença de
dois filhos? Bendito seja Deus!
Este diálogo constrangido foi
cortado por um servo que entregava a
correspondência.
— Não veio carta? — perguntou ela
agitada.
— Não, a minha senhora, veio
somente esta folha.
Era o Comércio do
Porto. D. Irene atirou-o sobre uma jardineira,
com enfado, e encostou a face à
palma da mão, carregando o sobrolho, O abade
chamara o menino mais novo, que tinha oito anos, e disse-lhe:
— Vem cá, Manuel Filipe, lê-me
aqui as noticias deste jornal; quero que a
tua mãe veja que lês correntemente.
E deu-lhe o jornal aberto. A mãe
parecia estranha ou aborrecida.
O menino procurou a secção de
notícias, e leu:
OBITUÁRIO
Ontem, pelas sete horas dá manhã,
desapareceu do número dos vivos um dos
mais estimados e gentis cavalheiros
desta cidade. Um aneurisma
no coração arrebatou fulminantemente o Sr. Jacques
Smith, que...
Irene levantou-se arrebatada
bradando:
— Que ê? Que é?
E, pegando no
jornal que tremia nas mãos do menino assustado, leu as
primeiras linhas que ouvira ler, premiu o coração asfixiado pela
angústia, rolou nas órbitas os olhos
turvos sob as pálpebras convulsas e caiu sem alentos.
— Porque foi?! — perguntou o
aflito menino ao abade. — Ela morre?
— Não, Manuel Filipe. Isto não há
de ser nada. A tua mamã conhecia esta
pessoa que morreu, e.. teve pena.
Depois, dobrou o Comércio do
Porto e meteu-o na algibeira da batina para
que o filho de O. Irene de Abreu nunca mais tornasse a ler o nome de
Jacques Smith.
***
Em 1871, Manuel Filipe de Abreu e
o seu irmão Jerônimo de Abreu e Lima,
ambos terceiranistas da Universidade, vieram às Caldas de Vizela, com a
sua mãe, a Sra. D. Irene.
Esta ilustre e respeitada fidalga
de Athey não contava ainda cinquenta anos e
estava hemiplégica —
metade do corpo paralítico.
Era transportada em
cadeira de rodas ao Ranho
da Bomba Forte.
Uma vez, quis ir até
à Ponte
Velha, que não via desde. 1851.
Em frente da ilheta onde em 15 de
Junho daquele ano Álvaro de Abreu e João Pacheco trocaram os
fatais gracejos, mandou parar a cadeira.
Quedou-se longo tempo absorvida
na contemplação do salgueiral; depois enxugou duas lágrimas. Que lágrimas, ó leitor!. .
Os filhos perguntaram-lhe porque
chorava; e ela, estrangulada pelos soluços,
contorcia-se, pedindo-lhes que a tirassem dali, que sentia já o frio da
morte.
Levaram-na apressadamente para o
quartel numa das casas situadas no local
chamado o Médico. Ao nascer do Sol do seguinte dia dobravam a finados
os sinos de S.
João das Caldas. A fidalga de
Athey expirara nos braços dos seus dois filhos.
Perguntei ao capelão desta
senhora se ainda era vivo o abade de Santa Eulália, muito afeiçoado à senhora
falecida.
— Não, senhor.
Esse santo morreu há três anos:
a paixão da fidalga
foi tamanha que caiu na cama; e,
quando se quis erguer, estava lesa. Os meninos
ainda choram por ele.
***
CONCLUSÃO
Das sete pessoas que, em Junho de 1851, estiveram no
sinceiral do Vizela, vive somente uma, que sou eu.
O conselheiro José de Almeida
expirou, no Inverno passado, na casa de saúde
do médico Ferreira, do Porto.
Na derradeira vasca do longo
paroxismo, circunvagou os olhos baços à volta
do seu leito. Era irmão, era esposo e era pai. Não viu a irmã, nem a
esposa, nem o filho.
Finara-se no desamparo
e desamor dos indigentes a
quem a caridade dos hospitais empresta um catre ainda quente de
outro cadáver. A sua existência tinha
sido um continuado festim: o que houve formidavelmente sério na sua vida foi a morte. Morrem assim os que não
radicaram, em anos vigorosos, a santa
amizade no coração da família.
José de Almeida não podia ter uma
desvelada amiga, porque, nos seus anos de
gentilíssima juventude, espezinhara as mulheres que o adoravam com
aquela cegueira misteriosa
das paixões absurdas; e,
já na sazão glacial da vida,
esposara uma que o acalcanhou com o desprezo dele e da sua própria
infâmia, quando lhe viu a epiderme
arrugada e o bigode branco.
A sociedade recebera-o e
bajulara-o quando ódios e invejas lhe denegriam o nome, aureolado de aventuras amorosas. A
beira do seu leito de enfermidade
esquálida e do seu ataúde soterrado na vala comum eram seis os restantes
dos seus centenares de amigos.
A noite era de Outubro.
O nordeste assobiava nas gradarias
dos túmulos e
ramalhava os ciprestes gotejantes do zimbro da tarde.
Nos camarotes
tépidos do teatro lírico
falava-se do defunto; e algumas senhoras
idosas, refluindo vinte anos
na corrente da sua
vida remansosa, olhavam para a
cadeira onde então José de Almeida se assentava. E algumas dessas, voltando o rosto, escondiam as lágrimas rebeldes, para
não serem vistas dos maridos e das filhas.
E perdoaram-lhe.
S. Miguel de Seide, 26 de Agosto
de 1875.
---
---
Nota:
Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)
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