domingo, 1 de setembro de 2013

Eça de Queirós: "Um Gênio que era um Santo"

UM GÊNIO QUE ERA UM SANTO

Em Coimbra,  uma  noite,  noite macia  de Abril ou Maio,. atravessando  lentamente    com as minhas  sebentas na  algibeira  o Largo da  Feira,  avistei  sobre as escadarias da Sé  Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses  tempos ainda era romântica, um  homem, de pé, que improvisava.  

A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo  mais  escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço  inspirado  mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa  por uma ponta,  rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas  de imagem. E,  sentados   nos degraus  da igreja, outros homens, embuçados,  sombras imóveis sobre as cantarias  claras, escutavam, em silêncio e enlevo,  como discípulos.

Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco  ou  amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII – mas um bardo,  um  bardo dos   tempos  novos,  despertando almas,  anunciando verdades.  O  homem  com  efeito cantava  o   Céu,  o Infinito,  os mundos  que rolam  carregados de humanidades, a luz suprema  habitada pela ideia pura, e    

...os transcendentes recantos     
Aonde o bom Deus se mete,   
Sem fazer caso dos Santos  
A conversar com Garrett!

 Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre  os  lábios abertos de gosto e pasmo:  

– É o Antero!. .

Deus conversava com Garrett. Depois, se bem me lembro, conversava com  Platão   e com Marco  Aurélio.  Todo o  Céu era  uma  radiante academia.  Os  santos  mais ilustres,    os  Agostinhos.  os  Ambrósios,  os Jerônimos,  permaneciam fora,  pelos pátios  divinos,   sumidos  numa  névoa subalterna,  como plebe imprópria a penetrar no concilio dos  filósofos e dos poetas. Mas  o escravo  Epiteto aparecia,  ainda coberto das cicatrizes  do   látego  e dos  ferros – e Deus estendia ao escravo Epiteto a sua vasta mão direita, donde  se  esfarelava o barro com que ele fabrica os astros...

 Epiteto, meu amigo,     
Quero ouvir o teu ditame   
E aconselhar-me contigo...

 Então, perante este Céu onde os escravos eram mais gloriosamente acolhidos  que  os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos  pés de Antero  que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E  para sempre assim me  conservei na vida.  

 Intimidade,  porém,  com aquele que eu depois  chamava  «Santo Antero»,  só  verdadeiramente começou na manhã em que o visitei, com muita curiosidade  e muita  timidez, na sua casa do Largo de São João. Era o hereditário quarto  da velha Coimbra,  com as portas rudemente besuntadas de azul, o teto alto  de madeira fusca, e a cal das  paredes riscada por todas as cabeças de lumes-prontos  que em cinquenta  anos ali se    tinham raspado,  com preguiça,  para  acender a torcida de azeite, à hora triste em que toca  a «cabra». A um canto  um leito de ferro, num alinho rígido. Diante da janela a banca de  Coimbra  dos meus tempos, tábua de pinho sobre quatro pés toscos, onde uma Bíblia,  um Virgílio, o caderno de papel, o maço de cigarros, pousavam numa ordem  curta e  árida. E no meio desta quietação das coisas, e de todo o azul e todo o  ouro  da  manhã de   Maio  que  entravam pelas janelas, Antero, batendo com  grossos sapatos o soalho mal  aplainado, parecia um leão, cheio de desordem  interior e de sanha. O «olá!» que me  atirou foi perfeitamente rugido. Que dor  ou que afronta lhe eriçavam assim a juba loura?  Abrira um gavetão, e tirava  de dentro cartas,  papéis,  ferozmente,  como se  arrancasse    entranhas.  Num  arremesso empurrou para a mesa uma pobre cadeira caduca onde se  abateu  com amargura – e começou então a destruir as cartas e os papéis de um modo  estranho, que me maravilhou. Dobrava cada folha ao meio, esmeradamente:  depois,    violento e certeiro,  ainda  a  dobrava  em quarto;  depois com uma  atenção sombria, ainda  a dobrava em oitavo. Sob a unha raivosa achatava as  dobras:    e,  empunhando uma  faca    como um  ferro  de vingança  e morte, cortava os papéis finamente, fazendo com dois  golpes pequenos maços bem  enquadrados, que ia amontoando numa resma nítida e fofa.  E todo este lento,  paciente trabalho de precisão e simetria, o continuava com um modo  revolto  e trágico.  Fascinado, surdi do vão da  janela  onde  me refugiara, e parando a  borda da mesa:

– Oh Antero, quanta ordem você tem na destruição!  

Ele dardejou sobre mim dois olhares devoradores. Depois considerou, ainda  enrugado, a pilha acertada dos papéis cortados, e um sorriso, aquele sorriso de  Antero  que era como um sol nascente, iluminou, fez toda clara e rósea a sua  boa face onde  havia um não sei quê de filósofo de Alexandria e de piloto do  Báltico:

– O ritmo – murmurou – é necessário mesmo no delírio.  

E com efeito, naquela alma estética, sempre as angústias mais desordenadas se  moldaram em formas perfeitas.
  
****

Foi isto, creio eu, em 1862 ou 1863. Antero já publicara a «Beatrice», talvez   mesmo o «Fiat Lux»; – e todos conheciam, ainda manuscritas, as «Odes  Modernas».  Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos domínios da inteligência,  o Príncipe da  Juventude. E com razão – porque ninguém resumia com mais  brilho os defeitos e as  qualidades daquela, geração, rebelde a todo o ensino tradicional, e que penetrava no  mundo do pensamento com audácia,  inventividade, fumegante imaginação, amorosa fé,  impaciência de todo o método, e uma energia arquejante que a cada encruzilhada  cansava.

Coimbra  vivia  então numa grande atividade,  ou antes num grande tumulto  mental.  Pelos  caminhos de ferro,  que tinham aberto  a  Península,  rompiam  cada dia,  descendo da França e da Alemanha (através da França) torrentes de  coisas novas, ideias,    sistemas,  estéticas,  formas,  sentimentos,  interesses  humanitários...  Cada manhã  trazia a    sua  revelação,  como um  Sol  que fosse  novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e Vico, e  Proudhon; e Hugo tornado  profeta e justiceiro dos reis; e Balzac, com o seu mundo  perverso e lânguido;  e Goethe, vasto como o Universo; e Por, e Heine, e creio já que  Darwin, e  quantos outros! Naquela geração nervosa, sensível e pálida como a de Musset  (por ter sido talvez como essa concebida durante as guerras civis) todas estas  maravilhas   caíam à  maneira  de achas numa fogueira,  fazendo  uma  vasta  crepitação e uma  vasta   fumaraça! E ao mesmo  tempo nos  chegavam,  por  cima dos Pirenéus moralmente   arrasados,  largos  entusiasmos europeus que logo adotávamos  como nossos e próprios,    o culto de Garibaldi e da  Itália  redimida,  a  violenta  compaixão da  Polônia.  retalhada,  o   amor à  Irlanda, a  verde Erin,  a  esmeralda  céltica, mãe  dos santos  e dos  bardos.  pisada    pelo  Saxônio!...

Nesse mundo novo que o Norte nos arremessava aos pacotes, fazíamos por  vezes   achados  bem singulares:  –  e ainda  recordo o meu deslumbramento   quando descobri esta    imensa  novidade  –  a  Bíblia! Mas a  nossa  descoberta  suprema  foi  a  da  Humanidade.    Coimbra  de repente teve  a  visão e a  consciência  adorável  da  Humanidade.  Que encanto    e que orgulho!  Começamos logo  a  amar a  Humanidade,  como  há  pouco,  no ultra- romantismo,  se  amara  Elvira,  vestida de cassa  branca  ao luar.  Por todos  os  botequins  de   Coimbra  não se  celebrou mais  senão essa  rainha  de força  e  graça, a Humanidade. E  como num meridional de vinte anos, lírico de raiz,  todo o amor  se  exala  em canto –  não   houve moço  que não planeasse um  grande poema cíclico para imortalizar a  Humanidade. O do meu vizinho era a  «Lira» –  uma  desmedida lira  de ouro enchendo os   espaços,  e cada  corda  encarnando uma  idade humana, onde  os  imensos  dedos de Deus,  alternadamente, desferiam sons de glória e sons de martírio. Do meu poema  não recordo  nem o tema nem o título, e apenas que deveria abrir por uma  tremenda invocação à  Índia, aos Árias, à sua marcha sublime desde Gau até  Septa-Sindhu!..   Não  éramos   todavia inteiramente desregrados  e vãos  –   porque se o fim de toda a  cultura  humana    consiste em compreender a  humanidade, já é um louvável começo discorrer sobre ela  em poemas mesmo  pueris.  E outro bom  sinal  do despertar  do espírito  filosófico  era  a    nossa  preocupação ansiosa das origens.  Conhecer os princípios das  civilizações  primitivas constituía  então,  em Coimbra,  um  distintivo de superioridade e  elegância    intelectual.  Os Vedas,  o Maabarata,  o Zendavestá,  os Edas,  os  Niebelungen, eram os   livros  sobre  que nos  precipitávamos com a  gula  tumultuosa da juventude que devora,  aqui, além, um trecho mais vistoso, sem  ter a paciência de se nutrir com método.  Formoso tempo, todavia, esse, em  que eu, ignorante,  mas  amando religiosamente  a    ciência  dos outros,  perguntava a um camarada, com os olhos esbugalhados de respeito e  santa  inveja: –  «O menino, já  conheces  bem a  Caldeia?» E nem por  isso éramos  menos alegres e fantasistas.  O  nosso mote,  como  a  nossa    vida,  todo se  encerrava naqueles dois belos versos:

A galope, a galope, ó Fantasia,    
Plantemos uma tenda em cada estrela!  

E em cada  estrela  plantávamos uma  tenda, onde dormíamos  e sonhávamos  um    instante,  para  logo a  erguer,  galopar para  outra  clara  estrela, porque  éramos  verdadeiramente, por natureza, ciganos do ideal. Mas o ideal nunca o  dispensávamos, e   nem as  sardinhas assadas das  tias Camelas nos  saberiam  bem se não lhes juntássemos,  como um sal divino, migalhas de metafísica e  de estética; A pândega mesmo era  idealista. Ao segundo ou terceiro decilitro  de carrascão rompiam os  versos.  O  ar de    Coimbra,  de noite,  andava  todo  fremente de versos. Por entre os ramos dos choupos,  mal se via com a névoa  das nossas quimeras..   Outra  das ocupações espirituais  a  que nos  entregávamos,  era  interpelar Deus.  Não o deixávamos sossegar no  seu  adormecido   infinito.  Ás horas mais  inconvenientes,  às três, quatro da  madrugada,  sobre a  Ponte   Velha,  no Penedo da  Saudade,  berrávamos por  Ele, só pelo prazer transcendente de  atirar um pouco do nosso ser para as  alturas, quando não  fosse  senão em  berros.  Com   um  intenso poder de  idealização  revestíamos  todos os  entes,  os mais triviais,  de beleza    ou de  grandeza,  de poesia  ou de terror,  no  desejo inconsciente de que a  realidade  correspondesse ao nosso sonho.  Inventávamos  gênios –  de quantas  tricanas  fizemos  Ofélias!    Antero,  ainda nos últimos  anos,  se  lamentava  por  ter  conservado  este vício  imaginativo  de  criar  fantasmas, por nós  gerados para  gastar  sobre eles  a  abundância  do nosso   entusiasmo,  ou  sobre eles  cevar  santas indignações. O pobre Napoleão III foi para essa  nossa Coimbra um  Nero,  um  Anticristo:  tal  escoliasta,  destro  em argumentar,  tomava    logo as  proporções augustas de um  S.  Tomás de Aquino,  que nos  deslumbrava:  o  bom  Castilho passou por um opressor das inteligências, de cujas mãos caía a  treva  sobre o   mundo,  e que estorvava  o  caminhar dos  tempos!  Mas nada  pinta  melhor este engano de   espírito do que a  admiração, o espanto,  inspirados  por  certo  lente  de Teologia,  ainda    moço, de face chupada  e  amarela, a quem nós atribuíamos um patética revolta contra os  dogmas, não  sei que sublimidade herética, e estranhas práticas de misticismo sensual.  Era um teólogo de costumes quietos, que lia Balmes e sofria do fígado. Pois corria  pelos  cenáculos que este padre sombrio, todas as noites, colocava uma Bíblia aberta sobre os  seios nus da sua amante, e à luz de uma tocha se repastava  das amarguras do  «Eclesiastes»! E todos nós acreditávamos com inveja nesta  Bíblia, nestes seios, nesta  tocha. . Assim era essa geração.

Em torno dela,  negra  e dura como uma  muralha,  pesando,  dando sobre as  almas,  estava a Universidade. Por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces  ares, do Salgueiral  até Celas, se erguia ela, com as suas formas diferentes de  comprimir,  escurecer  as   almas:  –  o seu autoritarismo anulando toda  a  liberdade e resistência moral; o seu  favoritismo, deprimindo, acostumando o  homem  a  temer,  a  disfarçar,  a  vergar  a  espinha;   o seu literalismo,  representado  na  horrenda  sebenta,  na  exigência  do ipsis verbis,  para    quem  toda a criação intelectual é daninha; o seu foro, tão anacrônico como as velhas  alabardas dos verdeais que o mantinham; a  sua  negra torre,  donde partiam,  ressuscitando o precetto da Roma jesuítica do século XVIII, as badaladas da  «cabra»   por  entre o  voo  dos  morcegos; a  sua  «chamada», espalhando nos  espíritos o terror    disciplinar de  quartel;  os  seus lentes crassos  e  crúzios,  os  seus Britos e os seus Neivas, o  praxismo poeirento dos seus Pais Novos, e a  rija penedia dos seus Penedos! A  Universidade, que em todas as nações é para  os estudantes uma Alma Mater, a mãe criadora, por quem sempre se conserva  através da vida um amor filial, era para nós uma  madrasta amarga, carrancuda,  rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava  libertar, rapidamente,  desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca,  pela sujeição à  «sebenta», esse grau  que o Estado,  seu cúmplice,  tornava  a  chave das  carreiras.  Verdadeira  chave dos  campos,  no  dizer francês,  abrindo para  a  independência,  para a vida e para a beleza das coisas naturais. No meio de tal  Universidade,  geração   como a  nossa  só podia  ter uma  atitude –  a  de  permanente  rebelião.  Com efeito,  em   quatro  anos,  fizemos, se  bem me  recordo, três revoluções, com todos os seus lances  clássicos, manifestos ao  Pais, pedradas e vozearias, uma pistola ferrugenta debaixo de  cada capa, e as  imagens  dos  reitores  queimadas entre as danças selváticas.  A   Universidade  era, com efeito, uma grande escola de revolução: – e pela experiência da  sua  tirania aprenderíamos  a  detestar todos  os tiranos,  a  irmanar  com todos  os  escravos.    O  nosso  entusiasmo pela  Polônia  nascia  de nos sentirmos  oprimidos como ela por um  czar de borla e capelo, que se chamava Basílio.  Aqueles  de  nós  que  hoje leiam  uma    História da  Vida  e da  Sociedade  em  Roma, nos fins do século XVIII, quando toda a  cultura livre era vedada, e a  banalidade tinha a estima do Governo por ser uma condição  da docilidade, e  os  melhores  bens  se obtinham pela  intriga  e o favoritismo,  e se  educava   o  homem para a baixeza, e a independência se arrancava como erva venenosa, e  a    policia intervinha até na  maneira  de  atar  a  gravata,  e não se  permitia  aos  cidadãos  andar    fora  de  casa  depois das  Ave-Marias –  julga  ver a  escura  imagem da vida universitária há  trinta anos, quando se impunha ao estudante,  com a batina de padre, a regra canônica do  Gesu. E era por nos sentirmos  envolvidos numa  opressão teocrática, que,  além de   pendermos  para  o  jacobinismo, tendíamos, por puro acinte de rebeldia, para o ateísmo.  De sorte  que a Universidade, ultra-conservadora e ultra-católica, era não só uma escola  de revolução política, mas uma escola de impiedade moral.

Antero resumiu, com desusado brilho, o tipo do acadêmico revolucionário e  racionalista: e daí começou a sua popularidade – e a sua lenda. Não recordo, nem sei  se   é histórica,  essa  temerária  noite,  em que ele,  durante uma  trovoada, e de relógio na mão,  intimou Deus a que o partisse com um raio,  dentro  de sete minutos,  no  caso de existir.    Desconfio do altivo episódio. Antero não tinha relógio; a sua exegese era já muito fina  para assim confundir  as maneiras de Jeová com as de Júpiter: – e, se lançou o desafio  satânico, foi  rindo alegremente do excesso da sua fantasia. Mas é certo que ele se  afirmou  sempre como o grão-capitão das nossas revoltas, desde aquela que derrubou o  bom tirano Basílio,  até à  que nos  levou  para  o Porto,  uma  noite,  entre  archotes,  ganindo   a  «Marselhesa».  Todos  os  «Manifestos  ao País»,  que a  tradição nos impunha no começo  destas sedições, saiam da pena de Antero: –  porque já ele era, além da melhor ideia da  Academia, o seu melhor verbo. E  enfim foi ele ainda que se rebelou contra outro e bem  estranho despotismo, o  da Literatura Oficial, na tão famosa e tão verbosa Questão  Coimbrã, já não é  fácil, depois de tantos séculos, relembrar os motivos dogmáticos por  que se  esgadanharam as duas literaturas rivais,  de  Coimbra  e de Lisboa. .  O  velho  Castilho, contra quem se ergueram então tantas lanças e tantos folhetos, não  se  petrificara realmente numa forma literária que pusesse estorvo à delgada  corrente do  espírito novo. Fora, é verdade, trovador e bardo; mas renovara o  naturalismo clássico  com as suas traduções de Virgílio; e passara para a nossa  língua  Molière,  um  dos  mais   nobres avós  da  família  psicóloga.  Todas estas  almas diversas (é certo) as moldava  dentro de uma vernaculidade arcádica que  as deformava:  mas a  sua  arte de escrever  era    polida,  e houve dignidade e  beleza no seu prolongado amor das Letras e das  Humanidades. (Seriam hoje  úteis,  entre  nós,  um  ou dois Castilhos.) Em todo o caso,    relativamente a  Antero de Quental e a Teófilo Braga, o vetusto árcade mostrou  intolerância e  malignidade,  deprimindo e escarnecendo dois escritores moços,    portadores  de uma ideia e de uma expressão próprias, só porque eles as produziam sem  primeiramente, de cabeça  curva,  terem pedido o selo e o visto  para  os seus  livros à  Mesa    Censória,  instalada  sob a  seca olaia  do seco cantor da  «Primavera».

O protesto de Antero foi portanto moral, não literário. A sua faiscante carta  «Bom   Senso  e Bom  Gosto» continuava,  nos domínios do pensamento,  a  guerra  por  ele   encetada  contra todos os tiranetes, e pedagogos,  e reitores   obsoletos, e gendarmes  espirituais, com que topava ao penetrar, homem livre,  no  mundo que queria  ser livre.    Para  Teófilo Braga,  essa  luta  coimbrã  foi  essencialmente  uma  reivindicação do espírito    crítico;  para  os outros  panfletários, todos literatos ou aliteratados, uma afirmação de  retórica;–para  Antero,  de todo alheio ao  literatismo,  um esforço da  consciência  e da  liberdade.  Por isso o  seu ataque sobretudo nos impressionou, não só  pelo  brilho superior  da sua ironia, mas pela sua tendência moral, e pela quantidade  de  revolução que   continha  aquela  altiva  troça  ao déspota  do purismo e do  léxico.  Castilho, armado da  sua    férula, e tendo a  pretensão de dar com ela  palmatoadas nas almas,  aparecia  aos nossos   olhos. criadores  de  fantasmas, como um verdadeiro monstro: Antero, crivando de setas  de ouro os flancos  vernáculos do monstro, foi para nós como um sagitário libertador. Eu  digo  «nós»,  uso este plural de casta  nobre,  unicamente  porque nos  simul in  Garlandia    fuimus,  nos  mesmos  bancos  nos  sentamos,  sob o mesmo  luar  devaneámos. De resto, eu  era meramente um ator do Teatro Acadêmico (pai  nobre),  e  rondava  em torno  destas   revoluções,  destas campanhas,  destas  filosofias, destas heroicidades ou pseudo-heroicidades, como aquele lendário  moço  de confeiteiro  que assistiu à  tomada  da    Bastilha  com o seu cesto de  pastéis enfiado  no braço,  e quando a  derradeira  porta  da    fortaleza  feudal  cedeu, e a  velha  França  findou,  deu um jeito ao cesto leve,  e seguiu,  assobiando a «Royale», a distribuir os seus pastéis.

Mas era um devoto (o termo não é excessivo) do poeta das «Odes Modernas».  Todos,  desde então,  esperamos  dele  a  renovação de um  mundo,  do nosso  pequeno   mundo,  para  nós  imenso –  e imenso na  verdade,  porque uma  simples alma é um vasto  mundo, e a sua renovação, no sentido da justiça ou  da bondade, uma vasta obra. Antero  era não só um chefe – mas um Messias.  Tudo  nele o marcava  para  essa  missão,  com um    relevo cativante:  até  a bondade iniciadora do seu sorriso, até aquela grenha cor de ouro  fulvo, que  flamejava por cima das multidões. E havia já com efeito hábitos messiânicos  nesse bando de discípulos que o acompanhavam através de Coimbra, de capa  solta,  enlevados na sua palavra. Essa luminosa palavra de Antero era uma das  suas magníficas   forças de atração.  Ninguém jamais  possuiu um  Verbo de  tanta  solidez.  harmonia,    finura  e brilho.  Todo o século XVIII  considerou  como um dos maiores regalos da  inteligência, o ouvir Diderot conversando.  Foi um dos encantos no nosso tempo ouvir  conversar Antero. Em Coimbra  a  sua  veia  vibrava  em pleno  esplendor.  Era  uma  lira,  a    lira  divina  de sete  cordas, em que não interessava e deslumbrava menos que as outras a  corda  de bronze do sarcasmo. Sarcasmo que nada encerrava de triste ou de amargo,  como o de um Quevedo. Antero, mesmo troçando e amaldiçoando, era um  ateniense: e à  sua ironia convinha, mais que a de nenhum outro ironista, o  nobre epíteto  homérico  de    alada.  Os seus ditos  abriam,  através  da  sua  geração, grandes sulcos luminosos – e  puros.  

Mas sobretudo se impunha pela sua autoridade moral. Antero era então, como  sempre foi, um refulgente espelho de sinceridade e retidão. De nascença a sua  alma    viera  toda limpa  e branca,  e quando Deus a  recebeu,  encontrou-a decerto  tão limpa  e   branca  como lha  entregara.  Nunca,  através  da  vida,  tomou um caminho escuro ou  oblíquo: com a face levantada, como um sol,  rompia a passos direitos e sonoros: – e, se  topava com um desses muros que  constantemente se erguem nas estradas humanas, ou o  demolia ou retrocedia,  mas nunca condescendeu no ladear com astúcia, mesmo  quando para além  reluzisse o tesouro que a sua ideia ou o seu sentimento apeteciam.  Antero foi  um caráter heroicamente Integro. E não se necessitava, para lho reconhecer,  uma  longa  e penetrante  intimidade:  –  a  sua lealdade magnífica  resplandecia  toda nos  seus olhos claros, como uma luz santa às portas de um sacrário. O  granito,  o cristal,    tudo o que é límpido,  tudo o que é sólido,  eram menos  límpidos e sólidos que a  sua    amizade  Apesar de algum ceticismo  e muita  ironia, tropeçou simplesmente  em grossos    enganos, porque o espírito  translúcido não previa,  nunca  se lembrava  do dolo e da    falsidade.  Naquele  erudito pessimista  houve sempre um  inocente.  A  justiça  era  nele    ingênita.  Assim era a verdade.

Que dizer da  sua  bondade?  Por um  constante  aperfeiçoamento, ela  chegou,  nos   últimos  tempos, a  ser perfeita.  Mas já  na  idade ligeira  e romanesca de  Coimbra era  imensa – e se manifestava por uma alegria magnânima. O «claro  riso dos  heróis», que    Michelet  raramente  encontrou na  História  e que o  arrebatava, foi o riso de Antero. Riso  generoso do ser que ama todos os seres,  e que, pelo menos dentro desse amor, acha que  o mundo é ótimo, e se sente  soberbamente otimista e doce. Ele teve a caridade nos  anos em que, por se  não conhecerem  ainda  as misérias do coração e do mundo,  nunca se    é  caridoso:  –  e nele foi  natural  e simples, não como a  da  juventude  neo-evangélica  (que,    agora,  por  Paris  e Londres,  languidamente  ensina  o Bem),  sugada,  ou antes  decorada,  na    «Vida  de  S. Francisco de Assis».  Nessas  mesmas pugnas, nessas derrocações de  Bastilhas em que parecia feroz, a sua  bondade andava  toda  inquieta  enquanto a  sua    cólera  trabalhava.  Como  o  sagitário antigo,  apenas despedia  do grande arco a  grande   frecha,  atirava  largamente um  passo  para  diante –  mas era  já  com  o  desejo  de ir  curar  a  ferida  que o seu  dardo rasgara.  Quando,  depois  do encerramento tão  bruto  das   Conferências do  Casino,  ele esmagou  o considerável  marquês de Ávila  sob aquela  «Carta» de tão alegre, picante e patrício desdém, soube, por um  amigo,  que o pobre  marquês  se  magoara até se lhe umedecerem os olhos  com uma acerada alusão à origem  do seu nome de Ávila. Antero angustiado, com os olhos também úmidos, correu à  «Revolução de Setembro» a gritar  «errei! errei!», e a imprimir uma retratação apiedada  que consolasse o velho...  

Toda esta alma de santo morava, para tornar o homem mais estranhamente  cativante, num corpo de Alcides. Antero foi, na sua juventude, um magnífico  varão.  Airoso e leve, marchava léguas, em rijas caminhadas que se alongavam  até à mata do  Buçaco: com a mão seca e fina, de velha raça, levantava pesos  que me faziam gemer  a    mim,  ranger todo, só de o contemplar na  façanha:  jogando o sabre para se adestrar, tinha  ímpetos de Roldão, os amigos rolavam  pelas escadas,  perante o seu imenso  sabre de pau,    como mouros  desbaratados:  –  e  em brigas que fossem  justas o  seu  murro  era  triunfal.  Conservou mesmo até à idade filosófica este murro fácil: e ainda recordo uma  noite na    Rua  do Ouro,  em que um  homem carrancudo,  barbudo,  alto  e  rústico como um    campanário,  o pisou, brutalmente,  e passou, em brutal  silêncio...  O  murro  de Antero  foi    tão vivo e certo,  que  teve de apanhar o  imenso homem do lajedo em que rolara, de lhe  limpar a lama da rabona, e de  o amparar até uma  botica,  onde  lhe  comprou arnica,  o   consolou,  citando  Golias e outros gigantes vencidos. No Garrano, nas Camelas, um  prato com  três dúzias de sardinhas e uma canada do «tinto» não o assustavam, nem lhe  pesavam. Pelo contrário! Depois, em face da Lua, na Ponte ou pelo Choupal,  as suas  cabriolas pelos céus da metafísica eram mais fulgentes e destras.  
  
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Já porém, no meio destas qualidades esplêndidas que lhe garantiam uma vida  forte, e superiormente feliz, existia um fermento de dor. Bem se descobre ele  em alguns    dos  sonetos  desses anos,  que são (como  todos os  seus sonetos)  sublimes  notas  postas  à    margem de uma  alma  que se interroga,  Já  então  o  ditoso Antero, tão prodigamente  dotado por Deus, se considerava um filho  abandonado de Deus: já  o mundo lhe  parece    perder  a  cor,  e ele próprio  a  perde também, devendo para sempre ficar pálido e triste: e  a beleza que então  lhe aparece  não  a  goza  plenamente,  porque  ela  lhe lembra  outra,  transcendente e de  mais  puros  gozos. O  seu  presente  é uma  atormentada  aspiração ao   futuro–mas o  que é  o futuro,  senão  sombra  movediça e  mentirosa? Ele,  tão  seguido, tão   amado,  erguido  como chefe por  uma  juventude  feita  à  sua  imagem,  já  se  sente  solitário    entre turbas vãs:  e os  braços, que a sorte lhe deu tão fortes e movidos por uma alma tão  alta, já se  prepara para os cruzar com melancolia.

Todavia, em volta dele, esse era o tempo de um otimismo universal. Nas duas.  grandes nações pensantes, que o inspiravam, triunfava o otimismo – lírico em  França,  filosófico na Alemanha, mas em ambas rosado e risonho. Todos os  hegelianistas    prussianos eram, creio eu,  otimistas: –  e Pelletan, para  cá  do  Reno,  convidava  o   homem,  tornado onisciente  e onipotente pelo  progresso, a afirmar soberbamente, e  cantando, a sua realeza sobre os Céus.  Decerto já existiam desiludidos: mas era ainda o  antigo desiludido do século  XVIII, o Candide, depois de reconhecer que no mundo a  melhor ocupação, a  única  que não resulta  em logro,  consiste em plantar quietas saladas    num  murado e  frondoso  quintal.  Ainda  então  não safra  da  sua  hospedaria  de  Frankfurt o   bom Schopenhauer,  bem penteado,  de calças cor  de flor  de  alecrim, para tirar das mãos  de Candide a enxada e o regador, e lhe provar  que a sabedoria realmente consiste em  entrar num convento de trapistas, ou,  como um yoghi hindu, em jazer rigidamente sob a  mangueira de Lovelane,  meditando a inanidade e o mal das coisas. Ninguém então, do  Reno para cá,  lera ainda Schopenhauer. E um no seu quarto de Frankfurt,  metodicamente,  tomando o seu chocolate, outro em Coimbra, atormentadamente,  porque é  poeta e meridional, chegando ao mesmo resumo, num raciocinado, no outro  soluçado:   

 Que sempre o mal pior é ter nascido! 

 Daqui provinham certos modos de Antero ainda então inexplicáveis – dias de  tristeza e esparsa cólera, um querer e não querer entrechocados, entusiasmos  que logo    escarnecia,  bocados de vida  que  deixava  sumir em  fumo,  e esses  apetites de solidão,  esses períodos de trapismo artificial em que desaparecia,  se  embrenhava  sozinho pelas   espessuras do Buçaco.  O  espírito de  sociabilidade, é certo, sempre nele triunfava; e  também essa alegria, de raízes  vivazes,  subsistente  sob  as  névoas  do mais denso    desalento,  e  que mesmo  depois,  nos  piores  dias,  reaparecia  –  apenas ele se encontrasse    entre  camaradas de espírito congênere, e crepitasse o lume das controvérsias. Mas,  já    nesse  tempo de Coimbra,  Antero,  por momentos,  perante  a  face mais  florida de juventude e  saúde, pensava na caveira.

Pessimismo, sobretudo nos seus começos, não vai sem inação; – e a inação é  verdadeiramente a sua primeira e ligeira forma. Se tudo no mundo conduz a  desilusão e  poeira – como se podem considerar, sem riso e sem compaixão,  esses rijos esforços que  cuidam revolver mundos, quando estão meramente  remexendo fumo? Daí,  essas   indiferenças,  desprendimentos,  bruscas  desistências da energia, que, da parte de Antero,  surpreendiam e contristavam  os seus amigos. Durante a grande Questão Coimbrã,  quando mais ressoante  rolava a  briga contra  a  Tróia  literária  de Castilho, ele,  o nosso    invencível  Aquiles  –um  dia  desaparece...  Era  um  abandono,  pactuara  o  herói  secretamente com Príamo? Assim  o  pensaram  os Acaios  fanáticos. Não! Fugira para a  Figueira, com saudades da solidão e do mar. Que importância  podia ter essa rixa de  literaturas e vaidades para quem, desde os dezoito anos  e dos primeiros versos, viera  sempre desdenhando alegremente a superstição  da glória e das letras? De resto todo o  esforço em Antero era acompanhado  pelo sentimento secreto e divertido da sua  inanidade; – e a ironia nele andava  sempre ao lado  da  ação,  soltando o seu assobio    malicioso.  Para  quê,  meus  amigos? tudo é fumo e em fumo se espalha!..  Esta universal  desilusão, este  escuro e mudo Nada para onde correm, como para um mar, todos os  desejos  humanos,  não era  todavia  afirmada  por Antero  com amargura –  antes com  uma    resignação  risonha.  «O Amor  e o Bem (ensina  ele então,  ou parece  ensinar) não se  realizam nesta vida contingente e escrava, e só na outra, na  absoluta, quando o espírito  atinja perfeição e liberdade..  No entanto, amigos,  vamos aceitando as aparências   imperfeitas  deste mundo onde  há  bosques,  roseiras, artes delicadas, e as mulheres  entreabrem amorosamente a sua porta,  e um curto heroísmo por vezes enobrece as  cidades, e até se pode colher um  fugitivo gozo com um cesto de laranjas e uma guitarra,  de tarde, num barco,  por este Mondego  acima.. »  Assim este homem,  em cuja  alma  iam  enegrecendo as nuvens  de uma  áspera  tormenta  intelectual,  era  ainda para  todos,  nesses   tempos de Coimbra,  «da  encantada  e fantástica  Coimbra» de  então,  um  viçoso    camarada,  cheio de exuberância  e fantasia, apaixonado e  luminoso, nobre e amigo dos  homens, embebendo os olhos francos na beleza  das coisas, e tumultuosamente  esperando que da revolução e da filosofia altos  bens viessem à Terra. Do negro  fermento de desilusão e dor, que ele trazia já dentro da alma, só conheciam alguns  amigos, a quem ele lia os seus sonetos  confessionais,  e que ficavam  espantados    escutando a  confissão,  e  contemplando o homem que a confessava. Desse poeta de face  ardente e veia  rutilante, todo idealização, todo paixão, metafísico e batalhador, bem se  podia  esperar uma epopeia, o apostolado de uma religião, longas aventuras sonoras  –  nunca a passiva dor de um budista aspirando palidamente ao Não-Ser.   E a sua vida, com efeito, desde que saiu dessa «encantada e quase fantástica   Coimbra», foi toda de movimento e de força. Antero anda então ansiosamente  procurando um emprego para a sua grande alma. Viaja pela Europa Ocidental,  ou antes  passeia através dela os seus sonhos de liberdade e de justiça, para  encontrar algures um  mundo que lhes seja congênere e onde os possa plantar  e cultivar com magnificência.    Atravessa  o Atlântico,  por puro desejo  de  espaço e liberdade,  num  pequeno yacht;  e    durante  semanas  de tormenta  trabalha  descalço  na  manobra,  ou,  metido  no  seu beliche,    que  as ondas  alagam, embrulhado num oleado,  relê  o «D. Quixote»,  com um interesse  e  uma  paixão renovadas,  talvez  por  sentir que nessa grande história  da  Ilusão  está lendo a  sua história. Percorre a costa da América, até à Nova Escócia; e  aí, um domingo, tem  uma visão que nunca esquece, a de uma cidade puritana  (Halifax ou Lunenberg),   silenciosa, como  adormecida  no  Senhor,  toda  de  tijolo cor-de-rosa  sob  um  céu cor  de    pérola, com  fundas avenidas  mais  pensativas que as dos Elísios, onde os namorados  passeiam, numa mudez de  sombras,  de dedos enlaçados,  de pálpebras baixas,  respirando   sem outro  desejo a flor da sua emoção. Quantas vezes Antero me contava dessa piedosa  e suave cidade,  e do longo apetite que  ela  repentinamente  lhe dera  de  quietação eterna!    Ao cabo dos  grossos mares atlânticos,  Deus talvez lha  mostrou como um prenúncio do  seu destino: uma grande tormenta, depois  um grande descanso – e um descanso a que  Deus não era alheio.

Enfim Antero volta a Lisboa, encontra o Cenáculo, Encontra o nosso querido  e  absurdo Cenáculo instalado na Travessa do Guarda-Mor, rente a um quarto  onde    habitavam dois cônegos,  e sobre uma loja  em que se  agasalhavam,  como no curral de  Belém, uma vaca e um burrinho. Entre essas testemunhas  do Evangelho e  esses    dignitários da  Igreja,  rugia  e  flamejava  a  nossa escandalosa fornalha de revolução, de  metafísica, de satanismo, de anarquia,  de boémia  feroz.  J.  Batalha  Reis era  o dono do   aposento  temeroso,  e Via  Láctea, galego ilustre, o seu servo. Via Láctea dormia  pendurado, como um  paio, da chaminé da cozinha. As suas ocupações não consistiam  em escovar  ou varrer.  A Via  Láctea  fora confiada a  missão transcendente de  espreitar a  passagem da  Ideia  ao longo do rio  do Espírito,  para  nos avisar,  e nós  corrermos  e a    prendermos  na  rede rutilante do Verbo. Durante  dois  anos,  cada dia, a  horas de  sol  e  a    horas  de treva,  empurramos  nós  com fragor  a  porta da cozinha, e berramos em ânsia:  «Via Láctea! Via Láctea! viste enfim a  Ideia Pura boiando na corrente espiritual?...» E  durante dois anos Via Láctea,  de dentro da  chaminé ou de sobre a  tampa  de um  caixote,    imutavelmente   rosnou com  uma  dignidade  triste:  Num bi  nada.  Aí  Antero apareceu   numa  fria manhã – e foi aclamado. Naquela viela de Lisboa ressuscitou então, por  um  momento, a «encantada e quase fantástica Coimbra» de que ele sempre  conservara  uma    saudade romântica. Antero,  porém, que desembarcara  em  Lisboa, como um apóstolo do  socialismo, a trazer a palavra aos gentílicos, em  breve nos converteu a uma vida mais  alta e fecunda. Nós fôramos até aí no  Cenáculo  uns  quatro  ou cinco demônios,  cheios  de   incoerência  e de  turbulência, fazendo um tal alarido lírico-filosófico que por vezes, de  noite, os  dois cônegos  estremunhados rompiam a  berrar,  o burro  por baixo zurrava  desoladamente,  e no céu, sobre os  telhados vizinhos, a  Lua  parava,  enfiada.  Mas toda a  nossa alma se ia nesse alarido, e o vento vão da boêmia a levava,  para  onde  leva  as   almas  descuidadas e as folhas  de louro secas..   Sob a  influência de Antero logo dois de  nós, que andávamos a compor uma ópera  bufa, contendo um novo sistema  do Universo,    abandonamos  essa  obra  de  escandaloso  delírio –  e começamos  à  noite a  estudar   Proudhon,  nos três  tomos da «Justiça e a Revolução na Igreja», quietos à banca, com os  pés em  capachos,  como  bons estudantes.  Via  Láctea  começou a  varrer. E  do  Cenáculo,    donde,  antes da  vinda  de Antero  (que foi  como  a  vinda  do rei  Artur à  confusa  terra  de    Gales),  nada  poderia  ter nascido além de chalaça,  versos satânicos, noitadas curtidas a  vinho de Torres, e farrapos de filosofia  fácil,  nasceram,  mirable dictu,  as Conferências   do Casino,  aurora  de um  mundo novo, mundo puro e novo que depois, ó dor, creio que  envelheceu e  apodreceu.. 

De resto o Cenáculo estava nas vésperas de se dispersar – porque a cada um  de   nós,  bruscamente (nessa  mesma  esquina  da  Travessa  do Guarda-Mor)  aparecera a Vida,  enrugada, de dedo ameaçador, a avisar que ela não é musa  ou ninfa  que se  trate  com   ligeireza,  indiferença, e cantando.  Assim aquele  cavaleiro que uma noite em Paris, no  Pont-Neuf, surgiu perante o senhor D.  Gil, do solar de Vouzela, lhe deteve os passos que  corriam ao pecado e lhe  gritou brandindo a lança: – «Homem, para trás, para o Senhor!»  Nós vimos a  lança; e saudosamente  entre  nós murmuramos:  –  «Irmãos,  não mais  cavalgadas sobre o dorso macio da quimera, é tempo de irmos a concursos..  

Fomos a  concursos.  Antero,  esse,  encontrara  Oliveira  Martins,  que era  um  pensador, e José Fontana, que era um agita. dor; e ardentemente penetrara no  Movimento  Socialista,  então iniciado em  Lisboa  com os fervores e os  segredos poéticos    de uma  religião.  Simultaneamente propagava  a  união  ibérica,  fundava  sociedades   operárias,  instalava a  Associação Internacional,  lançava panfletos, conspirava,  apostolava..  Era, como ele dizia, «um pequeno  Lassale».  E,  como Lassale,  já  invadido   por um  vago mal-estar,  no  meio da  popularidade que o começava a cercar – e a sufocar.

Eu não fui testemunha  dessa  sua  vida  militante.  pelo meu turno  partira,  a  percorrer   os  mundos  deste  mundo,  dos velhíssimos aos novíssimos, da  magoada Jerusalém à  estridente Chicago. Longe, porém, soube que Antero se  afastara  inesperadamente  da    atividade  revolucionária.  Porquê?  Abalara  ele,  como durante as grossas guerras  coimbrãs, para a Figueira, com saudades dos  areais  e  do mar?  Não –  harmonizara    simplesmente  a  sua  conduta  e  a  sua  natureza. O elemento natural do espírito de Antero  era a abstração filosófica,  e só  dentro  dela  respirava  e vivia  plenamente.  Além disso,    descendente  de  uma  muito  velha  família,  já  ilustre na  corte,  de Afonso V,  ele nunca  se   desembaraçara de certas hereditariedades de raça e de casta, e conservava, sob  a  sua    vasta  humanidade, um  não sei quê de antiquado e de estreitamente  fidalgo. Enfim, era  um superfino artista. . Como direi? O artista, o fidalgo, o  filósofo,  que em Antero    coexistiam, não se  entenderam bem com a  plebe  operária.  Sempre sincero,  lavou as suas   mãos,  e proclamou que só  os  Proletários  eram competentes para  exprimir o pensamento   e reivindicar o  direito  dos  Proletários.  E amando ainda  os homens,  mas desistindo de os  conduzir a Canaã, subiu com passos desafogados para a sua alta torre bem-amada, a  torre da metafísica.

Quando,  volvidos dois  ou três anos,  regressei  a  Lisboa,  encontrei o meu  amigo   estirado numa  cama,  no quarto mais  remoto  de uma  casa  remota,  quase  numa  trapeira,    para  que não lhe  chegassem os  ruídos  da  cidade,  morbidamente intoleráveis à sua  super-sensibilidade nervosa. Ali, em solidão e  imobilidade, Antero estava travando com  o seu pensamento uma luta, de que  os  Sonetos, de 1874  a  1880,  são a  notação magnífica    e dolorosa.  E o seu  pensamento em breve o arrastara  a  um  pessimismo negro,  repassado   de desespero.  A certeza  de morrer levara  Antero  a  indagar mais fundamente  a  razão de  viver: – e, por mais que aprofundasse a existência, ela só lhe aparecia  como uma  tortura    gratuita,  confusa, inútil.  Pedia  ele então à  inteligência  a  explicação da existência. E a  sua inteligência, como ele depois contava, toda  penetrada do naturalismo, que era a  atmosfera onde se desenvolvera, só lhe  oferecia a solução naturalista – só lhe podia  afirmar que a vida, na sua forma  empírica,  é a  luta obscura  de forças obscuras.  E na  sua    forma filosófica  e  intelectual?  Apenas a  contemplação egoísta  dessas lutas  instintivas.    Não  há  pois senão vácuo, confusão e inutilidade universais! É certo que rompe através  da  neve estéril,  revelando as fecundidades  subjacentes da  terra,  surge por  vezes do  fundo da consciência e espalha por toda ela o seu perfume tímido...  Mas não nos    prendamos  já  a  essa  falsa  esperança,  porque a  flor murchará,  apenas entreaberta, e o seu  perfume  no vácuo universal será disperso!  

 A consciência e uma outra ilusão, uma modalidade efêmera, pois que nada de  eterno se pode  nela  realizar.  De que serve ter sido,  ou procurar ser,  justo e  bom? Justiça  e bondade findam no pó, infecundos como o pó. A vida é um  desolado logro.  E o   melhor  é  morrer,  pois  que nos liberta  da  miséria,  da  vergonha,  do horror da  universal    falsidade.  –  Tal  era  então  o  sombrio e  secreto  monólogo de  Antero naquele leito estreito   –  donde  ele todavia,  quando os seus amigos apareciam, sorria tão alegremente e tão  meigamente  aos seus amigos.

É que não o deixara  nunca  o espírito  consolante de sociabilidade,  e esse  adorável  bom humor que era nele como um sol imanente por trás de nuvens  transitórias,  e  ainda    essa  polidez superior,  quase  transcendente,  forma  graciosa  da  caridade,  que não lhe   consentia  alongar por  sobre a  alma  dos  outros  a  sombra  dos  fantasmas de que  a  sua    andava  povoada.  Por  mais  descido e fundo que o seu espírito jazesse, naquele «poço  úmido e morno»  de que fala num dos seus sonetos, bastava que da borda o chamasse  um voz  fraternal para  que o  seu espírito subisse,  com compostura  risonha, sem  vestígios    da  treva  inferior  donde emergia,  penetrando logo nas  alegrias e  cuidados  alheios,  e   tomando um  interesse  acariciador  pelas coisas mesmas  que,  para  ele,  na  vida,  eram mais   desinteressantes e vãs.  Muito bem me  recordo de uma noite em que subi à sua alcova  com um velho amigo dele e  meu, Carlos Mayer. Antero lá estava, estendido no seu  leito, com uma manta  por cima  dos  pés,  a  face emaciada,  e sobre ela  espalhada  aquela    sombra,  semelhante  a  um  reflexo de coisas negras,  que outrora  deu  a  Dente  a  reputação   de descer  cada noite ao  Inferno.  Pois  essa  mesma  face,  num  momento, se iluminou de  afabilidade e graça fácil. Carlos Mayer andava nessa  ocasião envolvido na ciência e  cuidados de uma grande indústria de destilação  – e a conversa rolou sobre máquinas,  processos, fermentos, salários, lucros,  milhões. Antero circulava ardentemente dentro  daquelas questões de química,  mecânica, economia, como se elas constituíssem a paixão  suprema dos seus  dias solitários. O ar do seu quarto de metafísico ficou em breve mais  cheio de  cifras, de vozes técnicas, que o de um escritório da City. Depois, talvez porque  a  esse  tempo  eu me  preocupava  com a  civilização chinesa,  deslizamos  a  conversar da  China. Carlos Mayer atacou rancorosamente o Império Florido.  

Antero, arrojando a  manta, exaltou logo o Chinês, e a sua pedagogia, e a sua  agricultura,  e a  sua  arte,  e a  sua    sociedade,  e a  solidez e pureza  das suas  instituições domésticas – com o saber miúdo e  grave de um mandarim. E não  era  só a  erudição que  surpreendia,  mas  o fogoso   interesse,  como se  o seu  pensamento habitasse  constantemente  e  só  se  comprazesse    entre a  Grande  Muralha e o mar Amarelo. E ao mesmo tempo quanta abundância  cômica,  que finura e firmeza de juízos, que dizer tão luminoso e perfeito!

Já  tarde,  ao alvorecer,  Antero chamara  o  criado estremunhado para  nos  acompanhar, quando um de nós lhe perguntou por versos. Como Antero não  compunha  versos por uma faculdade poética bem cultivada, e apenas certos  estados  da  sua  razão e   da  sua  sensibilidade cristalizavam naturalmente em  verso, era esta uma interrogação  familiar sobre a sua saúde moral. E muito  facilmente,  como  dando uma  informação    intima,  Antero tirou de entre  as  folhas de um livro um papel, e leu sem entono amargo  ou dolorido, com a  simplicidade corredia  de uma  nota  a  lápis,  aquele seu poema  que   Oliveira  Martins depois salvou da  destruição,  o  «Hino à  Manhã»,  um  dos  mais  angustiosos  lamentos  que tem escapado a  um  forte e altivo  coração de  homem. Assim  podia aquele Antero singular, durante toda uma noite, aplicar  à mecânica e à defesa  histórica da China um pensamento tão profundamente  ferido, tão arquejante ainda das  lutas tenebrosas com a Esfinge.


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Passaram anos em que não vi Antero,  instalado então em Vila  do Conde.  Sabia  que o meu amigo estava quase são, quase sereno. Mas foi uma preciosa  surpresa,  quando, ao fim dessa separação, chegando ao Porto e correndo com  Oliveira Martins a  Vila do Conde, avistei na estação um Antero gordo, róseo,  reflorido, com as lapelas do  casaco de alpaca atiradas para trás galhardamente,  e abanando na mão a grossa bengala  da Índia que em Lisboa eu lhe dera para  amparar  a  tristeza e a  fadiga. Era  uma    regressão,  quase  o antigo Antero  coimbrão, mais amadurecido, mais doce: – apenas, no  lugar da fulva grenha  flamante e romântica, alvejava  um  sereno começo  de  calva  socrática. Era  sobretudo uma ressurreição moral, à velha maneira de Lázaro, uma miraculosa  saída  do túmulo pessimista  e das sombras da  negação.  Findara  a  luta  implacável, o seu  grande coração, enfim, descansava em paz!  

Como chegara Antero a esse repouso apetecido? Escutando com uma atenção  mais  grave,  mais crente,  aquela  voz da  Consciência, que tanto tempo  desconhecera, e    que  apesar de todos  os desenganos  e  sempre    em segredo  protesta e afirma o Bem.

 Fora  atendendo reverentemente  essa. doce  voz;  e conseguindo,  por  um  desesperado esforço do pensamento, penetrar a sua significação; e refazendo,  guiado   por ela,  a  sua  educação filosófica;  e procurando depois a  sua  confirmação na  história,    nas doutrinas dos  moralistas,  nas confissões  dos  místicos,  que ele chegara  a  descobrir,  a    compreender  bem o fim último e  verdadeiro  de tudo,  não só  do homem moral,  mas de   toda  a  Natureza,  mesmo  na  sua  modalidade física. E essa  descoberta é de inefável    beleza  e  contentamento – pois que o fim de tudo é o Bem! O Universo tem por fim o  supremo Bem – o Bem é o momento final e augusto de toda a evolução do  Universo.  

 Possuía pois Antero, enfim, a «sua filosofia», essa filosofia que ele tantos anos  perseguira como deusa esquiva entre selvas duvidosas, e que fora sempre para  os  seus   amigos,  alternadamente,  motivo de esperança, de desconfiança, de  entusiasmo e de  sarcasmo. . Mas agora Antero alcançara a deusa esquiva. E a  lei moral dessa filosofia  (de que ele deu na «Revista de Portugal» um esboço  eloquente e poético) consistia em  renunciar a tudo quanto limita e escraviza o  espírito – egoísmo, paixões, vaidades,  ambições, contingências, materialidades  do mundo, – e em procurar a união do espírito,  assim libertado e limpo de  todo o pesado lodo terreno, com o seu tipo de perfeição que  usualmente se  chama «Deus». Essa união, em que a vontade limitada se dissolve na  vontade  absoluta, será tanto, mais eficaz quanto mais completa for a renúncia a tudo o  que é egoísta, particular, individual. E só pela união com o Ser perfeito, de que  essa  renúncia é instrumento e condição, se realiza o Bem, o Bem supremo,  fim verdadeiro  de    toda  a  vida,  fim  divino  a  que  tende o  Universo. Em  resumo, a lei moral do homem é o  constante aperfeiçoamento e a progressiva  santidade.

De toda a filosofia de Antero (que sou bem incompetente para interpretar) só  quero  reter esta  linha ética,  porque ela  o  explica  nesses anos  de paz e de  admirável    doçura.  A vida  de Antero  em Vila  do  Conde  era então verdadeiramente edificante –  e   constituía,  sem doutrina, um  forte ensino  moral. O velho Santo Antão no monte Colzin  não vivia um viver mais puro,  mais entregue  ao ideal,  à  perfeição,  à  Vida  Eterna,  do que   Antero  naquela  casa  de Vila  do Conde,  simplificada  até ao  cenobitismo,  e onde  por   único  adorno,  além de livros  numa estante  de pinho, havia  flores  das sebes em  púcaros  de barro. Era aquele o retiro muito nu e muito limpo (porque Antero  tinha o asseio e a  ordem rígida de uma freira velha) de quem alegremente se  despojou de tudo quanto  embaraça, atravanca a vida de cada dia, para encetar  a  alta  conquista  da  liberdade  moral.    Com  ele  viviam  as duas  meninas que  adotara,  «as suas pequenas»,  que então ensinava    e educava,  e  que,  pelos  cuidados da paternidade, o prendiam ainda ocasionalmente à  sociedade. Fora  desses cuidados ele só se ocupava com o aperfeiçoamento da sua alma,  ou,  como  diria  um  católico,  com  a  sua  «salvação». Não salvação individual  e  egoísta,    como a  dos  santos  –  mas salvação de todos,  salvação  para  todos,  penetração lenta  no   Bem próprio  para  dele fazer um  instrumento do Bem  universal.  Leituras intermináveis e   longamente  pensadas;  solilóquios  constantes de um  espírito,  que constantemente se confessa  para  constantemente se corrigir;  intensas meditações,  em que  a  sua vida  se  confundia na vida do Ser, num desejo permanente de sentir na sua consciência  de   homem  latejar a  consciência  do Universo  –  eis  o  abstrato  emprego  dos  seus nobres  dias. Outro não era o dos Solitários, nos desertos do Alto Egito,  tentando a suprema  fusão com Deus. Como regressos ao mundo donde por  virtude e mesmo por gosto se  não sequestrara, tinha as suas Visitas ao Porto,  a Oliveira Martins. Era o que ele  chamava as grandes «dissipações».

Oliveira Martins vivia então na sua linda e recolhida casa das Águas Férreas.  Se já  houve em Portugal um delicado e grave retiro de estudo e de trabalho,  sereno,  hospitaleiro, superiormente polido e culto, forte em afeições, fecundo  em obras, belo  pela consciência e pela ciência, e como espiritualizado pelas  correntes de pensamento    que nele tão livremente  circulavam,  foi esse  da  saudosa casa das Águas Férreas –  enquanto não veio bater à porta a Política,  disfarçada,  trazendo sobre a  face  torpe a    máscara  nobre do  Civismo.  A  biblioteca ficava em baixo, abrigada no silêncio propício  de vielas desertas: aí  viveu Oliveira Martins os seus dias mais doces, e escreveu os seus  livros mais  fortes, numa  regra  e  concentração  de beneditino,  cortadas  às  vezes  por  tumultuosas inspirações  de  artista,  como,  .quando ao  reviver a  «História  da  República    Romana»,  durante quarenta  horas,  sem descanso,  sustentado a  café, ele foi empurrando  com pena magnífica, através das ruas de Roma, da  Porta Carmental ao Capitólio, o  triunfo de Paulo Emílio. Antero encontrava  aí alguns dos  seus  companheiros de   Coimbra,  mais  amadurecidos,  disciplinados pelo  trabalho, cada  um  ancorado na  sua    pequena  Ítaca,  mas  conservando todos o gosto das viagens incertas pelos mares da  Fantasia. A  «encantada  e fantástica  Coimbra» de outros  tempos ressurgia,  com mais  ordem intelectual, um saber mais positivo, e uma outra consciência da vida e  da sua  seriedade. E, como em Coimbra, Antero era ainda a curiosidade e o  encanto daquelas  tertúlias, misturadas de alto critério e de belo riso, onde por  vezes toda uma metafísica,  em plena expansão, tropeçava e desabava sobre a  ponta  aguda  de um  calembour.  O    seguro renovo de saúde,  depois das  desesperanças da  doença,  sobretudo a  paz  filosófica,    tinham robustecido  a  alegria nata de Antero – e dado à sua natureza, até aí  alternadamente meiga e  violenta, uma serenidade igual e contemplativa como a luz de  um belo dia de  Outono. Aquelas indignações de insurrecto, em que outrora  constantemente  o lançavam os seus instintos de superior justiça, e certos laivos  persistentes de  radicalismo, eram agora raríssimos nele: e as misérias ou vergonhas da  política  (que em casa de Oliveira Martins, já diretor d’ A Província , repercutiam com  particular intensidade)  só causavam a  Antero uma compaixão tranquila.  Ele,  de resto,  ainda acreditava então que misérias e erros provinham do vício ou  da incompetência da  pequena casta política que, através de Lisboa, domina a  Nação – e que, no fundo do  povo, existia, latente mas intacta, uma grande  energia viva, capaz de reconstituir, sob a  direção da Virtude e da Capacidade,  a ordem na sociedade portuguesa. Mas desse  movimento reconstituidor (para  que entrevia já os chefes predestinados), Antero só  queria ser a testemunha  consolada, quando muito o filósofo tutelar. O seu espírito só se  interessava  pela essência pura das ideias; – e creio que dos seus tempos de propagandista  lhe ficara  uma  pudica  repugnância  pelo  manejo direto  dos  homens e  dos  fatos.  E  todavia ninguém como ele  possuía  o  dom melhor  para  arrastar  homens  através   de desertos –  a  força  e graça da  sedução.  Antero  nascera  pastor de almas – mas um  pastor que, infelizmente, não tolerava a grosseria e  a materialidade do rebanho.

O seu cuidado, nesse ano formoso em que tanto vivemos nas Águas Férreas,  era  construir definitivamente a «sua filosofia», que não queria desenrolar num  tratado, mas  (como ele dizia, rindo) condensar num catecismo, muito claro,  muito  simples,  todo  em   aforismos,  de quinze ou vinte páginas,  que se  encadernasse em marroquim,  se trouxesse   na  algibeira  como um  viático da  razão pura.  Rindo também,  muitas vezes se  lamentava   de não  ter três ou  quatro discípulos que iniciasse  no seu evangelho, e  que,  depois  de o  compreenderem finamente,  escrevessem por  ele as Epístolas aos Galácios  e  aos  Coríntios. Eu sempre ardentemente me ofereci para ser o seu S. Paulo,  afrontar os   gentílicos,  derramar o Verbo.  Mas Antero  receava  que,  como  artista,  eu  materializasse    as suas ideias em imagens –  imagens  floridas,  cinzeladas,  pitorescas,  e arrepiadoras   portanto  para  quem,  como ele  abominava  o pitoresco.  Creio de resto  que  Antero  não   sentia  prazer nem  utilidade em publicar o seu pensamento. Considerando o estado    mental da  sociedade portuguesa,  ele reconhecia  quanto  a  sua  doutrina  e as suas  conclusões pareceriam incompreensíveis, estranhas,  fantasmagóricas.  No seu  país, Antero  era como um exilado de um Céu distante; era quase como um  exilado no seu século.  Para que, pois, mergulhar na multidão, anunciar uma  verdade que a  todos se  afiguraria    um  sonho,  e um  sonho nem  ao menos  composto com os elementos e os pedaços de  realidade que entram sempre no  arranjo dos sonhos? Seria o pueril labor do profeta no  deserto – enquanto a  caravana bebe nos costumados poços, retrilha o costumado trilho,  e avança  para a costumada Meca, onde morre da  costumada peste. Antero era desses  que intelectualmente  antedatam,  e que,  quando  escrevem,  como dizia  Stendhal, têm de  esperar oitenta anos para serem lidos – e contestados. Por  isso preferiu permanecer   calado –  tendo por consolação entrever  «o  norte  para que se inclina a divina bússola do  espírito humano». Só mais tarde, por  um  esforço  de amizade,  para  favorecer a  «Revista    de Portugal», e também  para  entreter a  solidão espiritual  em que o deixara  a  partida  de   Oliveira  Martins, instalado em Lisboa e na Política, é que Antero esboçou rapidamente  algumas ideias, certas tendências do seu espírito, que ele considerava, e com  razão (o  neo-idealismo crescente da Literatura e da Arte, nestes últimos anos,  o prova) serem as  tendências gerais do espírito filosófico no fim do século  XIX.

Antero, com efeito, vivia muito solitário em Vila do Conde – sem mesmo a  companhia  das suas «pequenas»,  que,  agora  crescidas e necessitando  uma  educação    feminina e  doméstica,  ele colocara,  depois de  muito escolher,  de  muito  pensar,  no   convento das Doroteias.  Como regressos ao  mundo,  «grandes dissipações», somente lhe  restavam as visitas a Luís de Magalhães, à  Quinta do Mosteiro. Antero amava a farta  lavoura, a forte vida naturalista e  sã que enchiam aquela antiga vivenda de frades. Mas  sobretudo lhe era doce,  e talvez salutar,  ver,  no  meio  de vida  tão verdadeira  e livre,  Luís    de  Magalhães, robusto, exuberante, patriarcal, com aquela sua clara alma onde a  alegria    repica  de  matinas a  trindades,  arando os  seus campos e  fazendo  os  seus versos,  como   outrora  Virgílio.  Estas visitas, depois  a  sua  solidão,  e  sobretudo o motivo que a avivara,  a definitiva entrada de Oliveira Martins na  ação,  levaram Antero  a  considerar com   mais atenção,  quase  com paixão,  a  política,  os seus atos  e os  seus homens.  Sempre    intensamente  português,  nunca alheio ao que interessava a nação, era natural todavia  que a política se  tornasse para ele uma realidade mais sentida, desde que um nobre  amigo, um  irmão,  passara  das  ideias  para  os fatos,  e surgia  como um  reformador,  empurrado,  aclamado  por tantas esperanças puras e crentes.  Este novo  interesse de  Antero não veio senão desmanchar a suave paz intelectual que o  envolvia. Seguindo o  movimento do mundo político com a curiosidade com  que se  olha para  um mar onde o  barco  de um  irmão  anda a  manobrar e a  rolar – Antero foi recebendo repetidas  impressões de tédio e de desesperança.  Aquele espírito pacificado, e tão feliz quando  contemplava metafisicamente  o  Universo, porque sentia o fim soberanamente perfeito a  que ele marcha na  sua evolução – perdia a paz, perdia a felicidade, quando observava o  pequeno  Portugal,  e  este curto  momento  histórico  em que ele  se  debate  entre tanta  baixeza  e miséria moral.  É  certo que  a  sua  super-sensibilidade de artista;  de  metafísico  e de    solitário  exageravam essa  miséria  e essa  torpeza. E quando  uma  tarde,  passeando  por   Lisboa,  ele confessava  a  um  amigo,  com terror  sincero,  que em  todos aqueles homens    que se  cruzavam,  na  fria  tarde de  Inverno, distinguia nitidamente o signo fatídico da  aniquilação iminente, e a  ferocidade mal escondida  de seres esfaimados que se  vão   entre-devorar – evidentemente estava sofrendo de uma visão e não exercendo o seu  destro e  lúcido raciocínio. Assim S. Pacômio, descendo da alta Tebaida a Alexandria,  soltava  gritos  pelas ruas,  porque,  sob as túnicas moles  e bordadas daqueles  alexandrinos  votados à sensualidade e à falsa dialética, ele via claramente o pé  de bode que revela os  demônios. Mas, de resto, a visão de Antero tinha um  seguro núcleo de realidade. E pelo  exame dessa realidade, a que ele desfazia  não somente todos os fios  visíveis mas antevia    os  prolongamentos ainda  encobertos,  viera  a  descrer de Portugal,  com uma  descrença    que lhe era  angústia.  Angústia  bem contraditória  num  grande intelectual,  que sentia  o  mundo, através de todas as aparências perversas, marchar sublimemente para  o.  Bem,    supremo e  consolante momento da  evolução do Ser.  Que pode  importar uma chaga em  corpo, que, por efeito mesmo dessa chaga e da sua  decomposição,  se  está transformando   no puro  espírito,  no anjo?  Tais  contradições, porém, pululam no  misticismo,  enchem a    história dos Santos  do Deserto.

E a angústia era tanto mais pungente quanto Antero via o seu grande amigo  Oliveira Martins que se debatia, já vacilando,  no meio desse mundo por  ele  considerado   de irresgatável  torpeza.  Hércules partira para  limpar  as  cavalariças de Augias: Antero  animara, acompanhara Hércules até às portas  da escura infeção: – e agora o lodo, em  vez de diminuir sob o esforço (que se  julgara invencível) do filho forte de Zeus, parecia  crescer, cada manhã mais  espesso,  para  o imobilizar e sufocar.  Desalento amargo para    Antero  –  e repassado de cólera.  Quando eu, justamente por esse  tempo,  o convidava  a  traçar na  «Revista  de  Portugal»  um  «Quadro  da  Sociedade  Portuguesa»,  ele  recusou  asperamente, declarando que, a respeito de Portugal, só «podia rugir,  vomitar  amargores, e esses rugidos e amargores, sem o aliviar, magoariam e  contristariam   outros».  Era  ainda  aqui o homem que no  meio  da  grande  cólera, não esquece a grande  caridade.

Dentro  dessa  caridade estava  já  a  semente de uma  nova  e definitiva  pacificação.    Mas tinha  ainda  de ser fantasticamente  iludido,  de  criar outro  imenso fantasma, para o  servir com amor. É seguindo fantasmas, através do  «palácio encantado da Ilusão», que  afinal se vem a repousar deliciosamente na  paz do Senhor.  Essa  singular ilusão foi a    Liga Patriótica  do  Norte.  Ele  próprio lhe chamava «o seu derradeiro fantasma». Antero  acreditou então, e  com deslumbrado ardor, em coisas inacreditáveis – na juventude  iniciadora;  na contrição dos velhos partidos pecadores; na alma quinhentista de Portugal  ressurgindo;  no despertar de um  povo,  com a  vontade bem consciente,  e  formulada em  comícios, de ser novamente esforçado e grande!

Trazido por uma turba de estudantes, que a força de uma lenda impelia, e que  agitavam tochas e bandeiras, deixou o seu retiro de Vila do Conde. Sem ainda  saber  o  que se  pedia  à  sua  forte autoridade moral,  foi aclamado numa  assembleia  do  Porto,  onde    os  secos burgueses do tristonho burgo se  entre  tocavam o cotovelo, murmurando com  desconfiança:  –  «Quem é ele?» Era um símbolo. Na casa em que se hospedara, tremulava sobre uma varanda o  estandarte de Portugal,  anunciando,  à  velha  moda  feudal,  a    presença  do  senhor  da  terra,  defensor  das  gentes  e dos gados.  Tão simbólico  era  que  alguns mais exaltados, ou mais estéticos, estudavam a forma de uma dalmática  de doge,  toda em veludo e arminhos, com que ele devia presidir às sessões da  Liga!..   E a  Liga,   que ainda  mal nascera,  já findava  decomposta.  Tão  decomposta que dentro dela não  restava outro movimento senão o fervilhar  dos vermes partidários, Regeneradores e  Históricos. Quando se acabaram de  elaborar os estatutos, que eram o programa muito  complexo da Nova Vida, a  Liga já  não existia,  dispersa, sumida,  toda  fugida para  os   hábitos  da  Vida  Velha. Os políticos tinham recolhido aos seus centros: – a juventude  que fora  arrancar Antero à metafísica, regressara, cansada desse esforço, às banquetas e  aos bocks dos cafés  da  Praça  Nova.  Na  sessão em que se  leram os  consideráveis  estatutos só havia na vastidão dos bancos, quinze membros que  bocejavam. E numa  outra final, como ventava e chovia, só apareceram dois  membros da  Liga; o presidente, que era Antero de Quental, e  o secretário,  que era o conde de Resende. Ambos se  olharam pensativamente, deram duas  voltas à  chave da  casa  para  sempre inútil,  e   vieram, sob  o vento e sob a  chuva, acabar a sua noite em Santo Ovídio.

Assim se sumiu a Liga. E, desfeitas as formas revoltas desse estouvado sonho,  Antero  reentrou numa paz magnífica.  Nunca  com efeito,  como nessa  Primavera, quase  toda passada em Santo Ovídio, o conheci tão sereno, tão  estável  na  vida,  de uma tão   diligente e risonha sociabilidade,  movendo  o  espírito dentro de uma liberdade tão rica.  Se algum amargor lhe ficara dessa  ilusão derradeira, a que tão candidamente se abraçara  e que tão chochamente  se esvaíra, decerto a sua ironia lho adoçou ou de todo lho  dissipou. Foi talvez  mesmo um motivo para subir de novo àquelas alturas do  pensamento, donde  as coisas se avistam na sua essência e verdade intrínsecas, sem que  importem  os acidentes, as modalidades e as imperfeições transitórias. Ei-lo pois de novo  refugiado na impassibilidade subjetiva, na alva torre de marfim. O seu país, é  certo,  apodrece..  Que importa – se o universo todo, onde ele é apenas uma  mancha  esverdinhada, se move divinamente para o Bem, para a Verdade, e  para a Beleza?

A este equilíbrio de alma correspondia então nele uma verdadeira pacificação  fisiológica.  A  não  ser  por  certos cansaços, e pelo  hábito de  comer como  os faquires da  Índia uma única vez de sol a sol (o que à nossa voracidade godo-latina se afigura uma  deficiência mórbida) Antero possuía todas as facilidades  e exterioridades  da  saúde,    começando pelas rosas desabrochadas que lhe  resplandeciam em cada face. E neste  sossego de alma e de corpo, depois dos tormentos que ambos tinham atravessado,  brilhava, com uma luz mais alta e  mais visível,  a  sua  excelência  moral.  Conviver então   com Antero  foi  um  encanto e uma educação. Não conheço virtude que ele não  exercesse: e com  uma graça tão fina e fácil, que a Virtude, através dele, aparecia, não só  como a  suprema utilidade, mas como a suprema elegância da Vida. A alma de Antero,  com efeito, foi sempre superiormente elegante.

Logo os seus modos tinham uma harmonia  carinhosa,  envolvedora,  que era  melhor  que a  boa  cortesia  social,  e que não nascia  somente da  raça  e da  cultura, mas  do  nobre fundo dos  instintos,  do seu amor e alta  caridade  humana. Não  havia nele  nenhum   dogmatismo,  nem orgulho  de casta  filosófica;  e mesmo sobre  doutrinas,  e em  coisas da sua  fé, nunca usava  aquela «ponta agressiva da contradição» que todos os teólogos  concordam ser  a qualidade mais desagradável do Diabo. Era cheio de paciência, de  atenção  afável, para os  seres  mais fastidiosos,  mais  viscosos.  Todas  as manias e  preconceitos  o encontravam risonhamente misericordioso. E sem esforço, a cada instante  a sua inteligência,  acostumada às alturas,  descia  até às  familiaridades da rua,  pequeninamente simples com os simples, tão fácil que  uma criança podia brincar com  ela, semelhante a essa estrela da lenda que era um  mundo,  e que na  cabana  da  pastorinha vinha  prestar os  mais  humildes  serviços, e ser a fagulha que acendia a lenha e a luzinha  que tremelejava na  candeia. Por isso Antero cativa «toda a sorte e condições de gentes  várias»,  como  diz a  Bíblia. Vi lavradores, diplomatas,  industriais, toureiros,  meros  vadios,  voltarem da  sua  companhia  gratamente  encantados,  e cada  um  louvando nele um  dom diverso. qual o bom senso, qual o saber especial, qual  a  gentil graça, qual a  doçura.  Tacanhos beatos,  de relicário  e opa,  amavam aquele  livre  filósofo:  e mundanos,  de   estouvada  mundanidade,  viviam  no  entusiasmo daquele asceta. Isto provinha, menos da  sua ilimitada aptidão para  compreender,  que da  sua  amorável  facilidade em se   interessar:  –  e ainda  também daquela  sua  delicada  arte,  tão rara  e benéfica,  provando sempre  nobre raça e muita humanidade, a arte de «saber escutar». E não só de escutar,  mas de ajudar o pensamento dos outros a surgir dos embaraços da expressão  perra,  a lançar o seu pequenino  brilho:  –  e assim muitos  afirmavam que,  conversando com  Antero, se sentiam inesperadamente mais inventivos, mais  inteligentes... A inteligência era  a  dele,  que,  como o generoso  sol,  feito de  ouro candente, tudo doura em redor.

Era tocante como atraía as crianças. Muitas noites em Santo Ovídio, quando  junto    do fogão Antero  conversava,  sentado  no meio  de um  divã,  na  sua  atitude costumada,  com as pernas cruzadas, as duas mãos cruzadas sobre o  joelho  magro,  surpreendi   pequenos  de seis e sete anos,  que,  desviando os  olhos  de algum livro de estampas,  o   contemplavam maravilhados.  Ele possuía,  de resto,  a  subtil  ciência  de tratar com crianças,  sendo ainda  ele  próprio como uma  criança,  porque a  sua alma,  que tanto  vivera  pela  cogitação, nada  perdera  da  candidez –  e era  assim ao mesmo  tempo  muito  velha e muito  inocente.

O motivo desta incomparável sedução era a sua bondade, tão luminosa, tão  repassada de intelectualidade. Antero nesse tempo, tornado verdadeiramente  Santo   Antero, irradiava bondade.  Como naqueles  jardins  espirituais  celebrados pelos místicos,  donde se varreram todas as folhas secas, donde se  arrancaram todas as ervas más, muito  limpos e enfeitados para receber a visita  do Senhor –  na  alma  de Antero,  de que ele fora    jardineiro cuidadoso,  não  restava erva má ou folha seca, nem egoísmo, nem soberba,  nem intolerância,  nem desdém, nem cólera. Só as flores do Bem (de cuja duração e  perfume ele outrora  duvidara) floriam,  e tão  lindamente e frescamente  que  o jardineiro  agora repousava, e a cada hora de sol ou de crepúsculo o Senhor podia descer  e visitar o  seu jardim. . Quando muito, aqui, além, numa ponta de folha mais  lustrosa, corria uma  faísca de ironia.

Mas o sarcasmo, esse, inteiramente o abandonara, como arma de batalha que  se   deixa enferrujar logo que vem a bela e  doce  paz.  Também o meu santo  amigo perdera    aquela  exuberante  veia  cômica, que fazia  da  sua  conversa  como  um  seguido estalar  de foguetes,  enchendo  o céu de  festivo ruído, de  estrelas quase  verdadeiras,  de sulcos   cor  de ouro,  onde se  iam levados o   nosso pasmo e os nossos ahs! deleitados. O seu   conversar agora era calmo e  liso, desadornado de todos os brilhos intensos, de uma  elegância muito leve,  de uma  lucidez muito insinuante,  sempre  risonho,  sempre   sociável,  e tão  naturalmente harmonioso que formaria páginas de uma incomparável  prosa,  só  corri ser transcrito,  sem necessidade de lima e arte que o apurasse.  A  grande   obra  de Antero,  na  verdade,  foi a  sua  conversa.  O  que resta  em  panfletos, artigos,  ensaios, representa tão incompletamente o seu pleno, rico,  povoado, fecundo espírito,  como secas folhas de árvore entre folhas de papel  representam um  fundo bosque da    Florida.  Só os  que o escutaram, na  intimidade,  ficaram conhecendo a  prodigiosa    abundância, originalidade,  finura, profundidade e força do seu pensamento. A antiquada  comparação do  «relâmpago» iluminando  subitamente  horizontes,  campos, estradas,    casais,  toda uma  vastidão de vida  e  terra  que se  não suspeitava  sob  a  escuridão,  descreve  muito graficamente o efeito intelectual de Antero conversando. E o  encanto estava em  que todo este deslumbramento era produzido com muita  simplicidade – quase com  humildade.

Tão fortes qualidades  morais fundidas numa graça  tão  cativante,  modos tão  suaves  e amoráveis servindo uma tal energia pensante, faziam de Antero de  Quental uma personalidade magnificamente  consoladora.  No meio da  mediocridade espiritual,  e da inconsiderada  rudeza  dos costumes,  e do  materialismo argentário,  os  espíritos delicados    encontravam na  sua  intimidade, e mesmo na sua fugidia convivência, um repouso  semelhante ao  que o corpo cansado e pisado do calor, do pó. dos encontrões de uma  feira  de gado, recebe ao penetrar na frescura e na elevação de um templo.

Antero possuía uma alma onde, na meiga e intraduzível expressão de França –  il  faisait très-bon. Por isso todos os intelectuais, que uma vez o encontrassem,  lhe  conservavam para sempre um sentimento que era misturado de amor e  não   dissemelhança  da  devoção.  E tínhamos  ainda  nele um  confortante  orgulho,  pois bem   sentíamos que esse  homem tão  simples,  com uma  má  quinzena  de alpaca  no Verão,  um    paletó  cor de mel no Inverno,  vivendo  como um  pobre voluntário num casebre de vila    pobre,  sem posição nem  fama, sempre ignorado pelo Estado, nunca invocado pelas  multidões, era o  elo rijo,  o mais  rijo elo de fino ouro,  que prendia  Portugal ao mundo do  pensamento.  Ora  uma  nação só vive porque pensa  –  e pelo que pensa.  Cogitat,  ergo  est.    Naquele  humilde, pois,.  que  se  comprazia  entre os  humildes, estava a mais larga e mais  rica soma da verdadeira vida de Portugal.  

Como aquela noite de Coimbra em que o conheci, era também de Primavera e  de   luar a  noite derradeira  que passamos  juntos  em Santo Ovídio.  De tarde  andáramos  por    sob os  nobres e  seculares  arvoredos  da  quinta.  Depois  ele  descansou no meu quarto,  estendido na cama, com o seu cigarro, como nos  tempos escolásticos. Pela varanda,  orlada de glicínias, aberta sobre os jardins,  entrava  frescura,  paz,  o murmúrio dos  repuxos dormentes, todo o aroma  esparso das rosas de  Maio.  Antero amava  aquela  velha    vivenda patrícia,  refúgio  excelente para  um  erudito,  ou para  um  magoado da  vida  que  procurasse um ermo ainda florido e onde a severidade fosse risonha. E assim  viemos a  conversar desta materialidade dos tempos, e estridor das cidades, e  exageração da  atividade cerebral, e aspereza das democracias, que começam a  empurrar tantos  seres   sensíveis ou mais imaginativos  para  a  quietação  religiosa  e para  o Deserto moral.    Antero pensava  que uma  forte reação  espiritualista e afetiva se seguiria à  materialidade deste duro século utilitário e  mercenário; – e, rindo, relembrou a sua  antiga ideia, a fundação da Ordem   dos Mateiros.  Estes monges do idealismo  teriam por    missão o reconstituir,  em toda a  sua  beleza  e dignidade primitivas,  a  vida rural,  a  mais    elevada,  porque imolando toda a civilização sumptuária, e portanto todos os apetites, e  paixões,  necessidades  falsas que dela  derivam, e reclamando apenas o seu  bocado de   terra,  o seu bocado  de pão, conquista  socialmente a  verdadeira  liberdade,  e através  dela    se  prepara  a  atingir espiritualmente a  verdadeira  perfeição.  Mas não era  esta  a  obra   melhor  dos  Mateiros. Toda  essa  reorganização do mundo, na forma de quietos e  fecundos hortos, servia de  base a uma alta renovação religiosa. Qual? Antero tendia  para uma mistura do  platonismo e do budismo. Eu preferia que os Mateiros, retomando  a grande  obra de cultura que fez a conversão do cristianismo católico em cristianismo  histórico, a adiantassem, deslocassem o cristianismo da região da história para  a região  da psicologia, removessem toda a aluvião eclesiástica e teológica, e  descobrissem,    revelassem o ponto verdadeiramente  divino –  o estado da  consciência de Cristo. . Tudo  isto ocorria muito familiarmente, sem pompas  exegéticas  ou filosóficas;  e terminamos   mesmo  por  escorregar da  filosofia  para a fantasia, organizando a Ordem, os seus estatutos, a sua disciplina, o seu  traje,  o  seu cerimonial.  Toda  a  dificuldade foi  que,  para  esta    adorável  reconstrução da terra e da humanidade, repercorrendo os nossos amigos, só  encontramos três  Mateiros sérios.  E  eu próprio, tão delicado,  reclamava  já confortos,  regalias estéticas, e uma poltrona no Deserto. Depois apareceu o  conde de Resende, que  imediatamente pediu o hábito e a enxada, e ofereceu,  para se erguer o primeiro  mosteiro, uma das suas terras, Canelas ou Resende.

A velha quinta  de Resende  parecia  a    Antero  excelente,  quase  fatídica  para  uma obra de conquista espiritual – pois sob os  seus históricos arvoredos fora  educado Afonso Henriques,  de entre  eles saíra  a  velar as   armas na  Sé de  Zamora,  e,  depois, cavaleiro  cristão,  a  bater o  Moiro,  e a  fundar  o reino  cristão. Aceitamos a quinta com apostólico fervor. Mas o senhor de Resende  teve  exigências tão epicuristas a respeito do refeitório, que Antero, indignado,  apesar da  magnífica oferta, o expulsou logo da Ordem como tinhoso, servo  irremediável da  carne... Assim riamos, brincando com os problemas, entre o  aroma das rosas naquela  noite de Maio.

Já  tarde acompanhei Antero  à  casa  que ele habitava  na  Rua  de  Cedofeita. Conversamos sobre os seus planos  – porque agora as «pequenas», crescidas, iam sair  das Doroteias, e para as instalar no mundo, devia ele repenetrar no  mundo.  Pensava  pois em  voltar  à  sua  ilha,  a  S. Miguel,  como  sendo um  mundo mais sereno,  mais puro,  mais fácil.  Lisboa,  para  Antero,  era  uma Nínive revolta e sórdida. Diante da sua porta aberta  ainda nos retardamos em  pensamentos ligeiros da vida e da sorte. Por fim: – «Adeus,  Santo Antero!» –  «Velho amigo, adeus!» Ele mergulhou lentamente na sombra do  corredor. . E  não o vi mais, nunca mais!

 Foi para  S.  Miguel,  para  o seu mundo mais  doce,  mais  fácil...  Depois uma  tarde,  como aquele filósofo Demónax, de quem conta Luciano, «concluindo  que a  vida  lhe não convinha,  saiu dela  voluntariamente,  e  por  isso  muito  deixou que pensar e murmurar aos   homens  de toda  a  Grécia».  O  que dele  pensam os  homens  da  nossa  Grécia, não o sei –  pois que de há  muito  na  nossa Grécia  uma  apagada  tristeza  traz os  homens  desatentos  e mudos. É  morta,  é morta a  abelha  que fazia  o mel e a  cera!  Quem se  nutre ainda do gostoso  mel? Quem se  ilumina  com a  pura  cera? Por  mim penso,  e com  gratidão, que em  Antero de Quental, me foi dado conhecer, neste mundo de  pecado e de escuridade,  alguém, filho querido de Deus, que muito padeceu  porque muito pensou, que muito  amou porque muito compreendeu, e que,  simples entre os simples, pondo a sua vasta  alma em curtos versos – era um  Gênio e era um Santo.

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Nota:Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902  

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