O PRECOCE
A JOÃO DE BARROS
Tinham já lugares marcados. A mãe
à cabeceira, logo ao pé a tia Olívia, para contar histórias; os outros em
redor, e aos pés da cama, em frente ao doentinho, o busto nobre do tio Eduardo,
já grisalho, a sua máscara fina um pouco vaga, como a de todos os que vivem no
silêncio como outrora se vivia num convento. O pequenino era assim uma
figurinha de mito familiar, e nas suas palavras lentas, de intuição e de
carícia, todos se ouviam como o mar nas conchas. Tinha uma voz de sombra amiga.
Adoravam-no. Mas agora, martirizado de dores, a consumir-se dia a dia, as mãozitas
transparentes, entravam no terror de o ver pior. E se um móvel estalava, um
farrapo de luar batia os vidros, ou ao cair da noite, a sombra vinha,—tremiam
no silêncio, tinham medo, como se disfarçadamente a Morte entrasse, viesse de
mansinho pra gelá-lo.
Às vezes, nas pausas de algum
conto ou da conversa, se alguém se voltava, logo os outros inquietos o seguiam;
e era vulgar olharem a porta de soslaio, como se esperassem alguém, uma
visita...
Todos falavam em surdina, velando
a voz um pouco opressa, e assim as coisas mais banais tinham um não sei quê de
estranho; as palavras caíam como folhas secas e nos olhos de todos havia uma
expressão de adeus. Nem todos, nem todos! A mãe radiava fé. Bastava ver-lhe as
mãos correndo a dobra do lençol, de veias altas, intumescidas de ternura, e pousarem
numa geada de beijos nas mãos do seu filhinho, para sentir a emoção louca,
religiosa, tendo ressurreições em cada gesto, sarando num olhar, numa oração. É
que essa criança era a sua própria alma, presa naquele leito como um passarito enfermo,
abrindo pra ela olhos enormes, como para decorar bem, antes de partir; e
dizendo de quando em quando: «mamã, minha mamã», num rumor de asa cansada.
Era muito moreno, tinha a testa
alta, um pouco bombeada, boca de lábios finos, mento curto, bussolado em
covinhas, que a magreza já quase que delira. Mesmo quando tinha saúde, ria
pouco; não sabia brincar e qualquer coisa, o mais simples aspecto, o distraía
como numa visão inconsciente.
Tinha um ar de quem se lembra.
Uma vez foi ao colégio. Voltou com febre, doente, a tremer todo, e quando o pai
o interrogou, só pôde dizer «que não era nada, que não tinha nada». Mas à
noite, quando a mãe ia a deitá-lo, rompeu a beijar-lhe as mãos, num choro
brusco, e mal pôde pedir entre soluços, de mãos postas, pra não voltar... pra
não voltar mais ao colégio.
—Sossega, meu filhinho. Quem te fez
mal? Que te fizeram? Não voltas mais, não voltas mais. Que te fizeram?...
—Vi bater num menino.
E outra vez o choro o sufocou, em
bagas grossas, torcendo o seu corpinho de arbusto à ventania. Nessa noite teve
febre, delirou, e os pais resolveram que tão cedo não voltava. Pediu então à
mãe que o ensinasse. Ao cair das tardes, com a costura no regaço, ela dava-lhe
lição, e em pouco tempo, por entre confidências que eram beijos, ele aprendeu
maravilhado a ler. O seu amor cresceu ainda, como regado de gratidão. Dizia
«mamã» como quem reza.
Adorava-a. Nas tardes de sol, os
irmãos brincavam no quintal; chamavam-no, e como ele era o mais pequeno,
faziam-lhe mimos, numa grande ternura protetora. Ele não ia, desculpava-se.
Preferia ficar junto dela, na varanda de pedra, a vê-la bordar.
—Não queres brincar, Milinho?
Vai, vai brincar com os manos.
Ele erguia os seus olhos de
veludo:
—Deixe-me estar ao pé de si,
mamã. Não há nada tão bom pra mim.
Raro saíam. Ás vezes, com a mãe,
ia às tardes à Foz pra ver o mar. Voltavam ao anoitecer. Falavam pouco.
—Gostas do mar, Milinho?
—Muito, mamã, muito. É a coisa
mais linda que há.
Foi ao voltar de um passeio
assim, numa tarde de novembro, que o pequenino teve tosse e cuspiu sangue.
—Que te dói? Dói-te o peito?
—Pouco, mamã. Não se aflija. Não
há de ser nada.
O médico veio, aconselhou
cautela, receitou. Teve depois com o pai uma conferência larga. E foi então que
o terror abriu sobre ela as asas côncavas, geladas. Não podia dormir. Levantava-se
a cada instante, pra ver se estava bem coberto, se tomara o remédio, pra
senti-lo. A tosse dele feria-lhe também o peito; transia-a toda, como um dobre.
Vestia-se à toa, sem cuidado. Tudo o mais lhe era indiferente. Marido, os
outros filhos, família, governo da casa, visitas, os outros... que lhe
importavam agora, se o seu filhinho estava mal?
E extenuada, adormecia às tardes
à cabeceira do doentinho, que a olhava a sorrir, muito feliz, como se fosse um
ser de conto preso num lindo encantamento. Pouco a pouco, apesar de ninguém o
achar melhor, foi-se esvaindo o terror dela, e uma grande loucura, a loucura
divina da esperança, galvanizou-a de coragem, deu-lhe fé. Amava-o com toda a
carne e toda a alma.
O casamento tinha sido, para sua
índole delicada de romântica, uma decepção dolorosíssima a que pouco a pouco se
adaptara. Não teve crises, não sofreu violentamente. Foi um espairecer lento da
ilusão; todo o seu sentimento que morria como uma planta à sede; e ela curvara
a cabeça, aceitava a vida que lhe davam, com uma resignação de fraca que se
esquece. Teve dois filhos. Criou-os. E uma paz de maternidade um pouco animal,
foi-a acalmando; o seu passado de sonho estava longe, nas águas mortas da
memória; e ia vivendo assim, anestesiada, sem os sobressaltos de nervos de
outros tempos, uma vida normal e clara, no seu lar, entre os seus. Era uma
renúncia sem tortura, inconsciente.
Passaram alguns anos, uniformes,
que só a doença de um filho ou do marido vinham alvoroçar de longe a longe, e
que por fim se sumiam na memória, na mesma cinza neutra, pardamente. Vivia como
se fosse a própria sombra. Já não esperava ter mais filhos. Quando soube que ia
ser mãe ainda uma vez, teve a emoção maior da sua vida. Certo, ela foi sempre
boa mãe: amava os seus dois filhos muito e muito. Mas agora era diferente, era
outra coisa. O que viria era mais, bem mais que os outros: era o filho dela e
do seu sonho... Ressuscitou em si mesma: renasceu. O seu sangue rezava nas
artérias promessas que antes não lhe ouvira, e começou a parecer-lhe que esse
filho era a compensação que Deus lhe dava, quase um milagre, a flor inesperada
em que o seu sonho redivivo iria abrir.
A sua vida banal, desencantada,
murchando dia a dia, sem interesse, num automatismo frio e resignado, fora uma
provação, tinha passado: e os seus nervos de histérica, despertos, com todo o
amor que a vida sufocara, calcado em resignação, morrendo à sede, renasciam a
vibrar de esperança, davam-lhe uma beatitude transcendente.
O seu filho (estava certa que era
um filho) seria um pequenino abençoado, com um destino que só ela e Deus
sabiam, e no primeiro olhar que ele lhe desse, pressentiria um evangelho novo
como um beijo a correr-lhe toda a alma... Tudo mudou na vida dela, tudo. Mal
falava aos filhos, ao marido, que interpretava a estranheza dos seus modos como
a mudança de caráter, os caprichos que muitas mulheres tem naquele estado. Se a
olhavam insistentemente ou lhe faziam perguntas, alusões, isolava-se,
desaparecia de repente, como alguém que vive para um segredo e receia que os
outros lho desvendem. Parecia mais alta, enlanguescida, com grandes olhos
sempre a olhar para dentro, como tem certas aves e os mármores.
Em solteira, nunca fez
confidências às amigas. Tecia a sua teia no mistério. Todos lhe achavam
qualquer coisa de dormente: não compreendiam bem o seu caráter. Mas como era
modesta e era boa, esquecida de si mesma e sem vaidade, deixavam-na viver no
seu silêncio como um nelumbo de pureza à flor de um lago. Mesmo no seu
isolamento da província, onde vivera com os pais até casar, lia pouco e sempre
os mesmos livros: vidas de santas, lendas de conventos. Exaltava-se com eles,
tinha fé em qualquer coisa que Deus lhe reservava. Durante os serões lentos,
costurando, cismava que nascera para freira. Toda a sua energia, a sua força,
abrasava o seu sonho, era interior: e quando batiam à porta da sua alma, ela
saía distraída, resignada, a obedecer aos seus passivamente. Esperava contudo
um não sei quê. O Destino dissera-lhe um segredo. E sem contar a ninguém o que
pensava, vivia como uma eleita: estava à espera... Os seus vinte anos em flor
eram para ele.
Foi debruçada a esta ogiva de
mistério, que a vieram chamar para a casarem. Depois a decepção, o sofrimento:
mais tarde a renúncia, a anestesia na sonolência banal dos seus cuidados.
Apesar de não casarem por amor,
outra qualquer, no seu lugar, era feliz. Ele era forte, delicado e bom. A sua
vida de engenheiro absorvia-o. Quando viu que aquela rapariga, que conhecera na
província vaga e meiga, continuava nos seus braços abstraída, com um olhar
desencantado e quase triste, compreendeu que fizera mal em ir buscá-la como
quem colhe um lindo fruto: erguendo o braço. Tentou então insinuar-se pouco a
pouco, interessá-la nas suas coisas, diverti-la. Por fim resignou-se, desistiu.
Como não era um sentimental, um romanesco, e a sua profissão o apaixonava,
contentou-se em ter nela uma amizade, um ser de lealdade e de doçura,
desdenhando teatros e convívios pela paz transparente do seu lar, e vivendo para
ele, para os filhos, e para aquela vida inviolada que desfocava os seus olhos
noutros céus... Como porém tudo mudara agora!
Dia a dia, a exaltação dela ia
crescendo. Uma noite mesmo teve febre, e o médico lembrou que pra acalmar, era
melhor uma mudança de ares, uma temporada na aldeia ou à beira-mar. Partiu
então para o Minho, para a quinta, e como nem o marido nem os filhos podiam
nesse tempo acompanhá-la, levou consigo apenas as criadas, dizendo que preferia
ficar só na grande paz do campo, a sossegar.
Era na Páscoa. Nessa ressurreição
da primavera, ao abrir a janela do seu quarto, aspirou no perfume dos lilases a
esperança que subia com as seivas, vibrando já nas asas migradoras e no pólen
que dourava o ar.
Enternecia-a tudo: as relvas
novas, ver os rebanhos beberar às tardes quando os montes violáceos se
concentram, os pássaros felizes no pomar, e à hora das regas, ao crepúsculo, a
alegria das águas borbulhantes, quando as estrelas vem, tudo descansa, pelos
atalhos vão chiando carros, e nos paus, pobres poetas líricos, os sapos piam comovidamente.
Nunca sentira tanto a natureza.
E foi nesta atmosfera de pomar
que ela esperou misticamente a hora suprema, querendo sofrer, feliz, extasiada,
como uma nuvem alta da manhã que o sol rompesse para descer aos homens...
Davam Trindades. A tia Olívia
contara um lindo conto. Ao sair dos palácios de feeria por onde a voz dela o ia
levando, o Emílio ficava a olhar as jóias, os anéis, a pedras preciosas
esparsas na sua mesa de doente e luzindo em sortilégio, na penumbra. Eram olhos
de fadas, encantados...
Não tiveram remédio senão
dar-lhos: por quanto tempo, meu Deus, por quanto tempo?... Para o distrair, há
dias, o tio Eduardo tirou os anéis e deu-lhos, e como o viram ficar muito
contente, os outros deram-lhe também os que traziam. Mas quando iam nessa noite
a despedir-se, ele ficou tão triste ao entregá-los, que o tio Eduardo propôs
que lhos deixassem e todos imediatamente consentiram.
—Fica com eles, Milinho,
guarda-os, guarda-os.
—Mas não são meus, não quero...
Assim, não quero...
—São todos teus, são todos teus,
meu filho.
Então em roda todos confirmaram a
mentira de amor que o alegrava.
Daí por diante, sempre àquela
hora, vivia num delírio de grandezas. Mas nesta tarde, ou porque o conto mais o
impressionasse, ou porque estava mais fraco e com mais febre, a excitação do
Emílio era maior. Os seus olhos de mago, muito abertos, dois veludos de febre
ainda mais negros, magoavam-se fitando as pedrarias, esse baile de cores e de
reflexos que pareciam mais vivos na penumbra, e como se a febre dele os
contagiasse, tinham fulgurações de um brilho agudo. Abria, abria os olhos
fascinado.
—Que lindo, mamã, veja que lindo!
Toda a sua carita consumida
desaparecia no clarão dos olhos, mais pretos que asas de andorinhas, ao
tremerem no ar em despedida. Outro sino mais longe deu Trindades, numa voz de
prata e de fadiga, como se lhe custasse a vibrar até ao quarto. Todos estavam
opressos, sem falar. E ele, erguendo os braços de repente, deixou-os ir caindo sobre
as jóias, cobriu-as com as palmas das mãosinhas, puxando-as contra o peito
avaramente:
—São todas minhas, não é? São
todas minhas...
—Todas, Milinho, disse a mãe
transida. Vergou-se então sobre elas com esforço, como se fosse para as beijar,
branco de cera, e repetiu ainda extasiado:
—É lindo, lindo... lindo. Não dou
nenhuma a ninguém. São todas minhas.
Espalhou-as um pouco sobre a
mesa, pôs de parte os anéis, ficou a olhá-los, e sorrindo à idéia que tivera,
disse baixinho:
—Vou pô-los nos meus dedos.
Começou a enfiá-los com cuidado nos dedinhos ossudos, só falanges, mas
deixava-os cair a cada instante, largos de mais, em fugas de reflexos. Já ia na
terceira tentativa, num desespero mudo, a arfar cansado, quando o tio Eduardo e
a mãe o ajudaram. Levantaram-lhe as mãos quentes de febre, e enfiaram-lhe os
anéis nos dedos ósseos, que ele ergueu quanto pôde, deslumbrado.
—Mamã! Estavam a dar Trindades.
Vou rezar uma ave-maria, vou rezar.
Na penumbra da alcova, de mãos
postas, escorrendo em reflexos irisados, a sua vozinha disse a ave-maria num
timbre muito fino de carícia, como um adeus que punha os olhos rasos, num
veludo expirante de palavras, desses que tem no outono, a horas mortas, certas folhas
de arbusto a despedir-se. Nem o tio Eduardo se conteve. Brilhavam-lhe já
lágrimas nos olhos. Ninguém tinha coragem para falar.
A lua, que agora vinha muito
cedo, batia na varanda, brancacenta. Ele tirou os anéis devagarzinho, como um
ser de conto, a sorrir sempre, e deitou-se para baixo fatigado.
—Dê-me as suas mãos, mamã, quero
senti-las.
E ficou a beijar-lhas muito
calmo. No enleio de uma emoção religiosa, todos queriam quebrar esse silêncio,
feito de sonho e de apreensões de morte, que avançava talvez na luz do luar.
Foi o tio Eduardo que falou:
—Esteve hoje um dia lindo, quase
quente. Temos à porta a primavera. Dentro em pouco, Milinho, estás mais forte;
já podes dar à tarde o teu passeio.
—Logo que possa, mamã, vou ver o
mar. Consigo, sim?
—Se Deus quiser, meu filho,
havemos de ir. E ainda antes, há de ir para o quintal brincar com os manos.
Sabes que a tua árvore, a magnólia, já está cheia de flores muito brancas?
—Ó mamã, mamã, deixe-ma
ver,—pediu ele erguendo a cabeça de repente.
—Mas vais apanhar frio, meu
filhinho. Amanhã, amanhã, agora não.
Tanto insistiu, que o levaram ao
colo até à janela, embrulhado em cobertores, muito contente, e ficou assim
alguns instantes, a carinha colada contra os vidros, no deslumbramento da
magnólia, da sua árvore, erguendo o tronco negro e lívido de lua, e nos ramos
implorantes e afilados, as flores mais brancas que há na terra.
Deitaram-no. Deviam ser nove
horas, pouco mais. E como sempre, levantaram-se todos para partir. Cada um
então foi dar-lhe um beijo, e ao apertarem-lhe as mãos—adeus Milinho!—ele
olhou-os desta vez mais devagar, com um olhar que nunca mais lhe viram, em
longes de meiguice, de outro mundo, numa névoa de lágrimas contentes. E sorria
ao dizer:
—Adeus, adeus. Tio Eduardo, tia
Olívia, adeus, adeus...
Essa criança assim, a
despedir-se, com uma voz perlada de carícia, encheu-os de aflição e de terror;
e foi mordendo os soluços, sufocados, que saíram da alcova, que partiram,
ouvindo dentro deles o crocito—nunca mais! para sempre! never more!—desse corvo fatídico, de lutos, que Poe revelou em
versos trágicos. Qualquer coisa de lindo ia morrer. Qualquer coisa de lindo ia
morrer...
No entanto na alcova, o
pequenino, alongava os bracitos para a mãe e dizia feliz, como em segredo:
—Que bom, mamã! Que bom estar só
consigo! Sente-se aqui depressa, mais pertinho...
—Aqui me tens, Milinho, aqui me
tens. E beijava-o na testa longamente.
—Como eu gosto de si, minha mamã!
Quem me dera viver sempre ao pé de si!
—Deus há de te sarar. Verás,
verás...
—Bem sei que lhe faz pena, não se
aflija: qualquer dia, mamã, eu vou partir...
—Nem digas isso, meu amor, nem
digas isso.
—Vou-me embora, vou, para muito
longe... Não faço falta a ninguém. Ficam-lhe os manos. Só lhe deixo a si muitas
saudades...
—Se tu gostas de mim, não digas
isso.
Ele tornou mais lento, resignado:
—Por sua causa, mamã, queria
viver ainda que fosse assim... sempre doente, sem saír do quarto, ao pé de si,
mamã, ao pé de si...
—Agora precisas de dormir, de
descansar. Fecha os olhos, Milinho, dorme, dorme...
—Então dê-me as suas mãos. Quero
dormir com as minhas mãos nas suas.
Dentro em pouco, serenamente,
adormeceu. Ela tirou as mãos devagarzinho, aconchegou-lhe a roupa contra os
ombros, e afastando-lhe dos olhos o cabelo, deu-lhe um beijo na testa, muito
leve.
Já o luar escorria pelos vidros
em lágrimas de opala e de mercúrio. A noite vinha ver o seu filhinho e enchê-la
de esperança e de coragem. Como o pai disse recolher mais tarde (uma entrevista
no club para negócios) mandou deitar
as criadas, ficou só: esperá-lo-ia ali, junto ao seu filho. Como dormia bem,
tão sossegado! Deus era bom, havia de salva-lo. E numa exaltação, quase feliz,
encostou-se à vidraça a olhar a noite.
A magnólia ao luar estava divina.
Se o pequenino a visse, o pobrezinho! Como ele gostava das árvores, do mar! Não
se lembrava de ter visto um luar assim. Fazia-lhe tão bem: acalmava-a toda. Via
ao longe, no rio, as mastreações, e distinguia as vergas, o velame, a luz dos
estais à popa, nictitando. Vila-Nova, a casaria, os arvoredos, subiam do outro
lado empoalhados, e a névoa que se erguera pouco a pouco, era já na colina ao
luaceiro uma via-láctea nova, avoejante, salpicada de luzes, muitas luzes, como
se Deus atirasse com amor, às mãos-cheias de estrelas sobre a terra. Toda a
mole granítica da Sé, galvanizada a lua, se animara: corria luar nas veias
dessas pedras, morenas do sol de tantos séculos, e toda a catedral se eterizava
como se as gárgulas aladas das cimalhas acordassem pra tentar um vôo último. A
casaria mesmo, estava absorta. Que lindo, meu Deus, como era lindo! Elfos de
lua, gnomos, rondas fluidas, andavam no ar com o pólen dos jardins, e as rosas
de toucar por sobre o muro, fechando todo o quintal em trepadeiras, tinham
nuances de síncope, esmaiadas. A paisagem era um sonho deslumbrado, numa
assunção pra Deus, erguendo os caules, e os troncos, as torres das igrejas, e
os olhos das janelas: de mãos postas. Deus fundira-se em lua, andava esparso,
como um filtro de sonho, transcendente, propiciando, amando, perdoando.
Bem certo: o seu filhinho
sararia. E nessa maré-cheia de luar, no encantamento sortilégio da noite, a
esperança subia a aluciná-la despertando o sonho místico de outrora. Aquela
figurinha não mentia: os seus olhos de mago eram proféticos. As suas mãos
tocando adivinhavam, como naquela noite, há já três meses, em que uniu, sob a
bênção dos seus olhos, as mãos do tio Eduardo e da tia Olívia, no silêncio que
em roda se fizera. Assim os dois souberam que se amavam, e ficaram a olhar o
pequenino como numa liturgia nupcial... E não tinha sete anos ainda então!
Mesmo a sua conversa perturbava, com inflexões de médium, reticentes, em que
palavras de sempre, as mais comuns, se engastavam em timbres de mistério.
Nascera para amar, o seu filhinho. E tudo, a sua voz de concha meiga, a sua
palidez estiolada, os seus olhos de oráculo—criança, diziam bem um ser predestinado,
um guiador augusto de destinos, em cuja atmosfera de carícia muita dor havia de
acalmar-se, como um perfume de rosa, a certas horas, nos beija com uma boca de
perdão.
Toda a vida do seu filho ia
passando. Descaíam-lhe as pálpebras, ao peso das quimeras debruçadas. E de
repente, estremeceu gelada. Sentiu o luar nas mãos, subiu-lhe aos seios... Se a
beleza da noite, transparente, este aquário em que a lua abria as veias e a
vida da terra ia boiando num abandono de ninféia aberta, fosse afinal uma cilada
d'Ela, um disfarce da Morte para roubar-lho!?... Meu Deus, meu Deus! Era
possível que ela viesse assim, essa maldita, na feeria argêntea dessa noite,
com a foice escondida em musselinas, silenciário carrasco sem memória, correndo
em passos de êxtase e de opala, e matando com um hálito de gelo, num aflorar de
plumas hesitantes junto do qual um beijo era grosseiro?... Um instante o terror
alucinou-a. Não deixaria a lua entrar na alcova! Ia fechar as portadas, e no
escuro, colando o corpo contra o seu filhinho, estaria mais segura, a
defendê-lo. Num sobressalto, foi até junto dele, ficou queda. Que imensa paz
nessa carinha meiga! Pôs-lhe a polpa dos dedos sobre a testa. Estava muito
suado como sempre. Mas a sua respiração era tão calma, e na concha das pálpebras
descidas havia uma doçura tão profunda, que se sentia bem que o seu anjinho
estava a sonhar com as fadas de algum conto, onde, como ele às vezes lhe
contava, a boa fada tinha a cara dela, e olhava e beijava como ela. Tudo corria
bem. Pra que assustar-se? Os seus nervos, afinal, só os seus nervos! E ao
voltar-se de novo para a noite, teve remorsos de ter medo dela, de ter
desconfiado loucamente que esse luar de perdão espargelado fosse um cenário
infame de traição, contra aquela flor—a pobrezinha! que era seu filho e Deus ia
salvar.
Voltou para junto da vidraça,
ainda trêmula, a sossegar nesse esplendor silente. O luar avançava sempre e
sempre. Já lhe dourava agora os olhos rasos, o cabelo, a testa, o corpo todo. E
com uma idéia súbita rezou. Não podia dizer a quem rezava, se rezava a Deus ou
ao luar... Mas Deus era o luar, era o luar... E agora estava certa, estava
certa de que ele vinha para curar o seu filhinho, e envolvê-lo todo para
sará-lo como um beijo de Deus a essa criança.
Pôs-se em bicos de pés o mais que
pôde, e com um gesto feliz, misterioso, corria os cortinados de mansinho, para
que ele chegasse mais depressa junto ao leito, a sorrir e a chorar, toda
contente. Ele vinha, ele entrava sempre e sempre. Estendia-lhe as mãos como a
chamá-lo, as suas mãos de mãe, de veias altas, que um dilúvio de amor
intumescera. Já despertava os móveis, seus amigos, a que ela queria como a
confidentes. E doida de feliz, quase riu alto ao ver-se no espelho enluarado.
Dizia-lhe baixinho: «entra, entra...» Já a cadeira de braços estava empoada e a
trama florida do tapete ressuscitava em gamas sonolentas. Se até vitalizava as
coisas mortas! Era Deus, era Deus este luar... E que sossego agora, que sossego!...
Até a bica do tanque se calara. Havia uma atmosfera de milagre, o seu sonho de
mística era certo. Os seus pressentimentos não mentiram. Era um destino
sagrado, o pequenino. Por isso Deus descera no luar: era ele, era ele, estava
ali... Isto era bem verdade, era a verdade. Mas então o seu filho estava salvo!
E desatou a rir perdidamente, num timbre de histeria muito seco.
De repente lembrou-se: o luar era
Deus: não devia pisá-lo, era um pecado... Fugiu então para zona ainda escura,
olhou o pequenino adormecido. Pareceu-lhe que sorria extasiado. Sentiu uma
alegria semi-louca, um excesso de esperança a sufocá-lo. Por fim ajoelhou-se
junto ao leito, chamando-o com as mãos, lavada em lágrimas; mas rindo sempre,
sempre, a segredar-lhe: «Entra, entra, entra...» Ele vinha, ele vinha, muito
fluido, de cada vez mais branco, mais divino. Debruçou-se então, beijou-lhe a
orla. Ergueu-se a radiar, transfigurada, com os olhos histéricos mais vítreos e
um riso em aro, descobrindo os dentes, numa beatitude arrepiada. Foi esperar o
luar do outro lado, as mãos nas grades da cama, à cabeceira. Ele dormia sempre,
o pequenino, uma mão escondida no pescoço, a outra sobre a dobra do lençol.
Curvou-se para ver onde o luar vinha. Mal conteve um grito de ventura. Tocava
os pés da cama: ia subir!... «Sobe, sobe, sobe» ia dizendo. O seu pobre coração
endoidecera: despedaçava-lhe o peito, de feliz. Premiu as fontes com as mãos:
«lá vem, lá vem. Bendito seja Deus, sempre bendito».
Havia um clarão no couvre-pieds agora. Uma larga lágrima,
redonda, foi lá rolar como uma grande pérola. Nesse instante ouviu como um
gemido. O pequenido mexia-se, acordava. Levou as mãos ao peito, despertou. Mal
se viu o veludo dos seus olhos... Quis erguer a cabeça, descaiu-a. A mãe
vergou-se sobre ele: «meu filhinho», pôs-lhe as mãos em caricia sobre as fontes
que um suor muito frio perolava, e ia beijá-lo, quando ouviu três vezes, como
um fio de voz, já muito longe: «mamã, mamã, mamã...» E fechou para sempre os
seus olhos febris de grande gênio triste depois dessa palavra suprema que era toda
a sua fé.
O luar chegara enfim à cabeceira!
Só quando ele esfriou sob os seus
beijos, só quando viu os braços que lhe erguera, para que Deus o visse de mãos
postas, implorando-lhe vida, o pequenino!—recaírem inertes sobre a roupa,
compreendeu o crime, o crime imenso.
—Vinha no luar a Morte... no
luar...
Voltou-se então num desespero
último, para o expulsar, para o pisar sob os seus pés: depois reanimaria o seu
filhinho: dar-lhe-ia a beber todo o seu sangue. Mas ficou paralítica de
assombro. O luar alagara todo o quarto: água lustral de lua, alma de lua, no
chão, no ar, em toda a parte... O seu sangue gelava-se nas veias. Não podia
lutar, era impossível. Ele invadira a alcova, asfixiara-a. Estava tudo perdido,
tudo, tudo... Abriu os braços, hirta, inteiriçada, e caiu ao desamparo, sem
sentidos.
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Nota:
Antônio Patrício: "Serão Inquieto" (1910)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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