
A VINHA
Luis saíra para o colégio ainda
criança e de lá para as escolas superiores; assim os anos tinham decorrido sem
que nunca mais visitasse a terra natal.
Dez anos, dez longos anos se
tinham passado, e só agora voltava, como um foragido ou como um ladrão, que
enlouquecido de saudades arrisca a vida e a liberdade para rever a terra que
primeiro conheceu e é sempre para o homem a mais querida, a mais bela, a melhor
de todas.
E — pobre Luis! — era na verdade
como um foragido que voltava, escondendo-se para que o não vissem, envergonhado
dessa fraqueza sentimental que já não ia nada bem com os seus galões de
guarda-marinha e o seu bonito bigode a ensombrar-lhe o lábio superior.
E voltava amesquinhado aos seus próprios
olhos, ele que se julgava tão importante pelos estudos transcendentes, que
seguira com certo brilho, porque só agora compreendia o sacrifício de cada
momento, a luta de cada hora, o verdadeiro heroísmo obscuro e respeitável que a
sua educação representava na vida da família.
Compreendia, afinal, um pouco
tarde demais para que a consciência lhe ficasse limpa de remorso, quanta
mentira santa fora preciso inventar, com quanta delicadeza envolver as
palavras, quanta historia arquitetar para que ele aceitasse sem desconfiança o
propositado afastamento em que o tinham conservado durante esse longo período
de tempo.
Chegara por vezes a pensar, as
poucas ocasiões em que reparara nisso, que o desprezavam, que era um pária, que
os pais afastavam receando a vergonha de o apresentarem como seu herdeiro e
continuador.
Dizia-lhe a consciência que tal
procedimento não era justo, porque — se é verdade que não fora nunca um
estudante desses que se mostram com desvanecido orgulho, carregados de
distinções e prêmios que esmagam o próprio dono e irritam os companheiros, — é
certo que o curso lhe saíra limpo, seguido como de empreitada, numa indiferença
risonha de quem o levava com uma perna ás costas.
Lembrava-se de pensar ás vezes no
fato, um tanto irritante, do seu afastamento sistemático da casa paterna, e pôr-se
consigo a acusar os pais; mas á mais leve referencia acudia uma carta de
Eduarda, que varria do seu coração, volúvel e bondoso, a desconfiança cruel.
Era sempre a mesma delicadeza
inteligente, procurando as palavras para não magoar nem esclarecer, fugindo
graciosamente duma pergunta mais nítida, dizendo pouco em longas cartas, que
satisfaziam plenamente a sua ansiedade de momento mas muito deixavam escondido
nas dobras duma alma que se não pode expandir, sob pena de infelicitar os
outros.
Eduarda, apenas mais velha dois
anos do que Luis, fora desde criança uma pequena figura simpática de mulher,
dessas mulheres adoráveis sem deixarem de ser profundamente humanas, ou talvez
por isso mais adoráveis ainda, que tudo compreendem, por tudo se interessam, para
todos são a providencia, o refugio e a esperança.
Quando fora resolvida a sua
entrada para o colégio militar, Luis ficara radiante. É que essa admissão fora
o seu maior empenho, a ambição de largos meses e dias — desde que na terra
aparecera, a propósito de qualquer festa pública, um regimento de lanceiros,
que o tinha enlouquecido com o seu ar soberbamente marcial e as bandeirolas,
vermelho e branco, a planejarem ao sol.
Não pensava noutra coisa senão
naquela sua entrada para o colégio em que todos os alunos são já pequeninos
homens, pequeninos militares de botões reluzentes, barretina, dragonas, e duma
compostura grave de disciplina rígida.
Fazia projetos, contava as peças
do enxoval, que a mãe lhe ia empilhando na mala, lia e relia a relação das coisas
que lhe mandavam levar e prometia a si mesmo só quebrar o seu, mialheiro de
barro quando tivesse já a farda, para ir tirar o retrato de grande uniforme.
Mas quando chegou o dia da
partida e viu á porta o carro em que devia seguir, os criados arrastando as
malas, o pai gritando porque não estavam as coisas em ordem — e o comboio não
espera! — quando viu a mãe soluçante por ver partir o mais novo, o mais
fraquinho, o preferido — todos o sabiam—o Luis perdeu a coragem. E chorou, chorou
intensamente, num soluçar fundo, próprio dessas naturezas impulsivas, febris,
doentias, a que os nervos emprestam uma acuidade dolorosa, embora passageira,
nas sensações.
E ela, a irmãsita, já com a orla
do vestido a procurar o cano da bota, a trança loira caída pelas costas, o corpo
airoso e fino ainda sem o quebrado das linhas feminis, não tivera lagrimas que
correspondessem áquela dor excessiva, nem palavras que consolassem aquela alma
desolada.
Sorria até, para esconder uma
ligeira tremura significativa no labiosito ainda criancil, mas o seu olhar era límpido,
e a face, ligeiramente enrubescida, em coisa alguma traía o esforço enorme de
vontade que a sua atitude representava. É que era realmente heróica aquela
criança que represava as lagrimas, bem naturais no entanto, para encobrir o seu
legitimo desgosto ao ver partir o irmão, o seu companheiro e amigo mais certo.
Porque Luis e Eduarda eram, mais
do que pelo sangue, que tantas vezes corre dessemelhante em filhos da mesma
arvore, irmãos pela camaradagem no estudo e nos passeios, nas distrações como
nos desgostos, nesses tão magoados desgostos infantis, que todos desprezam e
são talvez os mais violentos e os mais desesperadores de toda a vida.
Mas Eduarda tinha a rara
delicadeza de certas almas de exceção, que em si concentram a própria dor e só
têm para a dos outros carinho e consolo.
Se o Luis soubesse o que ela
sofria, ficando ali a vê-lo partir, debruçado na portinhola da carroagem e
ainda a recomendar-lhe as suas coisas — os animais, as flores, os brinquedos
abandonados!... Se ele soubesse como a pequena sentia já a solidão em que ia
ficar, naquela pobre terra sem diversões e sem conhecimentos, ela que não
cultivara mais amizades infantis além da dele!...
Nos primeiros tempos as cartas
amiudavam-se: ele, contando tudo quanto via de novo e o trazia em contínua
sobre-excitação, em duas linhas sugestivas, sempre apressado por falta de paciência
para escrever; ela, narrando detalhadamente os pequenos casos domésticos, que
tanto interesse despertam sempre ás crianças. Eram recordações de passeios e
brinquedos, a relação de todas as pessoas avistadas, os amigos da casa que
perguntavam sempre por ele, os seus recados, as suas próprias palavras.
Luis bem o conhecia: eram
verdadeiros recados aqueles, — não banalidades cerimoniosas — que evocavam, á sua
recordação saudosa, as figuras amigas que as enviavam, de longe.
Depois, no fim das cartas, como
repique festivo de sinos em véspera de dia santo, a esperança das férias, a
contagem dos dias que faltavam para essa felicidade tão desejada e retardada
sempre.
Quando se aproximava esse
abençoado mês de setembro e ele já só esperava a ordem para embarcar no grande
comboio resfolegante que o levaria ao conchego da família e ao abrigo das
velhas paredes amigas, que tinham visto nascer e crescer umas poucas de
gerações de rapazes como ele, uma carta vinha preveni-lo de que aguardasse o
pai para seguirem ambos para uma dessas famosas praias do litoral onde um mês
se passa sem se sentir na vida duma criança.
Assim foi passando o tempo: aos
anos de colégio seguiram-se os da escola, sempre despreocupados e alegres, sem
que coisa alguma o preparasse para o martírio incomportavel que estava agora
sofrendo, sem que coisa alguma lhe fizesse supor o doloroso drama, obscuro e
martirizante, que lá longe se ia desenrolando lentamente, esmagando com
ferocidade os corações que tanto lhe queriam...
Também, que satisfação, livre de
preocupações, ele teve quando recebeu aquela carta em que Eduarda lhe dizia,
entre coisas ligeiras e banais: — que tinham resolvido vender a velha casa e o
quintal para irem viver para Lisboa. Ficariam assim mais perto dele, quando as
suas longas viagens o deixassem descansar por algum tempo com a família. Assim
estariam juntos durante todo o tempo em que estivesse em Portugal.
Que alegria a dele! Nem sequer
lhe passou pela cabeça a lembrança dessa velha casa, que os abrigara, carinhosa
e maternal, como tinha já abrigado os pais e os avós, e vivia como ser
consciente dentro do fundo da sua alma.
Como Eduarda, querendo poupar
toda a mágoa ao seu coração mal preparado para a dor, mostrava bem conhecer
essa natureza de amorável e sentimental, que um nada arrebata á mais acesa
alegria como á mais desolada tristeza!...
A vida intensa das grandes cidades,
que mais a fariam a ela viver adentro de si mesma, concentrando-a no seu eu,
tirava-lhe a ele a sensação nítida da sua vida própria e, apanhando-o nessa
engrenagem barulhenta e niveladora, dava-lhe apenas as ideias e os sentimentos
de toda a gente.
Agora, com a vinda dos pais e da
irmã, sentia-se bem feliz para nem sequer se deter a pensar nos prováveis motivos
que tinham determinado aquela resolução.
Como estaria Eduarda, que deixara
ainda uma criança, tantos anos volvidos sem se verem? E a mãe? Dizia-lhe
sempre, nas suas cartas, que se sentia muito velha e doente, mas ele sorria-se
confiante e não a via senão como a deixara, sorridente, laboriosa e desempenada,
a alma de toda aquela colmeia que era a casa paterna.
Com que impaciência febril
esperou o dia marcado para a chegada, e como logo de manhã, ao alvorecer desse
dia bendito, se sentiu outro, alegre até á loucura de ter vontade de abraçar
toda a gente, de saltar pelas ruas como uma criança, sentindo-se leve,
surpreendendo-se diferente, mal cabendo na sua bonita farda de guarda-marinha!
Ás horas da comida não conseguiu engolir
com desfastio os costumados manjares da velha hospedeira, a quem deu um abraço
apertado prometendo-lhe trazer a família para que os conhecesse, — havia ela de
ver como eram seus amigos...
E a velha D. Engrácia, que tantas
vezes se arreliara com as suas telhas, como ela dizia, sentiu que as lagrimas
lhe vinham aos olhos com a comunicativa sensibilidade daquela alma que se
escancarava para lhe mostrar quanto sentia de bom.
Muito antes da tarde já ele se
dirigia para o Rocio, na ideia inconsciente de se aproximar da estação onde os
iria esperar, algumas horas mais tarde.
Falando com um e com outro,
discutindo um pouco sem se interessar muito nas conversas, entrando no Tavares
Cardoso para folhear um livro, indo ao Martinho beber uma cerveja, mastigando
cigarros sobre cigarros, impaciente e febril, mas alegre e falador como nunca
os seus amigos o tinham visto...
A hora chegou por fim, porque
todas as horas chegam, por mais doloroso ou lento que seja o seu caminhar esmagante,
como fogem todas, por mais que as queiramos retardar um instante nos raros
momentos que nos trazem felicidade. Ele lá estava, desde muito cedo, esperando
na gare, sentindo o coração bater desordenado, quando ao fundo do túnel
despontou a luz vermelha da locomotiva e o guarda tocou a corneta anunciadora,
ao passar nas agulhas... Depois, que estranha sensação a sua ao ver as três
cabeças, que resumiam todos os seus grandes afetos, debruçarem-se nas janelas
do vagão, sorrindo-lhe e reconhecendo-o de longe! E ele, que só reconheceria o
pai, com certeza, se os não esperasse, tal era a diferença que faziam as duas:
Eduarda, uma mulher perfeita, sem nada que recordasse a criança esbelta que
deixara; a mãe, debilitada e encanecida, tão velhinha, que não podia afirmar
que não houvesse engano.
Oh, mas a velhinha é que o
reconhecia bem, ao seu Luis, beijando-o e abraçando-o com frenesi e achando-o
mil vezes mais bonito do que ao retrato.
Também Eduarda o abraçou
alegremente e achou muito bom, apesar de um pouco menos forte do que ela, que
se talhara e desenvolvera longe da atmosfera falsificada da cidade, no puro ar
criador da montanha.
Chegou também a vez da Maria o
abraçar, — Maria; a criada fiel que os acompanhara sempre, que era alguém na família,
uma pessoa que a todos satisfazia e com quem todos contavam.
Inolvidável momento aquele que os
reunia, depois de tão grande e inexplicável afastamento; encantador de
contentamento esse primeiro repasto, num restaurante trivial da Baixa, para darem
tempo a que as bagagens pudessem chegar á casa muito alegre que ele escolhera,
com vistas sobre todo o estuário azul do Tejo, onde a lua entornava, nessa
noite gloriosa de junho, a sua luz branca e leitosa, vagamente adormecedora...
Luis sentiu-se orgulhoso com os
elogios que a sua escolha cuidadosa mereceu á irmã e queria convencer a mãe de
que nada havia que se comparasse ao espetáculo grandioso de toda essa cidade
picada de luzes, estirando-se ao longo do rio, que centenares de pequenos faróis
faziam também palpitar e viver, como outra cidade flutuante.
A pouco e pouco, abertas as malas
para que tudo fosse colocado no seu lugar, Luis começou a reconhecer com
enternecimento as velhas coisas que os seus olhos de petiz haviam conhecido e
admirado. Foi com alegria quase infantil que levou á mãe a velha caixa de
xarão, herança da avozinha, onde eram guardadas cuidadosamente as pequeninas
coisas preciosas que queriam roubar á curiosidade, nem sempre segura, das suas
mãositas de criança.
Uma chávena, uma jarra, qualquer
coisa enfim que ia aparecendo, lhe ia trazendo uma saudade da infância longínqua
e que esvoaçava agora na sua alma como farrapo branco de nuvem distante a
dissolver-se num rubro poente.
A mãe, que um momento ficara só
junto dele, chorava silenciosamente, olhando-o com ternura.
Luis não compreendia — chorar!?...
Então não estava satisfeita por estar em Lisboa, com ele? Não viera por sua
muito livre vontade?
E então a pobre senhora, incapaz
de por mais tempo o iludir, desejando mesmo — no egoísmo inconsciente dos que
sofrem — associar todos á sua dor, não se fez rogada e disse, disse tudo, tudo
quanto de amargurado e desesperador lhe tinham dado esses anos em que o não
vira.
— Fora uma luta tremenda e
desigual, essa que o pai sustentara durante anos, contra tudo e contra todos,
sem perder a energia, sem trepidar nem recuar. Primeiro, ia muito bem nos seus negócios
— o Luis devia lembrar-se... Depois, as fianças, os roubos, a má fé de uns, a
inveja mesquinha de outros, abalaram-lhe o crédito, envolveram-no em questões e
demandas, fizeram-no perder uma a uma todas as suas belas propriedades, as
compradas á custa de muito trabalho e as que herdara pessoalmente, e até a sua própria
casa de moradia, quando já nada mais tinha que desafiasse a cobiça alheia, lá
se fora embora, com o quintal. Sim, esse fora o último e o mais certeiro dos
golpes, que sangrava ainda e tarde se poderia cicatrizar na sua pobre alma
dolorida.
As lagrimas corriam sem parar
pelas pálidas faces da bondosa criatura, que assim foi contando, uma a uma, todas
as suas dores, não poupando Luis a nenhum dos incidentes, a nenhum detalhe
desse martiriologio incomportavel de lutar com os maus, os inferiores, esses
que acorrem sempre a lançar a sua pedra quando presentem que a fortuna
abandonou os que ha pouco invejavam.
Luis, calado, ouvia, sem a
compreensão bem fixada da realidade, olhando com uma persistência dolorosa essa
velhinha que chorava um passado em frangalhos, e era a sua mãe, a mesma que ele
deixara rica e tão feliz dez anos antes.
—E porque lhe não tinham dito o
que se passava?! Porque o tinham alheado assim de todos os desgostos da família,
como se fosse um estranho? Não era filho como os outros, não devia ser
igualmente filho para as alegrias como para os sofrimentos?...
—Ah, sim! Por sua vontade
ter-lhe-ia contado logo o que se ia passando, mas nem o pai nem Eduarda o
consentiram para que ele se não impressionasse e desviasse a atenção dos
estudos, que era preciso levar ao fim sem uma falta.
Luis padecia naquele momento uma
tão insofrível amargura, que no fundo do seu coração, humanamente egoísta,
sentia uma onda de reconhecimento pelos que o tinham poupado daquela maneira...
Devia-lhes uma pacifica e alegre mocidade, que lhe preparava uma serena vida
futura.
Então, nesse impulso que dá a própria
revolta em toda a criatura contra a dor que a esmaga, começou a consolar a mãe,
consolando-se a si mesmo.
O pai, com o emprego que
arranjara numa das principais casas bancarias que até ao fim o tinham
sustentado, sustentando-lhe o seu crédito para a liquidação voluntaria, ganhava
certamente mais do que negociando por sua conta. Depois, ele não estava ali com
tudo quanto ganhasse para lhes dar, tudo sendo pouco, é claro, para o que lhes
devia?!...
E a mãe sorria por entre
lagrimas, numa grande consolação de apaziguamento, porque a sua dôr encontrava
abrigo em outra alma que a lamentava.
—Sim, a situação econômica não
era de todo desesperada. Dispensariam apenas o supérfluo, a que se tinham
habituado, e mesmo esse não completamente, porque na liquidação grande parte do
seu dote poderá ficar intacto.
—Oh, ele compreendia bem que não
era a questão material a que mais os afligia, era a recordação dum longo
passado de paz e de desanuviadas venturas que já ia longe; era a amargura
desses últimos anos em que todas as suas energias se concentravam em aparentar
uma soberba que não sentiam, em mostrar um orgulho que era feito de toda a
condensação amargurada da sua dor por verem o egoísmo e a maldade dos que
ferozmente lhe espiavam as lagrimas e as decepções.
—Ele compreendia bem, finalmente,
que o que mais lhe custara fora o deixar essa casa que representava tanto na
vida afetiva da sua boa alma de sofredora.
Desde esse dia nunca mais Luis perdera aquela
ideia, que se tornou uma obsessão: ir visitar a velha casa e reviver diante das
suas paredes, que lhe falariam do passado, todo o martírio a que o tinham
furtado generosamente. Em vão Eduarda o dissuadia desse capricho do sentimento,
que classificava de criancice; em vão ela lhe dizia que o passado estava morto
e ninguém mais o poderia ressurgir; que não havia imaginação nem vontade humana
capaz de fazer voltar atrás o curso da vida, que para eles se precipitara numa
cachoeira desatinada e agora ia deslizar num mais belo e sorridente campo.
Mas não! Ele fizera desse projeto
o seu sonho, o seu mistério de apaixonado, e iria, sem que ninguém o pudesse
impedir de o fazer.
A ideia de que a casa que fora o
lar abençoado de toda a sua família já lhes não pertencia, desvairava-o. Iria,
acontecesse o que acontecesse, num romântico impulso de sentimento—que mal
compreenderia quem lhe não tivesse compulsado os arrebatamentos de
apaixonado—evocar todo o passado e embeber-se bem na dôr das eternas e irremediáveis
separações.
Agora, ele ali vinha, como um
namorado, rever pela ultima vez as coisas que já lhe não pertenciam, e que
indiferentemente iam tornar-se para outros as suas coisas, os seus afetos.
Para que viera? — pensava
já — porque não se deixara guiar pelos conselhos da corajosa rapariga que tão
alegremente ia entretecendo um novo ninho com os restos dispersos do antigo,
desfeito pelo temporal? Porque viera?!... — É que queria sofrer, ali mesmo, tudo
o que tinham sofrido aqueles que amava.
Fugir a isso parecia-lhe uma
covardia excessiva. Imaginava sentir assim, pelo poder evocativo da sua memória
despertada pela visão, lagrima por lagrima, desespero por desespero, vexame por
vexame, revolta por revolta, a vulgar mas horrível tragédia desse incidente
numa família burguesa.
No vagão onde passou a noite, nem
uma só vez os olhos se lhe fecharam num sono reparador. Os nervos em sobre-excitação
faziam-no reviver, na memória, todas as circunstancias torturantes em que se dera
o desastre final. Sentia uma doentia voluptuosidade em pensar nos tormentos por
que o seu coração teria passado se a eles tivesse assistido.
Os nervos irritados por tantos
dias de ansiedade obrigavam-no a agitar-se numa febre de movimento, um desejo
de choro, de gritos convulsivos, que lhe desoprimissem o peito...
Cada nome de estação gritado
monotonamente, cortando na noite arrastada o sono dos viajantes, era para ele o
martelar desesperador do condenado que assiste ao levantar da sua própria
forca.
Em breve, mais um desses gritos
ouvidos, a perder-se na noite, e estaria na linda terra, que revia: toda branca
e faiscante nos dias ensoalhados de verão, varrida pelas nortadas ásperas da
serra, nevada como uma noiva nas invernias inclementes — com as suas paisagens cristalizadas
de sonho; as suas feiras rumorosas; as ladainhas através dos campos em flor,
pelo despertar das primaveras amorosas; as romarias barulhentas, sob um sol
sufocante de canícula... Depois, os descantes; os natais, em que fora, romeiro
piedoso e crente, ao presepe do menino; as janeiras, cantadas á sua porta e em
que os versos laudatórios lhe agradavam sempre; as semanas santas, com
procissões na rua, por esse agonizar de sol doirado em que um Deus assistia á
morte doutro Deus...
Tudo isso ele revia, todo esse
passado distante se apoderava da sua alma e o fazia viver por momentos uma existência,
que se não repetiria mais.
Agora, em frente da antiga casa
que lhe enchera de sonhos os últimos meses de vida, Luis sentia-se frio.
Quisera sentir muito e não sentia
nada. Nenhuma comoção, nenhuma dor—na sua alma gelada.
Nem a casa lhe parecia a mesma — e
decerto não era! — cortadas as trepadeiras que a revestiam de verde e lilás e
que a perfumavam docemente com os cachos exóticos das glicínias roxas. Até as
janelas tinham sofrido o insulto de serem repintadas de vermelho, e as paredes
estavam caiadas de branco, essas paredes de granito polido que tinham ao sol
faiscamentos de mica e escureciam sem se ressentirem das intempéries,
suavemente, como se envelhece sem sobressalto nem luta, quando se vive sem
preocupações.
Já não era a mesma — nada lhe
dizia ao seu coração que era a mesma.
Lançou pelas janelas abertas um
olhar de indiferente curiosidade para o interior e então quase lhe deu vontade
de rir, tanto era banal o mobiliário que a guarnecia, tão charramente burguesa
e sem gosto a decoração que a tornava uma casa trivial de endinheirados, de adventícios
sem educação.
Fechou os olhos, concentrou-se
por segundos na evocação do passado, quiz enganar-se a si próprio, mas não o
conseguiu; a sua alma quedou-se, por fim, numa frieza e numa desolação de completo
desmoronamento.
Faltava-lhe o quintal; voltou-se
para seguir ao longo do muro, deitando um olhar perscrutador para o pequeno
jardim gradeado, que era no seu tempo um tufo apenas de verdura, e sofrera,
como a casa, a influencia dos novos donos.
Sim, no quintal ao menos iria
encontrar as mesmas arvores, os mesmos recantos amáveis de sombra, o mesmo
perfume saudável do pomar e da horta verdejantes.
E seguia, rapidamente, olhando o
muro de pedra solta e que era bem o mesmo que bastas vezes saltara para comer
os belos cachos de uva ferral de grandes bagos corados.
Isso não mudara, ao menos; era o
mesmo que conhecera e lhe fazia lembrar tantas garotices, tanta alegria
passada...
Quando chegou ao alto do caminho
descobriu a parte do quintal que menos estimava, porque tinha sido adquirida
ulteriormente, poucos anos antes da sua ida para o colégio.
Lembrava-se bem de quando o pai
comprara aquele grande campo de oliveiras e terra centeeira a entestar com o
pomar, que sempre tinham desejado na família e por teima de campônios rudes
lhes não pertencia desde muito.
Como ele ria, satisfeito, olhando
a mulher, muito contente também, ao ver cair uma a uma as pedras do muro que ia
fazer do seu pequenino quintal uma quintasinha deliciosa, mas que para eles
nunca deixara de ser o quintal.
Luis sentira então, ao correr
pela carreira principal, tão comprida que ao fundo deixava de se avistar a
casa, uma sensação de posse, que o fazia agora sorrir.
Lembrava-se bem como Eduarda
estava melancólica naquela tarde de outono, olhando o desmoronamento que lhe
parecia um começo de destruição — porta escancarada por onde entrariam todos os
desastres... Presentimentos de alma extremamente vibrátil, ou acaso sem nenhuma
significação, quem pode ao certo dizer o que determinados estados de espírito
representam?!
Ali também havia mudança... Luis
começou a sentir a ansiedade da dúvida. Tinham plantado vinha nesse campo, que
dantes ondulava num verde tenro pelas primaveras, e pelos verões era um manto
de ouro, com as espigas acurvadas ao peso do grão já maduro.
Entrou pelo fundo do quintal, que
no seu tempo tinha apenas um pequeno muro como sinal de posse e agora se
alteara numa hipótese de muralha orgulhosa.
Seguindo pela rua mais larga, ia
recordando, uma por uma, as arvores do pomar. Uma certa pereira que se erguia
em roca, toda florida e branca como fogaça, e era a primeira a amadurecer as
suas peras magníficas; uma rua de aveleiras baixas e tufadas, donde apanhavam
ás mãos cheias as avelãs ainda em leite, que eram dum verdadeiro apetite...
Depois lembrava-se dumas certas ameixas, muito roxas e carnudas, que ainda lhe
faziam crescer a água na boca. E a nespereira imensa que sombreava a horta, com
grande desespero do velho Antonio hortelão... e a enorme cerdeira, que tinha
uma historia engraçada, que os pequenos sempre contavam ao ouvido dos
visitantes e os fazia desenhar gestos de nojo, o que lhes provocava uma
esfogueteada de risos!?... E tantas outras que eram mais conhecidas, como suas
irmãs, que iria abraçar piedosamente numa despedida derradeira.
Se fosse tempo de lilases, como
teria gosto de levar um grande molho de flores para a mãe! Sim, roubaria,
porque ao seu inconsciente critério isso não lhe parecia um roubo: se o quintal
era o seu, o mesmo que tinha deixado anos antes, que mal poderia haver nisso?!
Apressou o passo até avistar a
grande nogueira, plantada no ano do nascimento de Eduarda, e que já no seu
tempo era uma bela arvore que desafiava a cobiça do rapazio que de fora
namorava as suas verdes nozes de boa casta. Se não fosse noite poderia ver no
tronco rugoso as iniciais do seu nome, que Eduarda tinha aberto, na véspera da
sua partida para o colégio.
Mas ao chegar junto á arvore,
donde se descobria todo o quintal, não pode reprimir um gesto de pavor.
Ah, para que viera ali, numa
febre apreensiva de lembranças, — para reviver uma vida que já não existiria
mais, para materializar uma saudade que já não poderia ser realidade... para
quê?!...
Bem lho dissera Eduarda,
aconselhando-o a não dar ao passado mais do que a melancólica e vaga recordação
que merece, e lembrando-lhe o dever de caminhar para a frente, de viver, como ela,
uma nova vida mais nobre e mais cheia de ideais, que a faziam até abençoar esse
desastre material que a libertara de preconceitos e costumes seculares...
Mas ele sofria verdadeiramente e
intensissimamente; era uma dor material como a de lhe cortarem um pedaço do seu
próprio corpo, ao ver que também o pomar não soubera resistir á mudança de proprietário,
na sua passividade de natureza vegetativa.
Oh, as lindas arvores de fruto,
as ruas de plumeiras decorativas,— inúteis para o critério mesquinho do vulgo —
os crisântemos estrelados, os lírios roxos, as roseiras já grossas como
arvores, tudo, tudo fora sacrificado ao ignóbil desejo do lucro. Tudo desaparecera,
para dar lugar á vinha!
Como sofria com tal hecatombe, e
como sentia no seu próprio ser os gemidos doloridos das suas plantas mortas,
cujas almas erravam ali sem dúvida — ele ouvia-lhes e compreendia-lhes as queixas
esparsas naquele ar triste de cemitério...
Vinha: toda a horta, todo o
pomar, o seu próprio jardinzinho cultivado com tanto disvelo!
Um soluço lhe subiu do peito
oprimido, e as lagrimas vieram-lhe, sem querer, aos olhos ardentes.
O quintal tinha pouca água, sim,
ele sabia isso,— fora até a grande preocupação da família—estando numa encosta
que declivava docemente até ao ribeiro... Mas nunca lá tinha morrido nada com sede;
pelo contrario, as arvores desenvolviam-se a olhos vistos.
Todo o desespero das coisas
fatalmente irremediáveis o sacudia e fazia alucinadamente padecer.
A vinha! Como detestava essa
planta, de que transformam em subtil veneno o doce e aromático sumo do seu
fruto, e que estropia mais criaturas e faz correr mais sangue e mais lagrimas
pelo mundo do que exércitos em campanha!
Como se tornava odiosa aos seus
olhos essa planta, que torce convulsamente para o céu os braços descarnados de
esqueleto, e como a desejaria queimar, numa fúria vingativa de inquisidor!
Luis amaldiçoava mil vezes essa
planta, que é tão estimada, porque representa a cupidez explorando o vicio.
Diante dos seus olhos, embaciados
pelas lagrimas, todos esses troncos nus se animavam e viviam dançando numa roda
selva tica de possessos.
Como detestava entranhadamente,
sagradamente, a vinha!
Não lhe lembrava, por certo, a
alegria rubra e ruidosa das vindimas, quando eles iam todos, pelos poentes
fulvos dos lindos outonos da sua terra, ás propriedades de fora, e voltavam atrás
dos carros que as dornas a transbordar faziam chiar doridamente, ora enterrando-se
na areia solta das azinhagas orladas de silvas, ora trambulhando pelas lajes e
pedras dos caminhos carreteiros.
Nem sequer recordava o delicado e
suave perfume a resêda da vinha em flôr, quando na primavera as noites são
frescas e os rouxinóis cantam pelas ramarias os lirismos dos seus amores e as
romanzas dos seus noivados.
Via somente os esqueletos tristes
que tinham expulso as suas arvores amadas, as suas flores escolhidas, as
esbeltas trepadeiras, tudo enfim que fazia o encanto daquele pedaço de natureza
que fora uma parte da sua própria alma e deixara de existir para sempre.
Luis abraçou a nogueira, numa
última expansão de sentimental, beijou-a devotamente, como a uma velha amiga
que se lhe tivesse conservado fiel ao coração, e afastou-se lentamente daquele lugar
que fora de martírio para a sua alma, como a mesa de operações dum hospital
onde se amputa um membro enfermo.
Ainda de longe olhou para traz,
e, num instintivo movimento, tirou o chapéu num último adeus á leal amiga que o
vira nascer e fora a única que lhe soubera conservar a ilusão do passado.
Um adeus, um último e enternecido
adeus, e tudo tinha acabado.
Foi quase com indiferença que de
novo transpôs o muro, sorrindo para o pinhal que marulhava como as vagas de
vagabundo mar, e que era o mesmo ainda. Esse não tinha mudado.
Quando o comboio se pôs em marcha
para o internar de novo na sua vida do presente, depois daquela tentativa de
viver pela recordação um passado sepulto, Luis sentia a impressão estranha de
que a terra que deixava não era aquela em que tinha vivido uma tão importante
época da sua vida.
Essa, parecia-lhe ter
desaparecido completamente, como se a tivessem rasgado do mapa e a tivessem substituído
por uma outra vila burguesinha, cheia de sol e de gente palradora e vazia, a
mexer-se e a dançar indefinitamente.
Quase a dormitar seguia vagamente
essa gente, ia escutar-lhe as palavras para rir do mesmo riso banal, e ficava
silencioso, sem nenhuma impressão de alegria ou tristeza.
Depois... tudo se foi diluindo,
aos poucos, e adormeceu profundamente, revendo de novo a terra antiga, com
varandas revestidas de trepadeiras perfumadas, silêncios religiosos, as
arvores, as casas, os costumes, e a gente que era dantes...
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Nota:
Ana de Castro Osório: “Quatro
Novelas” (1908)
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