quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Ana de Castro Osório: “A Vinha"

A VINHA

Luis saíra para o colégio ainda criança e de lá para as escolas superiores; assim os anos tinham decorrido sem que nunca mais visitasse a terra natal.

Dez anos, dez longos anos se tinham passado, e só agora voltava, como um foragido ou como um ladrão, que enlouquecido de saudades arrisca a vida e a liberdade para rever a terra que primeiro conheceu e é sempre para o homem a mais querida, a mais bela, a melhor de todas.

E — pobre Luis! — era na verdade como um foragido que voltava, escondendo-se para que o não vissem, envergonhado dessa fraqueza sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de guarda-marinha e o seu bonito bigode a ensombrar-lhe o lábio superior.

E voltava amesquinhado aos seus próprios olhos, ele que se julgava tão importante pelos estudos transcendentes, que seguira com certo brilho, porque só agora compreendia o sacrifício de cada momento, a luta de cada hora, o verdadeiro heroísmo obscuro e respeitável que a sua educação representava na vida da família.

Compreendia, afinal, um pouco tarde demais para que a consciência lhe ficasse limpa de remorso, quanta mentira santa fora preciso inventar, com quanta delicadeza envolver as palavras, quanta historia arquitetar para que ele aceitasse sem desconfiança o propositado afastamento em que o tinham conservado durante esse longo período de tempo.

Chegara por vezes a pensar, as poucas ocasiões em que reparara nisso, que o desprezavam, que era um pária, que os pais afastavam receando a vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e continuador.

Dizia-lhe a consciência que tal procedimento não era justo, porque — se é verdade que não fora nunca um estudante desses que se mostram com desvanecido orgulho, carregados de distinções e prêmios que esmagam o próprio dono e irritam os companheiros, — é certo que o curso lhe saíra limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença risonha de quem o levava com uma perna ás costas.

Lembrava-se de pensar ás vezes no fato, um tanto irritante, do seu afastamento sistemático da casa paterna, e pôr-se consigo a acusar os pais; mas á mais leve referencia acudia uma carta de Eduarda, que varria do seu coração, volúvel e bondoso, a desconfiança cruel.

Era sempre a mesma delicadeza inteligente, procurando as palavras para não magoar nem esclarecer, fugindo graciosamente duma pergunta mais nítida, dizendo pouco em longas cartas, que satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento mas muito deixavam escondido nas dobras duma alma que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os outros.

Eduarda, apenas mais velha dois anos do que Luis, fora desde criança uma pequena figura simpática de mulher, dessas mulheres adoráveis sem deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez por isso mais adoráveis ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para todos são a providencia, o refugio e a esperança.

Quando fora resolvida a sua entrada para o colégio militar, Luis ficara radiante. É que essa admissão fora o seu maior empenho, a ambição de largos meses e dias — desde que na terra aparecera, a propósito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros, que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas, vermelho e branco, a planejarem ao sol.

Não pensava noutra coisa senão naquela sua entrada para o colégio em que todos os alunos são já pequeninos homens, pequeninos militares de botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma compostura grave de disciplina rígida.

Fazia projetos, contava as peças do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas que lhe mandavam levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mialheiro de barro quando tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.

Mas quando chegou o dia da partida e viu á porta o carro em que devia seguir, os criados arrastando as malas, o pai gritando porque não estavam as coisas em ordem — e o comboio não espera! — quando viu a mãe soluçante por ver partir o mais novo, o mais fraquinho, o preferido — todos o sabiam—o Luis perdeu a coragem. E chorou, chorou intensamente, num soluçar fundo, próprio dessas naturezas impulsivas, febris, doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora passageira, nas sensações.

E ela, a irmãsita, já com a orla do vestido a procurar o cano da bota, a trança loira caída pelas costas, o corpo airoso e fino ainda sem o quebrado das linhas feminis, não tivera lagrimas que correspondessem áquela dor excessiva, nem palavras que consolassem aquela alma desolada.

Sorria até, para esconder uma ligeira tremura significativa no labiosito ainda criancil, mas o seu olhar era límpido, e a face, ligeiramente enrubescida, em coisa alguma traía o esforço enorme de vontade que a sua atitude representava. É que era realmente heróica aquela criança que represava as lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu legitimo desgosto ao ver partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.

Porque Luis e Eduarda eram, mais do que pelo sangue, que tantas vezes corre dessemelhante em filhos da mesma arvore, irmãos pela camaradagem no estudo e nos passeios, nas distrações como nos desgostos, nesses tão magoados desgostos infantis, que todos desprezam e são talvez os mais violentos e os mais desesperadores de toda a vida.

Mas Eduarda tinha a rara delicadeza de certas almas de exceção, que em si concentram a própria dor e só têm para a dos outros carinho e consolo.

Se o Luis soubesse o que ela sofria, ficando ali a vê-lo partir, debruçado na portinhola da carroagem e ainda a recomendar-lhe as suas coisas — os animais, as flores, os brinquedos abandonados!... Se ele soubesse como a pequena sentia já a solidão em que ia ficar, naquela pobre terra sem diversões e sem conhecimentos, ela que não cultivara mais amizades infantis além da dele!...

Nos primeiros tempos as cartas amiudavam-se: ele, contando tudo quanto via de novo e o trazia em contínua sobre-excitação, em duas linhas sugestivas, sempre apressado por falta de paciência para escrever; ela, narrando detalhadamente os pequenos casos domésticos, que tanto interesse despertam sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e brinquedos, a relação de todas as pessoas avistadas, os amigos da casa que perguntavam sempre por ele, os seus recados, as suas próprias palavras.

Luis bem o conhecia: eram verdadeiros recados aqueles, — não banalidades cerimoniosas — que evocavam, á sua recordação saudosa, as figuras amigas que as enviavam, de longe.

Depois, no fim das cartas, como repique festivo de sinos em véspera de dia santo, a esperança das férias, a contagem dos dias que faltavam para essa felicidade tão desejada e retardada sempre.

Quando se aproximava esse abençoado mês de setembro e ele já só esperava a ordem para embarcar no grande comboio resfolegante que o levaria ao conchego da família e ao abrigo das velhas paredes amigas, que tinham visto nascer e crescer umas poucas de gerações de rapazes como ele, uma carta vinha preveni-lo de que aguardasse o pai para seguirem ambos para uma dessas famosas praias do litoral onde um mês se passa sem se sentir na vida duma criança.

Assim foi passando o tempo: aos anos de colégio seguiram-se os da escola, sempre despreocupados e alegres, sem que coisa alguma o preparasse para o martírio incomportavel que estava agora sofrendo, sem que coisa alguma lhe fizesse supor o doloroso drama, obscuro e martirizante, que lá longe se ia desenrolando lentamente, esmagando com ferocidade os corações que tanto lhe queriam...

Também, que satisfação, livre de preocupações, ele teve quando recebeu aquela carta em que Eduarda lhe dizia, entre coisas ligeiras e banais: — que tinham resolvido vender a velha casa e o quintal para irem viver para Lisboa. Ficariam assim mais perto dele, quando as suas longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a família. Assim estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.

Que alegria a dele! Nem sequer lhe passou pela cabeça a lembrança dessa velha casa, que os abrigara, carinhosa e maternal, como tinha já abrigado os pais e os avós, e vivia como ser consciente dentro do fundo da sua alma.

Como Eduarda, querendo poupar toda a mágoa ao seu coração mal preparado para a dor, mostrava bem conhecer essa natureza de amorável e sentimental, que um nada arrebata á mais acesa alegria como á mais desolada tristeza!...

A vida intensa das grandes cidades, que mais a fariam a ela viver adentro de si mesma, concentrando-a no seu eu, tirava-lhe a ele a sensação nítida da sua vida própria e, apanhando-o nessa engrenagem barulhenta e niveladora, dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos de toda a gente.

Agora, com a vinda dos pais e da irmã, sentia-se bem feliz para nem sequer se deter a pensar nos prováveis motivos que tinham determinado aquela resolução.

Como estaria Eduarda, que deixara ainda uma criança, tantos anos volvidos sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe sempre, nas suas cartas, que se sentia muito velha e doente, mas ele sorria-se confiante e não a via senão como a deixara, sorridente, laboriosa e desempenada, a alma de toda aquela colmeia que era a casa paterna.

Com que impaciência febril esperou o dia marcado para a chegada, e como logo de manhã, ao alvorecer desse dia bendito, se sentiu outro, alegre até á loucura de ter vontade de abraçar toda a gente, de saltar pelas ruas como uma criança, sentindo-se leve, surpreendendo-se diferente, mal cabendo na sua bonita farda de guarda-marinha!

Ás horas da comida não conseguiu engolir com desfastio os costumados manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço apertado prometendo-lhe trazer a família para que os conhecesse, — havia ela de ver como eram seus amigos...

E a velha D. Engrácia, que tantas vezes se arreliara com as suas telhas, como ela dizia, sentiu que as lagrimas lhe vinham aos olhos com a comunicativa sensibilidade daquela alma que se escancarava para lhe mostrar quanto sentia de bom.

Muito antes da tarde já ele se dirigia para o Rocio, na ideia inconsciente de se aproximar da estação onde os iria esperar, algumas horas mais tarde.

Falando com um e com outro, discutindo um pouco sem se interessar muito nas conversas, entrando no Tavares Cardoso para folhear um livro, indo ao Martinho beber uma cerveja, mastigando cigarros sobre cigarros, impaciente e febril, mas alegre e falador como nunca os seus amigos o tinham visto...

A hora chegou por fim, porque todas as horas chegam, por mais doloroso ou lento que seja o seu caminhar esmagante, como fogem todas, por mais que as queiramos retardar um instante nos raros momentos que nos trazem felicidade. Ele lá estava, desde muito cedo, esperando na gare, sentindo o coração bater desordenado, quando ao fundo do túnel despontou a luz vermelha da locomotiva e o guarda tocou a corneta anunciadora, ao passar nas agulhas... Depois, que estranha sensação a sua ao ver as três cabeças, que resumiam todos os seus grandes afetos, debruçarem-se nas janelas do vagão, sorrindo-lhe e reconhecendo-o de longe! E ele, que só reconheceria o pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a diferença que faziam as duas: Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que recordasse a criança esbelta que deixara; a mãe, debilitada e encanecida, tão velhinha, que não podia afirmar que não houvesse engano.

Oh, mas a velhinha é que o reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e abraçando-o com frenesi e achando-o mil vezes mais bonito do que ao retrato.

Também Eduarda o abraçou alegremente e achou muito bom, apesar de um pouco menos forte do que ela, que se talhara e desenvolvera longe da atmosfera falsificada da cidade, no puro ar criador da montanha.

Chegou também a vez da Maria o abraçar, — Maria; a criada fiel que os acompanhara sempre, que era alguém na família, uma pessoa que a todos satisfazia e com quem todos contavam.

Inolvidável momento aquele que os reunia, depois de tão grande e inexplicável afastamento; encantador de contentamento esse primeiro repasto, num restaurante trivial da Baixa, para darem tempo a que as bagagens pudessem chegar á casa muito alegre que ele escolhera, com vistas sobre todo o estuário azul do Tejo, onde a lua entornava, nessa noite gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente adormecedora...

Luis sentiu-se orgulhoso com os elogios que a sua escolha cuidadosa mereceu á irmã e queria convencer a mãe de que nada havia que se comparasse ao espetáculo grandioso de toda essa cidade picada de luzes, estirando-se ao longo do rio, que centenares de pequenos faróis faziam também palpitar e viver, como outra cidade flutuante.

A pouco e pouco, abertas as malas para que tudo fosse colocado no seu lugar, Luis começou a reconhecer com enternecimento as velhas coisas que os seus olhos de petiz haviam conhecido e admirado. Foi com alegria quase infantil que levou á mãe a velha caixa de xarão, herança da avozinha, onde eram guardadas cuidadosamente as pequeninas coisas preciosas que queriam roubar á curiosidade, nem sempre segura, das suas mãositas de criança.

Uma chávena, uma jarra, qualquer coisa enfim que ia aparecendo, lhe ia trazendo uma saudade da infância longínqua e que esvoaçava agora na sua alma como farrapo branco de nuvem distante a dissolver-se num rubro poente.

A mãe, que um momento ficara só junto dele, chorava silenciosamente, olhando-o com ternura.

Luis não compreendia — chorar!?... Então não estava satisfeita por estar em Lisboa, com ele? Não viera por sua muito livre vontade?

E então a pobre senhora, incapaz de por mais tempo o iludir, desejando mesmo — no egoísmo inconsciente dos que sofrem — associar todos á sua dor, não se fez rogada e disse, disse tudo, tudo quanto de amargurado e desesperador lhe tinham dado esses anos em que o não vira.

— Fora uma luta tremenda e desigual, essa que o pai sustentara durante anos, contra tudo e contra todos, sem perder a energia, sem trepidar nem recuar. Primeiro, ia muito bem nos seus negócios — o Luis devia lembrar-se... Depois, as fianças, os roubos, a má fé de uns, a inveja mesquinha de outros, abalaram-lhe o crédito, envolveram-no em questões e demandas, fizeram-no perder uma a uma todas as suas belas propriedades, as compradas á custa de muito trabalho e as que herdara pessoalmente, e até a sua própria casa de moradia, quando já nada mais tinha que desafiasse a cobiça alheia, lá se fora embora, com o quintal. Sim, esse fora o último e o mais certeiro dos golpes, que sangrava ainda e tarde se poderia cicatrizar na sua pobre alma dolorida.

As lagrimas corriam sem parar pelas pálidas faces da bondosa criatura, que assim foi contando, uma a uma, todas as suas dores, não poupando Luis a nenhum dos incidentes, a nenhum detalhe desse martiriologio incomportavel de lutar com os maus, os inferiores, esses que acorrem sempre a lançar a sua pedra quando presentem que a fortuna abandonou os que ha pouco invejavam.

Luis, calado, ouvia, sem a compreensão bem fixada da realidade, olhando com uma persistência dolorosa essa velhinha que chorava um passado em frangalhos, e era a sua mãe, a mesma que ele deixara rica e tão feliz dez anos antes.

—E porque lhe não tinham dito o que se passava?! Porque o tinham alheado assim de todos os desgostos da família, como se fosse um estranho? Não era filho como os outros, não devia ser igualmente filho para as alegrias como para os sofrimentos?...

—Ah, sim! Por sua vontade ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando, mas nem o pai nem Eduarda o consentiram para que ele se não impressionasse e desviasse a atenção dos estudos, que era preciso levar ao fim sem uma falta.

Luis padecia naquele momento uma tão insofrível amargura, que no fundo do seu coração, humanamente egoísta, sentia uma onda de reconhecimento pelos que o tinham poupado daquela maneira... Devia-lhes uma pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida futura.

Então, nesse impulso que dá a própria revolta em toda a criatura contra a dor que a esmaga, começou a consolar a mãe, consolando-se a si mesmo.

O pai, com o emprego que arranjara numa das principais casas bancarias que até ao fim o tinham sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a liquidação voluntaria, ganhava certamente mais do que negociando por sua conta. Depois, ele não estava ali com tudo quanto ganhasse para lhes dar, tudo sendo pouco, é claro, para o que lhes devia?!...

E a mãe sorria por entre lagrimas, numa grande consolação de apaziguamento, porque a sua dôr encontrava abrigo em outra alma que a lamentava.

—Sim, a situação econômica não era de todo desesperada. Dispensariam apenas o supérfluo, a que se tinham habituado, e mesmo esse não completamente, porque na liquidação grande parte do seu dote poderá ficar intacto.

—Oh, ele compreendia bem que não era a questão material a que mais os afligia, era a recordação dum longo passado de paz e de desanuviadas venturas que já ia longe; era a amargura desses últimos anos em que todas as suas energias se concentravam em aparentar uma soberba que não sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a condensação amargurada da sua dor por verem o egoísmo e a maldade dos que ferozmente lhe espiavam as lagrimas e as decepções.

—Ele compreendia bem, finalmente, que o que mais lhe custara fora o deixar essa casa que representava tanto na vida afetiva da sua boa alma de sofredora.

 Desde esse dia nunca mais Luis perdera aquela ideia, que se tornou uma obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das suas paredes, que lhe falariam do passado, todo o martírio a que o tinham furtado generosamente. Em vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento, que classificava de criancice; em vão ela lhe dizia que o passado estava morto e ninguém mais o poderia ressurgir; que não havia imaginação nem vontade humana capaz de fazer voltar atrás o curso da vida, que para eles se precipitara numa cachoeira desatinada e agora ia deslizar num mais belo e sorridente campo.

Mas não! Ele fizera desse projeto o seu sonho, o seu mistério de apaixonado, e iria, sem que ninguém o pudesse impedir de o fazer.

A ideia de que a casa que fora o lar abençoado de toda a sua família já lhes não pertencia, desvairava-o. Iria, acontecesse o que acontecesse, num romântico impulso de sentimento—que mal compreenderia quem lhe não tivesse compulsado os arrebatamentos de apaixonado—evocar todo o passado e embeber-se bem na dôr das eternas e irremediáveis separações.

Agora, ele ali vinha, como um namorado, rever pela ultima vez as coisas que já lhe não pertenciam, e que indiferentemente iam tornar-se para outros as suas coisas, os seus afetos.

Para que viera? — pensava já — porque não se deixara guiar pelos conselhos da corajosa rapariga que tão alegremente ia entretecendo um novo ninho com os restos dispersos do antigo, desfeito pelo temporal? Porque viera?!... — É que queria sofrer, ali mesmo, tudo o que tinham sofrido aqueles que amava.

Fugir a isso parecia-lhe uma covardia excessiva. Imaginava sentir assim, pelo poder evocativo da sua memória despertada pela visão, lagrima por lagrima, desespero por desespero, vexame por vexame, revolta por revolta, a vulgar mas horrível tragédia desse incidente numa família burguesa.

No vagão onde passou a noite, nem uma só vez os olhos se lhe fecharam num sono reparador. Os nervos em sobre-excitação faziam-no reviver, na memória, todas as circunstancias torturantes em que se dera o desastre final. Sentia uma doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por que o seu coração teria passado se a eles tivesse assistido.

Os nervos irritados por tantos dias de ansiedade obrigavam-no a agitar-se numa febre de movimento, um desejo de choro, de gritos convulsivos, que lhe desoprimissem o peito...

Cada nome de estação gritado monotonamente, cortando na noite arrastada o sono dos viajantes, era para ele o martelar desesperador do condenado que assiste ao levantar da sua própria forca.

Em breve, mais um desses gritos ouvidos, a perder-se na noite, e estaria na linda terra, que revia: toda branca e faiscante nos dias ensoalhados de verão, varrida pelas nortadas ásperas da serra, nevada como uma noiva nas invernias inclementes — com as suas paisagens cristalizadas de sonho; as suas feiras rumorosas; as ladainhas através dos campos em flor, pelo despertar das primaveras amorosas; as romarias barulhentas, sob um sol sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que fora, romeiro piedoso e crente, ao presepe do menino; as janeiras, cantadas á sua porta e em que os versos laudatórios lhe agradavam sempre; as semanas santas, com procissões na rua, por esse agonizar de sol doirado em que um Deus assistia á morte doutro Deus...

Tudo isso ele revia, todo esse passado distante se apoderava da sua alma e o fazia viver por momentos uma existência, que se não repetiria mais.

Agora, em frente da antiga casa que lhe enchera de sonhos os últimos meses de vida, Luis sentia-se frio.

Quisera sentir muito e não sentia nada. Nenhuma comoção, nenhuma dor—na sua alma gelada.

Nem a casa lhe parecia a mesma — e decerto não era! — cortadas as trepadeiras que a revestiam de verde e lilás e que a perfumavam docemente com os cachos exóticos das glicínias roxas. Até as janelas tinham sofrido o insulto de serem repintadas de vermelho, e as paredes estavam caiadas de branco, essas paredes de granito polido que tinham ao sol faiscamentos de mica e escureciam sem se ressentirem das intempéries, suavemente, como se envelhece sem sobressalto nem luta, quando se vive sem preocupações.

Já não era a mesma — nada lhe dizia ao seu coração que era a mesma.

Lançou pelas janelas abertas um olhar de indiferente curiosidade para o interior e então quase lhe deu vontade de rir, tanto era banal o mobiliário que a guarnecia, tão charramente burguesa e sem gosto a decoração que a tornava uma casa trivial de endinheirados, de adventícios sem educação.

Fechou os olhos, concentrou-se por segundos na evocação do passado, quiz enganar-se a si próprio, mas não o conseguiu; a sua alma quedou-se, por fim, numa frieza e numa desolação de completo desmoronamento.

Faltava-lhe o quintal; voltou-se para seguir ao longo do muro, deitando um olhar perscrutador para o pequeno jardim gradeado, que era no seu tempo um tufo apenas de verdura, e sofrera, como a casa, a influencia dos novos donos.

Sim, no quintal ao menos iria encontrar as mesmas arvores, os mesmos recantos amáveis de sombra, o mesmo perfume saudável do pomar e da horta verdejantes.

E seguia, rapidamente, olhando o muro de pedra solta e que era bem o mesmo que bastas vezes saltara para comer os belos cachos de uva ferral de grandes bagos corados.

Isso não mudara, ao menos; era o mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar tantas garotices, tanta alegria passada...

Quando chegou ao alto do caminho descobriu a parte do quintal que menos estimava, porque tinha sido adquirida ulteriormente, poucos anos antes da sua ida para o colégio.

Lembrava-se bem de quando o pai comprara aquele grande campo de oliveiras e terra centeeira a entestar com o pomar, que sempre tinham desejado na família e por teima de campônios rudes lhes não pertencia desde muito.

Como ele ria, satisfeito, olhando a mulher, muito contente também, ao ver cair uma a uma as pedras do muro que ia fazer do seu pequenino quintal uma quintasinha deliciosa, mas que para eles nunca deixara de ser o quintal.

Luis sentira então, ao correr pela carreira principal, tão comprida que ao fundo deixava de se avistar a casa, uma sensação de posse, que o fazia agora sorrir.

Lembrava-se bem como Eduarda estava melancólica naquela tarde de outono, olhando o desmoronamento que lhe parecia um começo de destruição — porta escancarada por onde entrariam todos os desastres... Presentimentos de alma extremamente vibrátil, ou acaso sem nenhuma significação, quem pode ao certo dizer o que determinados estados de espírito representam?!

Ali também havia mudança... Luis começou a sentir a ansiedade da dúvida. Tinham plantado vinha nesse campo, que dantes ondulava num verde tenro pelas primaveras, e pelos verões era um manto de ouro, com as espigas acurvadas ao peso do grão já maduro.

Entrou pelo fundo do quintal, que no seu tempo tinha apenas um pequeno muro como sinal de posse e agora se alteara numa hipótese de muralha orgulhosa.

Seguindo pela rua mais larga, ia recordando, uma por uma, as arvores do pomar. Uma certa pereira que se erguia em roca, toda florida e branca como fogaça, e era a primeira a amadurecer as suas peras magníficas; uma rua de aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam ás mãos cheias as avelãs ainda em leite, que eram dum verdadeiro apetite... Depois lembrava-se dumas certas ameixas, muito roxas e carnudas, que ainda lhe faziam crescer a água na boca. E a nespereira imensa que sombreava a horta, com grande desespero do velho Antonio hortelão... e a enorme cerdeira, que tinha uma historia engraçada, que os pequenos sempre contavam ao ouvido dos visitantes e os fazia desenhar gestos de nojo, o que lhes provocava uma esfogueteada de risos!?... E tantas outras que eram mais conhecidas, como suas irmãs, que iria abraçar piedosamente numa despedida derradeira.

Se fosse tempo de lilases, como teria gosto de levar um grande molho de flores para a mãe! Sim, roubaria, porque ao seu inconsciente critério isso não lhe parecia um roubo: se o quintal era o seu, o mesmo que tinha deixado anos antes, que mal poderia haver nisso?!

Apressou o passo até avistar a grande nogueira, plantada no ano do nascimento de Eduarda, e que já no seu tempo era uma bela arvore que desafiava a cobiça do rapazio que de fora namorava as suas verdes nozes de boa casta. Se não fosse noite poderia ver no tronco rugoso as iniciais do seu nome, que Eduarda tinha aberto, na véspera da sua partida para o colégio.

Mas ao chegar junto á arvore, donde se descobria todo o quintal, não pode reprimir um gesto de pavor.

Ah, para que viera ali, numa febre apreensiva de lembranças, — para reviver uma vida que já não existiria mais, para materializar uma saudade que já não poderia ser realidade... para quê?!...

Bem lho dissera Eduarda, aconselhando-o a não dar ao passado mais do que a melancólica e vaga recordação que merece, e lembrando-lhe o dever de caminhar para a frente, de viver, como ela, uma nova vida mais nobre e mais cheia de ideais, que a faziam até abençoar esse desastre material que a libertara de preconceitos e costumes seculares...

Mas ele sofria verdadeiramente e intensissimamente; era uma dor material como a de lhe cortarem um pedaço do seu próprio corpo, ao ver que também o pomar não soubera resistir á mudança de proprietário, na sua passividade de natureza vegetativa.

Oh, as lindas arvores de fruto, as ruas de plumeiras decorativas,— inúteis para o critério mesquinho do vulgo — os crisântemos estrelados, os lírios roxos, as roseiras já grossas como arvores, tudo, tudo fora sacrificado ao ignóbil desejo do lucro. Tudo desaparecera, para dar lugar á vinha!

Como sofria com tal hecatombe, e como sentia no seu próprio ser os gemidos doloridos das suas plantas mortas, cujas almas erravam ali sem dúvida — ele ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas esparsas naquele ar triste de cemitério...

Vinha: toda a horta, todo o pomar, o seu próprio jardinzinho cultivado com tanto disvelo!

Um soluço lhe subiu do peito oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem querer, aos olhos ardentes.

O quintal tinha pouca água, sim, ele sabia isso,— fora até a grande preocupação da família—estando numa encosta que declivava docemente até ao ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sede; pelo contrario, as arvores desenvolviam-se a olhos vistos.

Todo o desespero das coisas fatalmente irremediáveis o sacudia e fazia alucinadamente padecer.

A vinha! Como detestava essa planta, de que transformam em subtil veneno o doce e aromático sumo do seu fruto, e que estropia mais criaturas e faz correr mais sangue e mais lagrimas pelo mundo do que exércitos em campanha!

Como se tornava odiosa aos seus olhos essa planta, que torce convulsamente para o céu os braços descarnados de esqueleto, e como a desejaria queimar, numa fúria vingativa de inquisidor!

Luis amaldiçoava mil vezes essa planta, que é tão estimada, porque representa a cupidez explorando o vicio.

Diante dos seus olhos, embaciados pelas lagrimas, todos esses troncos nus se animavam e viviam dançando numa roda selva tica de possessos.

Como detestava entranhadamente, sagradamente, a vinha!

Não lhe lembrava, por certo, a alegria rubra e ruidosa das vindimas, quando eles iam todos, pelos poentes fulvos dos lindos outonos da sua terra, ás propriedades de fora, e voltavam atrás dos carros que as dornas a transbordar faziam chiar doridamente, ora enterrando-se na areia solta das azinhagas orladas de silvas, ora trambulhando pelas lajes e pedras dos caminhos carreteiros.

Nem sequer recordava o delicado e suave perfume a resêda da vinha em flôr, quando na primavera as noites são frescas e os rouxinóis cantam pelas ramarias os lirismos dos seus amores e as romanzas dos seus noivados.

Via somente os esqueletos tristes que tinham expulso as suas arvores amadas, as suas flores escolhidas, as esbeltas trepadeiras, tudo enfim que fazia o encanto daquele pedaço de natureza que fora uma parte da sua própria alma e deixara de existir para sempre.

Luis abraçou a nogueira, numa última expansão de sentimental, beijou-a devotamente, como a uma velha amiga que se lhe tivesse conservado fiel ao coração, e afastou-se lentamente daquele lugar que fora de martírio para a sua alma, como a mesa de operações dum hospital onde se amputa um membro enfermo.

Ainda de longe olhou para traz, e, num instintivo movimento, tirou o chapéu num último adeus á leal amiga que o vira nascer e fora a única que lhe soubera conservar a ilusão do passado.

Um adeus, um último e enternecido adeus, e tudo tinha acabado.

Foi quase com indiferença que de novo transpôs o muro, sorrindo para o pinhal que marulhava como as vagas de vagabundo mar, e que era o mesmo ainda. Esse não tinha mudado.

Quando o comboio se pôs em marcha para o internar de novo na sua vida do presente, depois daquela tentativa de viver pela recordação um passado sepulto, Luis sentia a impressão estranha de que a terra que deixava não era aquela em que tinha vivido uma tão importante época da sua vida.

Essa, parecia-lhe ter desaparecido completamente, como se a tivessem rasgado do mapa e a tivessem substituído por uma outra vila burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vazia, a mexer-se e a dançar indefinitamente.

Quase a dormitar seguia vagamente essa gente, ia escutar-lhe as palavras para rir do mesmo riso banal, e ficava silencioso, sem nenhuma impressão de alegria ou tristeza.

Depois... tudo se foi diluindo, aos poucos, e adormeceu profundamente, revendo de novo a terra antiga, com varandas revestidas de trepadeiras perfumadas, silêncios religiosos, as arvores, as casas, os costumes, e a gente que era dantes...


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Nota:
Ana de Castro Osório: “Quatro Novelas” (1908)

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