A MORGADA DE ROMARIZ
Vi esta morgada, há três anos, em Braga, no
Teatro de S. Geraldo. Estava em cena Santo
Antônio, o taumaturgo. A comoção era
geral. Tanto a
morgada como o seu marido,
o comendador Francisco José Alvarães,
choravam, às vezes; e, outras vezes, riam-se.
Era uma
senhora de espavento,
avermelhada, com as
frescuras untuosas e joviais
dos quarenta anos sadios,
seios altos e atlantes, pulsos roliços
e averdugados pela compressão das
pulseiras cravejadas de esmeraldas e rubis.
Riu-se a morgada
quando aquele Santo Antônio do século
XIII recitou às raparigas
uma poesia madrigalesca de Brás Martins —bom homem que esteve quase a regenerar o teatro nacional como ele
deve ser. A poesia rezava assim nesta
prosa inocente:
Mimosa nasce a flor e vive ainda,
Se arrancada não foi logo ao nascer;
Assim a virgem nasce e vive pura,
Se o vício não trabalha pra perder
Et etecetera, com a mesma unção e música.
A morgada sorrira-se
para o marido; e ele,
para lhe provar
que também percebera o chiste,
formou um tubo com os
beiços carregados de chalaças mudas e disse com aticismo velhaco:
— Versalhada..
Ora, a morgada de Romariz,
lagrimando com inteligência na prosa da oratória, assim que algum personagem pegava de rimar,
ria-se. Persuadira-se de que a missão
dos versos era
como a das cócegas. A natureza
dera-lhe ao espírito aquele
feitio.
Remirei-a de esconso por sobre a
espádua do esposo.
Ela bocejava nos entreatos, até
mostrar as campainhas; ele tosquenejava, e às vezes, espreguiçando-se, grunhia:
— Estou maçado.
— Pudera. . — obtemperava a
esposa —, a comedia bonita e... mas não há nada como estar a gente na sua cama, Zezinha!
E dava tons lúbricos ao diminutivo.
— Quem me lá dera... — respondia
Alvarães, deslocando as botas e dando folga
e frescor aos pés no aprazível
túnel dos canos. —
O polimento estorcega-me os calos.. —
queixava-se com azedume. —
Comédias.. Ora adeus! Patranhas...
— Modos de vida, homem...
E abriam juntos as bocas
espasmódicas.
— Ao menos se eu viesse ceado... — dizia ele.
— Fizesses como eu...
— Não me cabia cá... — E batia
com os dedos dobrados no alto ventre como
se faz às melancias suspeitas.
— Já agora, hemos de ver acenada
glória, que é o mais bonito... — opinava a esposa.
Neste comenos, visitou-os um o
meu conhecido de Famalicão. Ao erguer do pano, saiu de lá e entrou no meu camarote. Foi
ele quem me disse o nome das duas
pessoas, acrescentando:
— Ali, onde a vê, tem romance; dá
matéria para dois temos...
— Picarescos? Não me
servem... Eu quero filosofia:
os meus leitores querem
filosofia, percebe o senhor?
— É o que ela tem mais que dar.
— Ora essa!... O senhor sabe que
ela tem isso? Queira apresentar-me...
— Deus me defenda.. Eu disse à morgada que você era romancista. .
— E ela que disse?
— Riu-se.
— Riu-se?! É boa!... E o
marido...
— O marido disse: «Arreda!»
***
Vejamos a filosofia que eles têm.
Melhor que uma
estirada narrativa, desfigurada
talvez pela imaginação do informador,
li um processo que o sujeito
me emprestou. Correra o pleito entre panes que litigavam em matéria de casamento.
Figurava uma donzela depositada
judicialmente. O pai da
nubente impugna e alega que o pretendente a sua filha é um birbante de
vilíssima relé. O noivo, contrariando, expõe que o
pai da
sua futura é de origem tão canalha
que, apesar de ser fidalgo
da casa real, é
filho de um
salteador de estradas, como é público e notório. dizia o noivo; e acrescentava «que
não havia ainda vinte anos que o seu contendor exercitara ofício
de fogueteiro em Vila Nova de
Famalicão». Neste conflito,
a depositada trancara
o pleito vergonhoso aceitando
outro marido que o pai lhe inculcou.
A menina questionada era
aquela morgada de Romariz e o marido o comendador Alvarães.
Quanto a
filosofia, este acontecimento
pareceu-me assaz chocho; eu pelo menos não fita encontrei, por mais que virasse
do carnaz os personagens do processo. Louvei»
procedimento da jovem injuriada
na pessoa do seu progenitor; mas o fermento da tal filosofia
não me dava para levedar massa de cinquenta páginas.
Abri mão do assunto e
larguei-o às imaginações florentíssimas
da minha pátria. Porém, transcorridos dois anos, num livro impresso por 1815, li uns nomes que tinha
visto nos autos escandalosos.
Examinei de novo o processo e
trasladei certas passagens que, alinhavadas a outras do referido livro, deram esta novela,
em que, por felicidade do leitor e a minha, não há filosofia nenhuma, que eu
saiba.
***
Quando Vila Nova de Famalicão era
um burgo de cem vizinhos com um juiz pedâneo, saiu dali
para a corte,
em 1744, um rapaz de quinze anos, que começara com o seu pai o ofício de pedreiro.
Assinava-se Antônio da Costa Araújo, escrevia
limpamente e era
esperto. Chamara-o a
Lisboa um tio, mercador
de panos, estabelecido na Rua dos Escudeiros, que até ao terramoto de 1755 ocupava parte do terreno hoje
compreendido na Rua Augusta. Matias da Costa
Araújo, irmão do pedreiro, engraçou tanto com o sobrinho
que, apesar dos poucos meios,
mandou-o às aulas dos Jesuítas no Pátio de Santo Antão,
a fim de habilitar
para o clérigo, contra
a propensão mercantil do rapaz.
Matias tinha sido infeliz no
comércio e dizia que era mau modo de vida aquele em que a prosperidade se desavinha da honra.
No 1? de Novembro
de 1755, o constrangido
destino do estudante transtornou-lho a catástrofe em que o seu tio
pereceu debaixo da abóbada da Igreja de
S. Julião, onde
assistia às missas
dos fiéis defuntos. Os seus medianos haveres
armazenados devorou-lhos
todos o incêndio. Ficou portanto
em desamparo grande o estudante, e tratou de amanhar a sua vida, deixando arder sem saudade a gramática
latina do padre Álvares com os
cartapácios correlativos.
Nicolau Jorge, mercador
abastado, vizinho e amigo
do defunto Matias, condoído do
sobrinho, chamou-o, ouviu-o discorrer a respeito da espécie de mercadoria
em que mais seguro negócio
deveria tentar-se na crise do terremoto e,
aplaudindo-o, emprestou-lhe
duzentas moedas de ouro. Leiloavam-se então, nas ruas
e praças, fazendas avariadas por
água e fogo. Antônio da Costa
Araújo arrematou por preço ínfimo fardos equivalentes ao seu avultado capital, pagando-os no mesmo ato com grande
espanto do desembargador Torciles,
presidente das arrematações.
Estabeleceu-se Costa Araújo no
Campo de Sant'Ana e ganhou, no primeiro ano, com estas fazendas avariadas, doze mil cruzados. Volvidos seis
anos, era um dos mercadores mais opulentos
da cone; morava no primeiro
quarteirão da Rua Augusta,
à esquerda, indo do Rossio, e era
geralmente conhecido pela alcunha de Joia. Tinha camarote efetivo na
ópera, banqueteava personagens de alta condição, recebia
nos seus armazéns a mais
luzida sociedade de Lisboa
com fidalga cortesia: chamava
«joias» às damas, e daí lhe pegou
a ele a
alcunha desmaliciosa. Confluía
ao seu balcão a flor da
cidade, porque ninguém
o excedia na fina escolha dos atavios, no primor do
gosto e em probidade de contratos.
«Ali vinham», diz o coronel Francisco de Figueiredo, «comprar-se os
enxovais para os grandes
casamentos, o vestuário para todas as grandes funções,
de que houve muitas,
entrando neste número os casamentos
dos nossos soberanos, nascimentos de príncipes, os dias de
anos de toda a real
família e os três dias das funções da
inauguração da estátua equestre do Sr. Rei D. José,
o 1º, de tão gloriosa memória.»
Costa Araújo não compelia os devedores
a pagarem-lhe judicialmente; que o infortúnio dos que não podiam gozar a honra e o prazer da pontualidade
fazia-lhe dó.
Quis o marquês de Pombal nobilitá-lo como fizera
a outros comerciantes, mais para
abater a fidalguia histórica
do que para levantar a
burguesia industriosa. O
Joia nunca pediu nem aceitou distinções. Foi toda a
vida mercador, sempre ao balcão,
ou encostado à ombreira da porta, como hoje o não fazia um caixeiro com a cabeça cheia de
socialismo e óleo de amêndoas doces.
À volta dos
sessenta anos, Antônio da
Costa Araújo enfermou de
paralisia. Era solteiro. Chamou para a
sua companhia um irmão que tinha na terra natal, pedreiro como o seu pai e que nunca deixara de
trabalhar, posto que o irmão rico lhe
desse boa mesada, sem todavia lhe aconselhar ofício menos grosseiro, por entender que são muitos os pedreiros
felizes e pouquíssimos os grandes do
mundo que a inveja dos pequenos não perturbe.
O paralítico fez testamento, em
que repartiu o seu capital por diversos amigos, e deixou ao seu irmão Bento da Costa três mil
peças de 7$500 réis.
Falecido o Joia, apareceu em Famalicão Bento pedreiro, envergando um tabardo velho de briche, que exibia com
visagens consternadas, dizendo que não
herdara outra coisa
do irmão, o qual tudo gastara
e morrera pobre. O pedreiro, supondo que o
acreditavam, era boçal à proporção de avarento; faltava-lhe a
velhaca finura que hoje em dia
ilustra os Minhotos.
Verdade é que não havia ainda
gazetas que assoalhassem as verbas testamentárias; mas a notícia
da herança de Bento
chegara a Famalicão primeiro do que ele. Cinquenta
e seis mil cruzados e tanto! Quem
poderia herdar secretamente riqueza
tamanha num tempo em que
bazofiava por Lisboa um argentário a quem
chamavam o Trezentos Mil Cruzados porque ele, vindo do Brasil,
manifestara aquela colossal e
quase fabulosa quantia! Cem contos de réis, hoje em dia,
é quase uma vergonha
possuí-los; a quem não fingir que
tem essa soma quadruplicada
é um homem que,
se souber governar-se com muito prumo,
poderá talvez dispensar-se de ser
recolhido para um
asilo de mendicidade.
O
pedreiro era viúvo,
vivia só e tinha um filho soldado de artilharia do regimento do
Porto, aquartelado em
Valença. Quando a notícia
chegou ao quartel, o rapaz,
insano de alegria, desertou, confiado na herança. Entupiram-no, porém,
o espanto e a consternação quando encontrou o pai à orla
da estrada a
brocar uma penedia por conta de um lavrador.
Recobrado do assombro,
perguntou-lhe se não herdara três mil peças de ouro.
O
velho pôs os olhos
espavoridos no céu, abanou a
cabeça como os personagens da
Ilíada, desfechou contra o filho um esgar desabrido e bradou:
— Três mil peças?!
Três mil diabos que te levem a ti
e mais a quem levantou essa aleivosia! O que eu herdei foi
um reguingote de saragoça já no fio. Se
o queres, vai buscá-lo, que ele lá está pendurado num gancho.. Com que
então, Joaquim, vinhas ao cheiro das peças?
— Vinha pedir-lhe, Sr. Pai —
respondeu o rapaz com tristeza e respeito — , que me livre de soldado, porque
já não posso com o serviço. Estou doente e preciso de mudar de vida.
— Trabalha, faz como eu, que
também não posso, e estou aqui a furar este calhau.
Quiseste ser soldado.., lá te
avém.
— Sr. Pai, olhe que eu saí da
praça sem licença... sou desertor...
— Não me digas isso segunda vez,
que te rejeito esta broca à cabeça!
— Faz-me vossemecê uma
esmola —
replicou serenamente Joaquim —. que
eu antes quero a morte que as chibatadas.. Sabe que mais, Sr.
Pai? — prosseguiu
o desertor limpando o suor e as
lágrimas —, ou vossemecê
me livra, ou eu vou juntar-me à
quadrilha que anda na Terra Negra.
— Capaz disso és tu, alma do
diabo! Sai-me da vista dos olhos, que eu já te não enxergo, ladrão!
E, arrojando a broca e o maço de
ferro pelo respaldo do penedo, sentou-se com os cotovelos fincados nas pernas e pensou
alguns segundos com a cara tapada pelas
mãos esfoliadas e negras de terra.
O
filha esperava, indeciso
entre o ódio e a compaixão.
Pensava que o pai herdara as três mil peças e o deixava optar
entre a chibata e a malta de ladrões, Joaquim
sentia-se tremer de raiva; se, porém, a herança era uma invenção, o ar aflito do velho sujo, roto e quebrado de
trabalho compungia-o.
Nesta vacilação, ergueu o
pedreiro o rosto menos descomposto e disse:
— Vai para casa, que eu vou daqui
falar com o teu padrinho... Aí tens a chave;
procura as peças, e leva-as, que eu dou-tas..
Esta zombeteira liberalidade
incutiu logo em Francisco dúvidas da herança.
Entrou em casa e examinou toda aquela
antiga e conhecida pobreza.
Na lareira, entre cinzas, a
panela de barro desbeiçada e duas tigelas na trempe; o escabelo corroído de caruncho e a espaços
espumado de gorduras lustrosas; o catre de bancos e a
enxerga rota e arrepiada
de palhiço; a candeia de ferro enganchada
na parede; por baixo,
pingada de sal, uma
banca de pau-santo com pés torneados, mas com as roscas
esborcinadas e gavetas de pinho em bruto
com puxadores de corda. Sobre a miséria dos trastes, o lixo, a sordícia que o filho do pedreiro nunca assim vira, porque
a sua mãe ainda vivia, quando ele assentou praça. Aos pés da cama
havia uma rima de cascabulho, grabatos
de lenha, ferramentas quebradas, rodilhas e cacos. numa forquilha de quatro esgalhos pregada na trave mestra
pendia, coberto da fuligem da lareira, o
albornoz poido que o irmão do Joia dizia ter herdado.
O
desertor sentou-se na arca de pinho, contemplou aquela indigência e pensou consigo:
«Acho que me mentiram... O meu
pai não herdou nada. . Dantes ainda nesta casa
havia uns lençóis lavados e pão
à farta,
quando recebíamos todos os meses
a moeda que o tio tios dava. . E agora que há de ser de mim?... Estou perdido!.. » Neste comenos, assomou ao limiar
da porta um vizinho, que vira entrar o
soldado.
— Estás por aqui, Joaquim
Faísca?! — perguntou o Luís Meirinho.
Convém saber que o
filho de Bento ganhara alcunha de
Faísca desde que mostrou, aos dezoito anos, extraordinária destreza
em ferir lume no fósforo dos ossos
dos adversários. O outro chamava-se o Meirinho, porque o tinha sido
do corregedor de Barcelos, e na opinião pública passara de quadrilheiro da
justiça a capitão da
quadrilha que infestava
a Terra Negra. Continuava
o ofício, diziam alguns, ganhando
na carreira três postos de acesso.
— Vieste com licença? — perguntou
o Luís Meirinho.
— Não, senhor. Pedia-a, e não ma
deram — respondeu Joaquim, com o propósito
de se acolher ao valimento do vizinho, se o pai lhe não acudisse. — Eu estou doente do peito e não posso com esta
vida de soldado. Ouvi lá dizer que o meu pai estava muito rico
com a herança do meu
tio. Desertei, pensando
que ele me livraria com dinheiro;
mas agora mesmo
o topei no Vinhal a quebrar pedra
e ele me disse que herdara um albornoz velho que ali está.
— E tu acreditaste? — atalhou o
outro velhacamente.
— À vista da miséria em que eu
encontro esta casa...
— Pois fica sabendo
que o teu pai herdou três mil peças. Sabes
quanto fazem três mil peças?...
Cinquenta e seis mil e tantos
cruzados. Sabe toda a gente
da vila
que o teu pai está riquíssimo.
Posso. mostrar-te a cópia
do testamento. O teu pai é um
miserável, é a vergonha dos homens! Mata-se à fome,
come duas tigelas de caldo por
dia e diz mal do irmão porque lhe deixou um albornoz coçado,. quanto toda a
gente sabe que o deixou rico..
— E o dinheiro? — acudiu Joaquim
circunvagando os olhos pelos cantos da
casa e lareira.
— Dizem uns que o deixara em
Lisboa a render e outros querem que ele o tenha enterrado aí nesse chiqueiro; mas a
minha opinião é que o teu pai, se trouxe
o dinheiro, não o tem em casa. Meteu-o debaixo de alguma fraga aí da serra por onde ele anda sempre a quebrar
pedra.
— E que hei de eu fazer, se. ele
me não livrar? — perguntou Joaquim.
— Eu sei lá, rapaz! Se o teu
livramento depende do dinheiro do teu pai, não quisera eu estar-te na pele! Levas as
chibatadas da lei tão certo como eu quisera valer-te e não posso.
Conheço-te desde rapazito, e
nunca me há de esquecer que vai agora em dez anos, na romaria
das Cruzes de Barcelos, me acudiste num
aperto e quebraste três cabeças, enquanto eu quebrei duas. Olha, Faísca, se te vires em apuros, procura-me;
livrar-te de desertor, isso não posso eu;
mas das chibatadas e da farda eu te livrarei. .
— Como?
— Isso são contos largos. .
Aí vem teu pai ao fundo
da rua. Vou-me embora, que não posso encarar aquele sórdido
avarento! Se eu soubesse que ele tinha o
dinheiro no bucho, tirava-lho pelas goelas e dava-to, rapaz!
***
O pedreiro ainda vira o vizinho a
safar-se da sua testada.
— Que fazia aqui o Luís Meirinho?
— perguntou ele carranqueando.
— Nada; conversávamos. .
— Eu cá à minha porta não quero
conversas com ladrões, ouviste?
— Ladrões!... O Luís não me
consta.. que...
— Passa tu na Terra Negra com
dinheiro de modo que ele to bispe, e lá verás
quem é o
Meirinho. Há de
haver três anos que deixou o ofício,
que rendia pouco;
e, desde que não tem ofício, comprou casa,
tem cavalgadura, trata-se à regalona, come carne do
açougue e bebe do da
companhia. E eu, que trabalho há bons
quarenta anos, custa-me a amanhar para
uns feijões e bebo
água da fonte.
— O Sr. Pai assim o quer.. — atalhou Joaquim entre receoso e risonho.
— Perca o amor às peças...
— E tu a dar-lhe!. . — respondeu
iracundo o pedreiro. — Já te disse que as procures!. .
Não herdei
nada!, não herdei nada! — E
berrava convulsionado freneticamente, sacudindo os braços.
— Não grite assim, que não faz
mingua barregar! — atalhou o filho. — A gente está conversando.. às boas... Hem?
No aspeto do Faísca
ressumbravam sentimentos pouco
filiais. A ironia franzia-lhe
os cantos dos beiços, ao mesmo tempo que a
ira lhe avincava a testa.
No ar com que se sentara na arca, dobrando o corpo e bamboando as pernas em gingações de tarimba, denotava
quebra de respeito e disposição a questionar
faceiramente com o velho.
— Com que então.. —
prosseguiu Joaquim. —
Vossemecê não herdou três mil peças?
— Não! — bradou o pai. — Não!,
com mil diabos (Deus me perdoe), não!
— E se eu lhe
mostrar a cópia do testamento.. —
respondeu Joaquim esbugalhando os
olhos, abrindo a boca e pondo fora a língua em todo o seu comprimento. — Que me diz vossemecê, Sr. Pai?,
se eu lhe mostrasse a cópia do..
— Tu acho que vieste cá para
dar cabo de mim! —
interrompeu Bento, desentalando-se da sua
aflição por aquela estúpida
réplica. — Amaldiçoado sejas tu!..
— E, com os dentes cerrados e as mãos na cabeça, ia e vinha da lareira
para a porta,
considerando-se o mais desgraçado homem que Deus criara.
— Sr. Pai!
— continuou mansamente
o filho —, isto não vai a matar. Tome fôlego e
escute o seu Joaquim.
Lembre-se que não tem outro filho a quem deixar os seus cinquenta e seis mil
cruzados...
— Olha o diabo! — regougava o
velho.
— O que eu lhe peço pouco monta.
Livre-me de soldado e dê-me alguma coisa
para eu casar com a Rosa de S. Martinho. O pai dela decerto ma dá, se eu levar mil cruzados. Vou ser lavrador, terei
saúde e alegria, e nunca mais lhe peço
nada, Sr. Pai.
Joaquim, desde que proferira o
nome de Rosa de S. Martinho, mudara de tom e gestos. Os olhos imploravam e a voz tinha as
modulações do respeito. O seu amor
de dez anos,
golpeado de saudades,
quebrara-lhe os pulsos.
Se o pai naquele
instante abrisse no rosto uma ténue claridade de esperança, Joaquim acabaria a súplica de joelhos.
— Mil cruzados! — resmoneava o
pedreiro. — Onde queres tu que eu os vá
roubar?
Esta interrogação varreu do rosto
do Faísca os sinais da boa reação.
— Eu não quero que os vá roubar,
valha-me Deus! — respondeu Joaquim.
—
Mas, a falar verdade, quem tem três mil peças do seu também pode ser ladrão da felicidade de um filho que
ainda lhe não custou seis vinténs desde que
pode trabalhar.. Olhe, Sr. Pai, repare
bem no que vou dizer-lhe. . Eu para a
praça não torno. Sou desertor.
— Venho de casa do teu padrinho —
acudiu o pai menos torvo —; o Sr. Coronel
Lobo da Igreja dá-te uma carta para o comandante, e diz que tudo se há de arranjar.
— Não torno para o quartel, já
lhe disse. Estou doente, preciso mudar de vida.
— Que te leve a breca... Não
quero saber de contos. Lá te avém. Dinheiro não tenho; sé se queres que eu venda a casa e
me vá depois pedir um eido nos palheiros
dos lavradores à beira dos cães.
— Está bom — concluiu Joaquim
erguendo-se e espreguiçando-se —, vou ouvir a
opinião do Luís Meirinho,
que, de
um modo ou
doutro, prometeu livrar-me da farda e da chibata. .
— Vais falar com o Meirinho para
isso, ó alma perdida?
— Pois então! Aquele
é amigo do seu amigo e se me for necessário dinheiro..
— Ensina-te a roubá-lo...
— E ele que sabe onde o há. . —
respondeu Joaquim bocejando e fazendo três
sinais da cruz na boca escancarada.
— Eu te deito a minha
maldição — bradou
o velho com solenidade bastante para a cena final de um ato, porém
insuficiente para abalar o 32 da 7ª companhia
do regimento de artilharia do Porto.
O Faísca sorriu e murmurou:
— Vossemecê parece que tem mais
maldições que pintos.. Pois cá
vou com a sua maldição e
depois... veremos se ela nos empece a ambos.
Bento, ao pular-lhe
o coração em saltos de ruim presságio, ainda
deu três passos para chamar o
filho e avençar-se com ele mediante quantia necessária ao livramento; mas a imagem de um pote de
ferro cheio de peças bateu-lhe rija no
peito.
Quedou-se como empedrado a olhar
para a soleira da janela de peitoril, cujas portadas quatro travessas de castanho esfumado
imobilizavam.
***
Poucos dias depois,
o juiz-de-fora de Barcelos incumbia
ao ordinário do julgado de Vermoim
a prisão do desertor Joaquim
da Costa
Araújo, de alcunha o Faísca. A gente mais grada de
Famalicão, convencida da riqueza do avarento
sem entranhas, advogou a favor do infeliz rapaz, rodeando o pedreiro com rogos e até com insultos e
ameaças. O pedreiro, assustado, foi ter-se
com o seu compadre, o coronel
Lobo da Igreja Velha;
e, bem aconselhado
pelo fidalgo, cujo credor era,
deu o dinheiro necessário para abafar o processo militar, comprar a baixa e
substituir a praça no regimento.
Em seguida, quando se viu
esbulhado das economias que amealhara antes de herdar as três mil peças, entrou-se de tamanha
paixão, espicaçaram-no tantas saudades
do seu dinheiro, que morreria abafado se não desafogasse no ódio ao filho.
As vinte e quatro moedas de ouro que lhe custara a
liberdade de Joaquim representavam fomes e sedes,
desconfortos de frio em noites de
Inverno, muitos suores em dias de Estio
nó trabalho da serra a horas de sesta. E
lembrava-se com bastante remorso que a sua mulher padecera sem cirurgião e morrera
sem botica e fora indigentemente enterrada,
tudo isto assim desgraçado e infame, porque ele não quisera bolir naquelas vinte e quatro moedas.
No entanto, Joaquim,
bem que muito grato ao pai, não se mostrou
tão penhorado que
prescindisse de julgar obrigado a
dar-lhe modo de vida. O velho
mostrou-lhe um ferro de monte, um pico, um camartelo, e disse-lhe:
— Se queres modo de vida, segue
o meu. Anda daí brocar uma fraga,
e saberás quanto me custaram a
ganhar as minhas vinte e quatro.. — E,
ficando entalado, esfregava os olhos
debruados de roxo com o encodeado canhão da jaqueta.
O
filho não se compadecia daquelas lágrimas; antes se sentia bravejar de condição com remoques e até com ódio à avareza
do pai. Mau foi convencer-se Joaquim da herança e supor que o velho podia
morrer sem testamento nem declaração do
esconderijo do tesouro.
Debalde lhe espiava os
movimentos, os olhares, as caminhadas no monte, a fim de farejar a lota das mil peças. Bento de
Araújo ia frequentemente quebrar esteios
de pedra nos penhascais de Vermoim e vendia-os aos lavradores para especar parreiras. As desconfianças do filho
seguiam o velho entre fraguedos, chamados o Castelo; e o pai,
que se julgou espreitado,
alegrava-se secretamente e não se
mostrava ofendido.
Entretanto, continuara Joaquim a
sua velha afeição a Rosa de S. Martinho; e, confiando que a fama da riqueza do pedreiro
seria bastante a que o abastado lavrador, esperançado
na herança, lhe cedesse a
filha, pediu-a afoitamente; mas o pai da Rosa tinha mediana confiança em
sapatos de defunto e disse que só daria
a sua filha se o noivo trouxesse mil cruzados em dinheiro ou terras. O novo
namorado abriu de novo o seu
peito ao pai, que parecia apertar os cordões da
bolsa à medida
que o coração do rapaz se abria. Joaquim,
bem aconselhado pelo
seu amor, socorreu-se do padrinho, o coronel da Igreja Velha, pedindo-lhe que movesse o velho a
dotá-lo.
Era o fidalgo a
única pessoa que exercia influência
em Bento de Araújo, e tamanha que pudera arrancar-lhe alguns mil
cruzados a juros, sob juramento de não
dizer a alguém que lhos devia. Mandou-o chamar e aconselhou-o a que desse dote a Joaquim. Avultou-lhe as funestas
consequências da sua teimosia em querer
passar por pobre quando toda a gente
estava convencida do contrário;
pintou-lhe os perigos
em que ele punha o filho sem ofício
que o salvasse da camaradagem de
vadios suspeitos com que patuscava nas tabernas da
Lagoncinha e outros lugares infamados.
Afinal, como o velho insistisse desaforadamente em
dizer que não tinha senão o
dinheiro que o seu compadre
lhe devia, o coronel rendeu-o com esta honrada deliberação:
— Pois bem: tudo se
arranja, querendo Deus e tu.
Devo-te três mil cruzados; não
tos posso pagar, enquanto algum dos meus filhos não trouxer esposa com dote;
mas irei tirar quatrocentos mil-réis a juro nalguma confraria, e esse dinheiro vais tu dá-lo ao teu filho
para casar com a rapariga, que é de boa
gente, e há de ter dobrado ou mais do que ele tem.
As últimas palavras de
Bento, nesta pendência,
definem cabalmente a sua natureza. Quando o compadre lhe disse:
— Tu virás de hoje a oito dias receber os quatrocentos
mil-réis para os dares
ao teu Joaquim no ato da
escritura do casamento
—Bento acudiu impetuosamente:
— Eu não quero ver o meu
dinheiro! Arranje a vossa Senhoria cá isso de modo que eu não veja o meu dinheiro!. ..
Ele sabia que, no ato da contagem
dos mil cruzados, seria capaz de agarrar a saca e fugir com ela do escritório do
tabelião.
Assim mesmo, o pedreiro,
se tinha muitas maldades de avarento, possuía também algumas belas qualidades de pai; e uma,
digna de bastante memória, é que, tendo ele em
casa arsênico para
matar os ratos, não o administrou ao filho.
***
Joaquim de Araújo entrara na
vida por má porta. Oito
anos de caserna bastariam a
degenerar-lhe as boas
qualidades: mas, com certeza,
o Faísca já tinha ganho esta alcunha à custa de
turbulências, quanto assentou praça, e não se regenerara, como é de supor, no ofício de
soldado.
A sua nova posição de lavrador
não lhe quadrava: a pesada rabiça do arado dava-lhe engulhos no estômago, quando a
sacudia do rego aberto para romper outro; o cabo
da enxada empolava-lhe as mãos; de sáfaras
não sabia nada; ignorava todo o tráfego da lavoura; e, em vez
de aprender, como queriam a mulher e o
sogro, ia bandarrear por feiras, quatro vezes por semana, na sua égua rabona, de pau de choupa debaixo da
perna, mão direita à cinta, chapéu braguês
na nuca e besta travada que não havia outra daquela andadura.
As impertinências do sogro
respondia que não precisava de labutar sujamente na terra, porque o seu pai tinha o melhor de
cinquenta mil cruzados em peças; e
aos queixumes da mulher amante e ciosa voltava
as costas enfastiado. O lavrador de S.
Martinho, a fim de se
desfazer do genro, repartiu a
casa por três
filhos, ressalvou uma pequena
reserva, deu em terras o
dote estipulado a Rosa e
mandou-os viver onde quisessem.
A libertinagem do Faísca foi até
onde os dois mil e tantos cruzados da mulher chegaram;
e naquele tempo, quem
os desbaratasse em seis anos
alcançava reputação dos que no
nossos dias derivam à miséria sobre ondas de ouro. Antes de conhecer as
primeiras necessidades, Rosa morreu na flor da idade, deixando um
filho de seis anos entregue
ao avô, porque
o marido havia muitos meses
que demorava pela Galiza, amaltado com jogadores de esquineta, os seus antigos camaradas, uns com
baixa, outros desertores.
O
filho de Rosa breve tempo viveu da
caridade do avô, que faleceu pouco depois.
Quando Joaquim de Araújo voltou a
S. Martinho por saber que estava viúvo, encontrou o menino
de sete anos esfarrapado, sem amparo
de parentes, a esmolar o
pão e o agasalho dos vizinhos, porque o seu pai
não tinha casa própria e todo o património da
sua mãe estava
vendido. Quem recolhera o rapazinho era um fogueteiro, o mais remoto e
desprezado parente da sua mãe.
O pequeno ajudava-o a afeiçoar as
canas e encher os canudos para os foguetes com bastante jeito e disposição para o ofício.
Perguntara-lhe o pai porque não fora procurar
o avô a Famalicão. O fogueteiro respondeu que lá fora com ele quando a mãe morreu, mas que o avô dissera
que estava também muito pobre, e apenas lhe dera estopa para umas
calças e um chapéu de Braga mais rapado
que a escudela de um cão. Lembrou-se Joaquim do padrinho; mas a morte cortara-lhe esse recurso. Foi ter-se com
o filho sucessor na casa, a ver se quereria
protege-lo como o seu pai.
O fidalgo da
Igreja recebeu-o com furiosas
declamações contra o Bento pedreiro, a quem chamava ladrão porque lhe pedia dois mil cruzados e juros que o pai
lhe ficara devendo.
Neste tempo, o irmão do honrado
Joia já não podia trabalhar. Passava os dias sentado ao sol no degrau da porta e dava
alguns chorados vinténs por semana para
uma vizinha que lhe levava as couves e a broa.
Nesta situação o achou o filho, quando
voltou da Corunha, trajando
à castelhana, mas delatando
na jaqueta safada
e suja a miséria
que o trazia à porta do pai.
Pediu-lhe dinheiro com suplicante brandura, com muitos atos de arrependimento e promessas de reformação de
costumes.
— Se puderes reformar os teus
costumes, fazes bem; eu é que não posso desfazer-me
em dinheiro — dizia o velho. — Tudo o que eu tinha estava na mão do teu padrinho; ele morreu, e o ladrão do
filho não me paga.
— O que o padrinho lhe devia —
disse Joaquim — são dois mil cruzados; mas
vossemecê herdou cinquenta e tantos...
— Não sei o que herdei — replicou
o pedreiro —; tudo o que tinha dei-o a guardar ao coronel, Deus lhe fale na
alma, e tudo lá ficou.
— O meu padrinho não era capaz
de roubar, Sr. Pai!
Vossemecê está metendo a sua
alma nas mãos do Diabo! Há
de morrer para
aí como um mendigo e o seu dinheiro há de ajudá-lo a cair
nas profundas do Inferno...
No calor da discussão figurou-se
ao velho que o filho seria capaz de praticar alguma
violência. Teve medo — o medo que
devia ser-lhe uma
agonia fulminante, se o gozo de
sentir-se rico não prevalecesse às angústias de recear-se em perigo na presença
do filho. Abriu com as mãos trémulas a arca, tirou um pé de meia, atado pelo calcanhar com uma
guita, deu-o ao filho e disse-lhe com a
voz cortada de soluços:
— É tudo quanto tenho. Recebi ontem esses
vinte cruzados novos dos esteios
que vendi. Se queres dar-me metade, dá; se não queres, leva tudo.
Joaquim ficou alguns
minutos a olhar para o pai com piedoso aspeto;
e, depois de pensar na repartição
dos pintos, ouvindo filialmente a consciência e a razão, deliberou.., não repartir nada. Saiu
com mais duas maldições tácitas, e foi
relatar o caso ao Luís Meirinho.
Neste tempo, o antigo aguazil do.
corregedor de Barcelos
andava muito acautelado das justiças da comarca. A sua
reputação de salteador de estradas estava
feita; mas as provas que legalizassem a captura eram insuficientes. Os latrocínios de
encruzilhada amiudavam-se na
Terra Negra, na
Lagoncinha e nas serras distantes do Ladário e da
Labruja. Algumas casas afamadas
de dinheirosas eram assaltadas por quadrilhas que venciam pelo número a resistência;
e, quando esses
roubos estrondeavam, Luís Meirinho
e outros sujeitos da
sua familiaridade nunca estavam em
Famalicão ou nas aldeias circunvizinhas. Era sabido que as maltas se
reuniam num grupo de cabanas numa cafurna de pinheiros chamados os
Ribeirais, não longe da vetusta igreja dos
templários de Santiago de Antas. Ainda hoje estão em pé, mas ninguém as habita,
essas choupanas execradas pela
tradição de serem aí enterrados os ladrões que voltavam mortalmente feridos dos
seus assaltos.
Como quer que fosse, a
maledicência não caluniava Luís Meirinho, nem ele por modéstia escondeu do Faísca a superior
categoria de capitão de ladrões a que o
promovera a voz pública.
Joaquim ouviu estas confidências
íntimas sem pavor nem sequer estranheza. A esquineta era-lhe bastante iniciação para ser
admitido aos mistérios da Terra Negra. O
Meirinho encareceu-lhe as vantagens e desfez nos perigos do ofício. Principiando pelo argumento mais insinuante a
favor dos ladrões, ofereceu-lhe,
de uma grande saca,
dinheiro que ele afiançava
ter adquirido sem escândalo nem
efusão de sangue. Umas das suas regras de bem viver era (dizia ele ao Faísca) matar somente um
última necessidade: talvez a
«justa defesa» que a
lei indulta. Rômulo,
o salteador que fundou Roma, não
exibia ideias mais benignas.
A granjeada de um bravo para a
jolda foi fácil. O Faísca, numa das próximas noites, foi apresentado na estalagem da
Lagoncinha aos seus irmãos de armas e
achou-se em melhor sociedade do que ele previra.
Condecoravam a cáfila alguns
sujeitos que pareciam
andar naquela vida aventurosa por amor
das impressões rijas: eram
artistas, como hoje diríamos. Filhos segundos de casas honradas e coutadas desde os reis da
primeira dinastia, recrutas foragidos, desertores,
jornaleiros, indivíduos
barbaçudos vindos de longes
terras, facinorosos escapulidos
das cadeias ou dos degredos, gentes várias, como se vê, mas todos alegres, chalaceadores,
benquistos nas aldeias por onde residiam temporariamente, liberais nas tabernas com conhecidos e
desconhecidos, armados até aos dentes e,
segundo a excelente máxima do capitão, matando somente em última necessidade. A malta, por espírito
de imitação, chamava-se «Companhia do Olho
Vivo». Florescera outra,
com igual denominação, na corte,
capitaneada por José Nicós
Lisboa Corte Real. Quarenta anos
antes tinham sido enforcados os
mais graduados da companhia, salvante o capitão, porque era protegido do infante O. Antônio,
tio de el-rei D. José I. Um dos mais
novos dessa horda de ladrões,
que teve um
período de esplendor, fugindo à
perseguição, ainda funcionou na
malta do Minho, à qual
legou o saudoso nome da outra.
A «Companhia do Olho Vivo» não
prosperou no ano em que o filho de Bento de Araújo se alistou. O terror afastara os
passageiros dinheirosos do trânsito por
serras infamadas e os proprietários das povoações sertanejas mudaram para as vilas e cidades as suas residências.
No programa de Luís Meirinho estava
desde há muito inscrito Bento de Araújo; mas, como ainda há pessoas de bem, ao
capitão repugnava-lhe propor em conselho
que se planeasse o expediente mais plausível na exumação das três mil peças do pai do Faísca. Os sécios
mantinham entre si estes decoros, o que não sucede em todas as companhias com
estatutos legalizados.
Entretanto, como a necessidade
apertava, e à notícia do Faísca chegara a má nova de que o seu pai, acariciado por uns
sobrinhos de Gondifelos, tratava de se
passar para a companhia deles, o capitão, forte de razões aconselhadas pela prudência e aplaudidas por Joaquim, pôs em
discussão a matéria, quanto ao modo de
obrigar o pedreiro a confessar a lura do
tesouro. O Faísca
tirou a salvo, porém, que o
tinham de dispensar de assistir ao assalto porque, enfim, o homem..
sempre era o seu pai, e o sangue gritava.
Ninguém se riu na
assembleia da sentimentalidade daquele filho: é que as ideias grandes
e fundas abalam toda a casta
de alma. Foi apoiado calorosamente Joaquim e até abraçado por um
sócio de Felgueiras, processado por
parricida.
***
Naquele tempo, Famalicão,
às nove horas de uma noite
de Novembro, negrejava silenciosa e rodeada de pinheirais e
carvalheiras. Aqueles palacetes brasonados
com os
seus titulares campeiam hoje onde
então rebalsavam extensos nateiros de lama, a espaços habitados
por cabaneiros. A quadrilha de Luís
Meirinho podia manobrar sem temor e desassombradamente no centro da vila como nas Rodas do Marão.
Em uma dessas noites, o chefe,
com uma dúzia de escolhidos, entrou na Congosta
de Enxiras, onde morava Bento
de Araújo. Ele, com
mais dois, acercaram-se da porta;
os outros postaram-se de atalaia nas extremidades da viela.
O pedreiro estava ainda sentado à
lareira. Desde que lhe disseram que o filho pernoitava às vezes em casa do Meirinho,
velava até ser dia claro. O receio de ser
assaltado era tamanho que já três vezes, em noites tempestuosas, gritara à del-rei.
Os vizinhos, à
primeira, acudiram vozeando das
janelas com invulnerável intrepidez, e
viram dessa feita que um porco vadio, atraído talvez pelo cheiro de pocilga, forçava contra a porta
de Bento. Depois, ainda que ele gritasse, ninguém
se mexia, atribuindo a porco
as agressões incômodas ao avarento.
Foi o que aconteceu naquela noite
de Novembro. O pedreiro sentiu o abeirar-se
gente da sua porta
e reparou do raspar de ferro entre a ombreira
e o batente. Gritou; mas parecia
já gritar com os colmilhos apertados. A língua da fechadura
estalou, e a
porta foi diante
de dois possantes ombros tão rapidamente que os homens, como duas
catapultas, entraram de roldão e só pararam
filando-se à garganta do velho empedrado.
Por entre eles, e à luz do
canhoto que flamejava, o pedreiro viu lampejar o aço de uma navalha e ouviu, através dos lenços com
que os hóspedes cobriam as caras, uma
voz disfarçada:
— Se grita, você morre aqui já. Se quer viver, entregue as três mil peças que
herdou, e ande depressa. Não nos conte lérias, nem faça
lamúrias. É decidir: o dinheiro ou a vida.
Bento erguera as mãos suplicantes e pedira,
soluçante, que o não matassem.
— Onde estão as três mil peças! —
perguntou o Meirinho.
As três mil peças?! — gaguejou o
velho como tolamente espantado de que lhe perguntassem por três mil peças não tendo ele do seu três moedas de seis vinténs.
— Mate-se este diabo! —
acrescentou o Meirinho — e vamos levantar o soalho
— Eu não
tenho aqui o
dinheiro, os meus senhores.. —
acudiu o pedreiro desfeito em
lágrimas.
— Então, onde o tem você?
— Enterrei-o debaixo de uma
fraga. .
— Perto daqui? Avie-se.
— Não, senhor,
muito perto não é. São três
quartos de légua.. em Vermoim.
— Bem —
concluiu o capitão. —
Salte para diante de nós e venha desenterrar o dinheiro. Mexa-se!
O homem sentiu certos alívios
nesta mudança de situação, como se expor a vida, salvando o dinheiro, lhe fosse uma
considerável melhoria de fortuna.
A malta, precedida do velho,
embrenhou-se nos matos, atravessou o outeiro que toca nas faldas da serra de Vermoim e por
S. Cosme do Vale trepou ao espinhaço de
penhascos que lá chamam o Castelo.
— Você não vá aflito — dizia-lhe
o Meirinho —, porque há de ter o seu quinhão
com que pode viver regaladamente. O necessário não se lhe tira; nós o que queremos é o que lhe sobre. Somos
honrados ou não, o seu velhote?
E dava-lhe palmadas nos ombros.
— Sim, senhor —
dizia o Bento,
e recolhia-se a pensar
na situação perigosa em que se via e no modo da
esconjurar.
— Ande depressinha — tornava o
chefe empurrando-o brandamente.
— Será bom ajudá-lo
com alguns pontapés —
alvitrava outro, receando que a manha lhes viesse tolher a empresa.
Chegados ao cabeço da serra,
espigado de rochas, disse o Meirinho:
— Cá estamos. Onde é a fraga?
— Não enxergo bem... Só quando for
dia é que eu conheço o sítio
— respondeu Bento.
— Temo-las arranjadas.. — disse o Meirinho com um sorriso agoureiro
de más coisas. — Ó Freiamunde, petisca
lume e faz aí um archote de codessos para
este tio ver onde está o arame.
— Parece-me que o melhor
seria ilumina-lo com a luz da
pólvora... — observou
Freiamunde, bebendo alguns
tragos de aguardente de uma cabaça que trazia a tiracolo.
— Quer lá, capitão? Se lhe
parece, dou dois goles ao velho como se faz aos perus..
— Tio Bento — insistiu Luís
Meirinho —, você acha a pedra ou não acha? O dinheiro ficará enterrado; mas você também
fica de papo para o ar à espera que
o enterrem. Veja lá
no que ficamos; lembre-se que
está tratando com homens
de palavra.
No entretanto, um
da companhia petiscara
fogo e comunicara o lume da mecha à manada de fetos secos apanhados
debaixo de uma rocha que figurava um
dólmen.
— Aí tem luz que farte — disse
Luís. — Veja lã agora qual é a pedra, Tio Bento.
— Parece-me que é aquela... —
respondeu ele a tiritar, já convencido de que estava chegado às últimas.
— Parece-lhe ou é? — instou
raivoso o Meirinho. — Ande. Mostre lá o sítio.
Ó Zé Landim, se for preciso desenterrar o morto, serve-te da tua faca. Patrão, estamos às suas ordens, diga lá onde
quer que se cave; a cova há de fazer-se ou para sair o dinheiro ou para
entrar você.
Bento caixa sobre os
joelhos como ferido
de súbita apoplexia e começou a gaguejar uns sons ininteligíveis.
— Este alma de dez diabos que
está a mastigar? — disse Freiamunde.
Neste momento, o pai de Joaquim caiu de borco, batendo com a
face na pedra;
e, quando dois homens o levantaram de repelão e o viram
à luz dos fetos, estava morto.
Este incidente nem levemente
impressionou aqueles homens fortes. Ninguém fez
a mínima reflexão acerca do lance em teatro tão lúgubre. Os mais preocupados bebiam aguardente a frouxo,
dizendo que o homem morrera de frio. Nem uma
ideia filosófica, nem sequer
um dito elegíaco!
Luís Meirinho discorreu brevemente sobre a certeza de que o
morto os tirara de casa para os desviar
do lugar onde tinha o dinheiro. Decidiu que se aproveitasse o restante da noite indo a casa revolver a terra quanto
se pudesse; e, no caso de lá não aparecer
o dinheiro, viriam na seguinte noite escavar debaixo da
rocha, no Castelo.
Assim se fez.
Bento de Araújo ficou deitado de
costas sobre uma moita de codessos, com os braços hirtos e abertos em
cruz, os punhos cerrados e os olhos
envidraçados de lágrimas. Ao alvorecer do dia, uma nuvem pardacenta, que ondulava pela costa da serra, rasgou-se em
saraivada glacial, que lhe batia no rosto e saltava pelo
peito nu e descarnado.
Chovera e nevara depois, durante muitos dias. Nenhum pastor
subira com o rebanho àquelas cumeadas, sempre
escondidas na negridão da névoa e perigosas, se o lobo uiva faminto. Quando o tempo estiou, quem denunciara o
cadáver já disforme no rosto fora uma revoada
de corvos que crocitavam pairando sobre os restos
do seu banquete disputado às
feras.
***
Contava-se assim o caso em
Famalicão:
Que o Bento de Araújo, receando
os ladrões os seus vizinhos, desenterrara as suas riquezas que tinha debaixo da lareira e,
indo escondê-las nos montados de
Vermoim, numa noite de grande inverneira, morrera
tolhido pelo frio e traspassado da neve.
Fundavam-se os desta versão em
que a pedra da lareira estava deslocada e no seu lugar uma cova funda; e
debaixo dos bancos da cama outra escavação, e no entulho uns cacos de panela, onde com
certeza estava porção do tesouro, e a
outra porção debaixo da lareira.
Outro boato:
Que a malta da Terra Negra
assaltara o pedreiro, roubara-o. matara-o e levara o cadáver ao castelo de Vermoim. Não se dava a
razão deste saimento a três quartos de
légua; mas também não era necessária
a lógica para
explicar tal coisa.
A versão, porém,
mais popular e que tinha o
sufrágio das pessoas mais razoáveis era que Joaquim assassinara o pai na
serra, quando o velho voltava do seu
trabalho de brocar pedra; e,
depois, deixando-o morto, viera
a casa desenterrar o dinheiro. Em confirmação do
boato, alegava-se o fato de ele ter aparecido
em Famalicão a procurar o pai e a indagar dos vizinhos se tinham dado conta do arrombamento da casa — isto no
dia em que o pai já estava morto.
A voz pública forçou a autoridade
a prender o Faísca; mas, na noite seguinte à da
prisão, algumas dúzias de homens armados
arrombaram a cadeia de Famalicão
e tiraram de ferros o inocente.
Esta fuga completou a ruína de
Joaquim de Araújo. Acreditou-se geralmente no roubo e no parricídio. As aldeias do
julgado de Vermoim, com Famalicão à frente,
deram montaria à quadrilha da Terra Negra, com o reforço militar de Guimarães e Braga. A malta dispersou, mortos
alguns dos mais audazes; e os dispersos engrossaram, na Póvoa de Lanhoso, a
celebrada quadrilha que tem a sua história num livro dignamente esquecido.
O filho de Bento pedreiro morreu
em 1809 no Carvalho de Este, defendendo a
Pátria da invasão francesa comandada por Soult. Bateu-se com o heroísmo do suicida, ao cabo de dezoito anos de
salteador, arrostado a todos os perigos, mas fugindo a que o filassem vivo, porque
tinha grande horror à forca. Afinal, inscreveram-no entre
os valorosos defensores
da nossa autonomia,
e o seu cadáver foi mais acatado que o do general
Bernardim Freire, assassinado por outros
patriotas da laia do Faísca.
***
Hão de lembrar-se que Joaquim de
Araújo tinha um filho, que aprendera em S.
Martinho do Vale o ofício de fogueteiro com o parente da sua mãe.
Aos vinte e seis anos, quando o
seu pai acabou, estava ele ainda na companhia do
velho benfeitor e mestre,
ganhando alegremente o seu pão. Falecido o parente, alguém lhe disse que ele tinha em
Vila Nova de Famalicão a casa, boa ou
má, do seu avô, que ninguém lhe podia disputar.
Facilmente se habilitou herdeiro de Bento de Araújo e
tomou posse do casebre, desabitado desde 1790. Às vezes,
os mendigos, nas noites quentes, levantavam a
aldraba, que era um
cavaco de castanho, e albergavam-se no sobrado
podre, contando os casos horrendos que ali passaram — o parricídio e o roubo. As covas estavam ainda abertas e o
desentulho em montículos de redor.
Silvestre de S. Martinho, o filho
do Faísca, não usava dos paternos apelidos: do pai aproveitara somente a casa,
transigindo com a honra o necessário sem prejuízo o seu.
Apossado da casa,
deu-lhe um jeito
para poder habitá-la e pendurou meia dúzia de foguetes e bombas reais à porta. Era
habilidoso, principalmente para as bonecas
de pólvora. Gabava-se
de haver inventado o barbeiro
a amolar navalhas na
roda e levara à
perfeição da indecência a
velha que despedia contra
a cara combustível do barbeiro um
repuxo de chispas pela pane posterior, tudo com uma
graça portuguesa que era
um estoirar de riso o arraial!
Corria-lhe bem a vida e já tinha
casado com uma rapariga dura e trabalhadeira, quando o descuido de um aprendiz, na ausência
dos patrões, deixou pegar o lume num
feixe de bombas. Houve explosão, que sacudiu em estilhas o teto da casa e abrasou todas as madeiras. Quando
Silvestre voltou com a mulher da romagem
da Santa
Eufémia, nas terras da Maia,
encontrou quatro paredes denegridas
e o interior da casa a fumegar, cheio da brilhante claridade da Lua. O aprendiz, carbonizado, estava já na cova.
Tiveram compaixão do pobre
fogueteiro os Vila-Novenses. Diziam-lhe
que construísse uma cabana com as
esmolas que lhe iam tirar pela freguesia; mas que a fizesse noutra pane, porque naquela
casa, onde um filho matara o seu pai
para o roubar, pesava
a maldição de Deus. Um
vizinho comprava-lhe o terreno da casa amaldiçoada para acrescentar à
sua; mas deixava-lhe a pedra, que
era boa
para o fogueteiro
edificar noutra parte.
Silvestre aceitou, convencido de
que o sangue do seu avô funestara para sempre aquele teatro do grande crime.
Recebido o terreno de esmola,
principiou Silvestre a demolir as
paredes da casa queimada.
Fazia ele este serviço, com ajuda
da mulher, enquanto
o carreteiro ia carreando a
pedra.
Às três da tarde de um sábado o
carreteiro, consoante o costume, despegara do serviço; mas Silvestre e a mulher
continuaram a desfazer o último lance de parede que
lhe restava, com o fim de na
próxima segunda-feira acabarem o trabalho da demolição.
Observara o fogueteiro que este
lado da parede quadrilátera era mais grosso um palmo que os outros que formavam o recinto,
reentrando para o interior o excedente
da grossura. Estava
coberta de pasta
de barro e caleada como as outras.
Divisava-se ainda no barro
gretado o risco traçado pelo atrito
de qualquer como que se encostara
à cal ainda fresca.
Por esta raspadura, conjeturou
Silvestre que ali devia estar o banco da cama do avô,
até porque ouvira dizer que parte do tesouro estivera
enterrado debaixo da cama; e ele,
quando tomara posse da casa, ainda vira a cova aberta, dois palmos distante daquela parede.
— A pedra aqui é mais larga —
disse o fogueteiro à mulher.
— Agora é! — emendou ela. — O que
a faz parecer mais larga é a camada de
barro; senão, olha.
E começou a picar ao longo da
parede com a extremidade aguda da alavanca, e o
barro, esboroando-se e
desacamando a pedaços,
deixava descobrir a superfície
da pedra, que não era mais grossa que a outra.
— Dizes bem, é isso — aprovou o
marido. — Vamos apeando a parede por esse lado, que o bano, ele se despegará.
E, dizendo, pegou noutra alavanca
e começou a derribar as capas da parede, enquanto
a mulher, para
não estar com as mãos debaixo
dos braços, ia descaliçar
a camada
barrenta. Quando atirava rijamente com a ponta da alavanca à parede, notou que o ferro batera e
se cravara em pau.
— Aqui há madeira — disse ela.
— E alguma cascaria que tinha mão
no barro — explicou Silvestre.
A mulher repetiu os golpes em diversos pontos na
circunferência de dois palmos e tirou sempre o mesmo som.
— Parece que bate em vão.. — notou ela.
— O quê?! — acudiu o marido,
descendo do andaime em que trabalhava.
— Bate em vão! Que dizes tu?!
— É o que te eu digo...
Olha.. Ouves?
— Ó mulher!
— exclamou ele, cravando-lhe
os olhos cheios de palpites que a língua não ousava formular.
E como nesse comenos
passasse gente, e
parasse a olhar para
as ruínas, o fogueteiro fez um trejeito à mulher, que ela
entendeu, calando-se.
— Ajunta a ferramenta, Maria, e
vamos embora, que já mal se enxerga — disse
ele.
— Lá vai a casa do Bento
pedreiro, Deus lhe fale na alma! — disse o mais ancião dos curiosos. — Que dinheirão aqui
esteve neste pardieiro! Cinquenta e
seis mil
cruzados! Era o homem mais rico da vila
e o seu termo, e tanta necessidade passava aquele alma
do diabo, Deus lhe perdoe, para
afinal o dinheiro ser repartido
pela quadrilha do Luís Meirinho, que também o levou berzabum com duas balas que lhe meteram na
barriga ali à ponte de Santiago!
— São fadários, Tio
Simeão!.. — disse Silvestre.
— Você podia a esta hora estar
rico como um porco, se tivesse outra casta de pai..
— disse o velho.
— Assim é; mas não o quis Deus.
Desgraças...
— Ora faça você de conta que
tinha achado aí o dinheirame do seu avô!
— Ainda venho a tempo!...
— Pois sim; mas faça
de conta que o topava! Você que fazia, ó Sor Silvestre?
— Eu sei cá, Tio Simeão!
— Foguetes é que você não fazia
mais!, aposto dobrado contra singelo!
— Não falemos nisso.. Foguetes é que eu hei de fazer toda a minha
vida, e Deus me dê saúde para os fazer.
— Ámen; mas você, se se pilhava
com as três mil peças, metia a vila toda num chinelo e pintava aí o diabo a quatro!
— Está enganado!, não pintava
nada. . Comprava uns benzinhos, e havia de
trabalhar neles, como trabalho nos foguetes.
— Vem daí, homem
— disse Maria, já
aborrecida das impertinentes perguntas do
Simeão, que, encostado
à sachola, parecia
jubilar nas pachorrentas hipóteses
e nas delícias de
coçar uma perna
com a outra alternadamente.
Simeão foi o seu caminho com os
outros; e o fogueteiro e a mulher seguiram para casa; mas, assim que as portas e janelas
se fecharam na rua, aí estavam eles
outra vez sobre o cascalho, raspando com ferramentas pouco ruidosas a parede no espaço em que o som do vácuo
respondia ao toque do ferro.
No termo de curta fadiga tinham
descoberto uma superfície lisa de madeira, envasada
na parede como a portada
de um postigo. Facilmente desencaixilharam a tábua
do envasamento de pedra, porque
não tinha dobradiças nem
outra firmeza além
da que lhe dava
a espessa camada
de barro. Silvestre introduziu a
mão e topou um corpo frio.
— Que achas? — perguntou Maria
ofegante com as mãos postas.
— É um panela de ferro. . —
balbuciou ele. — O mulher!. . tem mão em mim, que não sei o que me dá pela cabeça!...
— Nossa Senhora! — exclamou ela —
a nossa Senhora!..
E, em vez de ter mão no homem,
meteu ambos os braços até achar a panela, enquanto
Silvestre abria e fechava
a boca em trejeitos de tão estúpida felicidade que só a suprema desgraça os poderá
fazer iguais.
Nisto, a rija mocetona arrancava
da lura o peso enorme de ouro; e, caindo de cócoras com o pote no regaço, exclamou
sufocada:
— Ai Jesus!, que eu morro de
alegria!...
Silvestre apertava
o ventre com as mãos.
Esta postura não é
ridícula nem inverosímil para os que sabem que os
intestinos quase nunca são estranhos às comoções grandes.
Aos primeiros assomos da
seguinte aurora, a parede estava
arrasada. Os vizinhos ouviram o ruído da assolação e
pensaram que a derrubara um pegão de
vento.
Mas, na semana seguinte, a obra
da casa nova parara. O fogueteiro dizia aos seus benfeitores que ia mudar de terra e
talvez mudar de vida.
***
Por esse tempo, um fidalgo da
corte de D. João VI mandou vender as suas vastas
propriedades na província do Minho.
Nos arrabaldes de Barcelos demorava
a principal das quintas que tinha sido paço senhorial. Chamava-se a Honra de Romariz e já fora dote de D. Genebra
Trocosende, no século XII, casada com D.
Fafes Romargues, filho de D. Egas, que gerara D. Fuas, e tão copiosa e compridamente se geraram uns dos
outros que afinal degeneraram na pessoa do fidalgo que mandou vender a casa
solarenga, para cruzar ricamente uma dançarina sobre os leões
rompentes do seu escudo.
Chamava-se Silvestre de S.
Martinho o comprador, que contara
na mesa do tabelião de
Barcelos vinte e cinco mil cruzados em
peças de
7$500 réis. Quantos casais e leiras o filho de Joaquim
Faísca pôde comprar à volta
da Honra de Romariz
incorporou-os no cinto de
muralha que foi alargando a termos de arredondar a mais vasta e formosa
vivenda do coração do Minho.
Em 1826, quando Silvestre já
desesperava da fecundidade da esposa, em anos bastante serôdios, deu-lhe ela uma menina que
se chamou Felizarda. Aos oito anos, a
rapariga, filha única
e conhecida pela morgadinha de Romariz, já bastante espigada
e gorda, levava
folgada infância. Aos dezoito anos, compuseram-se-lhe as feições com
proeminências grandes, mas esbeltas.
A fertilidade do peito dizia com
a curva tumecente das espáduas. Felizarda tinha uns arquejos de cansaço que lhe alinhavam o
carmim do bom sangue.
Um bacharel formado, que aspirava
de longe os olores desta flor de girassol, queixando-se
da demora que ela
pusera em chegar para
uma festividade de igreja, fez-lhe o seguinte improviso, depois
de trabalhar três dias a rima:
Eu, que sou fogo, não tardo,
ela, que é gelo, é que tarda.
Se eu, que amo, feliz ardo,
FELIZARDA feliz arda.
Ela deu pulos a rir como se
tivesse a critica de Mad. Girardin. Por esse tempo, 1846, Silvestre de S. Maninho estava muito
rico, mas muitíssimo aborrecido na diluente
ociosidade de tantos anos. Às
vezes mandava comprar pólvora bombardeira, furava
canudos, apertava-os com guita alcatroada e fazia foguetes para se distrair. Felizarda, bastante
entretida com a arte, pedia à mãe que
lhe ensinasse a fazer valverdes e bichinhas de rabear.
A Sra. D. Maria, excelente
matrona e mãe, não se enfastiava, como o esposo, porque mourejava sempre
na casa e na
quinta, fiava ou dobava
nas noites grandes com as criadas
à lareira e envergonhava os servos calaceiros batendo as meadas no lavadouro, ou padejando as broas
na cozinha.
Mas o marido, que,
tirante as diversões pirotécnicas, não fazia nada,
andava dispéptico e clorótico,
quando teve de optar entre fogueteiro e político.
Era no tempo da Patuleia.
Silvestre manifestara-se progressista nas belicosas eleições de 1845, em Barcelos, e sentiu-se
invadido pela paixão sociológica por causa
do canibalismo dos fuzilamentos de Alvarães. No ano seguinte, influiu no movimento de Maio e manteve-se nas ideias
avançadas até Outubro, em que os agentes
da junta do Porto lhe embargaram, no Largo da Aguardente, duas carruagens que
iam à praia da Foz
buscar a mulher e
a filha. Neste conflito, oscilou politicamente entre os
irmãos Passos, que amamentavam a República
nos seios dessorados da
liberdade caquética, e o padre Casimiro José
Vieira, o Defensor das Cinco
Chagas, que proclamava D. Miguel I
no Bom Jesus do Monte.
Aliciaram-no ao seu
partido alguns sectários da
realeza absoluta, que
viam desde a ponte de Barcelos a
política europeia e traçavam com as bengalas no Campo das
Cruzes as evoluções
militares e triunfais dos
exércitos russos. Silvestre não
subia nestas compreensões tão alto como
os seus foguetes de três
respostas, mas entendia que,
tendo as coisas de dar volta, não lhe seria mau adotar o partido vencedor. Ofereceu
dinheiro ao Dr. Cândido de Anelhe e ao
advogado Francisco Jerónimo para se enviará à Lua.(*)
[(*) Os realistas usavam nas suas correspondências termos
convencionais. Lua era o general-chefe Macdonnell. Este general, quando foi
batido pelo conde de Casal em Braga, deixou ali um volumoso dicionário manuscrito,
curiosamente elaborado pelos realistas de algum vulto lexicológico, com bastantes documentos que
hoje estão esquecidos e mais tarde a história não saberá
onde procurá-los. Neste dicionário criptográfico os vocábulos mais engenhosamente disfarçados são estes:
Inimigos — BESTAS.
Inimigos em movimento — BESTAS DESINQUIETAS.
Inimigos em marcha contra nós — BESTAS DE JORNADA.
Os liberais, se intercetassem a correspondência, não suspeitariam
decerto que os miguelistas chamassem aos seus adversários bestas.
Leia-se a Carta Dirigida
ao Cavalheiro José Hune, Membro do
Parlamento, sobre o Último Debate Havido na Câmara dos Comuns a Respeito
dos Negócios de Portugal, etc., Lisboa,
1847.
O tradutor e anotador anónimo desta
obra, a mais noticiosa que ternos da
revolução chamada da Maria da
Fonte, foi Antônio Pereira dos Reis, notável escritor político, falecido em 1850.]
À
sua generosidade respondeu magnanimamente a assembléia realista condecorando-o com a comenda de S. Miguel da
Ala. Ele já era Rosa Cruz, graduado na
hoje extinta viela da Neta, por José Passos. Abriu-se um pleito de liberalismo entre Silvestre e a cabeça visível
de el-rei absoluto. Boa porção das peças
intactas do defuntíssimo Joia passaram para o cinturão do aventureiro escocês Macdonnell, e depois para os bornais
dos soldados de caçadores que o
espingardearam em Sabroso. Ó
fados do dinheiro! Que estremeções não daria na
cova o cadáver do Bento
pedreiro, se os
corvos e os lobos o não tivessem comido na serra!
Extintas as fações políticas,
Silvestre, por insinuações
da mulher, entrou a desconfiar que era tolo e que o Sr. D. Miguel
não o conhecia. Retirou-se da política, cheio de desenganos e ridículo. Os funcionários administrativos e judiciais de Barcelos zombavam dele e, no
Periódico dos Pobres, um «Amigo da verdade»
escreveu que o Silvestre de
Romariz, no auge da sua
dor, fabricava foguetes de
lágrimas. Alusão perfurante que ele soletrou na folha.
A respeito de soletrar, a morgada
recebia cartas de um amanuense da Câmara de
Barcelos; mas só abriu sete que juntara
quando uma costureira lhas leu. Felizarda criara-se sem letras e vivia, a
respeito de literatura, como as raparigas gregas
antes de Cadmo, filho
de Agenor, introduzir na Grécia
o alfabeto fenício; mas,
em compensação, tinha muita flor
nativa e fresca de acres aromas naquele aflante seio e folgava de ouvir
trovas de chula e desafios de cantares
em que às vezes a frase estava pedindo a intervenção da polícia.
Direi do amanuense da Câmara
Municipal de Barcelos:
Era um
sujeito que perlustrara as regiões da
ciência por toda a extensão do Manual
Enciclopédico do Sr. Emílio Aquiles de
Monteverde. Era autor
de charadas impressas. Só a
Felizarda. Tinha este rapaz, José Hipólito de nome, imensa fé
na brisa, no paul, na
justiça e no arcanjo da poesia
de 1840. Os duendes das suas visões noturnas nas margens
do Cávado sangravam-no. Era melancólico e magro
como um galgo doente. A sua paixão grande, não falando
na falta de dinheiro, era Felizarda.
Ganhava três tostões na
escrivaninha da Câmara e devoravam-no aspirações a ter cavalo
e carrinho. Entretanto, andava
pelas casas a recitar a poesia
de Paimeirim:
Que poeta que não era
Da linda Inês o cantor;
ou, da lua de Londres, o
É noite; o astro saudoso
Rompe a custo o plúmbeo céu, etc.
E chorava quando os versos coavam
fúnebres.
Felizarda não parecia talhada
(sem calemburgo) para este homem; ele, porém, talhara-se para ela. Far-se-ia boi, como Júpiter, para arrebatá-la, bem que os seus instintos
voláteis o levassem para cisne,
se Felizarda tivesse,
além dos próprios, os instintos
um tanto bestiais de Leda.
Escreveu-lhe sete missivas
profusas e tristes como os sete pecados mortais. A costureira
que as leu debulhava-se em
lágrimas e decorava períodos para responder às cartas de um furriel do 13 de
infantaria. Felizarda ouvia aquelas coisas
com a atenção de uma
rã que emerge à flor
do lago os olhos espantadiços
e escuta um rouxinol.
Como as prosas levavam recheio de quadras, assim que a morgada dava tento da
rima, espirrava um frouxo de riso, tal
qual como no lirismo de Santo Antônio, no Teatro de S. Geraldo.
Tinha aquele
aleijão! Era — quem
sabe? —
a preexistência desta
enorme gargalhada que hoje
atabafa os golfos da poesia subjetiva.
A costureira interpretou-a
e respondeu, vestindo a ideia
de Felizarda com palavras
inocentes, mas facinorosas em ortografia. O
amanuense amava-a deveras: leu a carta, em que era chamado bem da menina
com v; e, dando os pêsames ao seu
Monteverde, fez votos de educar Felizarda nas quatro panes da gramática, se um dia conjugasse o verbo
amar, que só é verdadeiramente regular
quando o matrimônio o defeca.
Trocaram-se cartas assíduas. Felizarda
começava a ser um pouco
séria, pouseira e
sensaborona. Amava. Entre a psique e a
outra abriram-se as válvulas
de comunicação.
Tinha morbidezas de Ofélia e
indigestões por falta de exercido. Não saia do mirante que olhava para o caminho do carro.
José Hipólito passava por ali aos sábados
de tarde; e, se a solidão era absoluta, perguntava-lhe como passou. E Julieta, debruçada sobre o varandim do
miradouro, com a face rubra e o seio ondulante,
dizia-lhe que passou bem.
Nas cartas, falou-lhe em matrimônio,
o amanuense. Ela respondeu que sim. José
Hipólito, esporeado pelo amor,
abalançou-se à interpresa de que os amigos o dissuadiam. Pediu-a ao pai, e
arrependeu-se. Silvestre perguntou-lhe quem
era e quanto tinha. Ouvida a resposta, disse gesticulando um esgar de desprezo:
— Ora adeus.. O senhor, se não é tolo, parece-o.
Despediu-o apontando-lhe para a
porta. Depois chamou a filha e perguntou:
— Que diabo é isto? Onde conheceste o pelintra que te veio pedir para mulher?
Ela contou ingenuamente o caso,
mostrou as cartas, confessou quem lhas lia, quem lhes respondia, e concluiu:
— Assim como assim, já agora
quero casar com ele.
O pai expediu berros cortados de
interjeições brutas. A filha fugiu, a soluçar, e não apareceu ao jantar nem à ceia.
E a mãe, a mulher laboriosa que
nunca pensara nas soberbias implacáveis da riqueza, dizia ao marido:
— Se ela gosta do rapaz, deixa-a
casar.. Bem me pregava o meu pai que não casasse contigo porque tu eras filho de
quem eras. E daí? Casei e nunca me
arrependi.
— Queres dizer na tua que dê a
minha filha com oitenta mil cruzados para um troca-tintas que não tem casa, nem leira,
nem...
— Tem-na ela, homem. A riqueza
chega para os dois. Trata de saber se ele é bom rapaz; e, se for, deixa-a casar, que tem
vinte anos.
***
José Hipólito
criara protetores esperançados no bom êxito da tentativa.
Os inimigos políticos de Silvestre de Romariz coadjuvaram-no a tirá-la judicialmente.
O
juiz prestou-se a interrogar a
morgada, visto que ela não podia
requerer pelo seu pulso. Supridas
legalmente as formalidades, Felizarda foi depositada em Barcelos, no seio da família Alvarães.
Trava-se então a
luta nos tribunais. O
pretensor, mal dirigido
pelo seu advogado, responde
com retaliações pungentíssimas
a insultos que o argentário lhe dirige ao seu nascimento obscuro e à sua
pobreza. A pugna passara a ser um assanhado pugilato dos dois
causídicos.
Um dos membros da família
Alvarães era jovem, chamava-se José Francisco e estudava
o 5º ano de Latim a
ver se aprendia
o necessário para
cónego da colegiada barcelense. Tinha quatro reprovações
conscienciosas em Braga; mas ao 5º ano já
distinguia o verbo do complemento
objetivo e traduzia
com poucos erros a Ladainha.
A família Alvarães era antiga e
abastada; contava muitos frades bernardos na prosápia
e um governador numa
praça da Ásia,
donde trouxera navios de especiarias que formaram o casco da riqueza. A
casa tinha pedras de armas e uma liteira
brasonada que antigamente ia
a Alcobaça buscar os
frades a rusticar nas pescarias do Cávado e a encher as
roscas da caluga, balofas pela inércia
do claustro.
José Francisco,
o estudante, era sanguíneo,
nédio, com as maçãs do rosto vermelhas e os olhos enfronhados nas pálpebras
sonolentas. Felizarda, a noiva depositada, pareceu-lhe
bem, ao passo
que o amanuense da
Câmara lhe era um
antipático bandalho, desde que em plena praça
o enxovalhara perguntando-lhe, no
3º ano de Latim, o acusativo de Asinus. Opusera-se José Francisco à receção da morgada para haver de
casar com José Hipólito, filho do Manuel
Colchoeiro; mas força maior obrigara os Alvarães a protegerem o amanuense.
Às vezes, o futuro cônego
pasmava-se a contemplar Felizarda e sentia em si as suaves
dores da natureza
em pano do primeiro amor.
Se ela, a morgada, olhava para ele a fito, produzia-lhe no rosto
o efeito do Sol que aponta em dia de
calma —
avermelhava-o até aos
glóbulos das orelhas; e José
coçava-se a disfarçar, ou
esbofeteava as moscas que lhe passeavam sobre a epiderme oleosa e faziam titilações incômodas nas
fossas nasais.
A morgada achava-o bonito e dizia
às irmãs que era pena fazerem-no padre. José,
quando soube isto, criou umas esperanças que o tresnoitavam e tinha as sentimentalidades doloridas de Jocelin e de um
ou outro clérigo de Barcelos que deixava
vingar-se a natureza.
Procurava José Francisco Alvarães
modos de conversar com Silvestre
de Romariz e contava-lhe o que a filha
dizia a respeito
do Hipólito. Levava à depositada cartas do
pai e lia-lhas às escondidas
da família. O amanuense suspeitara-o e tratava de remover o depósito,
alegando subornos que a lei não facultava.
Ora, naquelas confidentes
leituras, estabelecera-se intimidade bastante entre a morgada
e o intérprete das lástimas do seu pai.
de uma vez
que Felizarda enxugava as
lágrimas, ouvindo ler o adeus que o pai enfermo lhe enviava, José Francisco, transportado num rapto inconsciente
de entusiasmo, pegou-lhe na mão e disse
com terníssima meiguice:
— Não case contra
vontade do seu pai. . Tenha
pena dele, que está
tão acabadinho.
A morgada pôs-se a torcer e a
destorcer o seu lenço branco e a lamber uma lágrima que lhe pruía no beiço superior; mas
não respondeu.
Alvarães foi contar isto
ao velho. Silvestre pegou no processo
que o seu advogado lhe enviara e disse-lhe:
— Faça-me o Sr. Josezinho o favor
de levar estes autos e ler a minha filha o que o tal patife, que quer ser o seu marido,
aqui diz do seu pai: leia-lhe isto, e
veja o que ela diz.
O
leitor já sabe,
por eu lho haver dito nas
primeiras páginas deste livrinho, que o indiscreto amanuense consentira que se
escrevesse que o pai de Silvestre fora
salteador de estradas e que o pai de Felizarda exercitara o baixo mister de fogueteiro em Famalicão.
Tudo isto era
expendido na tréplica
de José Hipólito com grande lardo de zombarias e sarcasmos em estilo picaresco. A morgada ouviu ler
as injúrias entoadas com veemência
por José Francisco, que as declamou como se estivesse traduzindo um período de Eutrópio.
Concluída a leitura, Felizarda,
antes que o leitor a interrogasse com os olhos, exclamou:
— Quero ir para a casa do meu
pai, e há de ser já. O Josezinho vai comigo. Mande dizer ao meu pai que me mande a burra.
José foi dar parte à família da
súbita resolução da morgada; o depositário foi dar pane ao juiz, e o juiz respondeu que a lei
não podia empecer à vontade da depositada.
Quando estas altercações chegaram
à notícia de José
Hipólito, a filha
de Silvestre ia já caminho de
casa, acompanhada pelo estudante e pelas irmãs.
O
pai e a mãe receberam-na nos braços,
ofegantes de júbilo, a pedir-lhes perdão da sua doidice. Silvestre abraçava José
Francisco Alvarães chamando-lhe o salvador da sua filha e da sua honra. A santa
mãe de Felizarda olhava para o estudante
com os olhos cheios de riso e dizia:
— Não queira ser padre, Sr.
Josezinho... Olhe que o meu homem já disse que, se a vossa Senhoria quisesse a nossa
rapariga, que lha dava, e eu também.
José olhou estupefato para o
velho; Silvestre entendeu o espanto e disse-lhe:
— Não olhe para mim, que eu não
sou o que caso; olhe para a minha filha e
veja o que ela diz. Felizarda, queres casar com o Sr. José Francisco?
— Se o pai quiser... também eu. —
E escondeu o rosto no seio da mãe
com umas
visagens que pareciam de entremez mas que eram da maior naturalidade.
As irmãs de José Francisco rodearam-na e beijaram-na
sofregamente, enquanto o noivo,
iluminado por aquele improviso e inesperado lampejo de felicidade,
achou no coração estas
frases que balbuciou, abeirando-se da morgada:
— Se a menina casasse com o
outro, eu acho que morria de paixão, e mais nunca lho disse.
***
CONCLUSÃO
Quando os vi em Braga, no Teatro
de S. Geraldo, estavam casados havia já vinte
e cinco anos.
Na casa de Romariz, durante
essa temporada, apenas pesaram dias funestos quando se fecharam as
sepulturas de Silvestre e a sua mulher.
D. Felizarda apenas conhecia na
arte dramática o Santo Antônio, de Brás Martins, e a “Degolação dos Inocentes”, por
onde entrou na vida infame de Herodes. As noites
de Dezembro aligeiravam-se em Romariz a
dormir. Ceavam e digeriam
serenamente. Ao pé de
um bom estômago coexistiu sempre uma boa alma. Acordavam alegres para
continuar as funções animais. Viviam para crédito da fisiologia: eram duas
pessoas que se adoravam e faziam reciprocamente
o seu quilo num só órgão.
Tinham um
coração, um fígado e um
pâncreas para os dois.
Nesta vida vegetal havia ternuras cupidíneas, como as das
cilindras e acácias florescentes; e,
quando extravasavam da órbita
fisiológica. jogavam a bisca
de três; mas ordinariamente entretinham-se mais com o
burro.
De S. Miguel de Seide, Julho de
1876.
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Nota:Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)
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