UM GÊNIO QUE ERA UM SANTO
Em Coimbra, uma
noite, noite macia de Abril ou Maio,. atravessando lentamente
com as minhas sebentas na algibeira
o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que
nesses tempos ainda era romântica,
um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e
loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais
escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço
inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver.
A capa, apenas presa por uma ponta, rojava por trás, largamente, negra nas lajes
brancas, em pregas de imagem. E, sentados
nos degraus da igreja, outros
homens, embuçados, sombras imóveis sobre
as cantarias claras, escutavam, em
silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão
que não era aquele um repentista picaresco ou
amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII – mas um bardo, um
bardo dos tempos novos,
despertando almas, anunciando
verdades. O homem
com efeito cantava o
Céu, o Infinito, os mundos
que rolam carregados de
humanidades, a luz suprema habitada pela
ideia pura, e
...os transcendentes
recantos
Aonde o bom Deus se mete,
Sem fazer caso dos Santos
A conversar com Garrett!
Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada,
que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
– É o Antero!. .
Deus conversava com Garrett.
Depois, se bem me lembro, conversava com Platão
e com Marco Aurélio. Todo o
Céu era uma radiante academia. Os santos mais ilustres, os
Agostinhos. os Ambrósios,
os Jerônimos, permaneciam
fora, pelos pátios divinos,
sumidos numa névoa subalterna, como plebe imprópria a penetrar no concilio
dos filósofos e dos poetas. Mas o escravo
Epiteto aparecia, ainda coberto
das cicatrizes do látego
e dos ferros – e Deus estendia ao
escravo Epiteto a sua vasta mão direita, donde
se esfarelava o barro com que ele
fabrica os astros...
Epiteto, meu amigo,
Quero ouvir o teu ditame
E aconselhar-me contigo...
Então, perante este Céu onde os escravos eram
mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me
sentei num degrau, quase aos pés de
Antero que improvisava, a escutar, num
enlevo, como um discípulo. E para sempre
assim me conservei na vida.
Intimidade,
porém, com aquele que eu
depois chamava «Santo Antero», só verdadeiramente
começou na manhã em que o visitei, com muita curiosidade e muita
timidez, na sua casa do Largo de São João. Era o hereditário quarto da velha Coimbra, com as portas rudemente besuntadas de azul, o
teto alto de madeira fusca, e a cal
das paredes riscada por todas as cabeças
de lumes-prontos que em cinquenta anos ali se
tinham raspado, com
preguiça, para acender a torcida de azeite, à hora triste em
que toca a «cabra». A um canto um leito de ferro, num alinho rígido. Diante
da janela a banca de Coimbra dos meus tempos, tábua de pinho sobre quatro
pés toscos, onde uma Bíblia, um
Virgílio, o caderno de papel, o maço de cigarros, pousavam numa ordem curta e
árida. E no meio desta quietação das coisas, e de todo o azul e todo o ouro
da manhã de Maio
que entravam pelas janelas,
Antero, batendo com grossos sapatos o
soalho mal aplainado, parecia um leão,
cheio de desordem interior e de sanha. O
«olá!» que me atirou foi perfeitamente
rugido. Que dor ou que afronta lhe
eriçavam assim a juba loura? Abrira um
gavetão, e tirava de dentro cartas, papéis,
ferozmente, como se arrancasse
entranhas. Num arremesso empurrou para a mesa uma pobre
cadeira caduca onde se abateu com amargura – e começou então a destruir as
cartas e os papéis de um modo estranho,
que me maravilhou. Dobrava cada folha ao meio, esmeradamente: depois,
violento e certeiro, ainda a
dobrava em quarto; depois com uma atenção sombria, ainda a dobrava em oitavo. Sob a unha raivosa
achatava as dobras:
– e, empunhando uma faca
como um ferro de vingança
e morte, cortava os papéis finamente, fazendo com dois golpes pequenos maços bem enquadrados, que ia amontoando numa resma
nítida e fofa. E todo este lento, paciente trabalho de precisão e simetria, o
continuava com um modo revolto e trágico.
Fascinado, surdi do vão da
janela onde me refugiara, e parando a borda da mesa:
– Oh Antero, quanta ordem você
tem na destruição!
Ele dardejou sobre mim dois
olhares devoradores. Depois considerou, ainda enrugado, a pilha acertada dos papéis
cortados, e um sorriso, aquele sorriso de Antero
que era como um sol nascente, iluminou, fez toda clara e rósea a sua boa face onde
havia um não sei quê de filósofo de Alexandria e de piloto do Báltico:
– O ritmo – murmurou – é
necessário mesmo no delírio.
E com efeito, naquela alma
estética, sempre as angústias mais desordenadas se moldaram em formas perfeitas.
****
Foi isto, creio eu, em 1862 ou
1863. Antero já publicara a «Beatrice», talvez
mesmo o «Fiat Lux»; – e todos
conheciam, ainda manuscritas, as «Odes Modernas». Nesse tempo ele era em Coimbra, e nos
domínios da inteligência, o Príncipe
da Juventude. E com razão – porque
ninguém resumia com mais brilho os
defeitos e as qualidades daquela,
geração, rebelde a todo o ensino tradicional, e que penetrava no mundo do pensamento com audácia, inventividade, fumegante imaginação, amorosa
fé, impaciência de todo o método, e uma
energia arquejante que a cada encruzilhada
cansava.
Coimbra vivia
então numa grande atividade, ou
antes num grande tumulto mental. Pelos
caminhos de ferro, que tinham
aberto a
Península, rompiam cada dia,
descendo da França e da Alemanha (através da França) torrentes de coisas novas, ideias, sistemas,
estéticas, formas, sentimentos,
interesses humanitários... Cada manhã
trazia a sua revelação,
como um Sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel, e
Vico, e Proudhon; e Hugo tornado profeta e justiceiro dos reis; e Balzac, com o
seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o Universo; e Por, e
Heine, e creio já que Darwin, e quantos outros! Naquela geração nervosa,
sensível e pálida como a de Musset (por
ter sido talvez como essa concebida durante as guerras civis) todas estas maravilhas
caíam à maneira de achas numa fogueira, fazendo
uma vasta crepitação e uma vasta
fumaraça! E ao mesmo tempo
nos chegavam, por cima
dos Pirenéus moralmente arrasados, largos
entusiasmos europeus que logo adotávamos
como nossos e próprios, o culto
de Garibaldi e da Itália redimida,
a violenta compaixão da
Polônia. retalhada, o
amor à Irlanda, a verde Erin,
a esmeralda céltica, mãe
dos santos e dos bardos.
pisada pelo Saxônio!...
Nesse mundo novo que o Norte nos
arremessava aos pacotes, fazíamos por vezes achados
bem singulares: – e ainda
recordo o meu deslumbramento quando
descobri esta imensa novidade
– a Bíblia! Mas a
nossa descoberta suprema
foi a da
Humanidade. Coimbra de repente teve a visão
e a consciência adorável
da Humanidade. Que encanto
e que orgulho! Começamos
logo a
amar a Humanidade, como
há pouco, no ultra- romantismo, se
amara Elvira, vestida de cassa branca
ao luar. Por todos os botequins de
Coimbra não se celebrou mais
senão essa rainha de força
e graça, a Humanidade. E como num meridional de vinte anos, lírico de
raiz, todo o amor se
exala em canto – não
houve moço que não planeasse um grande poema cíclico para imortalizar a Humanidade. O do meu vizinho era a «Lira» –
uma desmedida lira de ouro enchendo os espaços,
e cada corda encarnando uma
idade humana, onde os imensos
dedos de Deus, alternadamente,
desferiam sons de glória e sons de martírio. Do meu poema não recordo
nem o tema nem o título, e apenas que deveria abrir por uma tremenda invocação à Índia, aos Árias, à sua marcha sublime desde
Gau até Septa-Sindhu!.. Não
éramos todavia inteiramente
desregrados e vãos – porque
se o fim de toda a cultura humana
consiste em compreender a humanidade,
já é um louvável começo discorrer sobre ela
em poemas mesmo pueris. E outro bom
sinal do despertar do espírito
filosófico era a
nossa preocupação ansiosa das
origens. Conhecer os princípios das civilizações primitivas constituía então,
em Coimbra, um distintivo de superioridade e elegância
intelectual. Os Vedas, o Maabarata,
o Zendavestá, os Edas, os Niebelungen,
eram os livros sobre
que nos precipitávamos com a gula tumultuosa
da juventude que devora, aqui, além, um
trecho mais vistoso, sem ter a paciência
de se nutrir com método. Formoso tempo,
todavia, esse, em que eu,
ignorante, mas amando religiosamente a
ciência dos outros, perguntava a um camarada, com os olhos
esbugalhados de respeito e santa inveja: –
«O menino, já conheces bem a
Caldeia?» E nem por isso éramos menos alegres e fantasistas. O
nosso mote, como a
nossa vida, todo se encerrava naqueles dois belos versos:
A galope, a galope, ó Fantasia,
Plantemos uma tenda em cada
estrela!
E em cada estrela
plantávamos uma tenda, onde
dormíamos e sonhávamos um
instante, para logo a
erguer, galopar para outra
clara estrela, porque éramos
verdadeiramente, por natureza, ciganos do ideal. Mas o ideal nunca o dispensávamos, e nem as
sardinhas assadas das tias
Camelas nos saberiam bem se não lhes juntássemos, como um sal divino, migalhas de metafísica e de estética; A pândega mesmo era idealista. Ao segundo ou terceiro decilitro de carrascão rompiam os versos.
O ar de Coimbra,
de noite, andava todo fremente
de versos. Por entre os ramos dos choupos,
mal se via com a névoa das nossas
quimeras.. Outra das ocupações espirituais a que
nos entregávamos, era
interpelar Deus. Não o deixávamos
sossegar no seu adormecido
infinito. Ás horas mais inconvenientes, às três, quatro da madrugada,
sobre a Ponte Velha,
no Penedo da Saudade, berrávamos por Ele, só pelo prazer transcendente de atirar um pouco do nosso ser para as alturas, quando não fosse
senão em berros. Com
um intenso poder de idealização
revestíamos todos os entes,
os mais triviais, de beleza ou de grandeza,
de poesia ou de terror, no
desejo inconsciente de que a
realidade correspondesse ao nosso
sonho. Inventávamos gênios –
de quantas tricanas fizemos
Ofélias! Antero, ainda nos últimos anos,
se lamentava por
ter conservado este vício
imaginativo de criar
fantasmas, por nós gerados para gastar
sobre eles a abundância
do nosso entusiasmo, ou
sobre eles cevar santas indignações. O pobre Napoleão III foi
para essa nossa Coimbra um Nero,
um Anticristo: tal
escoliasta, destro em argumentar, tomava
logo as proporções augustas de
um S.
Tomás de Aquino, que nos deslumbrava:
o bom Castilho passou por um opressor das
inteligências, de cujas mãos caía a treva sobre o
mundo, e que estorvava o
caminhar dos tempos! Mas nada pinta
melhor este engano de espírito
do que a admiração, o espanto, inspirados
por certo lente
de Teologia, ainda moço, de face chupada e amarela,
a quem nós atribuíamos um patética revolta contra os dogmas, não sei que sublimidade herética, e estranhas
práticas de misticismo sensual. Era um
teólogo de costumes quietos, que lia Balmes e sofria do fígado. Pois corria pelos
cenáculos que este padre sombrio, todas as noites, colocava uma Bíblia aberta
sobre os seios nus da sua amante, e à
luz de uma tocha se repastava das amarguras
do «Eclesiastes»! E todos nós
acreditávamos com inveja nesta Bíblia,
nestes seios, nesta tocha. . Assim era
essa geração.
Em torno dela, negra
e dura como uma muralha, pesando,
dando sobre as almas, estava a Universidade. Por toda essa Coimbra,
de tão lavados e doces ares, do
Salgueiral até Celas, se erguia ela, com
as suas formas diferentes de comprimir, escurecer
as almas: – o
seu autoritarismo anulando toda a liberdade e resistência moral; o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o homem
a temer, a
disfarçar, a vergar
a espinha; o seu literalismo, representado
na horrenda sebenta,
na exigência do ipsis
verbis, para quem toda a criação intelectual é daninha; o seu
foro, tão anacrônico como as velhas alabardas
dos verdeais que o mantinham; a sua negra torre,
donde partiam, ressuscitando o precetto da Roma jesuítica do século
XVIII, as badaladas da «cabra» por
entre o voo dos
morcegos; a sua «chamada», espalhando nos espíritos o terror disciplinar de quartel;
os seus lentes crassos e
crúzios, os seus Britos e os seus Neivas, o praxismo poeirento dos seus Pais Novos, e a rija penedia dos seus Penedos! A Universidade, que em todas as nações é para os estudantes uma Alma Mater, a mãe criadora,
por quem sempre se conserva através da
vida um amor filial, era para nós uma
madrasta amarga, carrancuda, rabugenta,
de quem todo o espírito digno se desejava
libertar, rapidamente, desde que
lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à «sebenta», esse grau que o Estado,
seu cúmplice, tornava a chave
das carreiras. Verdadeira
chave dos campos, no
dizer francês, abrindo para a independência, para a vida e para a beleza das coisas
naturais. No meio de tal Universidade, geração
como a nossa só podia
ter uma atitude – a de permanente
rebelião. Com efeito, em
quatro anos, fizemos, se
bem me recordo, três revoluções,
com todos os seus lances clássicos,
manifestos ao Pais, pedradas e
vozearias, uma pistola ferrugenta debaixo de
cada capa, e as imagens dos
reitores queimadas entre as
danças selváticas. A Universidade era, com efeito, uma grande escola de
revolução: – e pela experiência da sua tirania aprenderíamos a
detestar todos os tiranos, a
irmanar com todos os escravos. O
nosso entusiasmo pela Polônia
nascia de nos sentirmos oprimidos como ela por um czar de borla e capelo, que se chamava
Basílio. Aqueles de
nós que hoje leiam
uma História da Vida e
da Sociedade em Roma,
nos fins do século XVIII, quando toda a
cultura livre era vedada, e a banalidade
tinha a estima do Governo por ser uma condição
da docilidade, e os melhores
bens se obtinham pela intriga
e o favoritismo, e se educava
o homem para a baixeza, e a
independência se arrancava como erva venenosa, e a
policia intervinha até na
maneira de atar a gravata,
e não se permitia aos cidadãos andar
fora de
casa depois das Ave-Marias –
julga ver a escura imagem da vida universitária há trinta anos, quando se impunha ao estudante, com a batina de padre, a regra canônica
do Gesu. E era por nos sentirmos envolvidos numa opressão teocrática, que, além de
pendermos para o jacobinismo,
tendíamos, por puro acinte de rebeldia, para o ateísmo. De sorte que a Universidade, ultra-conservadora e
ultra-católica, era não só uma escola de
revolução política, mas uma escola de impiedade moral.
Antero resumiu, com desusado
brilho, o tipo do acadêmico revolucionário e racionalista: e daí começou a sua popularidade
– e a sua lenda. Não recordo, nem sei
se é histórica, essa
temerária noite, em que ele,
durante uma trovoada, e de
relógio na mão, intimou Deus a que o
partisse com um raio, dentro de sete minutos, no
caso de existir. Desconfio do
altivo episódio. Antero não tinha relógio; a sua exegese era já muito fina para assim confundir as maneiras de Jeová com as de Júpiter: – e,
se lançou o desafio satânico, foi rindo alegremente do excesso da sua fantasia.
Mas é certo que ele se afirmou sempre como o grão-capitão das nossas
revoltas, desde aquela que derrubou o bom
tirano Basílio, até à que nos
levou para o Porto,
uma noite, entre archotes, ganindo
a «Marselhesa». Todos
os «Manifestos ao País»,
que a tradição nos impunha no
começo destas sedições, saiam da pena de
Antero: – porque já ele era, além da
melhor ideia da Academia, o seu melhor
verbo. E enfim foi ele ainda que se
rebelou contra outro e bem estranho despotismo,
o da Literatura Oficial, na tão famosa e
tão verbosa Questão Coimbrã, já não é fácil, depois de tantos séculos, relembrar os
motivos dogmáticos por que se esgadanharam as duas literaturas rivais, de
Coimbra e de Lisboa. . O
velho Castilho, contra quem se
ergueram então tantas lanças e tantos folhetos, não se
petrificara realmente numa forma literária que pusesse estorvo à delgada
corrente do espírito novo. Fora, é verdade, trovador e
bardo; mas renovara o naturalismo
clássico com as suas traduções de
Virgílio; e passara para a nossa língua Molière,
um dos mais
nobres avós da família
psicóloga. Todas estas almas diversas (é certo) as moldava dentro de uma vernaculidade arcádica que as deformava:
mas a sua arte de escrever era
polida, e houve dignidade e beleza no seu prolongado amor das Letras e
das Humanidades. (Seriam hoje úteis,
entre nós, um ou
dois Castilhos.) Em todo o caso, relativamente
a Antero de Quental e a Teófilo Braga, o
vetusto árcade mostrou intolerância e malignidade,
deprimindo e escarnecendo dois escritores moços, portadores de uma ideia e de uma expressão próprias, só
porque eles as produziam sem primeiramente,
de cabeça curva, terem pedido o selo e o visto para
os seus livros à Mesa
Censória, instalada sob a
seca olaia do seco cantor da «Primavera».
O protesto de Antero foi portanto
moral, não literário. A sua faiscante carta «Bom
Senso e Bom Gosto» continuava, nos domínios do pensamento, a guerra por
ele encetada contra todos os tiranetes, e pedagogos, e reitores obsoletos, e gendarmes espirituais, com que topava ao penetrar,
homem livre, no mundo que queria ser livre.
Para Teófilo Braga, essa
luta coimbrã foi essencialmente uma
reivindicação do espírito
crítico; para os outros panfletários, todos literatos ou aliteratados,
uma afirmação de retórica;–para Antero,
de todo alheio ao
literatismo, um esforço da consciência
e da liberdade. Por isso o
seu ataque sobretudo nos impressionou, não só pelo brilho
superior da sua ironia, mas pela sua
tendência moral, e pela quantidade de revolução que
continha aquela altiva
troça ao déspota do purismo e do léxico.
Castilho, armado da sua férula, e tendo a pretensão de dar com ela palmatoadas nas almas, aparecia
aos nossos olhos. criadores de
fantasmas, como um verdadeiro monstro: Antero, crivando de setas de ouro os flancos vernáculos do monstro, foi para nós como um
sagitário libertador. Eu digo «nós»,
uso este plural de casta
nobre, unicamente porque nos
simul in Garlandia
fuimus, nos mesmos
bancos nos sentamos,
sob o mesmo luar devaneámos. De resto, eu era meramente um ator do Teatro Acadêmico
(pai nobre), e
rondava em torno destas
revoluções, destas
campanhas, destas filosofias, destas heroicidades ou
pseudo-heroicidades, como aquele lendário moço de
confeiteiro que assistiu à tomada
da Bastilha com o seu cesto de pastéis enfiado no braço,
e quando a derradeira porta
da fortaleza feudal cedeu, e a
velha França findou,
deu um jeito ao cesto leve, e
seguiu, assobiando a «Royale», a
distribuir os seus pastéis.
Mas era um devoto (o termo não é
excessivo) do poeta das «Odes Modernas». Todos,
desde então, esperamos dele
a renovação de um mundo,
do nosso pequeno mundo,
para nós imenso –
e imenso na verdade, porque uma simples alma é um vasto mundo, e a sua renovação, no sentido da
justiça ou da bondade, uma vasta obra.
Antero era não só um chefe – mas um
Messias. Tudo nele o marcava para
essa missão, com um
relevo cativante: até a bondade iniciadora do seu sorriso, até
aquela grenha cor de ouro fulvo, que flamejava por cima das multidões. E havia já
com efeito hábitos messiânicos nesse
bando de discípulos que o acompanhavam através de Coimbra, de capa solta,
enlevados na sua palavra. Essa luminosa palavra de Antero era uma das suas magníficas forças de atração. Ninguém jamais possuiu um
Verbo de tanta solidez.
harmonia, finura e brilho.
Todo o século XVIII considerou como um dos maiores regalos da inteligência, o ouvir Diderot conversando. Foi um dos encantos no nosso tempo ouvir conversar Antero. Em Coimbra a
sua veia vibrava
em pleno esplendor. Era
uma lira, a
lira divina de sete cordas, em que não interessava e deslumbrava
menos que as outras a corda de bronze do sarcasmo. Sarcasmo que nada
encerrava de triste ou de amargo, como o
de um Quevedo. Antero, mesmo troçando e amaldiçoando, era um ateniense: e à
sua ironia convinha, mais que a de nenhum outro ironista, o nobre epíteto
homérico de alada.
Os seus ditos abriam, através
da sua geração, grandes sulcos luminosos
– e puros.
Mas sobretudo se impunha pela sua
autoridade moral. Antero era então, como sempre foi, um refulgente espelho de
sinceridade e retidão. De nascença a sua alma
viera toda limpa e branca,
e quando Deus a recebeu, encontrou-a decerto tão limpa
e branca como lha
entregara. Nunca, através
da vida, tomou um caminho escuro ou oblíquo: com a face levantada, como um sol, rompia a passos direitos e sonoros: – e,
se topava com um desses muros que constantemente se erguem nas estradas humanas,
ou o demolia ou retrocedia, mas nunca condescendeu no ladear com astúcia,
mesmo quando para além reluzisse o tesouro que a sua ideia ou o seu
sentimento apeteciam. Antero foi um caráter heroicamente Integro. E não se
necessitava, para lho reconhecer, uma longa
e penetrante intimidade: –
a sua lealdade magnífica resplandecia toda nos
seus olhos claros, como uma luz santa às portas de um sacrário. O granito,
o cristal, tudo o que é
límpido, tudo o que é sólido, eram menos límpidos e sólidos que a sua
amizade Apesar de algum
ceticismo e muita ironia, tropeçou simplesmente em grossos
enganos, porque o espírito translúcido
não previa, nunca se lembrava
do dolo e da falsidade. Naquele erudito pessimista houve sempre um inocente.
A justiça era
nele ingênita. Assim era a verdade.
Que dizer da sua
bondade? Por um constante
aperfeiçoamento, ela chegou, nos
últimos tempos, a ser perfeita.
Mas já na idade ligeira
e romanesca de Coimbra era imensa – e se manifestava por uma alegria magnânima.
O «claro riso dos heróis», que Michelet
raramente encontrou na História
e que o arrebatava, foi o riso de
Antero. Riso generoso do ser que ama
todos os seres, e que, pelo menos dentro
desse amor, acha que o mundo é ótimo, e
se sente soberbamente otimista e doce.
Ele teve a caridade nos anos em que, por
se não conhecerem ainda
as misérias do coração e do mundo,
nunca se é caridoso:
– e nele foi natural
e simples, não como a da juventude
neo-evangélica (que, agora,
por Paris e Londres,
languidamente ensina o Bem), sugada,
ou antes decorada, na
«Vida de S. Francisco de Assis». Nessas mesmas pugnas, nessas derrocações de Bastilhas em que parecia feroz, a sua bondade andava
toda inquieta enquanto a
sua cólera trabalhava.
Como o sagitário antigo, apenas despedia do grande arco a grande
frecha, atirava largamente um
passo para diante –
mas era já com
o desejo de ir
curar a ferida
que o seu dardo rasgara. Quando,
depois do encerramento tão bruto das Conferências do Casino,
ele esmagou o considerável marquês de Ávila sob aquela
«Carta» de tão alegre, picante e patrício desdém, soube, por um amigo,
que o pobre marquês se
magoara até se lhe umedecerem os olhos com uma acerada alusão à origem do seu nome de Ávila. Antero angustiado, com
os olhos também úmidos, correu à
«Revolução de Setembro» a gritar «errei!
errei!», e a imprimir uma retratação apiedada
que consolasse o velho...
Toda esta alma de santo morava,
para tornar o homem mais estranhamente cativante,
num corpo de Alcides. Antero foi, na sua juventude, um magnífico varão.
Airoso e leve, marchava léguas, em rijas caminhadas que se alongavam até à mata do
Buçaco: com a mão seca e fina, de velha raça, levantava pesos que me faziam gemer a
mim, ranger todo, só de o
contemplar na façanha: jogando o sabre para se adestrar, tinha ímpetos de Roldão, os amigos rolavam pelas escadas,
perante o seu imenso sabre de
pau, como mouros desbaratados:
– e em brigas que fossem justas o
seu murro era
triunfal. Conservou mesmo até à
idade filosófica este murro fácil: e ainda recordo uma noite na
Rua do Ouro, em que um
homem carrancudo, barbudo, alto e
rústico como um campanário,
o pisou, brutalmente, e passou,
em brutal silêncio... O
murro de Antero foi
tão vivo e certo, que teve de apanhar o imenso homem do lajedo em que rolara, de
lhe limpar a lama da rabona, e de o amparar até uma botica,
onde lhe comprou arnica, o
consolou, citando Golias e outros gigantes vencidos. No Garrano,
nas Camelas, um prato com três dúzias de sardinhas e uma canada do
«tinto» não o assustavam, nem lhe pesavam.
Pelo contrário! Depois, em face da Lua, na Ponte ou pelo Choupal, as suas
cabriolas pelos céus da metafísica eram mais fulgentes e destras.
****
Já porém, no meio destas
qualidades esplêndidas que lhe garantiam uma vida forte, e superiormente feliz, existia um
fermento de dor. Bem se descobre ele em
alguns dos sonetos
desses anos, que são (como todos os
seus sonetos) sublimes notas
postas à margem de uma alma
que se interroga, Já então
o ditoso Antero, tão
prodigamente dotado por Deus, se
considerava um filho abandonado de Deus:
já o mundo lhe parece
perder a cor, e
ele próprio a perde também, devendo para sempre ficar pálido
e triste: e a beleza que então lhe aparece
não a goza
plenamente, porque ela
lhe lembra outra, transcendente e de mais
puros gozos. O seu
presente é uma atormentada aspiração ao
futuro–mas o que é o futuro,
senão sombra movediça e mentirosa? Ele, tão
seguido, tão amado, erguido
como chefe por uma juventude
feita à sua
imagem, já se
sente solitário entre turbas vãs: e os braços,
que a sorte lhe deu tão fortes e movidos por uma alma tão alta, já se prepara para os cruzar com melancolia.
Todavia, em volta dele, esse era
o tempo de um otimismo universal. Nas duas. grandes nações pensantes, que o inspiravam, triunfava
o otimismo – lírico em França, filosófico na Alemanha, mas em ambas rosado e
risonho. Todos os hegelianistas prussianos eram, creio eu, otimistas: –
e Pelletan, para cá do Reno, convidava
o homem, tornado onisciente e onipotente pelo progresso, a afirmar soberbamente, e cantando, a sua realeza sobre os Céus. Decerto já existiam desiludidos: mas era ainda
o antigo desiludido do século XVIII, o Candide, depois de reconhecer que no
mundo a melhor ocupação, a única
que não resulta em logro, consiste em plantar quietas saladas num murado
e frondoso quintal.
Ainda então não safra
da sua hospedaria
de Frankfurt o bom Schopenhauer, bem penteado,
de calças cor de flor de alecrim,
para tirar das mãos de Candide a enxada
e o regador, e lhe provar que a
sabedoria realmente consiste em entrar
num convento de trapistas, ou, como um
yoghi hindu, em jazer rigidamente sob a
mangueira de Lovelane, meditando
a inanidade e o mal das coisas. Ninguém então, do Reno para cá, lera ainda Schopenhauer. E um no seu quarto de
Frankfurt, metodicamente, tomando o seu chocolate, outro em Coimbra,
atormentadamente, porque é poeta e meridional, chegando ao mesmo resumo,
num raciocinado, no outro soluçado:
Que sempre o mal pior é ter nascido!
Daqui provinham certos modos de Antero ainda
então inexplicáveis – dias de tristeza e
esparsa cólera, um querer e não querer entrechocados, entusiasmos que logo
escarnecia, bocados de vida que
deixava sumir em fumo, e esses apetites de solidão, esses períodos de trapismo artificial em que
desaparecia, se embrenhava
sozinho pelas espessuras do
Buçaco. O espírito de sociabilidade, é certo, sempre nele triunfava;
e também essa alegria, de raízes vivazes,
subsistente sob as
névoas do mais denso desalento,
e que mesmo depois,
nos piores dias,
reaparecia – apenas ele se encontrasse entre camaradas de espírito congênere, e crepitasse
o lume das controvérsias. Mas, já nesse
tempo de Coimbra, Antero, por momentos,
perante a face mais florida de juventude e saúde, pensava na caveira.
Pessimismo, sobretudo nos seus
começos, não vai sem inação; – e a inação é verdadeiramente a sua primeira e ligeira
forma. Se tudo no mundo conduz a desilusão
e poeira – como se podem considerar, sem
riso e sem compaixão, esses rijos
esforços que cuidam revolver mundos,
quando estão meramente remexendo fumo?
Daí, essas indiferenças, desprendimentos, bruscas desistências da energia, que, da parte de
Antero, surpreendiam e contristavam os seus amigos. Durante a grande Questão
Coimbrã, quando mais ressoante rolava a
briga contra a Tróia
literária de Castilho, ele, o nosso
invencível Aquiles –um
dia desaparece... Era um abandono,
pactuara o herói secretamente
com Príamo? Assim o pensaram
os Acaios fanáticos. Não! Fugira
para a Figueira, com saudades da solidão
e do mar. Que importância podia ter essa
rixa de literaturas e vaidades para
quem, desde os dezoito anos e dos
primeiros versos, viera sempre
desdenhando alegremente a superstição da
glória e das letras? De resto todo o
esforço em Antero era acompanhado pelo sentimento secreto e divertido da
sua inanidade; – e a ironia nele andava sempre ao lado
da ação, soltando o seu assobio malicioso.
Para quê, meus amigos?
tudo é fumo e em fumo se espalha!.. Esta
universal desilusão, este escuro e mudo Nada para onde correm, como para
um mar, todos os desejos humanos,
não era todavia afirmada
por Antero com amargura – antes com uma
resignação risonha. «O Amor
e o Bem (ensina ele então, ou parece ensinar) não se realizam nesta vida contingente e escrava, e
só na outra, na absoluta, quando o
espírito atinja perfeição e
liberdade.. No entanto, amigos, vamos aceitando as aparências imperfeitas
deste mundo onde há bosques, roseiras, artes delicadas, e as mulheres entreabrem amorosamente a sua porta, e um curto heroísmo por vezes enobrece as cidades, e até se pode colher um fugitivo gozo com um cesto de laranjas e uma
guitarra, de tarde, num barco, por este Mondego acima.. »
Assim este homem, em cuja alma iam
enegrecendo as nuvens de uma
áspera tormenta intelectual,
era ainda para todos,
nesses tempos de Coimbra, «da
encantada e fantástica Coimbra» de então,
um viçoso camarada,
cheio de exuberância e fantasia,
apaixonado e luminoso, nobre e amigo
dos homens, embebendo os olhos francos
na beleza das coisas, e
tumultuosamente esperando que da
revolução e da filosofia altos bens
viessem à Terra. Do negro fermento de
desilusão e dor, que ele trazia já dentro da alma, só conheciam alguns amigos, a quem ele lia os seus sonetos confessionais,
e que ficavam espantados escutando a
confissão, e contemplando o homem que a confessava. Desse
poeta de face ardente e veia rutilante, todo idealização, todo paixão,
metafísico e batalhador, bem se podia esperar uma epopeia, o apostolado de uma
religião, longas aventuras sonoras – nunca a passiva dor de um budista aspirando
palidamente ao Não-Ser. E a sua vida, com efeito, desde que saiu dessa
«encantada e quase fantástica Coimbra», foi toda de movimento e de força.
Antero anda então ansiosamente procurando
um emprego para a sua grande alma. Viaja pela Europa Ocidental, ou antes
passeia através dela os seus sonhos de liberdade e de justiça, para encontrar algures um mundo que lhes seja congênere e onde os possa
plantar e cultivar com
magnificência. Atravessa o Atlântico,
por puro desejo de espaço e liberdade, num
pequeno yacht; e
durante semanas de tormenta trabalha
descalço na manobra,
ou, metido no seu
beliche, que as ondas alagam, embrulhado num oleado, relê o
«D. Quixote», com um interesse e uma paixão renovadas, talvez
por sentir que nessa grande
história da Ilusão está lendo a
sua história. Percorre a costa da América, até à Nova Escócia; e aí, um domingo, tem uma visão que nunca esquece, a de uma cidade
puritana (Halifax ou Lunenberg), silenciosa, como adormecida
no Senhor, toda
de tijolo cor-de-rosa sob
um céu cor de
pérola, com fundas avenidas mais pensativas
que as dos Elísios, onde os namorados
passeiam, numa mudez de sombras, de dedos enlaçados, de pálpebras baixas, respirando
sem outro desejo a flor da sua
emoção. Quantas vezes Antero me contava dessa piedosa e suave cidade, e do longo apetite que ela
repentinamente lhe dera de quietação
eterna! Ao cabo dos grossos mares atlânticos, Deus talvez lha mostrou como um prenúncio do seu destino: uma grande tormenta, depois um grande descanso – e um descanso a que Deus não era alheio.
Enfim Antero volta a Lisboa,
encontra o Cenáculo, Encontra o nosso querido e
absurdo Cenáculo instalado na Travessa do Guarda-Mor, rente a um quarto onde
habitavam dois cônegos, e sobre
uma loja em que se agasalhavam, como no curral de Belém, uma vaca e um burrinho. Entre essas
testemunhas do Evangelho e esses
dignitários da Igreja, rugia
e flamejava a
nossa escandalosa fornalha de revolução, de metafísica, de satanismo, de anarquia, de boémia
feroz. J. Batalha
Reis era o dono do aposento
temeroso, e Via Láctea, galego ilustre, o seu servo. Via
Láctea dormia pendurado, como um paio, da chaminé da cozinha. As suas ocupações
não consistiam em escovar ou varrer.
A Via Láctea fora confiada a missão transcendente de espreitar a passagem da
Ideia ao longo do rio do Espírito,
para nos avisar, e nós corrermos e a
prendermos na rede rutilante do Verbo. Durante dois
anos, cada dia, a horas de
sol e a
horas de treva, empurramos
nós com fragor a porta
da cozinha, e berramos em ânsia: «Via
Láctea! Via Láctea! viste enfim a Ideia
Pura boiando na corrente espiritual?...» E durante dois anos Via Láctea, de dentro da
chaminé ou de sobre a tampa de um
caixote, imutavelmente rosnou com
uma dignidade triste:
Num bi nada. Aí
Antero apareceu numa fria manhã – e foi aclamado. Naquela viela de
Lisboa ressuscitou então, por um momento, a «encantada e quase fantástica
Coimbra» de que ele sempre conservara uma
saudade romântica. Antero, porém,
que desembarcara em Lisboa, como um apóstolo do socialismo, a trazer a palavra aos
gentílicos, em breve nos converteu a uma
vida mais alta e fecunda. Nós fôramos
até aí no Cenáculo uns
quatro ou cinco demônios, cheios
de incoerência e de turbulência,
fazendo um tal alarido lírico-filosófico que por vezes, de noite, os dois cônegos
estremunhados rompiam a
berrar, o burro por baixo zurrava desoladamente,
e no céu, sobre os telhados
vizinhos, a Lua parava,
enfiada. Mas toda a nossa alma se ia nesse alarido, e o vento vão
da boêmia a levava, para onde
leva as almas
descuidadas e as folhas de louro
secas.. Sob a influência de Antero logo dois de nós, que andávamos a compor uma ópera bufa, contendo um novo sistema do Universo, abandonamos
essa obra de escandaloso delírio –
e começamos à noite a
estudar Proudhon, nos três tomos da «Justiça e a Revolução na Igreja»,
quietos à banca, com os pés em capachos,
como bons estudantes. Via
Láctea começou a varrer. E
do Cenáculo, donde,
antes da vinda de Antero
(que foi como a
vinda do rei Artur à
confusa terra de
Gales), nada poderia
ter nascido além de chalaça, versos
satânicos, noitadas curtidas a vinho de
Torres, e farrapos de filosofia fácil, nasceram,
mirable dictu, as Conferências do Casino,
aurora de um mundo novo, mundo puro e novo que depois, ó
dor, creio que envelheceu e apodreceu..
De resto o Cenáculo estava nas
vésperas de se dispersar – porque a cada um de
nós, bruscamente (nessa mesma
esquina da Travessa
do Guarda-Mor) aparecera a
Vida, enrugada, de dedo ameaçador, a
avisar que ela não é musa ou ninfa que se
trate com ligeireza,
indiferença, e cantando. Assim
aquele cavaleiro que uma noite em Paris,
no Pont-Neuf, surgiu perante o senhor D.
Gil, do solar de Vouzela, lhe deteve os
passos que corriam ao pecado e lhe gritou brandindo a lança: – «Homem, para trás,
para o Senhor!» Nós vimos a lança; e saudosamente entre
nós murmuramos: – «Irmãos,
não mais cavalgadas sobre o dorso
macio da quimera, é tempo de irmos a concursos..
Fomos a concursos.
Antero, esse, encontrara
Oliveira Martins, que era
um pensador, e José Fontana, que
era um agita. dor; e ardentemente penetrara no Movimento
Socialista, então iniciado
em Lisboa com os fervores e os segredos poéticos de uma
religião. Simultaneamente
propagava a união ibérica, fundava
sociedades operárias, instalava a
Associação Internacional, lançava
panfletos, conspirava, apostolava.. Era, como ele dizia, «um pequeno Lassale».
E, como Lassale, já
invadido por um vago mal-estar, no
meio da popularidade que o
começava a cercar – e a sufocar.
Eu não fui testemunha dessa
sua vida militante.
pelo meu turno partira, a percorrer os
mundos deste mundo,
dos velhíssimos aos novíssimos, da magoada Jerusalém à estridente Chicago. Longe, porém, soube que
Antero se afastara inesperadamente da
atividade revolucionária. Porquê?
Abalara ele, como durante as grossas guerras coimbrãs, para a Figueira, com saudades dos areais
e do mar? Não –
harmonizara simplesmente a
sua conduta e
a sua natureza. O elemento natural do espírito de
Antero era a abstração filosófica, e só
dentro dela respirava
e vivia plenamente. Além disso,
descendente de uma
muito velha família,
já ilustre na corte,
de Afonso V, ele nunca se desembaraçara de certas hereditariedades de
raça e de casta, e conservava, sob a sua
vasta humanidade, um não sei quê de antiquado e de estreitamente fidalgo. Enfim, era um superfino artista. . Como direi? O
artista, o fidalgo, o filósofo, que em Antero coexistiam, não se entenderam bem com a plebe operária. Sempre sincero, lavou as suas mãos,
e proclamou que só os Proletários
eram competentes para exprimir o
pensamento e reivindicar o direito
dos Proletários. E amando ainda os homens,
mas desistindo de os conduzir a
Canaã, subiu com passos desafogados para a sua alta torre bem-amada, a torre da metafísica.
Quando, volvidos dois
ou três anos, regressei a
Lisboa, encontrei o meu amigo
estirado numa cama, no quarto mais remoto
de uma casa remota, quase
numa trapeira, para
que não lhe chegassem os ruídos
da cidade, morbidamente intoleráveis à sua super-sensibilidade nervosa. Ali, em solidão
e imobilidade, Antero estava travando
com o seu pensamento uma luta, de que os
Sonetos, de 1874 a 1880,
são a notação magnífica e dolorosa.
E o seu pensamento em breve o
arrastara a um
pessimismo negro, repassado de desespero. A certeza
de morrer levara Antero a
indagar mais fundamente a razão de
viver: – e, por mais que aprofundasse a existência, ela só lhe aparecia como uma
tortura gratuita, confusa, inútil. Pedia
ele então à inteligência a explicação
da existência. E a sua inteligência,
como ele depois contava, toda penetrada
do naturalismo, que era a atmosfera onde
se desenvolvera, só lhe oferecia a
solução naturalista – só lhe podia
afirmar que a vida, na sua forma empírica, é a
luta obscura de forças
obscuras. E na sua
forma filosófica e intelectual?
Apenas a contemplação
egoísta dessas lutas instintivas. Não
há pois senão vácuo, confusão e
inutilidade universais! É certo que rompe através da neve
estéril, revelando as fecundidades subjacentes da terra,
surge por vezes do fundo da consciência e espalha por toda ela o
seu perfume tímido... Mas não nos prendamos
já a essa
falsa esperança, porque a
flor murchará, apenas
entreaberta, e o seu perfume no vácuo universal será disperso!
A consciência e uma outra ilusão, uma
modalidade efêmera, pois que nada de eterno
se pode nela realizar.
De que serve ter sido, ou
procurar ser, justo e bom? Justiça
e bondade findam no pó, infecundos como o pó. A vida é um desolado logro. E o
melhor é morrer,
pois que nos liberta da
miséria, da vergonha,
do horror da universal falsidade.
– Tal era
então o sombrio e secreto
monólogo de Antero naquele leito
estreito – donde ele
todavia, quando os seus amigos
apareciam, sorria tão alegremente e tão
meigamente aos seus amigos.
É que não o deixara nunca
o espírito consolante de
sociabilidade, e esse adorável
bom humor que era nele como um sol imanente por trás de nuvens transitórias,
e ainda essa
polidez superior, quase transcendente, forma graciosa da
caridade, que não lhe consentia
alongar por sobre a alma
dos outros a
sombra dos fantasmas de que a
sua andava povoada.
Por mais descido e fundo que o seu espírito jazesse,
naquele «poço úmido e morno» de que fala num dos seus sonetos, bastava que
da borda o chamasse um voz fraternal para
que o seu espírito subisse, com compostura risonha, sem vestígios
da treva inferior
donde emergia, penetrando logo
nas alegrias e cuidados
alheios, e tomando um
interesse acariciador pelas coisas mesmas que,
para ele, na
vida, eram mais desinteressantes e vãs. Muito bem me recordo de uma noite em que subi à sua
alcova com um velho amigo dele e meu, Carlos Mayer. Antero lá estava, estendido
no seu leito, com uma manta por cima
dos pés, a face
emaciada, e sobre ela espalhada
aquela sombra, semelhante
a um reflexo de coisas negras, que outrora
deu a Dente
a reputação de descer
cada noite ao Inferno. Pois
essa mesma face,
num momento, se iluminou de afabilidade e graça fácil. Carlos Mayer
andava nessa ocasião envolvido na
ciência e cuidados de uma grande
indústria de destilação – e a conversa
rolou sobre máquinas, processos,
fermentos, salários, lucros, milhões.
Antero circulava ardentemente dentro
daquelas questões de química, mecânica,
economia, como se elas constituíssem a paixão
suprema dos seus dias solitários.
O ar do seu quarto de metafísico ficou em breve mais cheio de cifras, de vozes técnicas, que o de um
escritório da City. Depois, talvez porque a
esse tempo eu me
preocupava com a civilização chinesa, deslizamos
a conversar da China. Carlos Mayer atacou rancorosamente o
Império Florido.
Antero, arrojando a manta, exaltou logo o Chinês, e a sua
pedagogia, e a sua agricultura, e a
sua arte, e a
sua sociedade, e a
solidez e pureza das suas instituições domésticas – com o saber miúdo
e grave de um mandarim. E não era só
a erudição que surpreendia,
mas o fogoso interesse,
como se o seu pensamento habitasse constantemente e
só se comprazesse
entre a Grande Muralha e o mar Amarelo. E ao mesmo tempo
quanta abundância cômica, que finura e firmeza de juízos, que dizer tão
luminoso e perfeito!
Já tarde,
ao alvorecer, Antero chamara o
criado estremunhado para nos acompanhar, quando um de nós lhe perguntou por
versos. Como Antero não compunha versos por uma faculdade poética bem
cultivada, e apenas certos estados da
sua razão e da
sua sensibilidade cristalizavam
naturalmente em verso, era esta uma
interrogação familiar sobre a sua saúde
moral. E muito facilmente, como
dando uma informação intima,
Antero tirou de entre as folhas de um livro um papel, e leu sem entono
amargo ou dolorido, com a simplicidade corredia de uma
nota a lápis,
aquele seu poema que Oliveira Martins depois salvou da destruição,
o «Hino à Manhã»,
um dos mais angustiosos lamentos
que tem escapado a um forte e altivo coração de homem. Assim
podia aquele Antero singular, durante toda uma noite, aplicar à mecânica e à defesa histórica da China um pensamento tão
profundamente ferido, tão arquejante
ainda das lutas tenebrosas com a
Esfinge.
****
Passaram anos em que não vi
Antero, instalado então em Vila do Conde. Sabia
que o meu amigo estava quase são, quase sereno. Mas foi uma preciosa surpresa,
quando, ao fim dessa separação, chegando ao Porto e correndo com Oliveira Martins a Vila do Conde, avistei na estação um Antero
gordo, róseo, reflorido, com as lapelas
do casaco de alpaca atiradas para trás
galhardamente, e abanando na mão a
grossa bengala da Índia que em Lisboa eu
lhe dera para amparar a
tristeza e a fadiga. Era uma
regressão, quase o antigo Antero coimbrão, mais amadurecido, mais doce: –
apenas, no lugar da fulva grenha flamante e romântica, alvejava um
sereno começo de calva
socrática. Era sobretudo uma
ressurreição moral, à velha maneira de Lázaro, uma miraculosa saída
do túmulo pessimista e das
sombras da negação. Findara
a luta implacável, o seu grande coração, enfim, descansava em paz!
Como chegara Antero a esse
repouso apetecido? Escutando com uma atenção mais
grave, mais crente, aquela
voz da Consciência, que tanto
tempo desconhecera, e que
apesar de todos os
desenganos e sempre
em segredo protesta e afirma o
Bem.
Fora
atendendo reverentemente essa.
doce voz; e conseguindo, por um
desesperado esforço do pensamento,
penetrar a sua significação; e refazendo, guiado
por ela, a sua
educação filosófica; e procurando
depois a sua confirmação na
história, nas doutrinas
dos moralistas, nas confissões dos místicos, que ele chegara a
descobrir, a compreender
bem o fim último e verdadeiro de tudo,
não só do homem moral, mas de
toda a Natureza, mesmo
na sua modalidade física. E essa descoberta é de inefável beleza
e contentamento – pois que o fim
de tudo é o Bem! O Universo tem por fim o supremo Bem – o Bem é o momento final e
augusto de toda a evolução do Universo.
Possuía pois Antero, enfim, a «sua filosofia»,
essa filosofia que ele tantos anos perseguira
como deusa esquiva entre selvas duvidosas, e que fora sempre para os
seus amigos, alternadamente, motivo de esperança, de desconfiança, de entusiasmo e de sarcasmo. . Mas agora Antero alcançara a
deusa esquiva. E a lei moral dessa
filosofia (de que ele deu na «Revista de
Portugal» um esboço eloquente e poético)
consistia em renunciar a tudo quanto
limita e escraviza o espírito – egoísmo,
paixões, vaidades, ambições,
contingências, materialidades do mundo,
– e em procurar a união do espírito,
assim libertado e limpo de todo o
pesado lodo terreno, com o seu tipo de perfeição que usualmente se chama «Deus». Essa união, em que a vontade
limitada se dissolve na vontade absoluta, será tanto, mais eficaz quanto mais
completa for a renúncia a tudo o que é
egoísta, particular, individual. E só pela união com o Ser perfeito, de que essa
renúncia é instrumento e condição, se realiza o Bem, o Bem supremo, fim verdadeiro
de toda a
vida, fim divino
a que tende o
Universo. Em resumo, a lei moral
do homem é o constante aperfeiçoamento e
a progressiva santidade.
De toda a filosofia de Antero
(que sou bem incompetente para interpretar) só quero
reter esta linha ética, porque ela
o explica nesses anos
de paz e de admirável doçura.
A vida de Antero em Vila
do Conde era então verdadeiramente edificante – e
constituía, sem doutrina, um forte ensino moral. O velho Santo Antão no monte
Colzin não vivia um viver mais puro, mais entregue
ao ideal, à perfeição,
à Vida Eterna,
do que Antero naquela casa de
Vila do Conde, simplificada
até ao cenobitismo, e onde
por único adorno,
além de livros numa estante de pinho, havia flores
das sebes em púcaros de barro. Era aquele o retiro muito nu e
muito limpo (porque Antero tinha o
asseio e a ordem rígida de uma freira
velha) de quem alegremente se despojou
de tudo quanto embaraça, atravanca a
vida de cada dia, para encetar a alta
conquista da liberdade
moral. Com ele
viviam as duas meninas que adotara,
«as suas pequenas», que então
ensinava e educava, e
que, pelos cuidados da paternidade, o prendiam ainda
ocasionalmente à sociedade. Fora desses cuidados ele só se ocupava com o
aperfeiçoamento da sua alma, ou, como
diria um católico,
com a sua
«salvação». Não salvação individual
e egoísta, como a
dos santos – mas
salvação de todos, salvação para
todos, penetração lenta no
Bem próprio para dele fazer um
instrumento do Bem universal. Leituras intermináveis e longamente
pensadas; solilóquios constantes de um espírito,
que constantemente se confessa
para constantemente se
corrigir; intensas meditações, em que
a sua vida se confundia
na vida do Ser, num desejo permanente de sentir na sua consciência de
homem latejar a consciência
do Universo – eis
o abstrato emprego
dos seus nobres dias. Outro não era o dos Solitários, nos
desertos do Alto Egito, tentando a
suprema fusão com Deus. Como regressos
ao mundo donde por virtude e mesmo por
gosto se não sequestrara, tinha as suas
Visitas ao Porto, a Oliveira Martins.
Era o que ele chamava as grandes
«dissipações».
Oliveira Martins vivia então na
sua linda e recolhida casa das Águas Férreas. Se já
houve em Portugal um delicado e grave retiro de estudo e de trabalho, sereno,
hospitaleiro, superiormente polido e culto, forte em afeições, fecundo em obras, belo
pela consciência e pela ciência, e como espiritualizado pelas correntes de pensamento que nele tão livremente circulavam,
foi esse da saudosa casa das Águas Férreas – enquanto não veio bater à porta a Política, disfarçada,
trazendo sobre a face torpe a
máscara nobre do Civismo.
A biblioteca ficava em baixo,
abrigada no silêncio propício de vielas
desertas: aí viveu Oliveira Martins os
seus dias mais doces, e escreveu os seus
livros mais fortes, numa regra
e concentração de beneditino, cortadas
às vezes por tumultuosas
inspirações de artista,
como, .quando ao reviver a
«História da República
Romana», durante quarenta horas,
sem descanso, sustentado a café, ele foi empurrando com pena magnífica, através das ruas de Roma,
da Porta Carmental ao Capitólio, o triunfo de Paulo Emílio. Antero encontrava aí alguns dos
seus companheiros de Coimbra,
mais amadurecidos, disciplinados pelo trabalho, cada um ancorado na
sua pequena Ítaca,
mas conservando todos o gosto das
viagens incertas pelos mares da
Fantasia. A «encantada e fantástica
Coimbra» de outros tempos
ressurgia, com mais ordem intelectual, um saber mais positivo, e
uma outra consciência da vida e da
sua seriedade. E, como em Coimbra,
Antero era ainda a curiosidade e o encanto
daquelas tertúlias, misturadas de alto
critério e de belo riso, onde por vezes
toda uma metafísica, em plena expansão,
tropeçava e desabava sobre a ponta aguda
de um calembour. O seguro renovo de saúde, depois das desesperanças da doença,
sobretudo a paz filosófica,
tinham robustecido a alegria nata de Antero – e dado à sua
natureza, até aí alternadamente meiga e violenta, uma serenidade igual e contemplativa
como a luz de um belo dia de Outono. Aquelas indignações de insurrecto, em
que outrora constantemente o lançavam os seus instintos de superior
justiça, e certos laivos persistentes de
radicalismo, eram agora raríssimos nele:
e as misérias ou vergonhas da política (que em casa de Oliveira Martins, já diretor
d’ A Província , repercutiam com particular intensidade) só causavam a
Antero uma compaixão tranquila.
Ele, de resto, ainda acreditava então que misérias e erros
provinham do vício ou da incompetência
da pequena casta política que, através
de Lisboa, domina a Nação – e que, no
fundo do povo, existia, latente mas
intacta, uma grande energia viva, capaz
de reconstituir, sob a direção da
Virtude e da Capacidade, a ordem na
sociedade portuguesa. Mas desse
movimento reconstituidor (para que
entrevia já os chefes predestinados), Antero só
queria ser a testemunha consolada,
quando muito o filósofo tutelar. O seu espírito só se interessava pela essência pura das ideias; – e creio que
dos seus tempos de propagandista lhe
ficara uma pudica
repugnância pelo manejo direto
dos homens e dos fatos. E
todavia ninguém como ele
possuía o dom melhor
para arrastar homens
através de desertos – a
força e graça da sedução.
Antero nascera pastor de almas – mas um pastor que, infelizmente, não tolerava a
grosseria e a materialidade do rebanho.
O seu cuidado, nesse ano formoso
em que tanto vivemos nas Águas Férreas, era construir definitivamente a «sua filosofia»,
que não queria desenrolar num tratado,
mas (como ele dizia, rindo) condensar
num catecismo, muito claro, muito simples,
todo em aforismos,
de quinze ou vinte páginas, que
se encadernasse em marroquim, se trouxesse
na algibeira como um
viático da razão pura. Rindo também,
muitas vezes se lamentava de não
ter três ou quatro discípulos que
iniciasse no seu evangelho, e que,
depois de o compreenderem finamente, escrevessem por ele as Epístolas aos Galácios e aos Coríntios. Eu sempre ardentemente me ofereci
para ser o seu S. Paulo, afrontar
os gentílicos, derramar o Verbo. Mas Antero
receava que, como artista, eu
materializasse as suas ideias
em imagens – imagens floridas, cinzeladas,
pitorescas, e arrepiadoras portanto
para quem, como ele abominava
o pitoresco. Creio de resto que
Antero não sentia
prazer nem utilidade em publicar
o seu pensamento. Considerando o estado
mental da sociedade
portuguesa, ele reconhecia quanto
a sua doutrina
e as suas conclusões pareceriam
incompreensíveis, estranhas,
fantasmagóricas. No seu país, Antero
era como um exilado de um Céu distante; era quase como um exilado no seu século. Para que, pois, mergulhar na multidão,
anunciar uma verdade que a todos se
afiguraria um sonho,
e um sonho nem ao menos composto com os elementos e os pedaços de realidade que entram sempre no arranjo dos sonhos? Seria o pueril labor do
profeta no deserto – enquanto a caravana bebe nos costumados poços, retrilha o
costumado trilho, e avança para a costumada Meca, onde morre da costumada peste. Antero era desses que intelectualmente antedatam,
e que, quando escrevem,
como dizia Stendhal, têm de esperar oitenta anos para serem lidos – e
contestados. Por isso preferiu
permanecer calado – tendo por consolação entrever «o
norte para que se inclina a
divina bússola do espírito humano». Só
mais tarde, por um esforço
de amizade, para favorecer a
«Revista de Portugal», e também
para
entreter a solidão
espiritual em que o deixara a
partida de Oliveira Martins, instalado em Lisboa e na Política, é
que Antero esboçou rapidamente algumas
ideias, certas tendências do seu espírito, que ele considerava, e com razão (o
neo-idealismo crescente da Literatura e da Arte, nestes últimos anos, o prova) serem as tendências gerais do espírito filosófico no
fim do século XIX.
Antero, com efeito, vivia muito
solitário em Vila do Conde – sem mesmo a companhia
das suas «pequenas», que, agora
crescidas e necessitando uma educação
feminina e doméstica, ele colocara,
depois de muito escolher, de muito pensar,
no convento das Doroteias. Como regressos ao mundo, «grandes dissipações», somente lhe restavam as visitas a Luís de Magalhães, à Quinta do Mosteiro. Antero amava a farta lavoura, a forte vida naturalista e sã que enchiam aquela antiga vivenda de
frades. Mas sobretudo lhe era doce, e talvez salutar, ver,
no meio de vida
tão verdadeira e livre, Luís
de Magalhães, robusto,
exuberante, patriarcal, com aquela sua clara alma onde a alegria
repica de matinas a
trindades, arando os seus campos e
fazendo os seus versos,
como outrora Virgílio.
Estas visitas, depois a sua
solidão, e sobretudo o motivo que a avivara, a definitiva entrada de Oliveira Martins na ação,
levaram Antero a considerar com mais atenção, quase
com paixão, a política,
os seus atos e os seus homens.
Sempre intensamente português, nunca alheio ao que interessava a nação, era
natural todavia que a política se tornasse para ele uma realidade mais sentida,
desde que um nobre amigo, um irmão,
passara das ideias
para os fatos, e surgia
como um reformador, empurrado,
aclamado por tantas esperanças
puras e crentes. Este novo interesse de
Antero não veio senão desmanchar a suave paz intelectual que o envolvia. Seguindo o movimento do mundo político com a curiosidade
com que se olha para
um mar onde o barco de um
irmão anda a manobrar e a rolar – Antero foi recebendo repetidas impressões de tédio e de desesperança. Aquele espírito pacificado, e tão feliz
quando contemplava metafisicamente o Universo,
porque sentia o fim soberanamente perfeito a
que ele marcha na sua evolução –
perdia a paz, perdia a felicidade, quando observava o pequeno Portugal,
e este curto momento
histórico em que ele se
debate entre tanta baixeza
e miséria moral. É certo que
a sua super-sensibilidade de artista; de metafísico e de
solitário exageravam essa miséria
e essa torpeza. E quando uma
tarde, passeando por
Lisboa, ele confessava a
um amigo, com terror sincero,
que em todos aqueles homens que se
cruzavam, na fria
tarde de Inverno, distinguia nitidamente
o signo fatídico da aniquilação
iminente, e a ferocidade mal
escondida de seres esfaimados que
se vão
entre-devorar – evidentemente estava sofrendo de uma visão e não
exercendo o seu destro e lúcido raciocínio. Assim S. Pacômio, descendo da
alta Tebaida a Alexandria, soltava gritos
pelas ruas, porque, sob as túnicas moles e bordadas daqueles alexandrinos
votados à sensualidade e à falsa dialética, ele via claramente o pé de bode que revela os demônios. Mas, de resto, a visão de Antero
tinha um seguro núcleo de realidade. E
pelo exame dessa realidade, a que ele
desfazia não somente todos os fios visíveis mas antevia os
prolongamentos ainda encobertos, viera
a descrer de Portugal, com uma
descrença que lhe era angústia.
Angústia bem contraditória num
grande intelectual, que
sentia o mundo, através de todas as aparências
perversas, marchar sublimemente para o. Bem,
supremo e consolante momento
da evolução do Ser. Que pode importar uma chaga em corpo, que, por efeito mesmo dessa chaga e da
sua decomposição, se
está transformando no puro espírito,
no anjo? Tais contradições, porém, pululam no misticismo,
enchem a história dos Santos do Deserto.
E a angústia era tanto mais
pungente quanto Antero via o seu grande amigo Oliveira Martins que se debatia, já
vacilando, no meio desse mundo por ele considerado de irresgatável torpeza.
Hércules partira para limpar as cavalariças
de Augias: Antero animara, acompanhara
Hércules até às portas da escura
infeção: – e agora o lodo, em vez de
diminuir sob o esforço (que se julgara
invencível) do filho forte de Zeus, parecia
crescer, cada manhã mais espesso, para o
imobilizar e sufocar. Desalento amargo
para Antero – e repassado
de cólera. Quando eu, justamente por
esse tempo, o convidava
a traçar na «Revista
de Portugal» um
«Quadro da Sociedade
Portuguesa», ele recusou
asperamente, declarando que, a respeito de Portugal, só «podia rugir, vomitar
amargores, e esses rugidos e amargores, sem o aliviar, magoariam e contristariam
outros». Era ainda
aqui o homem que no meio da
grande cólera, não esquece a
grande caridade.
Dentro dessa
caridade estava já a
semente de uma nova e definitiva pacificação.
Mas tinha ainda de ser fantasticamente iludido,
de criar outro imenso fantasma, para o servir com amor. É seguindo fantasmas,
através do «palácio encantado da
Ilusão», que afinal se vem a repousar
deliciosamente na paz do Senhor. Essa
singular ilusão foi a Liga
Patriótica do Norte.
Ele próprio lhe chamava «o seu
derradeiro fantasma». Antero acreditou
então, e com deslumbrado ardor, em
coisas inacreditáveis – na juventude
iniciadora; na contrição dos
velhos partidos pecadores; na alma quinhentista de Portugal ressurgindo;
no despertar de um povo, com a
vontade bem consciente, e formulada em
comícios, de ser novamente esforçado e grande!
Trazido por uma turba de
estudantes, que a força de uma lenda impelia, e que agitavam tochas e bandeiras, deixou o seu
retiro de Vila do Conde. Sem ainda saber o que
se pedia
à sua forte autoridade moral, foi aclamado numa assembleia
do Porto, onde
os secos burgueses do tristonho
burgo se entre tocavam o cotovelo, murmurando com desconfiança:
– «Quem é ele?» Era um símbolo.
Na casa em que se hospedara, tremulava sobre uma varanda o estandarte de Portugal, anunciando,
à velha moda
feudal, a presença
do senhor da
terra, defensor das
gentes e dos gados. Tão simbólico
era que alguns mais exaltados, ou mais estéticos,
estudavam a forma de uma dalmática de
doge, toda em veludo e arminhos, com que
ele devia presidir às sessões da Liga!.. E a
Liga, que ainda mal nascera,
já findava decomposta. Tão decomposta
que dentro dela não restava outro
movimento senão o fervilhar dos vermes
partidários, Regeneradores e Históricos.
Quando se acabaram de elaborar os
estatutos, que eram o programa muito
complexo da Nova Vida, a Liga
já não existia, dispersa, sumida, toda
fugida para os hábitos
da Vida Velha. Os políticos tinham recolhido aos seus
centros: – a juventude que fora arrancar Antero à metafísica, regressara,
cansada desse esforço, às banquetas e aos
bocks dos cafés da
Praça Nova. Na
sessão em que se leram os consideráveis
estatutos só havia na vastidão dos bancos, quinze membros que bocejavam. E numa outra final, como ventava e chovia, só
apareceram dois membros da Liga; o presidente, que era Antero de
Quental, e o secretário, que era o conde de Resende. Ambos se olharam pensativamente, deram duas voltas à
chave da casa para
sempre inútil, e vieram, sob
o vento e sob a chuva, acabar a
sua noite em Santo Ovídio.
Assim se sumiu a Liga. E,
desfeitas as formas revoltas desse estouvado sonho, Antero
reentrou numa paz magnífica.
Nunca com efeito, como nessa Primavera, quase toda passada em Santo Ovídio, o conheci tão
sereno, tão estável na
vida, de uma tão diligente e risonha sociabilidade, movendo
o espírito dentro de uma
liberdade tão rica. Se algum amargor lhe
ficara dessa ilusão derradeira, a que
tão candidamente se abraçara e que tão
chochamente se esvaíra, decerto a sua
ironia lho adoçou ou de todo lho
dissipou. Foi talvez mesmo um
motivo para subir de novo àquelas alturas do
pensamento, donde as coisas se
avistam na sua essência e verdade intrínsecas, sem que importem os acidentes, as modalidades e as imperfeições
transitórias. Ei-lo pois de novo refugiado
na impassibilidade subjetiva, na alva torre de marfim. O seu país, é certo,
apodrece.. Que importa – se o
universo todo, onde ele é apenas uma mancha esverdinhada, se move divinamente para o Bem,
para a Verdade, e para a Beleza?
A este equilíbrio de alma
correspondia então nele uma verdadeira pacificação fisiológica.
A não ser
por certos cansaços, e pelo hábito de
comer como os faquires da Índia uma única vez de sol a sol (o que à
nossa voracidade godo-latina se afigura uma
deficiência mórbida) Antero possuía todas as facilidades e exterioridades da
saúde, começando pelas rosas
desabrochadas que lhe resplandeciam em
cada face. E neste sossego de alma e de
corpo, depois dos tormentos que ambos tinham atravessado, brilhava, com uma luz mais alta e mais visível,
a sua excelência
moral. Conviver então com Antero
foi um encanto e uma educação. Não conheço virtude
que ele não exercesse: e com uma graça tão fina e fácil, que a Virtude,
através dele, aparecia, não só como a suprema utilidade, mas como a suprema
elegância da Vida. A alma de Antero, com
efeito, foi sempre superiormente elegante.
Logo os seus modos tinham uma
harmonia carinhosa, envolvedora,
que era melhor que a
boa cortesia social,
e que não nascia somente da raça e
da cultura, mas
do nobre fundo dos instintos,
do seu amor e alta caridade humana. Não havia nele nenhum
dogmatismo, nem orgulho de casta filosófica;
e mesmo sobre doutrinas, e em
coisas da sua fé, nunca usava aquela «ponta agressiva
da contradição» que todos os teólogos
concordam ser a qualidade mais
desagradável do Diabo. Era cheio de paciência, de atenção afável, para os seres
mais fastidiosos, mais viscosos.
Todas as manias e preconceitos
o encontravam risonhamente misericordioso. E sem esforço, a cada instante
a sua inteligência,
acostumada às alturas,
descia até às familiaridades da rua, pequeninamente simples com os simples, tão
fácil que uma criança podia brincar
com ela, semelhante a essa estrela da
lenda que era um mundo,
e que na cabana da
pastorinha vinha prestar os
mais humildes serviços, e ser a fagulha que acendia a lenha
e a luzinha que tremelejava na candeia. Por isso Antero cativa «toda a sorte
e condições de gentes várias», como
diz a Bíblia. Vi lavradores, diplomatas,
industriais, toureiros, meros vadios,
voltarem da sua companhia
gratamente encantados, e cada
um louvando nele um dom diverso. qual o bom senso, qual o saber
especial, qual a gentil graça, qual a doçura. Tacanhos beatos, de
relicário e opa, amavam aquele
livre filósofo: e mundanos,
de estouvada mundanidade,
viviam no entusiasmo daquele asceta. Isto provinha,
menos da sua ilimitada aptidão para compreender,
que da sua amorável
facilidade em se interessar: – e ainda também daquela
sua delicada arte,
tão rara e benéfica, provando sempre nobre raça e muita
humanidade, a arte de «saber escutar». E não só de escutar, mas de ajudar o pensamento dos outros a surgir
dos embaraços da expressão perra, a lançar o seu pequenino
brilho: – e assim muitos afirmavam que, conversando com Antero, se sentiam inesperadamente mais
inventivos, mais inteligentes... A inteligência era
a dele, que,
como o generoso sol, feito de ouro candente, tudo doura em redor.
Era tocante como atraía as
crianças. Muitas noites em Santo Ovídio, quando junto
do fogão Antero conversava, sentado
no meio de um divã,
na sua atitude costumada, com as pernas cruzadas, as duas mãos cruzadas
sobre o joelho magro,
surpreendi pequenos de seis e sete anos, que,
desviando os olhos de algum livro de estampas, o
contemplavam maravilhados. Ele possuía, de resto,
a subtil ciência
de tratar com crianças, sendo
ainda ele próprio como uma criança,
porque a sua alma, que tanto
vivera pela cogitação, nada perdera
da candidez – e era
assim ao mesmo tempo muito velha
e muito inocente.
O motivo desta incomparável
sedução era a sua bondade, tão luminosa, tão repassada de intelectualidade. Antero nesse
tempo, tornado verdadeiramente Santo Antero, irradiava bondade.
Como naqueles jardins espirituais celebrados pelos místicos, donde se varreram todas as folhas secas,
donde se arrancaram todas as ervas más,
muito limpos e enfeitados para receber a
visita do Senhor – na
alma de Antero, de que ele fora jardineiro cuidadoso, não restava erva má ou folha seca, nem egoísmo,
nem soberba, nem intolerância, nem desdém, nem cólera. Só as flores do Bem
(de cuja duração e perfume ele outrora
duvidara) floriam, e tão lindamente e frescamente que o
jardineiro agora repousava, e a cada
hora de sol ou de crepúsculo o Senhor podia descer e visitar o
seu jardim. . Quando muito, aqui, além, numa ponta de folha mais lustrosa, corria uma faísca de ironia.
Mas o sarcasmo, esse,
inteiramente o abandonara, como arma de batalha que se
deixa enferrujar logo que vem a bela e
doce paz. Também o meu santo amigo perdera aquela
exuberante veia cômica, que fazia da
sua conversa como
um seguido estalar de foguetes,
enchendo o céu de festivo ruído, de estrelas quase
verdadeiras, de sulcos cor
de ouro, onde se iam levados o nosso pasmo e os nossos ahs! deleitados. O
seu conversar agora era calmo e liso, desadornado de todos os brilhos
intensos, de uma elegância muito leve, de uma
lucidez muito insinuante,
sempre risonho, sempre
sociável, e tão naturalmente harmonioso que formaria páginas
de uma incomparável prosa, só
corri ser transcrito, sem
necessidade de lima e arte que o apurasse.
A grande obra
de Antero, na verdade,
foi a sua conversa.
O que resta em panfletos,
artigos, ensaios, representa tão
incompletamente o seu pleno, rico, povoado,
fecundo espírito, como secas folhas de
árvore entre folhas de papel representam
um fundo bosque da Florida.
Só os que o escutaram, na intimidade,
ficaram conhecendo a
prodigiosa abundância,
originalidade, finura, profundidade e
força do seu pensamento. A antiquada
comparação do «relâmpago»
iluminando subitamente horizontes,
campos, estradas, casais, toda uma
vastidão de vida e terra
que se não suspeitava sob
a escuridão, descreve
muito graficamente o efeito intelectual de Antero conversando. E o encanto estava em que todo este deslumbramento era produzido
com muita simplicidade – quase com humildade.
Tão fortes qualidades morais fundidas numa graça tão
cativante, modos tão suaves
e amoráveis servindo uma tal energia pensante, faziam de Antero de Quental uma personalidade magnificamente
consoladora. No meio da mediocridade espiritual, e da inconsiderada rudeza dos costumes,
e do materialismo
argentário, os espíritos delicados encontravam na sua intimidade,
e mesmo na sua fugidia convivência, um repouso
semelhante ao que o corpo cansado
e pisado do calor, do pó. dos encontrões de uma
feira de gado, recebe ao penetrar
na frescura e na elevação de um templo.
Antero possuía uma alma onde, na
meiga e intraduzível expressão de França –
il
faisait très-bon. Por isso todos os intelectuais, que uma vez o
encontrassem, lhe conservavam para sempre um sentimento que era
misturado de amor e não dissemelhança da
devoção. E tínhamos ainda
nele um confortante orgulho,
pois bem sentíamos que esse homem tão
simples, com uma má quinzena de alpaca
no Verão, um paletó
cor de mel no Inverno, vivendo como um
pobre voluntário num casebre de vila
pobre, sem posição nem fama, sempre ignorado pelo Estado, nunca
invocado pelas multidões, era o elo rijo,
o mais rijo elo de fino
ouro, que prendia Portugal ao mundo do pensamento.
Ora uma nação só vive porque pensa – e
pelo que pensa. Cogitat,
ergo est. Naquele
humilde, pois,. que se
comprazia entre os humildes, estava a mais larga e mais rica soma da verdadeira vida de Portugal.
Como aquela noite de Coimbra em
que o conheci, era também de Primavera e de
luar a noite derradeira que passamos
juntos em Santo Ovídio. De tarde andáramos
por sob os nobres e
seculares arvoredos da
quinta. Depois ele descansou
no meu quarto, estendido na cama, com o
seu cigarro, como nos tempos
escolásticos. Pela varanda, orlada de
glicínias, aberta sobre os jardins, entrava frescura,
paz, o murmúrio dos repuxos dormentes, todo o aroma esparso das rosas de Maio.
Antero amava aquela velha
vivenda patrícia, refúgio excelente para um
erudito, ou para um
magoado da vida que procurasse
um ermo ainda florido e onde a severidade fosse risonha. E assim viemos a
conversar desta materialidade dos tempos, e estridor das cidades, e exageração da
atividade cerebral, e aspereza das democracias, que começam a empurrar tantos seres
sensíveis ou mais imaginativos
para a quietação religiosa
e para o Deserto moral. Antero pensava que uma
forte reação espiritualista e
afetiva se seguiria à materialidade
deste duro século utilitário e mercenário;
– e, rindo, relembrou a sua antiga ideia,
a fundação da Ordem dos Mateiros. Estes monges do idealismo teriam por
missão o reconstituir, em toda
a sua
beleza e dignidade
primitivas, a vida rural,
a mais elevada, porque imolando toda a civilização sumptuária,
e portanto todos os apetites, e paixões, necessidades
falsas que dela derivam, e
reclamando apenas o seu bocado de terra,
o seu bocado de pão, conquista
socialmente a verdadeira liberdade,
e através dela se
prepara a atingir espiritualmente a verdadeira perfeição.
Mas não era esta a
obra melhor dos
Mateiros. Toda essa reorganização do mundo, na forma de quietos
e fecundos hortos, servia de base a uma alta renovação religiosa. Qual?
Antero tendia para uma mistura do platonismo e do budismo. Eu preferia que os
Mateiros, retomando a grande obra de cultura que fez a conversão do
cristianismo católico em cristianismo histórico,
a adiantassem, deslocassem o cristianismo da região da história para a região
da psicologia, removessem toda a aluvião eclesiástica e teológica, e descobrissem, revelassem o ponto verdadeiramente divino –
o estado da consciência de
Cristo. . Tudo isto ocorria muito
familiarmente, sem pompas exegéticas ou filosóficas; e terminamos
mesmo por escorregar da
filosofia para a fantasia,
organizando a Ordem, os seus estatutos, a sua disciplina, o seu traje,
o seu cerimonial. Toda
a dificuldade foi que,
para esta adorável reconstrução da terra e da humanidade,
repercorrendo os nossos amigos, só encontramos
três Mateiros sérios. E eu
próprio, tão delicado, reclamava já confortos,
regalias estéticas, e uma poltrona no Deserto. Depois apareceu o conde de Resende, que imediatamente pediu o hábito e a enxada, e
ofereceu, para se erguer o primeiro mosteiro, uma das suas terras, Canelas ou
Resende.
A velha quinta de Resende
parecia a Antero
excelente, quase fatídica
para uma obra de conquista
espiritual – pois sob os seus históricos
arvoredos fora educado Afonso
Henriques, de entre eles saíra
a velar as armas na
Sé de Zamora, e,
depois, cavaleiro cristão, a
bater o Moiro, e a
fundar o reino cristão. Aceitamos a quinta com apostólico
fervor. Mas o senhor de Resende teve exigências tão epicuristas a respeito do
refeitório, que Antero, indignado, apesar
da magnífica oferta, o expulsou logo da
Ordem como tinhoso, servo irremediável
da carne... Assim riamos, brincando com
os problemas, entre o aroma das rosas
naquela noite de Maio.
Já tarde acompanhei Antero à
casa que ele habitava na Rua de
Cedofeita. Conversamos sobre os
seus planos – porque agora as
«pequenas», crescidas, iam sair das
Doroteias, e para as instalar no mundo, devia ele repenetrar no mundo.
Pensava pois em
voltar à sua ilha, a S.
Miguel, como sendo um mundo mais sereno, mais puro,
mais fácil. Lisboa,
para Antero, era
uma Nínive revolta e sórdida. Diante da sua porta aberta ainda nos retardamos em pensamentos ligeiros da vida e da sorte. Por
fim: – «Adeus, Santo Antero!» – «Velho amigo, adeus!» Ele mergulhou lentamente
na sombra do corredor. . E não o vi mais, nunca mais!
Foi para
S. Miguel, para o
seu mundo mais doce, mais
fácil... Depois uma tarde,
como aquele filósofo Demónax, de quem conta Luciano, «concluindo que a
vida lhe não convinha,
saiu dela voluntariamente, e
por isso muito deixou
que pensar e murmurar aos homens de toda
a Grécia». O que
dele pensam os homens
da nossa Grécia, não o sei – pois que de há muito
na nossa Grécia uma
apagada tristeza traz os
homens desatentos e mudos. É morta, é morta a
abelha que fazia o mel e a
cera! Quem se nutre ainda do gostoso
mel? Quem se ilumina com a
pura cera? Por mim penso,
e com gratidão, que em Antero de Quental, me foi dado conhecer,
neste mundo de pecado e de
escuridade, alguém, filho querido de
Deus, que muito padeceu porque muito
pensou, que muito amou porque muito
compreendeu, e que, simples entre os
simples, pondo a sua vasta alma em
curtos versos – era um Gênio e era um
Santo.
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Nota:Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902
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