domingo, 1 de setembro de 2013

Camilo Castelo Branco: "Gracejos que Matam"

GRACEJOS QUE MATAM

Ao Dr. Tomás de  Carvalho  Ordinariamente,  chamam-se,  à  francesa,  espirituosos uns sujeitos dotados  de  gênio motejador,  aplaudidos com  a  gargalhada e  aborrecidos  àqueles mesmos  que  os  aplaudem. São  os  caricaturistas da graciosidade.

O  «espirituoso»,  à  moderna,  abrange os variados ofícios  que, antes da  nacionalização daquele estrangeirismo, pertenciam parcialmente aos seguintes  personagens,  uns de  casa,  outros  importados:  chocarreiro  —  trejeitador  —  arlequim  —  palhaço  —  proxinela  —  polichinelo  —  maninelo  —  truão  —  jogral  —  goliardo  —  histrião  —  farsista  —  farsola  —  vegete  —  bobo   pierrot — momo — bufão — folião, etc. 

Esta riqueza de sinonímia denota que o bobo medieval bracejou na Península  Ibérica  vergônteas e enxertias em tanta  cópia  que foi  preciso  dar nome às  espécies.

Ora,  o «espirituoso» tem de todas.  A antiga jogralidade,  que era  mister  vil,  acendrada  nos  secretos  crisóis do progresso  social,  chegou a  nós  afidalgada  em «espírito» e com o foro maior de faculdade poderosa, cáustica, implacável. 

Ainda assim, o estreme espírito português, por mais que o afiem e agucem, é  sempre rombo e lerdo: não se emancipa da velha escola das farsas: é chalaça.

Há  poucos meses,  faleceu em Lisboa um  «espirituoso» que andou trinta ou  quarenta anos a passear a sua reputação entre o Chiado e o Rossio. As gazetas,  ao  mesmo  passo que  nos inculcavam o defunto como pessoa  que vivera  aventurosamente  uns setenta  anos  tingidos com primoroso  pincel,  descontavam nestes defeitos a sua imensa graça e reproduziram nova edição  melhorada das suas anedotas.

Averiguado o «espírito» do homem em coisas burlescas de que fez mercancia  na feira política, liquida-se, quando muito, um folião que desbragava a pena e  desembestava  asselvajadamente  o insulto.  Por este,  que não deixou nome  sobrevivente para vinte e quatro horas — nem o terá aqui —, orça a maioria  dos jograis que tenho visto, nos últimos trinta anos, esburgar o osso da fação  que lhes alquila  o engenho detraidor e  acabarem antes  da  geração  que os  galardoou com a moeda falsa das risadas.

O satírico de sala e botequim é mais funesto e menos trivial que o político;  mais funesto porque vulnera melindres — coisa que o caloso peito da política  não tem nem  finge;  menos trivial porque o chiste de Sterne,  de Byron, de  Voltaire, do padre Isla, de Heine e Boerne não apegou aqui, nem se adelgaça à  feição da nossa índole, bem acentuada nas chocarrices plebeias de Gil Vicente  e António José.

É mais funesto,  repito;  porque me ocorre  hoje,  regressando das Caldas de  Vizela,  uma  história funestíssima  de  que só  eu posso  lembrar-me.  Duas  chalaças terçadas entre dois amigos cavaram sepulturas de vidas e honras. Se  as novelas pudessem  ensinar  alguma  coisa,  corrigindo aleijões  da  alma,  eu  pediria aos gracejadores que lessem isto; e, nas ocasiões em que a língua lhes  descabe na boca, engrossada pela opilação da dicacidade, a refreassem com os  dentes.

***

Era em 1851.

Apresso-me a declarar que, no tocante a nomes e localidades, desfigurei tudo,  salvo generalidades vagas e o lugar em que começa a narrativa. O que menos  monta na exatidão da história é o que aí se elide. Nomear pessoas e terras seria  denunciar inutilmente um crime, O criminoso está diante do juiz inapelável e  os seus filhos inocentes respeitam-lhe a memória.

Era, pois, em 1851, aos 15 de Junho, nas Caldas de Vizela.

Entre  os salgueiros que enverdecem uma  ilheta  acima  da  ponte que hoje  chamam «velha», à hora da sesta, emboscaram-se sete pessoas que preferiam  aquele frescor  acre  do arvoredo,  golpeado  por meandros  do  rio,  ao cheiro  sulfuroso e até sulfídrico da «Lameira». 

O grupo compunha-se de pessoas de diversas procedências:

D. Helena da  Penha,  chamada  na sua  terra  a  morgada  velha.  Cinquenta  e  tantos  anos,  viúva  do capitão-mor  de  Athey,  educada  em convento,  murmurando da  educação  e dos  costumes  do claustro,  donde saíra  com  incertos conhecimentos no catecismo, e alguma instrução em bisca sueca, e no  Feliz Independente, do padre Teodoro de Almeida. Excelente senhora, que se  conteve  viúva  desde os trinta  e dois anos viçosos  e  temperados  sanguineamente para não dar padrasto à filha única. 

D. Irene, a morgadinha nova, vinte e sete anos, galante, mais menina que a sua  idade, cheia  de denguices,  amimada,  acriançando-se  em trejeitos  e  dizeres,  descompondo as artifícios pueris com uns ares de desgarro e desenvoltura —  em bom sentido, aliás.

Decerto já  observou,  leitor,  em senhoras  de província, um  desembaraço  bronco,  um  remexerem-se  e bacharelarem despropositadamente  —  desaires  resultantes de lhes haverem dito que o pejo e o acanhamento são indícios de  educação  aldeã.  Estes  despejos  improvisados sem delicadeza  nem natural,  quando topam diversa  sociedade em  praias ou caldas,  dão-lhes  ares do que  não são e abrem margem a suspeitas indecorosas; porque elas, com tais artes,  conseguem desornar-se dos comedimentos do pudor.

D. Irene eram assim. Depois veremos o que ela era mais compridamente. 

Direi agora dos cinco sujeitos do grupo.

O abade de Santa Eulália, passante da meia-idade, pagão em literatura, mestre  de Latim no seu concelho de Cabeceiras. Citava Virgílio apropositadamente.  Quando alguém se dizia regalado com a frescura do salgueiral, declamava um  trecho das Églogas em que havia sálices. Ao sentar-se na corcova do tronco  retorcido de um  amieiro,  exclamava  sempre,  sibilando as delicias do meio-grosso:  sub tegmine.  Tinha  reumatismo e contava  muitos casos  milagrosos. daquelas águas e outros  casos  de  amores que ali  passaram,  quando ele  acompanhava  a sua  mãe,  no tempo em  que as  senhoras  de Cabeceiras de  Basto por  lá  faziam (dizia  ele)  o seu S. Miguel  de amor.  Em  cavaco de  homens, gretava-lhe a índole e declarava-se o personagem ou protagonista dos  casos atribuídos a terceira pessoa em presença das morgadas. Honestava com  citações de Ovídio (Ars amandi — passim) a lubricidade dos pecados da sua  juventude; e dizia com unção de velhaco: Delicta juventutis meae, suspirando. Às vezes,  encontrando  senhoras sertanejas de Basto,  acotovelava  o  companheiro de passeio, e murmurava:

«Aqui vem uma das tais» — Uma das tais vinha a ser uma das suas amadas, de  1825,  a  sílfide que ele havia  ensinado a  dançar o minuete e a  gavota  com  outras prendas, e não dava agora, no pisar coxo e na gordura fofa, o mínimo  vislumbre de ter  sido silfídica e  bastante  leveira  para  o  gingar picado  da  gaivota. «Está como eu», dizia o abade.
... . . . . . . . . .. . . . . . . . . . .

Mudado como eu, como ela, 
Que a vejo sem conhecê-la!...

cantava  Garrett de uma  das suas estrelas  cadentes.  O  abade,  ao menos,  conhecia-as,  embora  enrocadas em tecido  adiposo,  e remoçava-as  na  sua  imaginação saudosa, alindando-as com o colorido escarlate da paixão. Bom e  discreto conversador,  se  a  matéria  obrigava  à  seriedade;  filósofo eclético, alegre,  rijo  de estômago,  cabralista  por  amor da  ordem,  e herege,  porque  negava que o Espírito Santo concorresse ao Concilio Tridentino. Em ciências  eclesiásticas, ignorantíssimo por livre vontade e voto deliberado. Eis o abade  de Santa Eulália. 

Álvaro de Abreu, da estirpe dos Abreus de Regalados, filho segundo da casa e  Honra  de S. Gens,  em Refojos de Basto, bacharel em Direito, vinte e nove  anos compacto de carnes, barbaçudo, cara plebeia, esbatida nas proeminências  malares,  testa  descantoada  e pilosa  até aos  arcos  das sobrancelhas.  Anel  de  ouro  com armas:  em  campo vermelho  cinco  asas de ouro  sanguíneas  nas  cortaduras postas em sautor; timbre, uma asa idêntica. As mesmas armas na cigarreira  de  prata,  e  nos botões dos punhos,  e  na ametista  dos  berloques  antigos,  pendentes  em châtelaine  do cós das calças.  Tinha  cavalo  e lacaio fardado  de azul com guarnições escarlates, botas de  picaria  com prateleira e  espora  amarela  encorreada  de branco.  Era  inteligente como  a  maioria  dos  bacharéis formados, e talvez mais. Em Coimbra, dado que não versejasse, era  da roda do Couto Monteiro, do Luís de Beça Correia, do João de Lemos, do  brasileiro  Gonçalves Dias,  do Lima  poeta  e do Evaristo  Basto.  Recitava  sentimentalmente às morgadas os solaus dos irmãos Serpas; e as paródias do  Beça e Couto Monteiro.

Cábula a minha pachorrenta e gorda 
Quem dentre as folhas te espremeu dos livros!

Ou então, o caso da castelã que desafogava saudades:

... . . . . . . . . .. . . . . . ..

tangendo no mandolim, 
e a chorar dizia assim:
«Ó fado que foste fado,
ó fado que já não és!» 

Cito de memória, pouco fiel nestas coisas conspícuas.

Da convivência daqueles rapazes ficou-lhe um verniz epigramático. Flagelava  os padres do seu sítio com chalaças, era mais fino nos remoques ao cirurgião,  e fizera mudar da terra o boticário, com quem se inimizara inexoravelmente  desde que ele, por causa de umas eleições municipais, solenizadas a arrocho, o  doestou,  no  Periódico  dos  Pobres,  de ateu e carbonário.  Ainda havia  carbonários e ateus naquele tempo. Hoje há mais fé. . e petróleo. 

Álvaro de Abreu tinha a  saúde atlética  e vermelha  que eu desejo  aos meus  leitores.

Viera a Caldas porque ali namorara, no ano anterior, a morgada nova, a sua  prima  em  quarto grau; visitou-a  em  Athey nas  festas de  Natal  e Páscoa,  e  combinou então encontrarem-se em Vizela.

Outro:

João Pacheco, do Arco de Baúlhe, morgado de Vale Escuro. 

Um gentil rapaz de vinte e quatro anos,  educado em Lisboa,  onde tinha nascido, quando o seu pai comandava uma brigada realista. Era órfão desde  1832.  Aos  vinte  anos  emancipara-se,  e retirou-se  para  a  província, onde  possuía fartos bens e tias solteiras que muito lhe queriam e o indemnizaram  dos mimos que não gozara na infância. 

Asseveravam-lhe  as tias que ele descendia  de Duarte Pacheco Pereira  —  o Aquites Lusitano...

— Que morreu no hospital... — atalhava o rapaz.

— A infâmia a quem toca. . — emendava a Sra. D. Isabel Pacheco, freira  beneditina bastante instruída.

E, abrindo Os Lusíadas, apontava dois versos em que Luís de Camões vingava  Duarte Pacheco da injuriosa ingratidão de D. Manuel:

Isto fazem os reis cuja vontade Manda mais que a justiça e que a verdade.

João Pacheco sorria-se.

A freira azedava com o desdém do sobrinho e repetia-lhe a ode pindárica de  António  Dinis,  consagrada  ao seu avô.  Era,  porém,  quase  ridículo o  entusiasmo antigo da filha de S. Bento, declamando com teatral gesticulação a  farfalhuda estrofe:

Cem faraós torveados 
Donde por bocas mil brota 
Mavorte Entre horrorosos brados, 
Em fogo, em fumo, em sangue envolta a morte, 
Zargunchos, frechas, que em chuveiros voam; 
Elefantes bramindo a terra atroam; 
Neptuno da batalha ao som horrendo 
No fundo mar se espanta; 
Nos eixos muda a terra está tremendo, 
Mas nada o grande coração quebranta.

— O  que eu penso  desses versos  —  dizia  o  sobrinho  da  transportada  senhora  —  é que  o bravo  Duarte Pacheco espatifou muito índio,  fez  espadanar  muito  sangue de povos  que  defendiam  o seu lar,  e nunca  vieram  aqui atacar o nosso. Ora, a Providência castigou o Aquiles Lusitano, baixando-o a tragar na barra dos desvalidos a miséria do rei de Calecut, arrojado por ele   do trono à indigência.

Com poucos mais traços, está bosquejado o perfil ideal de João Pacheco. 

Completá-lo-ão os sucessos ocorrentes nesta história. 

A sexta pessoa do grupo, que povoava o sinceiral do Vizela, era um dos Saint-Preux portuenses, o modelo acabado da beleza varonil, já passante dos trinta e  cinco  anos, cansado,  mas  fingindo que amava  sempre porque  era  deveras  querido.  Não  sei  se  ele,  à  imitação do  marselhês  Louis  Gauffredi,  pactuara  com o Diabo dar-lhe a alma em troca das mulheres que soprasse; o que sei é  que as damas que ele quis, sopradas ou não, amaram-no. Parte dessas estava  nas Caldas, a abrir o apetite enfarado ou a diluir os empachos da nutrição rija.  As meninas anêmicas e eloróticas dos  trovistas da  atualidade,  em 1851,  pertenciam ainda à embriologia; assim como os bardos, que atualmente lhes  receitam boi e vinho  do Porto,  fermentavam no ventre  da  Ideia..   com I  grande.

José  de Almeida,  o dom-joão do Porto,  bem que reconhecesse  os  amavios  corpóreos da morgada de Athey, chegara à idade em que o espírito, ganhando  entojo às carnalidades, entra a namorar-se da beleza moral. Almeida zombava  dos trejeitos,  do  palavreado,  das relambórias denguices de Irene.  Quem o  atraia àquele grupo era João Pacheco; e quem atraía João Pacheco era o abade  de Santa Eulália com o engodo das anedotas, com a simpatia das boas tolices  e a prodigiosa arte de exorcizar a tentação do suicídio das pessoas que penam  em Vizela quinze dias de Junho. José de Almeida me dizia a mim...

A mim?..  para um homem muito diverso que há vinte e quatro anos tinha o meu nome, e esse tal era o último do grupo.

***
Dizia João Pacheco a José de Almeida uma vez:

— Este Abreu, se não tivesse cartas de bacharel, seria um homem regular;  porém,  como  não advoga,  nem faz leis,  nem as interpreta,  quer à  força  mostrar que a formatura lhe deu alguma distinção. Faz espírito. Traz sempre  consigo as pilhérias requentadas que forrageou em Coimbra e não perde lanço  das desfechar contra o abade ou contra mim, se D. Irene lhas pode vitoriar  com o sorriso parvoeirão. Eu já lhe disse que os seus gracejos incomodavam o  abade e me não lisonjeavam a mim. Se não se emendar, um dia jogo-lhe um  remoque desagradável e amordaça-o na presença da menina.

Isto  dissera  João  Pacheco naquele dia em que o grupo,  à  hora  da  sesta,  se  embrenhou no salgueiral.

Nesta ocasião, Álvaro de Abreu refinara no sestro da mordacidade. O coração tem crises de embriaguez e sobre-excitações sanguíneas que refluem às bossas  cranianas. A morgada naturalmente deixara-se apertar suavemente nas polpas  do antebraço e correspondera à pressão voluptuosa.  O  bacharel,  a  meu ver,  esponjava as suas chalaças da abundância do coração. Eu também tive dose na  sua  liberalidade.  Estava  eu a  entalhar  um  M  na  casca  de  um  amieiro.  Era  a  inicial de uma das cinco Marias que eu amava. 

— Esse M  —  disse  ele  galhofando  —  pode significar uma  celebrada  exclamação vociferada por Cambronne em Waterloo. 

— Prove a exclamação histórica — interveio José de Almeida, vingando-me com aquele riso percuciente dele.

Todos  perceberam,  salvante as damas,  que não conheciam os  aromas da  história de França.

— Que horas são? — perguntou enfastiada a morgada Irene.  

— Cinco  —  responderam todos,  abrindo os  relógios,  exceto  João   Pacheco.

— Singular  caso!  —  disse  ele  —,  tenho este  relógio  há  doze anos;  é a  primeira vez que pára, tendo corda. Se o ar sulfúrico de Vizela tiver sobre o  dono a influência que tem sobre o relógio, serei obrigado a parar; e parar, diz  não sei quem, é morrer.

— Mas é que tu precisas de corda..  — remoqueou Álvaro. 

— De corda  preciso;  de carrasco  é que não,  contando contigo  —  redarguiu Pacheco.

— Apanhe aquele pião à unha, Sr. Doutor! — exclamou o abade de Santa  Eulália.

 As duas morgadas riram-se  com bastante  inteligência;  e José de Almeida,  golfando três novelos de fumo da pipa do cachimbo turco, regougou: 

— Bem boa!, bem boa!, essa vou escrevê-la. .

E tirou a carteira. 

Álvaro de Abreu enfiou. As damas fitavam-no de modo que o esporeavam a  desforrar-se. O riso vingativo do abade torturava-o; e; por fim, o silêncio de  todos era um comum vexame: sentia-se mortificada a gente. 

D. Helena da Penha ergueu-se do seu frouxel de junco e relva, dizendo: 

— Vamos dar um passeio na ponte. 
  
***

Todos se debruçaram no parapeito da ponte, menos Álvaro de Abreu, que se  retirou à entrada, pretextando o que quer que fosse. 

— O doutor ficou entupido! — disse o abade. — Foi uma embarrilação  bem  merecida..   Onde se dão aí  se apanham.  Cuidava  ele que todos nós  éramos  espolinhadoiro  do seu espírito!...  Sempre com o dedo no gatilho  da  graçola! Uma  graça  atura-se;  mas  estar  sempre  com o dente  mordaz  arreganhado, isso é próprio dos botequins, em camaradagem de estudantes e  banabóias.

— Tem razão, Sr. Abade — obtemperou D. Helena —, mas, a falar o que  é verdade, o Sr. Pacheco respondeu muito forte. 

Aceito a  repreensão da  vossa Excelência —  disse  urbanamente  o cavalheiro  —,  mas  peço licença  para  não  me  arrepender.  Quem  me  considera  talhado  para a corda não se ofenda se eu o reputo digno de exercitar o instrumento da  forca.

D. Irene exclamou:

— Credo!

Era a expressão espontânea do horror à palavra forca. 

E, espevitando a língua, continuou saracoteando-se:

— Não  gosto  dessas coisas..   Estou nervosa. .  O  Álvaro  ia  pálido e  trémulo.. 

Vejam  lá  se fazem algum desaguisado  por causa  de uma  graça. .  Vamos  embora, mamã!

Estou muito nervosa... veja... 

E oferecia o pulso ao abade.

— Tem febre? — perguntou a mãe alvoroçada ao abade.

— Está agitadinha — confirmou o abade, envesgando para nós os olhos  zarolhos de velhacaria. — Quer apalpar, Sr. João Pacheco?

— Não percebo de pulso — disse o convidado.

Com licença. .  —  interveio José  de Almeida,  —  Eu vejo.  —E,  tateando  o pulso de  Irene  com o relógio  aberto,  disse:  —  Cem pulsações por minuto.  Isto não é febre.., é amor, a minha senhora. .

— Boa!  —  disse  a  menina,  retirando a  mão  —,  o  Sr.  Almeida  tem  lembranças! O amor sente-se no coração, não é no pulso.

— O  pulso é o  denunciante  do coração  —  retrucou o portuense.  —  O amor é o sangue mais apressado.

— Faltava-me ouvir  essa!  —  notou D.  Helena, jubilosa por  ver que a  menina já sorria.

— Em boa ciência é aquilo que diz o Sr. Almeida — confirmou o abade.

— Efetivamente, o amor acelera a circulação do sangue.

— Aqui tem o voto de pessoa experiente — disse Almeida.

— Está  feito...  —  assentiu o abade,  dando à  cabeça  três ligeiras demonstrações de consentimento.

— É muito  prendado,  não tem dúvida...  —  respondeu  ironicamente  a  viúva do capitão-mor de Athey. — Ora, tenham juízo!

— Que remédio senão tê-lo,  a  minha senhora!  —  redarguiu  o clérigo  pagão. — Sátiro velho não topa dríades nas florestas. 

— Como estás, menina? — perguntou D. Helena à filha. 

— Queria eu dizer, Excelentíssima Senhora, que o juízo em mim, velho de  cinquenta anos, não se recomenda, lastima-se.

— Como estás, menina? — perguntou D. Helena à filha.

— Sobressaltada..   Tenho medo de alguma desordem...  O  primo Álvaro  tem tão mau gênio...

E fez várias visagens.

— Agradeço a sua compaixão, a minha senhora — ocorreu João Pacheco  —; mas peço-lhe que empregue a sua sensibilidade mais oportunamente.

***

Ao empardecer  da  tarde,  José de Almeida  foi procurado na farmácia da  Lameira, onde então florescia um boticário que parecia imortal pelas sandices  originais — e ninguém já hoje se lembra dele! Este pais não é para ninguém:  desenganemo-tos. 

Era João Pacheco a chamá-lo de parte para lhe dizer: 

— Acabo de ser procurado por  dois sujeitos de Braga,  que se  dizem  padrinhos do  desafio a  que sou reptado por parte do Abreu.  Respondi-lhes  que eu enviaria pessoa com quem se entendessem, — Estou às tuas ordens —  condescendeu prontamente  Almeida,  que era  padrinho  vitalício  de  todos os 

duelos daquele tempo na sua briosa cidade. — Que arma escolhes?

Sabre?, florete?, pistola?...

— Mais devagar — atalhou o morgado de Vale Escuro. — O Abreu não  joga arma nenhuma. O meu mestre de tiro foi o marques de Nisa, de sabre foi  o Chico Belas e de florete foi o Petit. Sei pouco; mas sei mais que Álvaro. Se  lhe  aceito o duelo, vou seguro  da  minha superioridade,  e,  pouco  mais ou  menos, não sairei  do campo com a  consciência  mais  tranquila  que um  homicida. Vai tu, se me queres obsequiar, dizer isto aos padrinhos. 

José de Almeida voltou à noite, — O Abreu teima em bater-se — disse-lhe  ele.  —  Quer duelo de morte,  pistolas  carregadas  e desfechadas  à  ponta de  lenço.

— Vai  declarar aos padrinhos que aceito  —  deliberou serenamente João  Pacheco.

— Estás doido?! 

— Faz o que te digo. 

— Escolhe outra  testemunha,  enquanto eu  vou avisar o regedor  —  retorquiu sorrindo José de Almeida. — Eu pensei que eras um rapaz valente e  prudente. Não te batias, há pouco, porque as tuas vantagens repugnavam ao  cavalheirismo; e  aceitas  o  combate,  dada  a  igualdade que  pode dar-se entre  dois assassinos estupidamente ferozes!

Pacheco ria-se: e Almeida discorria razoavelmente.

— Faz o que te digo — repetiu o morgado. — Pois tu, criança, persuades- te que o Abreu deseja bater-se em tais condições? Os covardes têm fantasias  dessas enquanto  o  desafio procede nas incruentas conferências dos  parlamentários.  Assevera  tu  ao Álvaro  que  eu aceitei o combate  à  ponta  de  lenço; e espera o desfecho.

— Mas supõe que ele sustenta a palavra!...

— Sustentarei a minha. — E, batendo-lhe no ombro, acrescentou: — Vai  sossegado.

O homem tem mais amor ávida que à honra. Ouviste? Se ele propuser o duelo  à ponta de língua, declara logo que não aceito.

Os bracarenses,  ouvindo a  resposta  de  Almeida,  ficaram embaçados e  atónitos.  O  mais  cordato,  com  o louvável intento de economizar sangue  ilustre,  ponderou que era  uma  desgraça  matarem-se dois  cavalheiros  da  primeira nobreza do Minho, e aventou o seguinte:

— Se João Pacheco lhe desse uma satisfação na presença das pessoas que  ouviram a injúria. .

— Satisfação.., como? — inquiriu Almeida. — Dizer-lhe que não o reputa  carrasco?

A emenda  é pior  que  o soneto.  Não proponho isso.  Deixá-los  matarem-se! 
Morrem gloriosamente. Tanto faz morrer de cálculos na bexiga como de uma  bala no coração.

João Pacheco já teve em Lisboa e Madrid quatro duelos de morte, e está vivo.

— Parece-me isso extraordinário!  —  observou maravilhado  o braguês,  supondo que no duelo de morte era obrigatório morrer.

— Não há nada de extraordinário. O estilo estatuído no Código de Honra  é que as pistolas, uma cevada de pólvora e pelouro e a outra simplesmente de  pólvora,  sejam  sorteadas.  Pacheco teve  sempre  a  sorte por  si.  Mas  o nosso  caso é outro. Morrem ambos irremediavelmente.

— E nós?,  que há  de  ser de nós?  —  atalhou sobressaltado o filho  da  outrora circunspecta Braga.

— Nós? — respondeu Almeida. — Praticaremos a rara virtude de nos não  matarmos,  Os senhores  fogem para  a sua  terra  e eu para  a minha.  É o que  legisla  o Código de  Honra.  As testemunhas,  não  podendo depor  acerca da  honra  dos  afilhados mortos,  safam-se a  unhas de  cavalo.  O  restante da  tragédia pertence ao coveiro.

Um dos padrinhos fez menção de lavar as mãos e disse:

— Eu cá de mim...

— É Pilatos neste negócio? — perguntou o portuense.

— E dois  —  respondeu  também o outro,  recordando e recitando  três  passagens pesadas de um livro do conselheiro Rodrigues de Bastos a respeito  de desafios.

— Em que ficamos? — rematou José de Almeida. — Deixe lá o sermão. 

— Vamos falar com o  Abreu: e ou ele  desiste de se  bater,  ou nós  declinamos a missão.

— Pois não  se demorem, que João Pacheco  já está  escrevendo  as suas  disposições testamentárias.

***

Conquanto a bravura não fosse o predicado mais proeminente do amador de  Irene,  deu-se nele um  fenômeno de heroísmo que pertence aos milagres do  amor.  A nova,  que  os pálidos agentes  lhe levaram,  apenas o desfaleceu por  instantes. A imagem da prima foi-lhe, como a visão de Palas aos guerreiros da  Grécia de Homero, acoroçoando-lhe alentos sobrenaturais à sua índole. 

— Pois morreremos! — exclamou ele com ar de Leônidas no desfiladeiro das Termópilas.

— Resolves então morrer? — perguntou um dos padrinhos.

— Que remédio?!

— Arranja outras testemunhas... — intimou o segundo padrinho. — Nós  temos deliberado abrir mão desta asneira. Se te batesses por um motivo sério,  verbi gratia, se o Pacheco te desonrasse uma irmã ou coisa semelhante, ou te  chamasse algum nome injurioso, ladrão, verbi gratia, então estaríamos ao teu  lado,  e até seríamos os  primeiros  a  defender-te com as armas na  mão;  ora  agora matar-se um homem a troco de uma chalaça que não vale dois caracóis, isso é a bestialidade maior que pode praticar um homem, se não está doido  furioso! Lá que tu, verbi gratia. .

— Não dês mais razões — atalhou Álvaro de Abreu. — Procurarei outros  padrinhos...


Altercaram  até às dez e meia  da  noite.  Um dos  dois  bracarenses,  que  argumentava  valentemente  com o recheio do verbi gratia,  repetiu as sãs  doutrinas do conselheiro Rodrigues de Rastos, piorando-as na linguagem. O  certo foi que a pertinácia do sensato amigo vingou abalar o ânimo renitente de  Abreu, a ponto de lhe incutir por um lado da alma o raciocínio e pelo outro  lado o medo.

Entretanto, no quartel do morgado de Vale Escuro ocorriam casos notáveis. José  de Almeida,  encontrando às onze horas da  noite o abade de Santa  Eulália, que vinha de fazer a partida de voltarete à morgada de Athey, disse-lhe ao ouvido:

— Os  homens matam-se amanhã  ao romper  da  aurora.  O  Sol,  quando  nascer.., verá dois cadáveres.

O  abade  não duvidou. A catadura  do portuense  tinha os  assombros da  catástrofe.

— Jesus, santo nome! — exclamou o padre. — Eu vou avisar o regedor, se  me dá licença; e quer dê, quer não, o meu dever é evitar tal desgraça.

— Não  evita  nada,  abade.  O  regedor só pode  prendê-los  no  conflito de  transgredirem a lei. Quem sabe o lugar onde eles vão matar-se?!

O  abade apertou o passo,  retrocedendo para  casa  de  D. Helena.  Entrou  ofegante e roxo. Assoprava as palavras e embebia no lenço vermelho as bagas  de suor que lhe bolhavam na testa. Referiu o que soubera de José de Almeida.  Irene, que estava ceando bifes de cebolada, foi logo atacada de histerismo, e a  mãe  arrotava  nas ânsias  espasmódicas do flato.  Outro  padre que ali  estava,  capelão e administrador da casa de Athey, pegou a declamar contra a relaxação  do País, desde 33 para cá.

— Sra. Morgada! — alvitrou o abade atalhando a objurgatória política do  outro —, aqui perto de nós mora o Sr. João Pacheco. Se a vossa Excelência  quer, vamos lá. É impossível que este cavalheiro resista às reflexões de uma  senhora que ele tanto venera!

— É já — assentiu D. Helena cobrindo-se com o xale e recomendando ao  capelão que fizesse companhia à menina. 
Quando entraram, havia conferência entre os padrinhos de Álvaro e José de  Almeida.  João Pacheco,  segundo  o estilo, não era  presente;  mas,  contra  o  estilo, em tais andanças, estava a dormir. Foi chamado para receber a visita da  Sra. Morgada. Espertou estrouvinhado e foi à saleta onde a senhora dialogava  ansiadamente com Almeida e com os outros acerca do desafio. O portuense  havia já anunciado que as condições mortíferas do duelo estavam modificadas. 

Abreu, coagido pelos padrinhos,  prescindira  de morrer,  e  propunha  o  combate nos termos comuns. 

A fim de aplacar as agonias flatulentas da viúva,  Pacheco asseverou-lhe  que  não haveria ferimento de perigo. Quanto a recusar-se ao desafio, consoante a  dama rogava, alegou que a sua dignidade lho proibia. Redarguiu a consternada  senhora que ia pedir ao seu primo Álvaro que desistisse do duelo. 

— Se ele desistir  —  observou Pacheco  —,  tem  a  vossa  Excelência  conseguido  o seu bom  intento;  mas  coloca  o seu parente  em má posição  perante  os cavalheiros em quem  confiou  a  desafronta  da  sua  imaginária  desonra.  Vá  descansada,  a  minha senhora.  O  seu futuro  genro  não sofrerá  mutilação de espécie alguma. O nosso combate será um simulacro de esgrima,  uma espécie de ginástica de sala com espadas sem ponta nem gume. 

***

Ao repontar da  manhã,  atravessamos  o Vizela  por  umas alpondras sobre as  quais se encurvam hoje os arcos da Ponte Nova. Trinavam ainda os rouxinóis  nas margens frondosas do rio e ao longe assobiavam melros e grasnavam as  pegas nos  pinheirais.  A  corrente murmurosa  trapejava  nas franças dos  amieiros debruçados  à  flor da  água.  Daí  ladeamos o  Banho  do Mourisco, à  volta do qual estavam umas mulheres aldeãs espulgando-se nos seios com um  despejo digno da inocência da Arcádia. Os homens respetivos escodeavam as  calosidades calcâneas ou atarracavam tachas nos tamancos. 

Depois subimos uma charneca declivosa por onde hoje se alarga e complana a  estrada  de  Penafiel  e entramos  numa  encosta  de tojeiras  e sargaçais.  Carregámos  à  esquerda,  fraldejando o outeiro por sobre o bravio,  e  emboscamo-nos por boiças de carvalheiras até encontrarmos uma clareira chã  e menos acidentada.

— É aqui — disse Almeida aos padrinhos de Álvaro. 

Os combatentes despiram as quinzenas e os coletes.

Os pulsos de Álvaro negrejavam cabeludos e quadrados, de uns que o povo  diz que têm só uma cana, como sinal de rijeza inquebrantável: os dedos eram  penugentos e trigueiros, com as unhas sujas. As mãos de João Pacheco eram  magras, translúcidas e depauperadas do bom sangue que tinge a epiderme. O  que me deu a  mim alento e esperança  na vitória  de Pacheco foi o sereno e  risonho aspeito do rapaz e a confiança na arte que neutraliza os ímpetos da  força. 

Rompeu o combate à  voz de José  de Almeida.  Álvaro de Abreu  —  caso  singular! — fechou os olhos e floreou a espada em sarilho tal que o adversário  lhe cedeu terreno, aparando-lhe uns botes e esquivando o embate dos outros. 

Eu seguia ansiado aquele vertiginoso redemoinho do aço que lampejava e o  tinido aspérrimo das lâminas. João Pacheco bradou:

— Pare lá. 

Álvaro estacou, provavelmente pensando que o adversário estava ferido. 

— Este homem — disse o outro às testemunhas — fecha os olhos, não se defende, e eu involuntariamente posso matá-lo!

— Se me permite uma  reflexão  —  interpôs-se  Almeida  dirigindo-se  a  Álvaro de Abreu —, o senhor está enganado com o seu sistema de esgrimir às  cegas. Como há de ver a espada do seu contendor?

— Não sei jogar espada — respondeu ele. — Faço o que sei e posso. 

— Vejo que pode; mas o que sabe é perigoso — contestou Almeida. — a vossa Senhoria era já cadáver, se o quisesse o Sr. Pacheco. Bata como quiser,  mas veja o que faz: abra os olhos.

— Parece-me acertado — obtemperou um braguês com assentimento do  outro.

Recuaram ao ponto designado no terreno. Rompeu Álvaro  no mesmo estilo  de  pancada  de cego,  mas  com os olhos  coruscantes e  esbugalhados. João  Pacheco fez-lhe uni golpe dos primorosos da arte, o coup de manchette, no  antebraço, sobre os tendões que inserem no pulso, com destridade e limpeza  dignas das artes benfazejas. Estava desarmado o possante Abreu. O discípulo  do Chico Belas honrara o mestre. (*) 

[(*) Chico Belas era D. Francisco de Castelo Branco, irmão do conde de Pombeiro. Foi oficial de cavalaria, teve vida  de amores aventurosa e altíssima, morreu em 1862  cancerado, podre  de embriaguez  e de  devassidão. Conheci-o, em 1861, idiota, a babar-se e a pedir um pataco para genebra. Os seus nobilíssimos  parentes não puderam nada contra o destino deste homem, que exercitara o magistério na esgrima, na gineta e na galanteria bruta e... feliz!]
  
***

João Pacheco almoçou com José de Almeida para, em seguida, se recolher à sua  casa  do Arco.  Percebia-se-lhe um  aborrecimento  penoso do sucesso.  Confessou que  tinha vergonha  deter ferido  um  homem que desconhecia  o  jogo das armas e fechava  covardemente  os olhos.  Retirava-se  para  evitar  o  espetáculo em que havia de exibir-se logo que a triste façanha se divulgasse. 

Acompanhamo-lo até Guimarães. Aqui nos disse ele: 

— Não vos admireis se um dia vos constar que fui assassinado à traição. O  rancor  do Abreu há  de  respirar seja  por onde  for.  Na  família antepassada  deste homem há crimes que dariam matéria para um romance sanguinário. Os  próprios parentes dizem que o pai de Álvaro matara o irmão para lhe suceder  no vinculo e matara um cunhado para administrar e desfalcar a casa da irmã.  Era capitão-mor e amordaçava as suspeitas.

Este filho herdou-lhe a índole; mas, aquecido ao sol de outra civilização e mais  cultivado que o pai, supura-lhe a peçonha na língua. Não o temo a ele; mas  devo  acautelar-me dos  facinorosos que  acoita  na  sua  casa,  como se  prevalecessem ao novo sistema as antigas Honras dos paços senhoriais. 

Quando voltamos  de  Guimarães,  Álvaro de Abreu passeava na  estrada,  de  braço ao peito, com as primas e com o abade de Santa Eulália. 

— Íamos  agora  visitá-lo,  Sr.  Abreu  —  disse  José de Almeida.  —  Ainda  bem que o encontramos excelentemente disposto.

— Estou bom — respondeu secamente. 

— Fê-la bonita o Sr. Pacheco!... — invetivou D. Helena. 

— Ainda há de topar quem lhe abata as bazófias..  — acrescentou a filha,  chibatando com o guarda-sol um festão de madressilva.

— As minhas senhoras — contrariou solenemente José de Almeida —, o  Sr. João Pacheco procedeu com extremado cavalheirismo. 

— Muito cavalheiro!, pois não! — replicou D. Irene sarcasticamente com  uns esgares lorpas.

— Com toda a certeza, muito cavalheiro — insistiu o portuense. — Aqui está o Sr. Álvaro de Abreu que me não desmente.

O invocado respondeu grunhindo: 

— Hum. 

E Almeida prosseguiu: 

— Se as vossas Excelências, as minhas senhoras, não negassem a honradez  generosíssima de João Pacheco, eu teria a conscienciosa obrigação de apelidar  infame quem lha duvidasse. Assim, pedindo vênia a vossas Excelências para  não dar peso à sua opinião em matérias tão alheias do seu juízo, sustento que  é um  biltre quem negar o  cavalheirismo  de  João Pacheco  na  pendência  que  teve esta manhã com o Sr. Álvaro de Abreu.

E, fitando-o, esperava resposta, que não logrou. 

— Acabou-se!  —  interveio  o abade.  —  Com águas  passadas não moem  moinhos...


— Diz bem, Sr. Abade — aplaudiu a morgada velha. — Não se fale mais  nisso.

— O que eu sei — juntou Irene — é que, no ano passado, gozamos em  Vizela dois meses deliciosos; e este ano veio aquele Sr. Pacheco lá de Lisboa  perturbar a nossa alegria com as suas prendas de jogador de espada. 

José de Almeida sorriu-se com o mais característico gesto de mofa, abaixou a  cabeça  sem  se  descobrir e retirou-se sacudindo a  calça com o  chicote  de  baleia.

Montado no cavalo de que apeara, quando avistou o grupo, disse-me rubro de  cólera:

— Aquela  mulher fez-me acreditar que é possível dar-se  um  pontapé  na  parte posterior do merinaque de uma senhora.

***

Quando, por fins de Junho, saímos de Vizela, mexericava-se que um rapaz do  Porto,  oriundo de  família  inglesa e celebrado por  vinte  e sete fraques que  estadeava  com  os respetivos  coletes,  fora  visto, à  claridade da  lua  cheia,  cochichar com Irene, ele no quinchoso e ela no muro do quintal. 

Em fins de Julho,  José  de Almeida,  no  encalço  de uma  liteira  portadora  de  certo objeto amado, voltou a Vizela e observou uns aleijões psicológicos na  enfermidade crónica chamada o sexo pelas senhoras de Basto. 

A saber:

Irene, admitida aos saraus e passeios das ilustres famílias da Torre da Marca,  Machados Pindelas, Guedes da Costa, Alentém, Infias e Paço de Sousa, ouvir  a motejar de Álvaro, à conta do desafio, por causa das grotescas arremetidas  de esgrima  pelo  sistema obsoleto da  cabra-cega.  Alguns fidalgotes, às vezes,  no meio das salas, sem se resguardarem da morgadinha, fechavam os olhos e terçavam as bengalas com atitudes farsistas. As gargalhadas atroavam, e Irene  disfarçava o despeito  perguntando às  vizinhas  que brinquedo era  aquele.  Afinal,  teve uma  sincera  amiga  que lhe explicou  o  libreto daquelas  pantomimas, metendo a riso o Abreu.

Coincidiu  então a  chegada  do sujeito dos  vinte  e sete fraques a  Vizela,  galhardeando em prendas de sala,  e savoir vivre  com mulheres,  muito  distintamente. De feito, Jacques Smith, educado em Londres, enfarinhado nos  ademanes franceses, enfronhado em vaidades de fidalgo que tinha os ossos do  seu patriarca saxônio  na  Palestina, elegante e  quase inteligente,  formava  de  tudo isto,  reunido aos  vinte  e sete  fraques  e respetivos  coletes,  uma  personalidade capaz de sensibilizar damas no uso de caldas e amor. 

A frescura montezinha da filha do capitão-mor de Athey, a garridice um tanto  canhestra,  os seus  saltos  de ovelha  espantadiça  e o fluido do olhar que ela  derramava remirando-o de esconso escandeceram Smith. Era atrevido como  todos os sujeitos de cerebelo grande, onde demora a bossa da amatividade. A  lua cheia de Junho e Julho viu coisas que a poesia costuma idear nas varandas  das Julietas e que a prosa espreita em qualquer horta de couve galega por entre  festões de abóbora-menina.
  
O bacharel Abreu não viu tanto como a casta Lua; mas farejou. O rival tinha o  prestigio que esmaga  com a  superioridade.  O  coração do homem traído  abisma-se a chorar na consciência que diz: «Eu valho menos que o meu rival.»  Enfureceu-se, e vozeou rusticidades à prima, que lhas escutou como quem as  recebe impassivelmente com a condição de perjurar. Não se desculpou nem  carpiu. Aborrecia-o,  porque era  irrisório desde o duelo,  e porque estava  perdida  de amor,  fulminada  por Jacques Smith,  bom tipo da  perfeição viril,  tirante as escrófulas cicatrizadas no pescoço.

Álvaro de Abreu foi  para  a sua  aldeia.  Jacques voltou em princípios  de  Agosto, com José de Almeida, para a praia da Foz.

Perguntando-lhe Almeida  se  a  morgadinha  de  Athey passara  à  história, respondeu:

— Pois então! 

— Era uma rapariga fresca. . — disse o outro. 

— Sim, fresca e indigesta como a melancia.
  
***

Em uma gazeta do Porto, de 15 de Novembro do mesmo ano de 1851, lia-se  esta correspondência datada no Arco:

Esta vila sofreu a perda irreparável de um cavalheiro consumado em toda a extensão da  palavra e representante de uma família, talvez a mais ilustre das províncias do Norte,  pois   entre os seus avoengos se conta o grande e imortal Duarte Pacheco Pereira, por antonomásia  o Aquiles Lusitano e o Leão dos Mares.

Ontem de manhã saíra o Sr. João Pacheco a visitar uma a sua prima em Refojos de Basto,  onde passou o  dia  até  às  quatro  da  tarde.  O cavalo  em  que  montava era  um potro  não  educado ainda e comprado nas manadas espanholas que vieram à feira de S. Miguel. Os  seus amigos, posto que João Pacheco fosse ótimo cavaleiro, muitas vez s lhe observaram que  os caminhos precipitosos destas aldeias eram impróprios para ensinar potros.

Fiado, porém, na destreza do pulso e firmeza de joelhos, o temerário cavaleiro rompia por esses algares e barrocais  com um denodo  digno  de melhor  emprego.  Realizaram-se  funestissimamente as previsões dos seus amigos. 

Ao lusco-fusco entrou pelo portão da casa de Vale Escuro o potro sem o cavaleiro, com as rédeas e bridões despedaçados. O mesmo foi levantar-se na casa um clamor a que todos os vizinhos acudiram. João  Pacheco era  extremosamente amado  por três tias, respeitáveis  senhoras,  que  não  viam  outra  coisa  neste mundo.  Amigos e criados,  salmos todos pelo  caminho de Refojos; e a meia légua de distância, num barrocal fundo e lamacento (espetáculo  doloroso!), encontramos o cadáver de João Pacheco, de bruços, com as mãos submersas no  lamaçal e sem gota de sangue que denunciasse o órgão ferido. Como já era escuro, e o cadáver  só  podia  levantar-se depois do  exame  judiciário,  ali ficamos alguns amigos até  ao  dia  guardando  os  despojos de  tão nobre  rapaz,  desastradamente  morto  na  flor da  vida!  O  cirurgião  examinou-o  e apenas lhe encontrou o  crânio amolgado, sem  extravasação  de  líquidos, exceto  dois fios de sangue que derivavam do  nariz.  Presume-se com bom  fundamento que o cavalo o cuspira contra uma rocha angulosa que forma um dos valados da  barroca; porque  também  na  palma  da  mão  direita  mostra contusões resultantes de se  amparar contra as escarpas do penhasco. Não pode atribuir-se esta catástrofe a outra causa  que não seja a queda. Se fosse homicídio, seriam outros os vestígios de ferimentos; além de  que, João Pacheco era  benquisto,  honestíssimo, respeitador da  honra  das famílias,  não  obstante haver sido criado e educado em Lisboa.

Além de rico, era um gentil  rapaz; pois não consta que deitasse a perder algumas dessas  centenas de jovens pobres que se consideram felizes quando os fidalgos as levam à vereda da  desonra.

Nós, os seus amigos, chorá-lo-emos enquanto as suas virtudes lembrarem como exemplo a  Filhos e cidadãos. Que descanse na perpétua morada da virtude o tão chorado mancebo; e  peço ao altíssimo resignação para a sua inconsoláveis tias!...

Quando  li  compungido  esta  correspondência,  lembraram-me as  palavras  de  Pacheco, na última hora em que o vi: «Não vos admireis se um dia vos constar  que fui  assassinado  à  traição.»  Comuniquei  a minha desconfiança  a  José  de  Almeida, — Palpita-me que foi assassinado pelo Abreu! — concordou o meu  amigo, e acrescentou: — Escrevo hoje ao abade de Santa Eulália, citando-lhe  as palavras de João Pacheco e pedindo os pormenores do desastre.

O abade respondeu que eram infundadas as nossas desconfianças; porquanto,  no dia 11, em que João Pacheco perecera, estava Álvaro de Abreu na feira de  S. Martinho,  em Penafiel,  com ele,  abade,  e com as senhoras morgadas de  Athey;  e que por sinal  nesse  dia perdera  o Abreu cento e tantas moedas de  ouro ao monta, à vista de dezenas de pessoas que nunca o tinham visto jogar. 

E rematava a carta deste teor: 

Os namorados fizeram as pazes. A pequena veio das Caldas muito coada de cores e com  grandes..   Olheiras  (ia  a  escrever  «orei/ias»).  Nos primeiros dias,  enfanicava-se a  cada  passo  e dava uns ais românticos como  as damas de Basto  de  1825.  Infandum...renovare  dobrem. Depois, a mãe, que é também matreira de 1825, escreveu ao Abreu dizendo-lhe que a sua filha era vítima da ingratidão dele. Aquela «lua cheia» de Vizela de que a vossa Senhoria me falava, não foi ouvida a tal respeito. Ora o Abreu quer-me parecer que sabia  pouco menos que a  referida  Tétis e que o  janota  luso-britânico  de  que reza  a  crônica  escandalosa das termas romanas do corrente ano, 1890, da era de César. Porém, como o  patrimônio dele é magro e as fazendas de Athey são de encher (e de fechar) o olho, a vossa  Senhoria  verá que, afinal,  a  morgadinha,  embora  não  tenha  de  desatar a  cinta  virginal,  apanha marido, parente, fidalgo e bacharel. Se. depois, as costelas lho pagarão, isso não é da minha conta. Lá se avenham; mas melhor será que ele se resigne, e feche os olhos como no  duelo,  porquanto  saco  com honra  e proveito  é  raro,  ou não  o  há,  se o  anexim é tão verdadeiro, quanto eu sou da vossa Senhoria amigo e venerador, Abade Silva. 

***

No ano seguinte, a floresta de amieiros do Vizela já não deu sombra e frescura  a nenhum dos seus hóspedes do ano anterior.

A José de Almeida  e a  mim figurou-se-nos  que as frondas  do salgueiral  afestoavam um túmulo. Doeu-nos pungentíssima a saudade de João Pacheco.  Nunca mais ali voltamos.

Estavam nas Caídas a morgada velha e o abade de Santa Eulália. 

Irene e o seu marido, Álvaro de Abreu, esperavam-se mais tarde. 

Esperava-os D. Helena; mas  o abade secretamente  nos  disse  que D. Irene  nem o marido tornariam a Vizela em dia da sua vida.

Segredou-nos que a morgadinha, ao oitavo dia de casada, tentara fugir para a  mãe...

— Oh! — exclamou Almeida —, ao oitavo dia!, que lua-de-mel! — a meu  ver — piscou o abade entortando a boca disformemente —, esta lua-de-mel  recebia  a  luz reflexa  daquela  outra  lua  cheia  aqui das Caldas,  tão  a  sua  conhecida, Sr. Almeida, .

— Maganão!  O  abade é  o calendário  de todas as luas  que iluminam  há  trinta anos os amores noturnos de Vizela. . 

— O que o senhor não sabe é que o marido lhe bate às cegas... 

— Sim? Agora vejo que o homem, no duelo, obedecia ao costume. 

— E, quando sai, fecha-a num quarto de cantaria que lá chamam a «torre»,  e até dos criados a zela!

— Que amor e que conceito lhe merece! — disse Almeida com a secura  irónica do seu gênio quando as situações demandavam piedade. 

— Eu vi-a  há  quinze  dias  na  igreja  de Refojos.  Que mudança!  Está  escaveirada,  sem atavios,  o desalinho da  desgraça...  Fez-me compaixão!  O  marido estava à beira dela; não pude sequer dizer-lhe que fugisse. 

— Mas a mãe.., assim a deixa desprotegida? 

— A mãe definha-se; e não saber tudo o que ela sofre, porque a filha não  se queixa.. 

— Não entendo essa resignação! — objetou Almeida. 

— Entendo-a  eu.  Irene era  descompassadamente  estúpida a  respeito de  certas coisas.. 

— A respeito de todas, pensava eu — emendou o portuense.

— Cuidou que o matrimônio era  o conserto  de certos aleijões com que  fora daqui de Vizela.

— Fez do marido algebrista, percebo. 

— É isso; mas o bacharel tem lá os seus Provarás...

— De cacete, hem?

— E a mulher tem medo que o marido peça contas à sogra dos desatinos  da filha.

— As meninas que em tais condições se casam não temem as mães, abade.  Casou ela livremente?

— Com toda a liberdade, e contra a vontade da mãe. Tanto assim que a  velha, prevendo que o Abreu seria mau esposo, entregou-lhe simplesmente o  que era do pai da noiva: setenta mil cruzados em propriedades. A casa vale o  tresdobro.  Foi velhacaria  muito  louvável;  porque,  dizia  ela:  «Se  o marido a  maltratar, ameaço-o com a privação do meu dote, que é privilegiado e isento  da meação da casa.» É o que ela está ensaiando: já anunciou a venda de duas  quintas. Veremos como ele se porta...

— Por essas duas quintas fechará o genro os olhos ao passado e ao futuro.  Ele  bem  sabia que Irene  o  desprezou pelo  Jacques Smith.  Que alentado  canalha salpicado  de  brasões!  Não  posso  despersuadir-me que foi  ele o  assassino do infeliz Pacheco...

— Juro que não foi: já o defendi. 

— Então, mandou-o matar.

— Isso é uma  hipótese  sem nenhum fundamento,  No cadáver de  João  Pacheco  não  havia  sinal de ferro,  nem de tiro,  nem contusões de pancadas.  Foi a queda do cavalo, que era bravo. Não dê vulto a essa suspeita aleivosa. 

*** 

Joeirando as minhas reminiscências de coisas relativas a Irene, referidas pelo  abade em cartas a José de Almeida, apuro o seguinte, na correnteza dos anos  de 1853 a 1855:

Sem impedimento  dos dissabores conjugais,  Irene deu à  luz  o seu primeiro  filho, e, mediante o prazo restrito para o fenômeno da geração, provou a sua  fecundidade com segundo rapaz robusto. Donde se depreende que ele a não  espancava incessantemente.

Irene vivia mais desoprimida desde que o marido reatara com uma raparigaça  barrosã a mancebia interrompida pelo casamento. Ele pernoitava fora noites  seguidas e não sofria em casa a menor inquietação com ciúmes. 
Durante o primeiro ano, raro dia passava que a não atanazasse com perguntas  cruamente  torpes acerca de Jacques Smith.  Depois,  parecia esquecido  ou   reconciliado, se não era antes o receio de que a mulher lhe fugisse e a sogra  alienasse as quintas.

No meado de 1855,  a  morgada  velha faleceu nos  braços da  filha,  recomendando-lhe que recorresse nas suas aflições ao abade de Santa Eulália.  Desde este dia, recrudesceram em Álvaro de Abreu os desprezos, as injúrias e  até a  difamação da  mulher.  aos  seus  parentes,  que o arguiam  de devasso,  respondia  que lhe  era  mister  aturdir uma  desonra  com outras:  e,  pondo em  miúdos a  frase anfibológica, delatava  a  fragilidade ante-matrimonial  da  sua  mulher e parenta.

Apertada pelos insultos face a face, Irene disse-lhe um dia: 

— Se eu tivesse um  irmão  que pegasse numa espada,  você não me  ofenderia assim.. 

— Se você tivesse um irmão que pegasse numa espada e me ferisse com  ela, iria para onde foi um homem que uma vez me feriu... 

Irene não percebeu o sentido latente da  réplica; mas referiu  ao abade  a  passagem, digna de ponderação.

«Quem sabe», dizia ele consigo, «se José de Almeida acertou quanto à morte  de João Pacheco,.

Os criminosos asilados  sob  as telhas de  Álvaro de Abreu favoreciam a  suspeita: entre outros somenos na tuba da fama avultavam o José Pequeno, da  Lixa, e o José do Telhado, que o neto dos senhores de Regalados sentava à sua mesa, quando Irene ficava no quarto. Entrou em averiguações o abade, e  soube que os dois salteadores, quando João Pacheco morreu, estavam na casa  dos Abreus de Refojos, jogando a esquineta com os criados.

Como quer que fosse,  o abade entrou-se de medo bem entendido quando  Irene lhe pediu que a protegesse e resgatasse da escravidão em que vivia. 

«Este homem,  se eu  me intrometo nos  distúrbios  da sua  casa,  é capaz  demandar  um  dos  seus  celerados apunhalar-me!»,  conjeturava  ele  racionalmente.

Não obstante, indagava com cautela o modo de libertar Irene pelo divórcio,  ou pela fuga para mosteiro ou casa de família honesta. As famílias honestas  recusavam-se  a  receber a  esposa  difamada  pelo  marido;  as  menos  honestas  esquivavam-se  a  desavenças  com  Álvaro  de  Abreu, respeitando mais os  hóspedes que o hospedeiro.  Os donos das  casas endinheiradas dormiam  tranquilamente  enquanto  o amigo  do  José  do Telhado e  José  Pequeno  lhes  não retirasse a sua estima.

E,  naquele tempo, havia  governadores  civis,  administradores  de concelho,  regedores, cabos de polícia, etc. Esta corporação de funcionários não prendia  ladrões: fazia deputados.

***

Irene instava  com urgentes rogos.  Dizia desatinos ao abade.  Traçava  planos  vulgares; mas de escândalo estrondoso. Fugiria para o Porto, onde estava um  homem que ela amava: iria pedir-lhe o amparo do amante ou a vingança do  cavalheiro.  Tinha  lido o Palmeirim de Inglaterra;  mas não conhecia  o  Cavaleiro da  Triste  Figura.  O  abade recomendava-lhe  juízo e  paciência; e  pensava mais fervorosamente em salvá-la do amante que do marido. Falava-lhe dos filhos.  A comoção era  medíocre.  As mães  que  desafogam  as suas  angústias,  ajoelhando  à  beira de um  berço,  estão  salvas.  Irene  carecia  da  virtude redentora das esposas, que fazem os seus anjinhos intercessores com a  justiça divina. Era criminosa. O marido cuspia-lhe uma injúria, e ela abaixava  o rosto  indelevelmente manchado.  Um dos  esteios  da  honra  quebrara-o a  jovem solteira em Vizela: restava-lhe outro — o da sinceridade com o noivo  aborrecido:  quebrou-o  também. Se a  sorte  lhe deparasse  marido  tão amante  quanto generoso, a regeneração fá-la-ia o esquecimento do erro, e o segundo batismo  da  alma  seria  a  unção das lágrimas  nas faces  cariciosas dos filhos.  Havia uma chaga a cicatrizar na consciência de Irene; não lha leniram com o  bálsamo do amor ou da  caridade: exulceraram-lha  a  ferroadas de  inúteis  vitupérios. As mulheres assim, quando não se engolfam no tremedal, ou são  feias como o  pecado,  ou predestinadas como Santa  Pelágia  e Santa  Maria  Egipcíaca.

O abade de Santa Eulália solicitou a proteção de um prelado, o seu parente, a  favor  da  desditosa  Irene.  Conseguiu-se a  entrada  da  esposa  fugitiva  no  Convento de Santa Clara de Coimbra. O abade avisou-a, guiando-a no passo  da  fuga.  Irene  deveria  sair para  uma  das suas quintas de Cerva,  onde  costumava  ir ao Outono,  e fugir de lá  com duas  pessoas da  confiança  do  abade. Aceitou alegremente a proposta; porém, dias depois que se transferira à  quinta  donde devia fugir,  com efeito fugiu; mas não  eram confidentes  do  abade as pessoas que lhe protegiam a retirada pela serra de Marão em direitura  ao Porto.

A mulher de Álvaro de Abreu escondeu-se nos arrabaldes daquela cidade, no  Bom Sucesso, numa casa-chalé, telhada e ladrilhada de asfalto negro à inglesa,  com estores impenetráveis e à volta um silêncio sepulcral a ouvir — permita-se-me a expressão — os suspirosos murmúrios que lá dentro se atabafavam nas alcatifas e nos cortinados.

Aquela casinha abarracada era o chalé de Jacques Smith, o homem dos vinte e  sete fraques para quem a frescura da melancia era indigesta.  Não é natural que a esposa fugitiva fizesse por ali escala para o cubículo de  Santa Clara.

***
Avisado Álvaro de Abreu que a sua mulher desaparecera da quinta de Cerva,  deixando os filhos com recomendação às amas que os entregassem ao pai, não  se afligiu desesperadamente. Sabia que Irene suspirava pelo convento e que o  abade,  confidente  dela,  era  o agente  desse  plano. Procurou o abade  na  sua  residência e perguntou-lhe, carranqueando, onde estava a doida. 

— Não sei, Sr. Abreu.

— Não mangue comigo, abade..  Em qual convento está Irene? O senhor  tratou disso, foi a Braga, falou ao deão, etc.

— Sem dúvida; mas a Sra. D. Irene, quando foi procurada para entrar no  Convento de Santa Clara de Coimbra, já tinha saído da quinta.

— Não me conte lérias, abade! — retorquiu sarcasticamente o bacharel. —  Eu estou a  ler-lhe  na alma.  Irene vai requerer o divórcio,  guiada  pelos seus  conselhos.

— Não é verdade, Sr. Abreu — atalhou o abade. 

— Não  me desminta.  Que interesse tem o senhor,  pastor  de almas,  em  insinuar a desordem no seio de uma família?

— Já disse a vossa Senhoria. . 

— O senhor é tolo! Parece que não tem amor à pele... Repare no que lhe  digo: se a justiça, a requerimento de Irene, me inquietar, quem paga as custas é  o Sr. Abade de Santa Eulália. Fica avisado.

— Mas..., Sr. Abreu..., juro-lhe pela sagrada hóstia. . 

— Não  me fio  em hóstias!. .  Padres!, corja  de marotos!, pensam  que estamos ainda nas trevas do absolutismo!. . Fica avisado, entende-me? 

E saiu tinindo rijo com as esporas no pavimento  e dando estalos com o  chicote.

O abade era uma congestão de pavor, com o espírito estritamente necessário  para pensar em transferir-se para outra abadia.

Nesses dias de sobressalto, escrevera ele a José de Almeida, contando-lhe as  suas cólicas em linguagem picaresca.  Mais  egoísta que caritativo,  dava  ao  Diabo do Inferno  a  tonta  da  Irene  e perguntava  onde  iria  parar aquela  extravagante.

Quanto  a  mim [aventava  o  solerte  abade],  a  mulher está  aí no Porto,  sob a  proteção  da  bandeira  inglesa,  enquanto  eu cá  estou debaixo  do cacete   português do  marido.  Ela  muitas vezes me disse que tinha  aí paladino.  Procure-a  a  vossa  Senhoria; e,  se tiver  modo de lhe  transmitir  os meus  cumprimentos pela bestialidade que fez, peça-lhe que não demande o marido,  visto que as custas já  eu fui citado para  as pagar em  moeda  de costela.  Entretanto, diligencio escapulir-me daqui. Está vaga uma boa abadia no Alto  Minho. Vou requerer a  mudança,  esperançado no  valimento  da  vossa  Senhoria. O deputado do circulo há de fazer-me guerra, porque eu laboro nas  fileiras  da  rainha  e Carta  e votei  contra  ele;  mas,  repito, conto  com  a  vossa  Senhoria  e com o  José  Bernardo. Não me desconviria nesta  ocasião um  canonicato em Braga, e já mó ofereceram os Srs. Cabrais em 1850; hoje torço  a orelha. . Ah!, femeaço!, femeaço!

Quando a política me agourava uma mitra, as mulheres far-me-iam rejeitar o  chapéu de cardeal. Mulheres, piores que o Diabo, diz o Eclesiastes. Devia de  estar velho quem  disse isto...  Finalmente,  agora,  em remate de cantiga,  vem  essa  doida da  Irene  perturbar  o meu  repouso!. .  Quem me  mandou a  mim  endireitar tuertos, se ela já estava retorcida!? Etc.  

José de Almeida, contando com a fatuidade de Jacques Smith, mostrou-lhe a  carta do abade e perguntou-lhe se ele podia informá-lo. 

Smith riu à farta das graçolas do padre, encaracolou as guias do bigode, estirou  três vezes os braços com sacudida elegância, assentou a gola do fraque décimo  nono, fez meia volta sobre os tacões, enclavinhou os dedos alisando os vincos  das luvas, e falou desta arte:

— Eu te digo. É uma pobre rapariga. Deixei-a, como sabes. Escreveu-me  sempre.

Respondi-lhe  de  vez  em quando.  Quis  fugir à  mãe.  Pediu-me que a  fosse  esperar a  Guimarães.  Dissuadi-a  de tal parvoíce.  Desesperou-se,  quando  soube que eu fora  para  Paris,  e casou-se  por  despeito. Que estupidez!,  uma  mulher com duzentos contos!

Cheguei  de Paris,  e encontrei  uma  carta  de Irene,  escrita  na  véspera  do  casamento. Era um adeus com raiva e lágrimas. Dizia que não lhe importavam  as consequências..   —  que,  se  o marido a  matasse,  Deus me pediria  contas.  Compadeceu-me esta tolice! 

Passados dois anos, escreveu-me uma história deplorável de dores íntimas. É  vítima do amor que me teve. O marido mata-a lentamente e atormenta-a com  o meu nome.

Respondi-lhe em nome suposto, com pesar, com dó, com saudade, queres que  te diga?,  amando-a!..   Caprichos  do coração...  Primeiramente,  aconselhei-a  a  que se  separasse  do  bruto;  depois  aprovei  o refúgio  do convento;  por fim,  quando ela me disse: «Vou suicidar-me«, fui buscá-la. Andei cavalheiramente? 

— Com toda a  certeza. A ter ela  de se  matar,  fizeste bem.  Salvaste-a  da  morte e das  penas eternas que esperam os  suicidas  —  aplaudiu Almeida,  casquinando frouxos de riso que eram uma satânica beleza na fisionomia dele. 

— Estás a  gracejar?  —  respondeu  o outro com aprumo entre  inglês e  portuense.

— Pois tu  falas tão fúnebre que eu deva  ouvir-te com as lágrimas nos  olhos? Rio-me  dos  advérbios  que  eu  t tu  usamos  nestes  casos.  Cavalheiramente!  Foste buscá-la  cavalheiramente!  E se  tivesses casado com  ela, na ocasião em que a comparavas à melancia fresca e indigesta, com que  advérbio celebrarias a tua ação?...

— Casar!..  Porque não casas tu?...

— Isso é outra questão... 

— É a mesma: porque não casas tu com.,. 

E recenseou meia dúzia de nomes tão respeitáveis presentemente que só cada  um de per si bastaria para desbotar o pudor das Pórcias e Cornélias.  José de Almeida, em verdade, no terreno da morigeração, estava deslocado.  
  
Mudou sensatamente de rumo; e, voltando ao ponto, disse:

— Que queres que eu responda ao abade? 

— Diz-lhe  que D.  Irene  está comigo;  e que o diga  ao marido,  se  isso  convier à sua defesa. Quanto a demandas, que não se assuste o selvagem nem  o abade.

Fez uma pirueta congenial, acenou ao jóquei, sentou-se de um pulo no coxim  do  mail-coach e silvou a  pita  do  pingalim na crina dos  alazões, que saíram  curveteando.

«Aí vai um perfeito feliz», dizia a mocidade portuense verminada de invejas. 

Seria  um  pouco  mais feliz que um  mendicante sadio  se  não  tivesse  um  aneurisma a arfar-lhe no coração. Compensações.
  
***

O  abade,  recebendo a  resposta do portuense,  procurou Álvaro  de Abreu e  disse-lhe:

— Lamento a desgraça de que não tenho a mínima culpa. A Sra. D. Irene  está..  onde a levou a fatalidade. Se a vossa Senhoria me admite um conselho, não se divulgue tal desgraça.

E,  contando-lhe com  melindrosos rodeios  que O.  Irene vivia  com Jacques  Smith, ofereceu-se para intervir no remédio deste escândalo.

— Como? — interpelou Álvaro iradamente. 

— Meditarei no modo da encaminhar ao convento. 

Abreu ringiu os dentes e rosnou: 

— O  senhor,  se  não fosse uma  besta,  seria  um  canalha  que vem  aqui  avisar-me da infâmia dessa mulher!...

— Oh,  senhor!  —  exclamou o abade, conturbado do ímpeto do fidalgo. 

— Pois eu venho participar-lhe,.  

— O quê? Que vem o senhor participar-me? Que estou desonrado? Ora  ponha-se no meio da rua antes que o despeje pela janela! Quem perdeu, quem  prostituiu essa devassa, foram os seus conselhos, O abade limpava o suor e  gaguejava.

— Rua!  —  bradou Álvaro  —,  e mude de terra,  quando não....  faço-o esfolar.  Você  teve quinhão nas devassidões da  mãe;  que lhe importa  a  devassidão da filha?

Era  uma  seva  calúnia,  propalada  por  Álvaro de Abreu e aceite pela  opinião  pública. O abade então chorou, ergueu a cara com arrogância e bradou:

— O senhor informa as honradas cinzas da sua sogra! Eu não posso vingá-la, mas Deus nos vingará, a ele e a mim! 

— Fora, hipócrita! Rua!

O  padre saiu aturdido.  Zuniam-lhe  os  ouvidos  e congestionava-se-lhe  o  sangue na cabeça.

E,  desde esta  hora  —  dizia  ele  —,  nunca  mais teve saúde nem descanso. Apagou-se-lhe  a  clara  e serena satisfação da  vida.  Fechou a  aula  de  Latim.  Insulou-se da convivência dos amigos. Tinha cinquenta e seis anos. A filosofia  socrática não bastava a robustecer-lhos contra os abalos da religião de Jesus.  Entrou-lhe no espírito a memória severa do seu passado licencioso. Pesares,  abafados  pela  dúvida,  exulceraram-se  em  remorsos.  Ara o assombro dos  fregueses.  O  relâmpago da  fé abrasara-o.  Fez-se  missionário e,  no  púlpito,  desentranhava a invencível e penetrante eloquência das lágrimas. 

Acaso vi o nome deste padre na lista de missionários que uma gazeta injuriava. 

Comuniquei o espantoso achado a José de Almeida.

O meu amigo escreveu-lhe, Na volta do correio, a resposta dizia assim:

O desgraçado a quem escreveis morreu. Subsiste um penitente a rogar vos de  mãos postas  que,  antes do  inverno da  vida,  ofereçais a  Deus  as vossas  lágrimas em desconto das que fizestes chorar.

— Que celebreira! — disse Almeida. — Quem havia de esperar isto de um  padre tão patusco!

E mais nada  —  celebreira!  Que desabrimento com umas ingentes dores,  dobradamente deploráveis, se são quimeras!

Eu, de mim, compreendi aquela transformação, porque decifrara os segredos  dela  na  minha  alma.  Aos  vinte e um  anos  estudara  eu Teologia,  com  o  propósito  de ir  missionar entre os  vituperados  da  loucura  da  Cruz.  Recai,  propelido pela zombaria do mundo; mas aprendi a não zombar.

***

Por aquele tempo, um cavalheiro  de Basto,  o Sr.  Paulino  Teixeira  Botelho,  murava um terreno lavradio que nos anos anteriores fazia parte da feira de S.  Miguel,  em Refojos.  A política  de campanário  introduzira  a sua  garra  nesta  contenda de propriedade. O povo, acirrado pelos adversários políticos do Sr.  Paulino Teixeira, ameaçara derribar o muro e invadir a propriedade a ferro e  fogo.  O  proprietário,  forte  do seu direito  e bravo  do seu natural,  aceitou a  luva, aguerrilhou criados e caseiros e avisou as autoridades que tomaria sobre  si o desempenho dos deveres que incumbiam aos fiscais da segurança pública.

Os amotinados eram, pela maior parte, jornaleiros, soldados com baixa, a ralé  Intima das aldeias,  poucos lavradores  e alguns caseiros de casas  afidalgadas.  Entre  estes,  sobrepujava  na  investida  e na bravura da  excitação  um  Manuel  Fialho,  que  tinha sido  lacaio de Álvaro de Abreu, e àquele  tempo era  o seu  feitor em duas quintas nas  margens  do Tâmega.  Fora  ele quem  arremetera  primeiro  ao muro  e aperrara  um  bacamarte ao peito  de um  criado da  casa  agredida.

Rompeu a espingardaria, menos trovejada que o alarido da multidão. As balas  zuniam na  ramagem dos castanhais.  Milhares  de pessoas,  de envolta  como  gado espavorido, despejavam a feira. O povo inerme açodava com o alarido  os combatentes.

Dos de fora, alguns caíam feridos, outros baqueavam sob os muros derruídos. 

O mais pimpão, Manuel Fialho, caíra atravessado por um pelouro do peito às  costas. Acudiram a levantá-lo do chão lamacento alguns dos seus sequazes. 

— Quero confessar-me! — rouquejava ele. — Levem-me onde esteja um  padre!. .

Depressa, que morro! 

Olharam em redor, e viram um sacerdote que, de mãos postas, sem receio das  balas que lhe sibilavam de perto, pedia ao povo que se retirasse.

— Além está  o Sr.  Abade  de Santa Eulália!  —  exclamou um  dos  amparadores do agonizante.

Outro correu a dar-lhe parte de que estava ali um feitor do fidalgo de Refojos  mortalmente ferido que se queria confessar.

— Trazei-mo depressa, eu o espero nesta primeira casa..  —disse o abade. 

O  moribundo,  nos braços  de dois  homens,  entrou para  um  quarto onde  o  esperava o confessor. A confissão e a vida duraram-lhe dez minutos.

***

Álvaro de Abreu, quando, ao fim da tarde, lhe disseram que Manuel Fialho,  antes  de expirar,  pedira  confessor  e morrera  nos  braços  do  abade  de  Santa  Eulália, acusou nas alterações de cor e fixidez dos olhos alvoroço aflitivo. 

Os dois filhinhos, conduzidos pela despenseira, iam beijar a mão do pai para  se  deitarem.  Álvaro manteve  quieto  entre eles,  prostrado  numa cadeira,  abstraído,  enquanto  as crianças lhe  contavam a  batalha  da  feira,  imitando a  troada dos tiros com a boca e a estratégia com umas manobras infantilmente  graciosas. A despenseira, pensando que o pai se entretinha com os pequenos,  retirou-se admirada. Era raro deter-se Álvaro cinco minutos com os filhos; e,  quando eles se demoravam, afastava-os desabridamente.

Neste comenos, anunciou-se o abade de Santa Eulália.

Abreu levantou-se de golpe,  fincou na  cabeça  os dedos engrifados e  resmoneou:

— É certo...

O criado, que dera o anúncio, esperava a resposta.

— Que entre!. . e leva estas crianças..  — disse Álvaro.

O criado foi à sala de espera e fez sinal ao abade que entrasse pela porta da  direita.

— Deixe ir comigo os meninos — disse o abade, tomando-lhos cada um  na sua mão.

As crianças,  pondo  no rosto caricioso do velho  os seus  grandes olhos,  iam  alegremente, saltando  sobre um pé,  e floreando as  suas espingardas de cana fabricadas  expressamente para  darem aos criados  um  simulacro  do  tiroteio  daquele dia.

— Com licença.  Louvado seja  o nosso  Senhor Jesus Cristo  —  saudou o  abade à entrada da sala, introduzindo as crianças. 

— Entre! — disse o fidalgo. 

O missionário, entrado à sala, fechou a porta e disse:

— As crianças podem entrar porque são anjos e não entendem as nossas  palavras.

Em nome delas, tenho de pedir: e elas pedirão comigo. 

Álvaro de Abreu escutava-o em pé, imóvel, hirto. O abade mal o divisava na  quase escuridão da vasta quadra, assombrada de castanheiros seculares.

— Sr.  Álvaro  de Abreu  —  prosseguiu  o abade com a  voz  tremente  —, ouvi de confissão, em artigo de morte, Manuel Fialho, o homem que matou  João Pacheco,  com  a  pancada  de  um  mangual na  cabeça, e à  traição  na  Barroca das Duas Fontes, ao anoitecer do dia 11 de Novembro de 1851. Este  homem só compreendeu e temeu a justiça divina quando se sentiu varado por  uma bala. Eu venho rogar a vossa Senhoria que compreenda e tema a justiça  divina manifestada na morte violenta do seu criado Manuel Fialho, homicida  do inocente João Pacheco.  Não  lhe  direi  que se  tema  da  justiça  humana,  porque o único homem que podia acusá-lo é morto; e eu não o acusarei na  Terra; porém, se Deus chamar a minha alma a depor no tribunal divino, direi  que de mãos postas e na presença do seus filhinhos lhe pedi que se curvasse  pela contrição e pela penitência aos pés de Jesus Cristo misericordioso.

E ajoelhou aos pés de Álvaro com as criancinhas adiante de si.

— Levante-se, Sr. Abade! — balbuciou o marido de Irene, erguendo-o nos  braços. — Eu sou um miserável, sou  indigno da  sua estima..  Perdoe-me as  injustiças que lhe fiz... 
  
— Não tenho que perdoar... Adeus, anjinhos — disse o padre beijando as  crianças. — Ide ver-me algumas vezes à residência, que vos ensinarei a orar a  Deus por o vosso pai e..  por a vossa mãe. 

— A mamã? Onde está?  —  perguntou o menino mais velho, que tinha  quatro anos.

O abade passou o canhão da batina pelos olhos e saiu. 

A voz lamentosa  do  padre soou no deserto,  as lágrimas caíram sobre o  penhasco estéril.

Álvaro desdava  as roscas da  serpente  do remorso sem grande  esforço:  era  ateu.

Bazofiara  sempre de  racionalista;  mas  da  sua  razão era excluído Deus. Acreditava,  tal  qual vez,  nas vantagens  sociais da  virtude e nos perigos do  crime;  mas  para  além da  torrente  negra  da  morte  não  aceitava  sequer  a  discussão absurda.

Apalpava-o agora duramente a desgraça. Havia um homem que podia acusá-lo  de assassino covarde;  tinha  uma  esposa adúltera  que passeava ao grande sol  das praias e das praças o seu escândalo; rareavam à volta dele os cavalheiros  considerados; acanalhavam-no os celerados que se acolhiam às suas quintas; as  autoridades  judiciárias,  açuladas pela  imprensa,  aguilhoavam os regedores a  assaltarem-lhe as casas.

Perderam-lhe  o respeito,  e até nos periódicos o amalgamavam com os  hóspedes, invocando os manes dos condes de Regalados.

Convulsionavam-no frenesis, exasperos que ninguém mitigava com o amor ou  com os  linimentos  da  amizade,  Os risos  das crianças irritavam-lhe  a  misantropia.  Era-lhe  impossível  a  quietação e baldado o paliativo  das  deleitações brutais.

Deliberou viajar. Não podia vender quintas sem o consenso da mulher. 

Hipotecou-as com enormes usuras.  Embolsou o dinheiro à  farta  para  demoradas viagens e saiu, entregando os filhos para uma cunhada, esposa do  irmão morgado.

Desde 1857  a  1861  triunfou a  vida  nas principais  cidades  da  Europa.  Conheceu todos os salões e todos os antros. Viu a devassidão no espavento  das pompas do Louvre, onde as duquesas apresilhavam diamantes nos bicos  dos peitos,  e remirou-se  nos  grandes  espelhos dos  bordéis em que  as  mulheres, nuas como as bacantes, se espreguiçavam sobre divãs, com os seios  aljofrados de pérolas e os cabelos aromatizados de grinaldas de jasmim. Em  Veneza, Milão, Paris, Londres, Madrid, em todas as cidades capitais, comprava  um daumont, dois cavalos e uma mulher dar mais cotadas; às vezes, comprava  duas mulheres e quatro cavalos. Chamavam-lhe conde, porque nos seus trens  fizera pintar a coroa dos Abreus, condes do Pico de Regalados. 

D. Irene viajava simultaneamente com Jacques Smith. Uma vez, no Prado, em  Madrid, o faeton de Smith perpassou pelo breque de Álvaro, que boleava.   Refestelavam-se  nos  coxins  duas  francesas do café-concerto.  Jacques  acotovelou Irene e disse-lhe, risonho:

— Aos pares, hem? E tu a imaginá-lo a semear calondros em Basto...

Irene chorava.

— Porque choras?

— Por os meus filhos, que não têm pai, nem mãe, e hão de ficar pobres.

Álvaro avistara a mulher, cravara-lhe os olhos indecisos, reconheceu-a, e não  tenho a certeza se lá no intimo da sua pessoa lhe chamou descarada. 

É natural que sim.

O honesto era ele.

 ***

Em 1862,  um  padre que administrava  as quintas  de Álvaro  de  Abreu não  achou usurário que lhe adiantasse mais dois contos de réis que o fidalgo pedia  com urgência.

Um legitimista  minhoto que visitara  O.  Miguel na  Alemanha propalou.  que  vira Álvaro de Abreu em Florença muito doente, descarnado, tossindo, com o  peito retraído, as gengivas brancas e as orelhas secas. Os usurários enfiaram de  pavor.  Se ele  morresse,  a  viúva  e os órfãos,  alegando lesão enormíssima  e  ilegalidade dos contratos,  levantar-se-iam  com os  rendimentos hipotecados  das propriedades.  Álvaro  esperava  em Londres  a  letra.  O  padre-mordomo  enviou-lhe  algum dinheiro, desculpando  os  capitalistas com o  boato  da sua  enfermidade.

Resolveu repatriar-se, a fim de restabelecer-se no Minho. A sua doença era o  corolário da libertinagem: a caquexia. Os médicos franceses aconselharam-lhe  as águas minerais de Cauterets nos Pirenéus. Mudou de rumo. Era-lhe grata a  esperança de voltar à Pátria restabelecido e gordo para desmentir o legitimista.  Bebeu as águas  sulfúricas de  Cauterets,  consumou o esfacelamento  dos  intestinos baixos, e morreu medicinalmente.

Além de um titular português que lhe assistiu na morte e enviou a Portugal a  notícia,  ninguém,  por afeto  ou caridade,  lhe humedecera  os  beiços na  derradeira febre. Contou o titular a José de Almeida que o tal Abreu tinha um  pasmo de olhos horrendo quando agonizava.

Veria o espectro de João Pacheco? 
  
***

O  abade  de Santa  Eulália  rezava  uma  missa  por  alma  de Álvaro de Abreu  quando  D. Irene,  trajada  de luto rigoroso,  entrou na  casa  de Refojos,  onde  esperava  encontrar  os  filhos. Disse-lhe o  mordomo  que os meninos, por  direção  do  abade,  estavam a  educar  no colégio de  Landim,  oito léguas  distante. Escreveu ao missionário, pedindo-lhe que lhe levasse a sua amizade e  o seu  perdão.  O  velho,  que ela  não vira nos últimos  nove  anos,  era  tão  acabado, tão decomposto,  que  Irene  chorava,  comparando-o ao festivo  e  juvenil abade que radiava alegria na casa de Athey. 

— Afinal.. — murmurou o padre.

— Aqui estou... — soluçou Irene.

— Quer ver os seus filhos?

— Sim...

— Vou mandá-los buscar. Cuidei deles, porque a sua cunhada não podia  sofrê-los: e as criancinhas amavam-me... E preciso, a minha senhora, salvar o  que puder desta casa por amor destes meninos. Com ordem e economia, se  Deus me der vida, tudo se fará.

Irene apressava  o inventário,  resgatava  as vendas ilícitas,  anulava  hipotecas,  afanava-se  em liquidar o que devia  pertencer-lhe  da  meação do casal e dos  rendimentos absorvidos na totalidade pelo marido.

Observara-lhe o abade que um tamanho apuro de contas iria, sem ela querer,  cercear o patrimônio dos filhos.

— Se  a  vossa  Excelência  acrescentava  ele  —  tenciona reduzir  as suas  despesas ao viver aldeão, sobra-lhe tanto do que percebe da sua metade que  talvez possa deixar intactos os rendimentos dos órfãos. 

— Tenciono ir viver no Porto.,. — explicou ela. 

— Ah! — exclamou o abade. — Com que então, a minha senhora. . ainda  não?

— Ainda não..  O quê?

— Nem o grito da consciência? Nem o grito do exemplo? Nem a presença  de dois filhos? Bendito seja Deus!

Este diálogo constrangido foi cortado por  um  servo que entregava  a  correspondência.

— Não veio carta? — perguntou ela agitada. 

— Não, a minha senhora, veio somente esta folha. 

Era  o Comércio do  Porto.  D.  Irene atirou-o sobre uma  jardineira,  com  enfado, e encostou a face à palma da mão, carregando o sobrolho, O abade  chamara o menino mais novo, que tinha oito anos, e disse-lhe:

— Vem cá, Manuel Filipe, lê-me aqui as noticias deste jornal; quero que a  tua mãe veja que lês correntemente.

E deu-lhe o jornal aberto. A mãe parecia estranha ou aborrecida. 

O menino procurou a secção de notícias, e leu: 

OBITUÁRIO

Ontem, pelas sete horas dá manhã, desapareceu do número dos vivos um dos  mais estimados e gentis cavalheiros  desta cidade. Um aneurisma  no  coração  arrebatou fulminantemente o Sr. Jacques Smith, que... 

Irene levantou-se arrebatada bradando: 

— Que ê? Que é? 

E,  pegando no  jornal que tremia  nas mãos  do menino assustado,  leu as  primeiras linhas que ouvira ler, premiu o coração asfixiado pela angústia, rolou  nas órbitas os olhos turvos sob as pálpebras convulsas e caiu sem alentos. 

— Porque foi?! — perguntou o aflito menino ao abade. — Ela morre? 

— Não, Manuel Filipe. Isto não há de ser nada. A tua mamã conhecia esta  pessoa que morreu, e..  teve pena.

Depois, dobrou o Comércio do Porto e meteu-o na algibeira da batina para  que o filho de O. Irene de Abreu nunca mais tornasse a ler o nome de Jacques  Smith.

***

Em 1871, Manuel Filipe de Abreu e o seu irmão Jerônimo de Abreu e Lima,  ambos terceiranistas da Universidade, vieram às Caldas de Vizela, com a sua  mãe, a Sra. D. Irene.

Esta ilustre e respeitada fidalga de Athey não contava ainda cinquenta anos e  estava  hemiplégica  —  metade do corpo paralítico.  Era  transportada  em  cadeira  de rodas ao  Ranho  da  Bomba  Forte.  Uma vez,  quis  ir  até à  Ponte  Velha, que não via desde. 1851.

Em frente da ilheta onde em 15 de Junho daquele ano Álvaro de Abreu e João Pacheco  trocaram os  fatais  gracejos,  mandou parar a  cadeira.  Quedou-se  longo tempo absorvida na contemplação do salgueiral; depois enxugou duas  lágrimas. Que lágrimas, ó leitor!. .

Os filhos perguntaram-lhe porque chorava; e ela, estrangulada pelos soluços,  contorcia-se, pedindo-lhes que a tirassem dali, que sentia já o frio da morte. 

Levaram-na apressadamente para o quartel numa das casas situadas no local  chamado o Médico. Ao nascer do Sol do seguinte dia dobravam a finados os  sinos de S.

João das Caldas. A fidalga de Athey expirara nos braços dos seus dois filhos. 

Perguntei ao capelão desta senhora se ainda era vivo o abade de Santa Eulália, muito afeiçoado à senhora falecida.

— Não,  senhor.  Esse santo  morreu há  três anos:  a  paixão da  fidalga  foi  tamanha que caiu na cama; e, quando se quis erguer, estava lesa. Os meninos  ainda choram por ele.

***

CONCLUSÃO

Das  sete pessoas que,  em Junho de 1851,  estiveram no  sinceiral  do Vizela,  vive somente uma, que sou eu. 

O conselheiro José de Almeida expirou, no Inverno passado, na casa de saúde  do médico Ferreira, do Porto.

Na derradeira vasca do longo paroxismo, circunvagou os olhos baços à volta  do seu leito. Era irmão, era esposo e era pai. Não viu a irmã, nem a esposa,  nem o filho.

Finara-se no  desamparo  e desamor  dos  indigentes a  quem a  caridade dos  hospitais empresta um catre ainda quente de outro cadáver. A sua existência  tinha sido um continuado festim: o que houve formidavelmente sério na sua  vida foi a morte. Morrem assim os que não radicaram, em anos vigorosos, a  santa amizade no coração da família.

José de Almeida não podia ter uma desvelada amiga, porque, nos seus anos de  gentilíssima juventude, espezinhara as mulheres que o adoravam com aquela  cegueira  misteriosa  das paixões  absurdas;  e,  já  na  sazão glacial da  vida,  esposara uma que o acalcanhou com o desprezo dele e da sua própria infâmia,  quando lhe viu a epiderme arrugada e o bigode branco.

A sociedade recebera-o e bajulara-o quando ódios e invejas lhe denegriam o  nome, aureolado de aventuras amorosas. A beira do seu leito de enfermidade  esquálida e do seu ataúde soterrado na vala comum eram seis os restantes dos  seus centenares de amigos.

A noite era  de Outubro.  O  nordeste assobiava  nas gradarias  dos  túmulos  e  ramalhava os ciprestes gotejantes do zimbro da tarde.

Nos  camarotes  tépidos  do teatro lírico falava-se do defunto;  e algumas  senhoras  idosas,  refluindo vinte  anos  na  corrente  da sua  vida remansosa,  olhavam para a cadeira onde então José de Almeida se assentava. E algumas  dessas, voltando o rosto,  escondiam as lágrimas rebeldes,  para  não  serem  vistas dos maridos e das filhas.

E perdoaram-lhe.

S. Miguel de Seide, 26 de Agosto de 1875.


---
Nota:
Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)

Nenhum comentário:

Postar um comentário